Uma virada imprevista: o"fim" da adoção internacional no Brasil
Tráficos de órfãos e de órgãos e adoção internacional compunham um pacote
pronto para consumo na mídia brasileira de 10 anos atrás. Hoje, com novas
políticas priorizando "a convivência familiar", os excessos desse "tráfico"
internacional, na sua maioria, foram afastados, e a própria adoção foi colocada
em um segundo plano. Mas, justamente devido a essa distância confortável diante
dos escândalos dos anos 1990, cabe agora rever alguns momentos dessa época – a
ascensão e a queda da adoção internacional no Brasil – para tirar dela algumas
lições e refletir sobre as pressões nacionais e internacionais que vêm a
influenciar políticas sociais no país. Assim, depois de um rápido olhar sobre o
"mercado internacional de crianças adotáveis", voltarei a atenção para uma
preocupação clássica da antropologia do direito, procurando entender a
interação entre leis nacionais, a "opinião pública" tal como refletida na mídia
e práticas concretas de indivíduos envolvidos no campo da adoção. Tentarei
demonstrar, no decorrer deste artigo, que, por estarem relacionadas a uma
situação global particularmente nova com um sem-número de variáveis em jogo,
nem sempre as tendências de adoção internacional são fáceis de prever.
Não faz muito tempo, escândalos sobre adoção internacional estavam em
evidência, aparecendo com regularidade na mídia brasileira. No final de 1995,
jornais de circulação nacional ainda publicavam reportagens alegando –
equivocadamente como veremos depois – ser o Brasil o maior exportador mundial
de crianças adotadas (Folha de S. Paulo, 15/11/1995). Mesmo cinco anos mais
tarde, era possível encontrar em praticamente qualquer dos maiores canais
televisivos programas sobre os excessos da adoção internacional no Brasil. E,
ainda naquela época, os profissionais brasileiros consultados para essa
pesquisa1 – assistentes sociais, juízes e psicólogos especialistas no processo
de adoção – eram unânimes na sua convicção de que até ali, na virada do
milênio, a adoção internacional continuava perigosamente popular em um bom
número dos 27 estados do país.
Levantei a hipótese que, de fato, as preocupações duraram mais tempo do que o
perigo "real". Certamente, até meados dos anos 1990, havia motivos de sobra
para considerar o Brasil como um dos maiores "fornecedores" de crianças no
mundo. Kane, escrevendo sobre os anos 1980, classificara o Brasil como o quarto
maior exportador de crianças (atrás de Coréia, Índia e Colômbia) prevendo que,
"mantendo-se os padrões atuais [,] a América do Sul se tornará em breve a maior
região expedidora" (1993:323). Na época, crianças brasileiras pareciam
encabeçar a lista de adotados estrangeiros em países como França e Itália. As
estatísticas de 1993 da Polícia Federal brasileira mostravam que, depois de uma
pausa no início da década, o número de crianças saindo do país com pais
adotivos estrangeiros crescia outra vez. Conforme essa fonte, nos primeiros
quatro anos da década de 1990, o número de crianças adotadas no exterior já
ultrapassava a soma das adoções de toda a década anterior.
No entanto, já a partir de 2000, estávamos com dúvidas quanto à atualidade
dessas práticas. Naquele ano, Selman (2000), um pesquisador britânico,
especializado em adoção internacional, apresentou dados preliminares de sua
pesquisa, afirmando que, em 1998, entre os 14 países de onde saíam mais
crianças adotadas, o Brasil era quase o último da lista2. Seria possível
explicar essa "subestimação" em termos do recorte do universo pesquisado? O
material de Selman, limitado a crianças de 0 a 4 anos, não incluía – entre seus
dados acerca das principais nações "receptoras" – a Itália, destino principal
de pequenos brasileiros. Mas, um exame mais demorado dos dados mostrava que o
Brasil não era o único país destronado de sua liderança entre as nações
"doadoras de crianças". A Índia também caíra para um patamar que, levando em
consideração a sua população, a colocava em último lugar na lista de países
doadores. Para sanar minhas dúvidas, recorri no final de 2000 diretamente à
Polícia Federal em Brasília, à seção de passaportes, pela qual todas as
crianças legalmente adotadas por estrangeiros deveriam passar. Assim, recebi,
via internet, em arquivos separados por ano, de 1990 a 2000, o número de
adoções internacionais realizadas por cada comarca no país. Comparado com dados
sobre os anos de 1986 a 1994 apresentados na tabela da Polícia Federal3 que
localizei junto ao Juizado da Infância e Juventude em Porto Alegre, esse
material deu a visão gráfica da evolução da adoção internacional no país, a
qual pode ser vista no Gráfico_1.
Cabe mencionar que os dados recebidos da Polícia Federal em 2000 não fechavam
inteiramente com as estatísticas fornecidas seis anos antes por aquele mesmo
departamento, nem tampouco coincidiam com os números que tínhamos coletado
diretamente em certos juizados. No entanto, essas discrepâncias eram pequenas
na sua maioria e não afetavam significativamente a queda dramática na adoção
internacional de crianças brasileiras registradas na década de 1990 – de 2.000
por ano, no início, para 400, no final da década.
Diante desse quadro, cabia uma agenda de pesquisa direcionada a duas questões
interconectadas: como explicar essa queda súbita de adoção internacional? Por
que, apesar de tão impressionante mudança, a grande maioria dos brasileiros
ainda considerava a adoção internacional uma forte ameaça? Examinarei, nos
parágrafos que seguem, algumas hipóteses a respeito de diferentes processos
sociais e políticos que podem ser relevantes para esta discussão.
ADOÇÃO INTERNACIONAL SITUADA NA HISTÓRIA RECENTE
Para melhor entender as flutuações de adoção no cenário internacional, cabe uma
breve retomada da história recente desse fenômeno. De fato, a adoção plena tal
como a conhecemos hoje – a transferência total e irrevogável de uma criança de
uma família ("biológica" ou "de origem") para outra ("adotiva") – é um fenômeno
bastante recente na história legislativa do Ocidente. Historiadores constatam
que, apesar de ter existido algo semelhante desde tempos imemoriais (veja-se
Boswell, 1988), é apenas depois da Segunda Guerra Mundial que se generalizou a
idéia da "filiação substitutiva"4. Essa forma particular de colocação de uma
criança traz a possibilidade de direitos plenos do adotado na sua nova família,
mas à custa de uma ruptura completa na sua identidade familiar. Dessa forma,
passando por cima de séculos de debate – se o anonimato dos pais biológicos
(simbolizado em muitos relatos pela histórica "roda dos expostos") servia mais
aos interesses destes ou aos dos novos pais –, autoridades estatais passaram a
decretar sigilo total nos procedimentos adotivos, tornando-se guardiões
exclusivos do "segredo das origens" das crianças adotadas (Modell, 1994;
Ouellette, 1995).
