Habermas, Rorty e o pragmatismo americano
RICHARD RORTY: IRONIA LIBERAL E ESPERANÇA SOCIAL
"Todo poeta que não é de todo irracional compara,
aprimora e argumenta
até encontrar a formulação correcta do que deseja dizer.
Não seria maravilhoso se esse processo desempenhasse
um papel também nas ciências?"
Paul Feyerabend
"Aquilo que esperamos dos cientistas sociais é que actuem
como intérpretes daqueles em relação aos quais não
estamos seguros de como falar com eles.
Isto é a mesma coisa que esperamos dos nossos poetas,
dramaturgos e romancistas".
Richard Rorty
Richard Rorty, o célebre filósofo americano, é uma figura central no debate
sobre o fim do projeto da modernidade e da concomitante morte da crença em um
certo tipo de fazer ciência ("verificacionista" no século XIX,
"falsificacionista" no século XX). Isto é tanto mais significativo quanto
termos em conta que o projeto filosófico rortyano se assume explicitamente como
o herdeiro da primeira corrente filosófica nascida nos Estados Unidos, o
pragmatismo. Neste artigo, pretendo discutir o pragmatismo filosófico americano
enquanto um universo discursivo em que se entrecruza o liberalismo pós-moderno
de Rorty e a teoria social de Jürgen Habermas. Este posicionamento estratégico
do pragmatismo permitir-me-á, argumento, fazer luz sobre as limitações da
estratégia de construção teórica adotada por Habermas. Em particular, a minha
tese é a de que o pragmatismo filosófico americano constitui um objeto que
resiste ativamente aos esforços de reconstrução racional empreendidos por
Habermas desde meados dos anos 1960 até os dias de hoje. Caso esta tese
demonstre ser válida, a tentativa de Habermas em complementar a teoria marxista
com os princípios democráticos do pragmatismo de Dewey e Mead no âmbito de uma
"grande narrativa" terá de ser reequacionada; a alternativa, em meu entender,
passará antes por uma apropriação do legado pragmatista que respeite a natureza
processual e orientada para a resolução de problemas concretos desse paradigma.
Tal alternativa é por mim concebida enquanto um "pluralismo dialógico" de
pendor historicista.
Pode descrever-se o neopragmatismo de Rorty como sendo movido por dois
interesses fundamentais. Por um lado, afastar a herança kantiana (bem como a
filosofia analítica de Russell e Moore, em um primeiro momento, e dos
positivistas lógicos entretanto emigrados para os Estados Unidos, em um segundo
momento), e, com ela, a preocupação epistemológica. Por outro lado, abandonar
uma filosofia que já não cumpre os objetivos a que se propôs em favor de uma
pós-filosofia em que a preocupação pela objetividade dê lugar à preocupação
pela solidariedade. Rorty associa este tema da solidariedade ao da esperança
social, uma espécie de otimismo quanto ao nosso destino comum. De fato, em
Contingência, Ironia e Solidariedade, o autor afirma que, de acordo com a
concepção do liberal irônico, "a solidariedade humana não é uma questão de
partilhar uma verdade comum ou um objectivo comum, mas sim uma questão de
partilhar uma esperança egoísta comum, a esperança de que o mundo de cada um
[...] não será destruído" (Rorty, 1994:126).
Ainda nessa obra, Rorty compara a sua própria posição epistemológica com as
propostas de Thomas Kuhn e de Quentin Skinner. Isto acontece quando Rorty
assinala que a nossa atenção deve ser dirigida não para frases isoladas, mas
para os vocabulários em que estas são formuladas, em uma postura anti-
reducionista claramente influenciada pelo holismo semântico de Quine. Negando o
caráter pretensamente volitivo ou racional da escolha de um vocabulário, Rorty
sugere que o ato de seleção de uma linguagem em detrimento de outra tem uma
natureza social, coletiva ou holista. "Tal como Kuhn defende em ‘The Copernican
Revolution’," Rorty observa, "nós não decidimos [...] que a Terra não era o
centro do Universo. [...] Em vez disso, [...] os europeus deram consigo
próprios a falar de um modo que tomava como certas estas teses interligadas.