O historiador Carp (1998), escrevendo sobre o caso norte-americano, associa a
institucionalização do "segredo de origens" a circunstâncias particulares da
época. Até meados do século XX, como na maioria de outros contextos, eram
principalmente mulheres miseráveis que simplesmente não tinham condições de
criar seus filhos que forneciam crianças a serem adotadas. Elas não tinham
interesse especial em esconder sua identidade, tampouco os legisladores se
preocupavam em "proteger" os interesses delas. Durante os anos 1960, a
revolução sexual alcançou jovens da classe média norte-americana antes da
revolução tecnológica que trouxe a pílula contraceptiva. Teria sido neste
período "de transição" que a geração senior e mais conservadora dessa classe
média teria pressionado para mudanças na lei sobre adoção, permitindo que seus
netos ilegítimos fossem adotados por outras famílias sem perigo de retorno.
Procurava, desta forma, retirar elementos "excedentes" do recinto familiar,
preservando suas filhas para um futuro casamento em moldes tradicionais.
Em um curto espaço de tempo, no entanto, houve uma nova virada. Foi justamente
no auge da prosperidade pós-guerra, junto com as políticas de bem-estar social,
que as tecnologias contraceptivas trouxeram, no "Primeiro Mundo", um declínio
das taxas de nascimento. Não somente diminuíram as gestações não-planejadas,
como também ocasionaram um menor estigma em torno da ilegitimidade e menos
pobreza obrigando mulheres a "abandonar" seus filhos. Tudo isso teria ocorrido
justamente em uma época – bem documentada por Parsons e Bales (1955) – quando o
ideal da família nuclear estava em alta, atiçando o desejo por filhos. Aquelas
pessoas com dificuldades conceptivas passaram a se queixar da "falta" de
crianças disponíveis para a adoção.
Em um primeiro momento, abrindo mão de suas exigências tradicionais (por uma
criança com fenótipo semelhante ao deles), procuraram filhos adotivos dentro
das próprias fronteiras, entre as populações pobres e minoritárias que não
tinham lucrado com os recentes "avanços" sociais. Assim, a adoção inter-racial,
considerada até então desaconselhável tanto para pais quanto para filhos,
passou a ser reconsiderada. Entretanto, movimentos sociais não tardaram a
protestar contra essa "apropriação" de crianças negras, havaianas, esquimós e
indígenas por casais brancos da classe média (ver Simon, 1984; Modell, 1998;
Slaughter, 2000). A preocupação norte-americana com a violação de direitos de
populações minoritárias traduziu-se na sociedade européia (etnicamente mais
uniforme) por um maior cuidado com os direitos das classes populares. Tornou-se
cada vez mais difícil, conforme as leis européias e norte-americanas, destituir
qualquer pessoa de seu status paternal ou maternal contra sua vontade. Diante
de tal quadro, os casais, querendo adotar uma criança, passaram a dirigir-se
para além das fronteiras nacionais, para regiões mais pobres e onde ainda não
tinham chegado inquietações sociais e políticas sobre a adoção. Foi no bojo
desse cenário, no final dos anos 1970 e, especialmente, na década de 1980, que
ocorreu o "boom" de adoção internacional em países do Terceiro Mundo.
Uma primeira olhada para a ascensão e queda da adoção internacional no Brasil
poderia sugerir algo semelhante ao que aconteceu no hemisfério norte.
Tradicionalmente, as crianças brasileiras tornavam-se "adotáveis" não por
estigmas morais, tais como os que se impingem a "mães solteiras", mas sim por
condições de pura pobreza5. Logo, os otimistas poderiam sugerir que a adoção
internacional de crianças brasileiras caiu porque melhorou o padrão de vida dos
pobres, diminuindo o número de crianças "abandonadas". Infelizmente, essa
explicação não é suficientemente convincente. A despeito de certas mudanças
positivas – uma pequena redução da mortalidade infantil, por exemplo, e uma
elevação do nível médio de educação – em 2000, os mais de 30% da população
brasileira vivendo abaixo da linha de pobreza não diferem muito do que se via
30 anos atrás (Barros e Mendonça, 2000), e o número de crianças e adolescentes
abrigados não cessa de crescer.
Outra explicação possível é que a quantidade de pais adotivos brasileiros pode
ter aumentado a ponto de não haver mais crianças disponíveis para adoção por
estrangeiros. Por um bom número de razões, essa explicação é razoavelmente
plausível. A legislação mudou, dando prioridade sistemática a candidatos
brasileiros. Lançaram-se também campanhas para promover uma "cultura de
adoção". Todavia, essa hipótese é extremamente difícil de investigar, pois não
existem dados centralizados sobre adoção dentro do país. As poucas referências
encontradas não sugerem qualquer aumento de adoções nacionais em anos recentes.
De forma significativa, um levantamento sobre o período 1994-2004, realizado
pela Folha de S. Paulo, revela uma redução de adoções na maioria dos estados do
país (Corrêa, 2004).
Portanto, proponho neste artigo olhar mais de perto três outras possíveis
explicações para a queda abrupta de adoções internacionais, quais sejam: 1) as
flutuações no mercado internacional de crianças adotáveis; 2) a pressão
exercida pela legislação brasileira e as agências federais destinadas a
regulamentar a adoção internacional; 3) as oscilações da opinião pública que
ora prestigia ora estigmatiza intermediários locais envolvidos nesta atividade.
Esses fatores não são mutuamente excludentes. Os dois últimos, especialmente,
estão muito interligados. Por razões analíticas, no entanto, irei considerá-los
um a um.
FLUTUAÇÕES NO MERCADO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS ADOTÁVEIS
A primeira hipótese que gostaria de abordar diz respeito à lei da oferta e da
procura. Será possível que o rápido declínio das adoções internacionais no
Brasil decorra de uma saturação do mercado internacional de crianças adotáveis?
A demanda por crianças brasileiras não terá cessado devido a uma inundação "no
mercado" de bebês asiáticos ou do leste europeu? Esta hipótese pode parecer
ingênua, mas foi a primeira que os técnicos brasileiros, especialistas em
adoção com os quais entrei em contato, trouxeram à tona quando confrontados com
estatísticas recentes. Ademais, existe uma vertente entre estudiosos da adoção
que vê o elemento mercantil como inerente ao campo.
Zelizer (1985), no seu ensaio histórico sobre "o preço da criança sem preço"
(Pricing the Priceless Child), fornece pistas importantes sobre essa questão.
Conforme sua análise, reformadores da época vitoriana defrontavam-se com um
paradoxo. Noções modernas da infância provocavam uma sacralização crescente de
crianças, ditando que estas fossem afastadas do trabalho remunerado e outras
influências profanas da economia mercantil. No entanto, quanto mais a criança
era preservada, mais crescia seu valor simbólico, criando assim um novo e
altamente valorizado mercado de crianças disponíveis para adoção. Surgiram
então, no imaginário da época, a figura do intermediário ganancioso e a mãe
venal pronta para vender seus filhos a quem pagasse mais. De forma
significativa, nessas imagens que, em grande medida, explicam por que se tornou
tabu o contato direto entre quem dá e quem recebe a criança, só o "consumidor",
movido presumivelmente por sentimentos "nobres", parece sair ileso. Retomarei
adiante essa dimensão financeira do tráfico. Por enquanto, proponho abordar
outro ângulo desse "mercado": a hipótese de que o próprio "consumo" de crianças
adotáveis se modifica em função da oferta.
É inegável que novos países surgiram no campo da adoção internacional no
decorrer dos anos 1990. Por exemplo, 1991 foi marcado pelo grande número de
crianças romenas saturando o "mercado" mundial de adotáveis. Nos Estados
Unidos, o número de crianças adotadas da Romênia cresceu de 121 em 1990 para
2.594 em 19916. Naquele mesmo ano, o número de crianças brasileiras adotadas
nos EUA caiu de 228 para 175. Inspirando-se nesta coincidência, entre a
avalanche de crianças romenas e o leve declínio de adotados brasileiros, o
observador pode cair na tentação de deduzir uma relação de causa e efeito.
Avançando ainda mais nesta linha de raciocínio, é possível sugerir que os
brasileiros, no final dos anos 1990, foram afastados definitivamente da cena
pela gigantesca onda de crianças chinesas e russas. Porém, tais conjeturas
ficam menos convincentes quando consideramos que nos EUA o número de adotados
de outros países doadores – Coréia, Índia e Colômbia – já estava caindo antes
da chegada dos romenos. Por outro lado, certos países, como o Vietnam, tiveram
um aumento constante do número de crianças adotadas nos EUA durante os anos
1990. O número de crianças da Guatemala, por trágicas razões que não discutirei
aqui, cresceu de maneira descomunal (de 202 em 1989 para 1.518 em 2000). E os
adotados peruanos aumentaram mais de 50% exatamente na época em que as crianças
romenas eram mais numerosas.
Não deveríamos esquecer, no entanto, que 15 anos atrás boa parte das crianças
brasileiras não ia para a América do Norte, mas para a Itália e a França. No
final da década de 1980, a Itália foi, provavelmente, a mais fiel "cliente" do
Brasil, recebendo cerca de 1.000 crianças brasileiras por ano (quase a metade
do total de adotados estrangeiros na Itália). O aumento quintuplicado de
crianças romenas adotadas na Itália de 1993 a 1994 poderia ser responsável pela
queda de crianças brasileiras adotadas no mesmo período. Da mesma forma, o
ressurgimento de adotados brasileiros em 1995 poderia ser relacionado com a
ligeira queda na popularidade dos romenos. Finalmente, poderíamos associar a
decolagem da adoção internacional de crianças russas por volta de 1996 com o
declínio definitivo da adoção de brasileiros. A flutuação no número global de
crianças disponíveis seria assim responsável pela queda em importância dos
brasileiros na Itália, de mais da metade do total de adotados em 1990 para
apenas 5% desta população em 1999 (ver Gráfico_2).
Mais uma vez, esta linha de análise, embora seja interessante, é simples
demais. Ela supõe, entre outras coisas, que em um dado país o influxo anual de
crianças estrangeiras adotadas permanece constante – suposição que os dados
consistentemente contradizem. Há outras inúmeras questões que eu poderia
levantar sobre a aplicação mecânica da teoria de mercado. Como mapear as
correspondências sem uma idéia mais precisa dos intervalos de tempo no processo
de adoção, por exemplo? Se a adoção de uma criança brasileira leva em média
dois anos, é seguro associar a queda de adotados brasileiros nos EUA em 1991
com a oferta súbita de bebês romenos? Os pais adotivos não teriam feito o
pedido muito antes daquela data? Também é difícil separar causa e conseqüência
na flutuação de adotados: o número de crianças brasileiras adotadas no exterior
terá diminuído porque houve uma saturação no mercado? Ou terão as crianças de
outras nacionalidades, ao contrário, vindo a ocupar o espaço criado pela
retração de tradicionais "fornecedores" tais como o Brasil, a Índia, a Colômbia
e (em menores proporções) a Coréia?
Em suma, um breve exame como este das estatísticas de adoção nos EUA e na
Itália já sugere que a flutuação no número de crianças fornecidas por um país
para adoção internacional é determinado por fatores muito mais complexos do que
a mera lógica de oferta e de demanda de um mercado de consumo.
REGULAMENTAÇÕES GOVERNAMENTAIS
Uma segunda hipótese poria em destaque deputados brasileiros tomando medidas
para proteger "os interesses da criança". Segundo esta linha de raciocínio, a
queda na adoção internacional não seria devido tanto a tendências em países
recebedores, quanto à consciência dos legisladores brasileiros da necessidade
de regulamentação, inspirada em parte por acordos internacionais como a
Convenção da Organização das Nações Unidas – ONU de 1989 sobre os Direitos da
Criança. Esta perspectiva acompanha uma tendência global de considerar as ações
legislativas e políticas como, se não a maior, uma das maiores armas na guerra
contra a pobreza e a injustiça (Santos, 2000).
No entanto, para sustentar essa hipótese – de que uma modificação de lei possa
provocar uma modificação de comportamentos – há de se demonstrar não apenas que
novas leis foram editadas para o controle da adoção internacional no Brasil,
mas também que essas leis foram efetivamente aplicadas. Um breve passar de
olhos sobre a história da legislação brasileira confirma pelo menos o primeiro
elemento desse argumento.