[...] Não deveríamos, nestas matérias, procurar quaisquer critérios de decisão
dentro de nós, nem no mundo" (idem:27). Esta rejeição de um critério racional
que permita reconstruir a história do pensamento científico em Rorty é em tudo
semelhante à tese de Kuhn, segundo a qual a evolução da atividade científica se
pauta por longos períodos de continuidade (a "ciência normal") interrompidos
esporadicamente por momentos de ruptura (as "revoluções científicas"): para
Kuhn, tal como para Rorty, são as condições sociais de produção científica que
determinam em larga medida a evolução da ciência. No entanto, em Rorty essa
tese epistemológica surge englobada em um projeto filosófico mais amplo em que
a recuperação do pragmatismo clássico americano (nomeadamente, na sua versão
deweyana) surge como alternativa à filosofia analítica.
Antes de mais, como se define o pragmatismo segundo Rorty? Como explica em
Consequências do Pragmatismo, em primeiro lugar, é ao pragmatismo de John Dewey
e William James que Rorty vai buscar inspiração para romper com "a tradição
epistemológica kantiana" (Rorty, 1982:231). O mesmo é dizer: James e Dewey
"pediram-nos que abríssemos mão da neurótica demanda cartesiana da certeza que
tinha sido um dos resultados da assustadora nova cosmologia de Galileu [...]"
(idem:232). Em segundo lugar, o pragmatismo à la Rorty é uma espécie de
"antiessencialismo aplicado a noções como ‘verdade’, ‘conhecimento’,
‘linguagem’, ‘moralidade’, e objectos semelhantes de teorização filosófica"
(idem:233). Em terceiro, o pragmatismo pode ser caracterizado como postulando a
não-diferenciação epistemológica entre a verdade acerca do que deve ser e
aquela acerca do que é, a não-diferenciação metafísica entre fatos e valores, a
não-diferenciação metodológica entre moralidade e ciência. Em outros termos,
Rorty procura sublinhar que a busca epistemológica da essência da ciência é um
exercício em vão. Pelo contrário, toda a investigação científica ou moral deve
consistir em uma deliberação a respeito das vantagens relativas das várias
alternativas disponíveis em cada momento. Rorty procura, em suma, recuperar o
ideal socrático da conversação contra o mito platônico da razão enquanto um
estado de consciência iluminado a que chegamos por via de determinados
procedimentos. A epistemologia não seria, segundo este ponto de vista, mais do
que a procura de tais procedimentos (idem:235). Por último, o pragmatismo para
Rorty sublinha a irredutível contingência dos pontos de partida das minhas
investigações. Sempre que iniciamos uma investigação só devemos esperar
orientação dos nossos colegas de trabalho, uma espécie de constrangimento
conversacional. Ou seja, advoga a inutilidade da idéia de que um método
científico rigoroso ou uma linguagem neutra e clara bastem para que os objetos
se tornem disponíveis para a mente humana.
Segundo um ditado espanhol, "os caminhos fazem-se caminhando". De fato, para
Rorty, foi Galileu o primeiro viajante que trilhou esse caminho chamado
modernidade. Foi ele quem primeiro pensou ter identificado a linguagem da
natureza, em um projeto em que foi seguido por Descartes, Locke, Berkeley, Hume
e Kant, e que se prolongou até ao século XX, com o positivismo lógico. Rorty
lamenta que tão poucos pensadores tenham sugerido que
"[t]alvez a ciência não tenha um segredo de sucesso – que não há
explicação metafísica ou epistemológica ou transcendental da razão
por que o vocabulário de Galileu funcionou tão bem até aqui, tal como
não há uma explicação da razão por que o vocabulário da democracia
liberal funcionou tão bem até hoje" (idem:268).
Significativamente, Rorty considera que Kuhn e Dewey se encontram entre estes
raros casos.
No caso de Kuhn, é sublinhado o fato de que evita um evolucionismo teleológico
em direção a um fim chamado "correspondência com a realidade". O paralelismo
entre estas duas posições foi, aliás, já por nós salientado aquando da
exposição do debate entre Kuhn e os seus críticos. Subscrevendo a noção
kuhniana de ciência normal enquanto uma atividade de resolução de enigmas,
Rorty sugere que aquilo que os cientistas normalmente fazem é usar "os mesmos
métodos óbvios e banais que todos nós usamos em todas as actividades humanas.