A EVOLUÇÃO DAS LEIS DE ADOÇÃO INTERNACIONAL NO BRASIL
Assim como em muitos outros países – ver por exemplo Yngvesson (2000) sobre o
caso da Índia –, no Brasil, a adoção de crianças não parece ter sido uma grande
preocupação dos legisladores antes da década de 1980. Até o final dos anos
1970, a maior parte das transferências de crianças era regulamentada pelo
Código Civil de 19167. Pais brasileiros ou estrangeiros podiam negociar
privadamente uma adoção; bastava registrá-la em um cartório local. O Código de
Menores de 1979 foi a primeira lei a fazer menção específica aos potenciais
pais adotivos estrangeiros, estipulando algumas restrições. Tais candidatos
podiam adotar apenas crianças oficialmente abandonadas e, mesmo assim, nunca em
uma base de adoção plena (em outras palavras, podiam adotar somente por "adoção
simples", através da qual a criança mantinha sua identidade familiar original
acrescida do status adotivo). Porém, como o Código de 1979 não revogou a
legislação anterior, muitos juristas continuavam a considerar a adoção
"privada" uma brecha legal válida para os estrangeiros. Em alguns casos, este
debate foi resolvido no âmbito jurisdicional ou com um decreto estadual, tal
como o de 1982 do Rio de Janeiro que proibiu a adoção privada a adotantes
estrangeiros, exigindo que passassem obrigatoriamente pelo juizado de menores.
Diversos pesquisadores, debruçando-se sobre dinâmicas familiares no Brasil, têm
documentado a prática, até pouco tempo corriqueira, da "adoção à brasileira".
Por este procedimento inteiramente ilegal, pessoas que desejavam adotar uma
criança conseguiam evitar a burocracia governamental, simplesmente tirando a
certidão de nascimento da criança como se esta fosse filho ou filha de seu
próprio sangue (Costa, 1988; Fonseca, 1995; Abreu, 2002; Weber, 1999).
Destacando especialmente os casos nos quais os pais adotivos foram movidos por
um aparente "espírito de nobreza", muitos juízes pareciam tacitamente aceitar
essa forma ilegal de adoção. Por outro lado, desde os anos 1980, pais adotivos
estrangeiros vinham sendo cada vez mais obrigados, tanto pelo Brasil como por
seus próprios países, a se submeterem aos procedimentos oficiais (Abreu, 2002).
Levando em consideração o contraste entre adoções oficiais (sistematicamente
exigidas de pais adotivos estrangeiros) e adoções ilegais (muitas vezes
toleradas no caso de pais adotivos nacionais), não deve surpreender que até
meados da década de 1990 certos estados brasileiros ainda registrassem mais
adoções internacionais do que locais.
Com a aprovação do novo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA em 1990
(revogando toda a legislação anterior sobre o assunto), a adoção internacional
tornou-se uma questão maior. Além das exigências de que, doravante, todas as
adoções fossem plenas, sancionadas por um Juizado de Infância, vários elementos
da nova lei pareciam implícita ou explicitamente destinados a regular a adoção
por pais estrangeiros. De acordo com o Estatuto de 1990:
– A adoção por procuração é expressamente proibida (artigo 39). Em outras
palavras, não é mais possível para um advogado assumir a guarda de uma criança
e enviá-la de avião aos braços de pais adotivos estrangeiros;
– A determinação de que os adotantes passem um período probatório com a
criança, recomendada para todas as adoções, pode ser dispensada se os pais
adotivos forem brasileiros. Os pais estrangeiros devem se submeter ao período
probatório, o que os obriga a permanecer no país no mínimo 15 dias quando as
crianças têm menos de 2 anos de idade e 30 dias se elas têm mais de 2 anos
(artigo 46, § 2). O adotado não pode sair do país antes de os procedimentos da
adoção estarem devidamente concluídos (artigo 51);
– A candidatura de pais estrangeiros deve ser examinada por uma comissão
estadual judiciária de adoção que exigirá documentação completa (devidamente
traduzida), além da aprovação (mediante, entre outras, avaliações
psicossociais) dos candidatos por uma agência especializada e credenciada no
seu próprio país (artigos 51 e 52);
– A adoção por estrangeiros será considerada uma medida excepcional (artigo
31).
Este último artigo transmite a mensagem implícita de que a prioridade da adoção
deve ser dada aos adotantes brasileiros. Essa orientação, espelhando uma
preocupação global já evidente na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos
da Criança de 1989, ganhou força com a Convenção de Haia de 1993 sobre a
Proteção das Crianças e Cooperação com Respeito à Adoção Internacional
(aprovada em Brasília pelo Congresso Nacional em 1995 e ratificada em 1999).
Certamente, os juristas brasileiros formularam leis em sintonia com os seus
ilustres pares estrangeiros. Todavia, seria ingênuo imaginar que da nova
legislação decorre automaticamente uma mudança de comportamento. Há inúmeros
cientistas sociais que se dedicaram a problematizar essa relação procurando
entender os mecanismos que filtram a influência da lei (Moore, 1978; Bourdieu,
1989). Proponho acercar esse tema voltando para o exame de meus dados, tentando
discernir especificidades regionais.
VARIAÇÃO REGIONAL NA APLICAÇÃO DA LEI
Como mostra o Gráfico_1, o êxodo de crianças brasileiras para adoção
internacional culmina em 1989 com cerca de 2.000 adotados. Em seguida, cai
moderadamente, antes de subir outra vez para mais de 1.650 crianças adotadas em
1993. Daí em diante, porém, a redução anual é consistente e deixa o número de
adotados no ano 2000 abaixo de 400. Sem dúvida, a leve queda durante os
primeiros anos da década de 1990 deve-se em parte ao ECA oficialmente
sancionado em 1990. Em muitos estados da federação, os serviços públicos de
adoção foram suspensos ou diminuíram seu ritmo durante um ano ou mais, a fim de
"reestruturar" suas atividades de acordo com a nova legislação. Dentro dessa
lógica, vê-se um leve aumento de adoções em 1993, no exato momento em que a
"reestruturação" estaria sendo mais ou menos terminada. Portanto, uma avaliação
do país como um todo leva-nos a concluir que aparentemente o ECA teve um efeito
extraordinário sobre a adoção internacional. Contudo, ao nos aproximarmos do
quadro, considerando os números por região, fica claro que os brasileiros
absolutamente não responderam de maneira uniforme às expectativas dos
legisladores. Pelo contrário, a queda na adoção internacional, embora tenha
sido quase sempre grande, aconteceu em diferentes momentos nas diversas
localidades.
Durante a década de 1980 e o início dos anos 1990, os estados relativamente
pobres do Nordeste estavam entre os maiores fornecedores, respondendo por quase
a metade do total das crianças do país adotadas internacionalmente. Nessa
região, o número de adoções caiu dramaticamente nos quatro anos que se seguiram
ao novo Estatuto, ficando em 2000 em cerca de 3% do nível de 1990. A
reviravolta na capital baiana, Salvador, precedeu o Estatuto da Criança,
enquanto em outras capitais estaduais ela ocorreu mais tarde (João Pessoa e
Belo Horizonte no período 1990-92; Recife e Fortaleza em 1993-94). Finalmente,
São Paulo, a maior cidade brasileira, supriu regularmente a demanda por
adotandos internacionais até 1998. Naquele ano, a capital paulista forneceu
mais da metade das crianças brasileiras adotadas internacionalmente. Ali, o
declínio definitivo das adoções internacionais começou apenas em 1999, caindo
rapidamente dentro de dois anos para um terço do seu nível anterior (Quadro_1).
Esse rápido apanhar dos dados mostra que o impacto da legislação federal sobre
a prática de adoção no Brasil segue uma cronologia diversa, conforme as
circunstâncias locais. Tal constatação não é, ao todo, surpreendente levando em
consideração a vastidão do território brasileiro e sua divisão em estados
relativamente autônomos. Além disso, como há juizados de infância na maioria
das principais cidades, cada qual comandado por um juiz com considerável poder
discricionário, a política de adoção pode variar tanto de estado a estado como
de cidade a cidade.
Houve um mecanismo previsto no ECA para garantir a rápida e uniforme
implementação da lei: a criação de "Comissões Estaduais Judiciárias de Adoção
Internacional" (CEJA ou CEJAI). Essas comissões, a serem compostas por cidadãos
proeminentes na comunidade e membros do Poder Judiciário, foram aparecendo aos
poucos ao longo da década de 1990. No Estado de Minas Gerais, por exemplo, bem
como no Estado de Pernambuco, as comissões foram criadas com relativa rapidez
(1992 e 1993, respectivamente), produzindo quedas igualmente rápidas no número
de crianças locais entregues em adoção internacional. Um jornal de Pernambuco
reconheceu explicitamente o impacto das comissões na reorganização de
prioridades no processo de adoção: "Os resultados da CEJA foram notados dois
anos após a sua implantação. O número de adoções para estrangeiros em 1995 foi
significativamente reduzido e chegou a empatar com as de casais brasileiros: 31
para cada grupo" (Jornal do Commercio, 5/11/1997).
Em outros estados, no entanto, como na Paraíba, a diminuição da adoção
internacional aconteceu muito antes de a nova comissão ser formada e ainda em
outros a queda se deu apesar de nenhuma comissão jamais ter sido criada8. Isto
quer dizer que, apesar da influência significativa da legislação federal sobre
os padrões de adoção internacional, ela não teve um impacto imediato nem
uniforme em todo o território nacional. Acredito que é justamente explorando
essas diferenças regionais que se pode discernir melhor não somente os
mecanismos acionados para realizar a lei, mas também os elementos que motivaram
as autoridades a agir. Na coincidência entre certos escândalos na imprensa,
incluindo ações policiais e o "fim" da adoção, veremos delinear-se o lugar da
"opinião pública" no meio dessa trama.
INQUÉRITOS PARLAMENTARES E INVESTIGAÇÕES POLICIAIS
Não há dúvida de que nos anos 1980 um número crescente de adotantes potenciais
na Europa e na América do Norte dirigiu-se ao Brasil para encontrar uma
criança. Essa "demanda" provocou uma reação em cadeia incluindo o crescimento
de nova categoria de advogados brasileiros especializados em adoção
internacional, seguida de indignação na opinião pública e de regulamentação
governamental mais severa. Do final dos anos 1980 em diante, o envolvimento
comercial (e, na verdade, qualquer envolvimento) de advogados na adoção
internacional passou a ser visto como suspeito, fazendo com que esses
profissionais refletissem mais antes de arriscarem suas reputações
intermediando uma adoção internacional – ver Abreu (2002) sobre o caso
brasileiro e Triseliotis (2000), sobre questões semelhantes noutros países.
A preocupação que crescia em todas as regiões do país ganhou status federal
quando, em 1988, se instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI para
verificar denúncias de "tráfico de crianças". Na ocasião, calculava-se que,
para cada uma das 2.000 crianças legalmente adotadas por estrangeiros, havia de
uma a duas levadas ilegalmente para fora do Brasil. Ironicamente, embora os
jornais noticiassem casos esporádicos de contrabando de crianças de estados
fronteiriços, por exemplo, para o Paraguai, a atenção tanto da mídia quanto da
fiscalização oficial atingia, antes de tudo, irregularidades na adoção legal. O
Estado da Bahia, que até o final dos anos 1980 tinha sido o fornecedor mais
regular de crianças legalmente adotadas por estrangeiros, foi também o primeiro
a ser afetado pela nova onda de vigilância. Nesse estado, o número dessas
adoções chegou ao apogeu em 1988, o mesmo ano em que teve início o inquérito
parlamentar, entrando subseqüentemente em rápido declínio.
Abreu, criticando em reportagens do jornal cearense, O Povo, fornece pormenores
sobre o crescente sentimento contra a adoção internacional nessa época. Durante
os anos 1980, Ceará recebia cada vez mais estrangeiros – particularmente
franceses – em busca de crianças adotivas. As pessoas que intermediavam essas
adoções eram, no início, principalmente mulheres, freqüentemente da elite
local, envolvidas em atividades filantrópicas. Eram diretoras de creches,
líderes de igreja etc. que gozavam de não pouco prestígio pela boa obra que
realizavam – uma obra considerada benéfica não somente para os pais adotivos
mas também para as próprias crianças. O primeiro artigo a aparecer contra
adoção internacional (em 1986) ainda retratava essas "cegonhas" como pessoas
preocupadas com o destino de bebês abandonados que, se não fossem adotados,
podiam se tornar "prostitutas ou marginais". No entanto, o lamento que a nação
está desta forma sofrendo uma perda irrecuperável permeia todo o resto do
artigo. Por exemplo, o caso de uma criança hidrocefálica adotada e rebatizada
por um casal francês é resumido na manchete: "Bebês que saem daqui perdem a
identidade e ganham nomes comuns no país que os adota" (Abreu, 2002:146).
A idéia da adoção internacional como um mal necessário – lamentável, mas
justificada em nome do bem-estar das crianças – vai adquirindo nova conotação.
Passa-se a falar da "deportação" ou, com o surgimento de uma nova classe de
advogados especializados nessa matéria, até de "transação" de crianças na
"indústria de adoção internacional". No bojo dessa retórica, paira a pergunta:
"que país é esse que permite que vendam seus filhos?" (idem). A ambivalência
dos primeiros artigos – em que coexistiam a idéia de "salvação infantil" lado a
lado com a da "ameaça estrangeira" – foi cedendo ao significado monolítico de
"tráfico". Em 1987, uma renomada jornalista cearense publica um artigo irado
contra a imagem – em voga na imprensa internacional da época – do Brasil como o
país de 30 milhões de crianças vagando esfomeadas pelas ruas. Afirma que a
adoção internacional, com sua ladainha salvacionista, ajuda os estrangeiros a
se considerarem "os puros, os salvadores" em relação aos brasileiros
"indigentes, marginais, assassinos, famintos, subdesenvolvidos". Antes de
admitir tal afronta à honra nacional, a jornalista declara, em referência às
crianças adotadas por estrangeiros: "Digo mais: prefiro chorá-las mortas a me
envergonhar delas vivas" (idem:153).