Conferem exemplos com critérios; remendam os contra-exemplos quanto baste para
evitar a necessidade de novos modelos; experimentam vários palpites, formulados
no jargão corrente […]" (idem:269). Ao reter das teses de Kuhn a importância do
vocabulário usado em cada teoria (responsável pela incomensurabilidade que as
separa), bem como a noção de "resolução de enigmas" como atividade científica
fundamental (lembre-se que a ciência extraordinária ou revolucionária é, pelo
menos na primeira versão do argumento de Kuhn, extremamente rara), Rorty
recupera do debate epistemológico dos anos 1960 dois elementos basilares para a
sua própria posição epistemológica – a linguagem, cuja contingência sublinha, e
um método científico, mais próximo da vida cotidiana do que dos manuais
científicos.
Mas é em Dewey que Rorty encontra o seu grande inspirador. Em rigor, é a
abordagem deweyana à ciência social que mais fascina Rorty, uma vez que se
define precisamente pelo sublinhar da importância das narrativas e dos
vocabulários, em detrimento da objetividade das leis e teorias científicas.
Aliás, é Dewey quem inspira não só Rorty, mas também Kuhn quando estes enjeitam
a possibilidade de se conhecer a Natureza tal como é. Por outras palavras,
quando em Logic. The Theory of Inquiry, Dewey critica Kant por este concluir
que a realidade percepcionável, embora necessária, "prejudica completamente o
conhecimento das coisas tais como ‘realmente’ são" [...]" (Dewey, 1938:518),
defende uma filosofia que abandone a intenção de continuar a procurar "as
coisas tal como realmente são" – ou seja, antiessencialista. Uma filosofia que,
apesar de não ser rotulada explicitamente de pragmatista, é "totalmente
pragmática" (idem:iv). Por outro lado, é também uma filosofia preocupada com os
fenômenos da linguagem, entendida como o meio através do qual a cultura existe,
é transmitida e pode ser guardada para futuras discussões. Neste sentido, a
linguagem constitui "o registo que perpetua as ocurrências e que as torna
passíveis de virem a ser avaliadas pelo público" (idem:20). Em rigor, este
escrutínio público é o que define o próprio conhecimento, comprovando a relação
umbilical, bem pragmatista, entre a linguagem e a racionalidade humana: "O
conhecimento deve ser definido em termos de inquirição, e não o contrário, quer
em termos particulares, quer em termos universais" (idem:21).
A leitura que Rorty faz de Dewey leva-o a declarar que "[s]e, como Dewey,
virmos os vocabulários como instrumentos para fazer frente às coisas mais do
que como representações das naturezas intrínsecas destas" (Rorty, 1982:275),
então poderemos evitar a oposição, característica da forma de pensar moderna,
entre um método explicativo (para explicar o comportamento de uma pessoa) e um
método compreensivo (para compreender a sua natureza). A posição epistemológica
de Rorty decorre desta última observação. Tendendo a concordar com a posição
hermenêutica, desde que não comece a "traçar uma distinção de princípio entre
homem e natureza, anunciando que a diferença ontológica dita uma diferença
metodológica" (ibidem), Rorty considera que ser interpretativo ou hermenêutico
não implica a adoção de um método particular. Pelo contrário, Rorty atribui à
hermenêutica uma função de procura inventiva de um vocabulário inicial, a
utilizar nas nossas investigações, o que implica o abandono do vocabulário que
usualmente utilizamos. É neste sentido que Rorty sugere que se deixássemos de
lado a metáfora da linguagem da natureza, bem como o vocabulário de
representação que a acompanha, "como Kuhn e Dewey sugerem que podemos – então
não acharíamos misteriosas a linguagem ou a mente, nem particularmente
perigosos o ‘materialismo’ ou o ‘behaviorismo’" (Rorty, 1982:279). Daqui à
defesa da contigüidade entre os discursos científico e literário é um pequeno
passo:
"Quando a noção de conhecimento como representação é abandonada
[...], as linhas entre romances, artigos de jornal, e investigação
sociológica tornam-se difusas. As linhas entre objectos de estudo são
traçadas por referência a preocupações práticas concretas, mais do
que a putativos estatutos ontológicos" (idem:280).
É justamente este último ponto que Habermas critica em O Discurso Filosófico da
Modernidade (1985), rejeitando igualmente a interpretação rortyana da tradição
pragmatista. Este é, aliás, o ponto de partida da seção que se segue.
HABERMAS E O NEOPRAGMATISMO DE RORTY
"A rejeição do autor é positivismo".