Nossas próprias pesquisas nos arquivos de jornais no Centro-Sul (Folha de S.
Paulo) e Sul do país (Zero Hora, Porto Alegre) indicam uma correspondência,
repetida em cada estado da federação, entre a retórica contra a adoção
internacional, o aumento da fiscalização policial dos intermediários e a queda
no número de crianças adotadas por estrangeiros. Soube-se assim que na Paraíba,
por exemplo, a polícia começou no ano de 1991 a investigar juízes, advogados e
funcionários envolvidos em casos de adoção internacional, chegando a denunciar
cerca de 50 indivíduos. Em 1992, o total de adoções caíra de 300 por ano para
exatamente três. Nessa mesma época, no Estado do Rio Grande do Norte, um
advogado foi condenado a 11 anos de prisão por irregularidades em adoções
internacionais que intermediara. No Ceará, o Poder Legislativo começou em 1993
uma investigação ampla da adoção internacional, chamando para depor advogados,
juízes e mesmo diretores de creches com supostas conexões à adoção
internacional. Na capital pernambucana, entre setembro e dezembro de 1993 e,
novamente, em agosto de 1994, o juiz titular do Juizado de Menores de Recife
suspendeu toda adoção internacional. Alarmado por boatos sobre crianças
adotadas sendo usadas para transplante de órgãos, o juiz declarou que
consideraria a possibilidade de retomar a adoção internacional apenas depois de
certificar-se da boa saúde de todas as crianças sob sua jurisdição adotadas por
estrangeiros (Folha de S. Paulo, 30/8/1994).
O resultado dessa repressão episódica foi o de inspirar medo em muitos cidadãos
"respeitáveis" que agiam como intermediários no processo de adoção. Abreu
(2002) com amplos relatos etnográficos mostra como essas "cegonhas", muitas
delas membros da alta sociedade, abandonaram suas atividades no translado de
crianças assim que as investigações policiais transformaram o que antes se
considerara missão de caridade em um negócio escuso.
Em certos estados, o grosso da adoção internacional migrou da relativamente bem
fiscalizada capital para cidades do interior sem maior controle9. São Paulo, o
estado brasileiro mais populoso e politicamente influente, seguiu um padrão
ligeiramente diverso no qual um bom número de crianças de difícil colocação10
continuou sendo enviado para o exterior até que, em 1998, um escândalo
amplamente noticiado, envolvendo um juiz da cidade de Jundiaí, desequilibrou o
sistema. Várias mães de baixa renda, comparadas por jornalistas às Madres de la
Plaza de Mayo argentinas, tinham se organizado para protestar contra a
"abdução" de seus filhos pelo juiz local. As investigações mostraram que,
durante os seis anos anteriores, mais de 200 crianças tinham sido entregues
para adoção internacional, a maioria delas sem o consentimento das mães. O
juiz, depois de processos sumários, declarava as crianças abandonadas,
permitindo adoções em tempo recorde. A essas acusações, o magistrado respondeu
com o que considerava ser uma justificação adequada: trabalhando com uma
respeitada agência de adoção italiana, ele fornecia lares decentes para
crianças abandonadas e maltratadas que estavam vivendo em condições higiênicas
e morais deploráveis. No entanto, as reportagens jornalísticas do caso
sublinharam a natureza tendenciosa dos seus julgamentos. Por exemplo, em um dos
casos a maior evidência contra a mãe de uma criança foi o fato de ela ganhar a
vida como stripper de boate; noutro, as decisivas acusações de negligência
contra os pais biológicos da criança incluíam o fato de eles criarem seus
filhos em uma casa "com todos os vidros quebrados e os cachorros soltos" (Isto
É,25/11/1998). Resta saber se o juiz era movido por gana financeira ou impulsos
caridosos. Seja como for, o escândalo nivelou a adoção internacional praticada
em todo o Estado de São Paulo com a do resto do Brasil, ou seja, reduziu-a a um
fio.
MÍDIA E RUMORES
Ao longo dos anos 1980, jornais e televisão desempenharam papel de destaque na
formação de opinião pública sobre a adoção internacional. Um tema específico
teve influência decisiva: a alegação de uso de crianças adotadas para
transplante de órgãos. Desde o início da década, observa-se no noticiário uma
tendência a relacionar casos reais e documentados de "tráfico de órfãos"
através das fronteiras nacionais com o "tráfico de órgãos" (humanos). Em 1988,
um promotor de justiça do Distrito Federal, reforçando rumores sobre tráfico de
órgãos, disse que dispunha de sólida evidência de que crianças brasileiras
adotadas no exterior estavam sendo usadas como cobaias para experiências
científicas e transplantes de órgãos (Zero Hora, 26/8/1988:14; 2/12/1989:15).
Naquele mesmo ano, criou-se uma comissão parlamentar de inquérito para
esclarecer tais denúncias, e a polícia federal abriu um número sem precedentes
de investigações sobre adoção internacional. Embora nenhum dos inquéritos tenha
encontrado qualquer evidência clara, os rumores atingiram o auge em meados dos
anos 1990 com o início de uma aparente onda de histeria mundial.
Em outubro de 1993, Leon Schwartzemberg, um deputado francês do Parlamento
Europeu, fez uma veemente denúncia contra o tráfico de crianças para
transplante de órgãos, com referência especial ao Brasil. De acordo com suas
estimativas, das 4.000 crianças brasileiras adotadas na Itália apenas 1.000
ainda estavam em vida. As restantes tinham morrido, vítimas de abuso, ou tinham
sido sacrificadas em uma colheita de órgãos para futuros transplantes (Zero
Hora, 6/10/1993:45). No mês seguinte, a The British Broadcasting Corporation –
BBC jogou lenha na fogueira, mostrando um funcionário do serviço diplomático
argentino que dizia possuir evidência de atrocidades envolvendo crianças
brasileiras (Zero Hora, 21/11/1993:51). A polícia e os serviços de adoção de
todo o Brasil passaram a investigar a denúncia "de que crianças com
deficiências físicas estariam sendo adotadas, por estrangeiros, para que depois
seus órgãos fossem extirpados e vendidos" (Folha de S. Paulo, 30/8/1994:3-1).
Em setembro, quando o professor universitário brasileiro Volnei Garrafa
anunciou a iminente publicação de seu livro O Mercado Humano, em co-autoria com
o italiano Giovanni Berlinguer, o pânico chegava ao apogeu. Falando de adoção
"para desmonte de crianças", o autor dizia que, enquanto uma criança podia ser
adquirida através de adoção internacional por aproximadamente US$ 8 mil, um
único rim podia ser vendido por mais de US$ 40 mil (ver Garrafa e Berlinguer,
1996). A essas alturas, autoridades federais passaram a ter dúvidas sobre o
grande número nas cidades brasileiras de crianças declaradas como
desaparecidas, e o tráfico de órgãos foi incluído na pauta da nova CPI contra
prostituição infantil (Folha de S. Paulo, 3/8/1994; Abreu, 2002). Por razões
semelhantes, acirrou-se o controle de adoções por estrangeiros de crianças
brasileiras, a adoção de crianças um pouco mais velhas e com deficiências
físicas ou mentais sendo particularmente suspeita. O juiz pernambucano que
suspendeu todas as adoções internacionais em 1994 admitiu que não tinha nenhuma
prova das alegadas atrocidades contra adotandos brasileiros, mas ele notou um
"fato estranho" que podia ser indicativo de abuso: das 14 crianças adotadas sob
sua supervisão naquele ano, cinco tinham mais de 8 anos de idade e duas eram
deficientes (Folha de S. Paulo, 30/8/1994).
Esse pânico "local" parecia estar em sintonia com o clima mundial11. A polícia
e as autoridades brasileiras que lidavam com crianças e adolescentes com
freqüência justificavam suas preocupações citando a pressão que estariam
sofrendo das organizações internacionais de direitos humanos. Delegados
brasileiros participaram de vários encontros internacionais (p. ex. a Comissão
Permanente das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Justiça Penal,
Áustria, maio de 1994) nos quais a luta contra a adoção internacional,
invariavelmente ligada ao tráfico de órgãos, ocupava o topo da lista de
prioridades. Ao retornar do Tribunal Permanente dos Povos sobre "A Violação dos
Direitos Fundamentais da Infância e dos Menores" (Itália, março de 1995), o
delegado brasileiro fez o seguinte relato:
"O quadro apresentado é estarrecedor. [...] Nos países pobres, a
situação atinge níveis de indecência e monstruosidade. Em países da
América Latina, crianças são raptadas e introduzidas nos circuitos da
prostituição e da produção e difusão de material pornográfico; órgãos
de crianças pobres são extirpados e vendidos a clínicas de
transplantes do Primeiro Mundo; crianças e adolescentes são
submetidos a trabalhos em regime de escravidão; adoções
internacionais de crianças se fazem de forma indiscriminada,
constituindo-se num comércio altamente lucrativo" (Folha de S.
Paulo,27/4/1995).
A adoção internacional aparecia, nessa "boca do povo", em um par com a
prostituição infantil, escravidão e tráfico de órgãos – culpada por associação.
No meio de tanto barulho, pouco adiantou, para os esforços dos funcionários
italianos para provar que todos os brasileiros adotados em seu país estavam
gozando de perfeita saúde, a retratação pública do deputado francês
Schwartzemberg ou o fato de que, no Brasil, nem a polícia, nem os acadêmicos
conseguiram produzir qualquer prova que ligava a adoção internacional ao
tráfico de órgãos. Ainda assim, o pânico dos órgãos parece ter sido o prego no
caixão da adoção internacional. Foi no período 1993-94 que o número de crianças
adotadas no exterior passou a cair definitivamente. É claro que, antes desse
momento, houve copiosa e legítima indignação sobre advogados transformando a
adoção em lucrativo negócio. Porém, por estranho que pareça, paralelamente aos
escândalos mais sensacionalistas (e muito menos críveis) a respeito de adoção
para transplante de órgãos, esse aspecto comercial, embora bem documentado, foi
praticamente esquecido pela mídia.
Por que, a gente se pergunta, esses rumores são tão persistentes e tão
poderosos? Esta questão foi alvo de análise aprofundada por diversos
pesquisadores (ver Scheper-Hughes e Biehl, 2000; Abreu, 2002: cap. 6). Limitar-
me-ei aqui a evocar problemas ligados à tremenda desigualdade em jogo. Existe,
em primeiro lugar, a desigualdade dos países dentro do sistema econômico
mundial. Quando os cidadãos de um país pensam suas riquezas naturais como alvo
de exploração por interesses estrangeiros, não há nada surpreendente no fato de
eles incluírem crianças adotadas na lista de "produtos" nacionais roubados.
Tampouco surpreende o fato de que notícias que difamam certo país, mesmo quando
mal fundamentadas, circulem rapidamente em países rivais. Em 1987, uma denúncia
segundo a qual crianças hondurenhas estariam sendo levadas para os Estados
Unidos para a venda de órgãos foi logo desmentida pela suposta fonte. No
entanto, a notícia logo saiu (sem o desmentido) em jornais da América Latina e
foi repetidamente usada por jornais do antigo bloco soviético para falar dos
norte-americanos "canibais" e racistas (Campion-Vincent apud Abreu, 2002:164-
165).
Existe, no entanto, uma outra desigualdade em jogo dentro do próprio país –
aquela entre ricos e pobres. Do ponto de vista das famílias paupérrimas de onde
saem crianças adotadas, os rumores de tráfico de órgãos são críveis porque, há
muito tempo, os pobres brasileiros consideram suas vidas e seus corpos
"forragem para os ricos" (Scheper-Hughes e Biehl, 2000:62). Muitas pessoas
fazem questão de explicitar, na carteira de identidade, sua recusa a ser doador
automático de órgãos justamente porque consideram que "para o governo, os
órgãos dos pobres valem mais mortos do que vivos" (idem:74). Nesse clima,
podemos imaginar que o segredo absoluto que envolve o processo de adoção legal
no Brasil, ao negar aos pais biológicos qualquer informação sobre a família
adotiva de seus filhos, só dá asas às fantasias12. Mas por que, poderíamos
perguntar, pessoas bem informadas da classe média imaginam, com tanta
facilidade, cenas vampirescas nas quais a adoção internacional serve de fachada
para uma vigorosa indústria de transplante de órgãos? Cremos que a resposta
para esta questão se encontra nas várias traduções "politicamente corretas" do
profundo mal-estar causado pela desigualdade radical em escala nacional e
internacional.