(Jürgen Habermas, tradução do autor)
O confronto entre Habermas e Rorty é particularmente importante para a minha
argumentação por uma razão fundamental. Refiro-me à idéia de que, do conjunto
de teorias filosóficas que Habermas se propõe reconstruir de forma a definir a
sua própria posição, o pragmatismo filosófico americano parece constituir um
"paradigma" que resiste ativamente a essa intenção. Pondo de lado a forma como
outras tradições intelectuais selecionadas por Habermas podem resistir ao
processo de reconstrução racional levado a cabo por este último, creio poder,
todavia, afirmar o seguinte. No caso concreto da corrente filosófica
pragmatista, parece-me razoável sugerir que nos encontramos perante uma
perspectiva que, pela voz de outros intérpretes que não Habermas (veja-se o
caso de Quine, Kuhn, ou Rorty), se caracteriza precisamente pela rejeição de
iniciativas desse tipo (representacionistas, diria Rorty). Esta seção
compreenderá dois momentos: em primeiro lugar, exporei a teoria habermasiana
dos interesses cognitivos, que caracteriza a sua posição epistemológica na
década de 1960, altura em que Habermas começa a se apropriar de alguns dos
contributos do pragmatismo americano; em segundo lugar, descreverei os traços
essenciais do debate entre Habermas e Rorty, cujas implicações apontam para o
questionamento das possibilidades de sucesso da estratégia habermasiana de
construção teórica.
Em meados dos anos 1960, década de profundas mudanças sociais e culturais,
Habermas viu-se confrontado com o desafio de responder à crise em que se
encontrava a chamada "teoria crítica". Fundada décadas antes por figuras como
Theodor Adorno, Max Horkheimer e Erich Fromm, a teoria crítica, entre os anos
1930 e os 1960, tinha sabido manter-se na vanguarda mais inovadora da teoria
social e política. Porém, na década de 1960, o projeto emancipatório da teoria
crítica parecia dar mostras de estar a perder fulgor. As principais
dificuldades diagnosticadas por Habermas são, em primeiro lugar, os fundamentos
normativos da teoria crítica, em segundo lugar, a sua noção de verdade, e, por
último, a subvalorização das tradições da democracia e do Estado constitucional
(Habermas, 1986:98). Para responder a estas dificuldades, Habermas considera
que a aproximação à filosofia analítica (análise lógica e da linguagem) e a
reconstrução do materialismo histórico através da crítica a Marx são os passos
incontornáveis. A ancoragem da teoria crítica no potencial emancipatório do
projeto da modernidade é, para Habermas, uma opção de fundo. Isto por duas
ordens de razões: por um lado, para preservar-se das soluções positivistas de
perfil conservador e, por outro, para evitar as soluções relativistas que
haviam abandonado a convicção na função emancipatória da razão humana. Na
agenda de Habermas, a prioridade consiste em refundar a teoria crítica com um
modelo de racionalidade e de ação humana que permita, a um tempo, criticar os
aspectos patológicos da modernidade sem abandonar as suas conquistas mais
valiosas. Daí o abandono da via epistemológica em favor da viragem para a
linguagem, uma mudança de estratégia que analisarei mais à frente.
Antes, porém, gostaria de discutir a forma como Habermas supera as dificuldades
encontradas pela teoria crítica nos anos 1960. Ao criticar Marx por ter caído
em um positivismo latente ao conferir uma importância quase exclusiva ao
trabalho, na sua concepção de natureza humana e de praxis, Habermas apresenta
uma alternativa: a distinção entre trabalho e interação, sendo esta última
considerada a base fundamental das atividades comunicativas e simbólicas que
constituem a vida social (Habermas, 1968). Esta crítica a Marx estava
relacionada com uma proposta epistemológica que define o essencial do
pensamento habermasiano sobre este tema, a teoria dos interesses cognitivos.
Esta noção de interesses do conhecimento remonta à formulação positivista da
epistemologia, enquanto uma tarefa de reconstrução lógica, que pressupõe um
sujeito cognoscente universal. Este último tem a sua atividade de produção de
conhecimento validada como resultado de um processo de verificação (ou
falsificação, dependendo das versões de positivismo em questão) das explicações
cujo principal critério é a sua forma lógica. Aos olhos dos críticos do
positivismo, isto não é mais do que uma espécie de essencialismo lógico. Neste
contexto de crítica a Marx e ao positivismo, qual foi a alternativa encontrada
por Habermas? – o pragmatismo clássico de Peirce e Dewey é a resposta.