Pouco mais de 10 anos atrás, em resposta à primeira onda de adoções entre
países, a importância de manter as origens culturais da criança passou a ser
enfatizada em vários documentos, nacionais e internacionais, justificando a
política de priorizar sistematicamente as adoções dentro do país. Para os
países doadores, essa orientação com ênfase nos "direitos da criança" soava
mais convincente do que argumentos xenofóbicos contra a adoção internacional em
nome do orgulho nacional e da perda de recursos humanos. Sem dúvida, tal
política também aplacava a ira de adotantes potenciais do Brasil que, quando
não eram eliminados pelos rigorosos processos de seleção, muitas vezes tinham
de esperar dois anos ou mais pelo surgimento de uma criança que lhes conviesse.
Mas, pesquisas mostram que brasileiros, aspirantes ao status de pai adotivo,
não mudam facilmente suas exigências quanto ao tipo de criança que querem
(Weber, 1999). Vencida a batalha contra a adoção internacional, permanecia o
problema de o que fazer com o "resto" das crianças adotáveis – os rejeitos, por
assim dizer, que, porque eram mais velhos, de pele mais escura ou de alguma
forma deficientes, nenhum brasileiro queria?
Há evidências de que, a partir do início dos anos 1990, os serviços de adoção,
nas diferentes regiões do país, passaram a garantir que a grande maioria das
crianças indo para o exterior fazia parte dessas categorias que dificilmente
seriam adotadas no Brasil. Os agentes de adoção freqüentemente mencionam a
"incrível generosidade" de alguns pais adotivos estrangeiros – aqueles
relativamente poucos que se dispõem a levar uma criança com severas
deficiências físicas ou mentais. Do ponto de vista dos "interesses da criança",
é difícil imaginar como uma tal colocação pode ser criticada. Entretanto, para
a psique nacional, a adoção de tais crianças pode ser quase tão ameaçadora
quanto as tendências anteriores, pois põe em questão a "generosidade" das
famílias adotivas brasileiras. Em tais circunstâncias, o pânico do transplante
de órgãos serve como um mecanismo de defesa inconsciente. Se nós não queremos
essas crianças, assim vai a lógica, então ninguém poderia querê-las. Elas são
indesejáveis como filhos e filhas. Se alguém as quer, só pode ser por alguma
outra razão – para ganhos pessoais, exploração do trabalho delas ou transplante
de órgãos. E, assim, o escândalo mascara o fato de que ainda há um sem-número
de crianças no país para quem as políticas públicas bem como o sustento para
suas famílias são tristemente inadequados.
CONCLUSÃO
Em suma, sugere-se que, por causa de forças diferentes e convergentes, a adoção
internacional no Brasil não foi regulamentada, mas praticamente eliminada.
Agora, pode-se muito bem perguntar: e isso não foi uma boa coisa? Afinal de
contas, durante a última década, muitos dos meus esforços, bem como os de
respeitados colegas, foram dirigidos contra os excessos da adoção internacional
(ver Gailey, 1999; Triseliotis, 2000; Fonseca, 2002b). Sem dúvida, no Brasil, a
advertência de Selman (2000) de que a adoção está sendo vendida como uma "cura
para demasiados males" ainda é um ponto altamente relevante quando funcionários
do governo copiam seus homólogos norte-americanos e europeus, lançando
campanhas para encorajar cidadãos brasileiros a adotarem crianças
"abandonadas". Contudo, essa advertência diz respeito não apenas à adoção
internacional, mas também à nacional. As críticas à adoção internacional não
foram feitas para colocar um torniquete na adoção, mas sim para descobrir
formas de tornar a acolhida de crianças, quando por algum motivo têm de ser
retiradas de suas famílias originais, mais humana e justa para todos os
interessados. A opinião pública inflamada e os escândalos midiáticos descritos
neste artigo não são os ingredientes adequados para uma política de adoção
sensata, seja ela nacional ou internacional.
A regulamentação da adoção internacional fez grandes avanços com a experiência
das últimas duas décadas. Hoje, pode-se esperar que tanto legisladores quanto
profissionais do campo da adoção, cônscios dos perigos das posições radicais,
possam forjar políticas que promovam a justiça no sentido amplo, e para todas
as partes envolvidas: não somente para a criança e sua família adotiva, mas
também para as famílias de origem.
NOTAS
1. Trata-se da pesquisa "Narrativas hegemônicas no campo da infância",
desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social –
PPGAS, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, com financiamento
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq; ver
também Fonseca (2001; 2002a; 2002b).
2. Ver Selman (2004) para uma versão mais avançada deste artigo.
3. Ministério da Justiça, Departamento da Polícia Federal, Divisão de Polícia
Marítima, Aeroportuária e de Fronteiras.
4. A idéia da "filiação substituta" no Ocidente apareceu pela primeira vez no
Código de Napoleão (1820) que instaura no Direito francês a prática adotiva,
próxima da que conhecemos hoje.
5. Segundo uma pesquisa de 1984, incluindo mais de 150.000 mulheres que se
separaram de seu bebê antes que este completasse um ano de idade, o mais
importante fator motivando a doação da criança foi a pobreza (Campos, 1991).
Veja também Fonseca (1995) e Abreu (2002).
6. Ver "Immigrant visas issued to orphans coming to the US", disponível em
http://travel.state.gov/family/adoption/stats/statsã451.html.
7. Duas leis diferentes, de 1957 (no 3.133) e 1965 (no 4.655), trouxeram certas
inovações ao processo de adoção, mas ambas tiveram impacto reduzido. Ver
Fonseca (1995) e Pilotti e Rizzini (1995) para mais informações sobre a
evolução de políticas para o atendimento a crianças "em situação de risco".
8. No Rio Grande do Sul, onde não existe CEJAI até hoje, a adoção internacional
parecia já bastante bem regulada desde meados dos anos 1980. Tais adoções, ali
jamais numerosas, fecharam o milênio em cerca de 60% do nível de 1990.
9. Na Bahia, o número de adoções internacionais em Ilhéus ultrapassa o de
Salvador por um período de cinco anos, começando em 1991. E, até 1993, a cidade
de Ijuí, no Estado de Santa Catarina, viu mais crianças adotadas saírem do país
para o exterior do que a capital, Florianópolis.
10. O CEJAI em São Paulo, por exemplo, calcula que, das 2.483 crianças
colocadas em lares adotivos estrangeiros entre 1992 e 1999, menos de 40%
correspondiam ao desejável perfil de "bebês brancos com menos de três anos de
idade" (Folha de S. Paulo, 21/2/2000).
11. O International Resource Center for the Protection of Children in Adoption
(do International Social Service) relaciona uma série de fontes para documentar
a preocupação mundial, durante o início da década de 1990, com o uso de
crianças para transplantes de órgãos.
12. A adoção aberta, prática corrente na América do Norte, conforme a qual
existe a possibilidade de um breve contato supervisionado entre as famílias
biológica e adotiva de uma criança, até agora não foi discutida no Brasil.