Em Knowledge and Human Interests (1968), Habermas recorre à teoria da ciência
pragmatista de forma a propor uma noção de ciência que a concebe não apenas
como uma forma de conhecimento, mas também como uma forma de atividade social.
A necessidade de auto-reflexão da ciência, implicando o estudo das condições
sociais de produção científica e a negação de que a atividade científica possa
ser reduzida a um método ou tipo de explicação particular, é aquilo que Charles
Sanders Peirce, no campo das ciências naturais, e Wilhelm Dilthey, no domínio
das ciências humanas, nos ensinaram. Com o intuito de evitar a tese positivista
de que o conhecimento possui apenas um interesse (empírico-analítico, que
procura explicar os fenômenos da natureza através de leis invariáveis),
Habermas identifica três interesses cognitivos, ou três formas que o nosso
interesse científico em lidar com o mundo pode assumir. Em primeiro lugar,
existe um interesse empírico-analítico baseado no desejo de controlar a
natureza física (em uma primeira versão) e social (em uma formulação
posterior). Em segundo, pode-se identificar um interesse histórico-hermenêutico
que visa a interpretar e entender qualitativamente a natureza externa e
interna. Porém, Habermas critica este tipo de conhecimento por pretender ser
universal e auto-suficiente, como ficou claro no seu debate com Hans-Georg
Gadamer. Em terceiro lugar, existe um interesse crítico-emancipatório que
pretende transformar a consciência humana da realidade de forma a emancipar o
ser humano. No essencial, esse interesse emancipatório constitui um caso
especial do interesse hermenêutico, em que a atitude face aos significados, em
vez de meramente os descrever e compreender, assume uma forma crítica.
É neste sentido que Habermas recorre à psicanálise de modo a ilustrar a lógica
por detrás das funções críticas do conhecimento. Assim, tal como Freud enceta
uma reconstrução narrativa das histórias de vida individuais, Habermas, por
analogia, sugere que uma teoria social crítica reconstrua narrativamente o
processo de autoprodução da sociedade, guiada precisamente pelo interesse
crítico-emancipatório. Em termos metodológicos, esta crítica da ideologia
assume a forma de uma "comunicação sistematicamente distorcida", uma noção que
remete para o fato de que o neurótico (tal como o oprimido) sofre de um
distúrbio comunicativo interior e inconsciente, que apenas um terapeuta pode
resolver. Todavia, Habermas reconhece não só que a correlação entre os
diferentes tipos de conhecimento e as várias disciplinas é problemática
(Habermas, 1986:193), como esta noção de comunicação sistematicamente
distorcida, associada à teoria dos interesses cognitivos, deve ser abandonada
em favor do estudo das condições mais gerais de comunicação intersubjetiva, que
podem servir de critério a possíveis desvios.
Isto significa que a partir do final dos anos 1960, início dos anos 1970,
Habermas abandona essa estratégia de justificação epistemológica do interesse
de conhecimento crítico-emancipatório, e a idéia de fundamentar a investigação
social em uma teoria da linguagem1 começa a dominar a sua teoria de uma
pragmática universal e de reconstrução racional – é como se o pensamento de
Habermas operasse, tal como a filosofia, uma viragem para a linguagem. Até ao
final da década de 1970, Habermas inicia uma nova etapa na sua carreira que
culmina, já no início da década seguinte, na publicação da monumental obra em
dois volumes Theorie des Kommunikativen Handelns(1981). Esta mudança é motivada
pela convicção de que "eu já não acredito na epistemologia enquanto a via
regia", na medida em que uma teoria crítica da sociedade necessita de
"fundamentos substanciais" (Habermas, 1986:150). Essa teoria da competência
comunicativa é uma tentativa para justificar a pretensão de erigir a linguagem
enquanto a estrutura privilegiada para se aceder à emancipação, através da
reconstrução da base normativa da fala enquanto um sistema de pretensões de
validade universais e necessárias. Em rigor, e como explica Habermas, a
designação proposta de uma "pragmática universal" para o programa de pesquisa
que visa a reconstruir as bases de validade universal do discurso remete
diretamente para a sua intenção fundamental, a saber: a de identificar e
reconstruir as condições universais da possibilidade de entendimento mútuo
(Habermas, 1976:5).
Em termos genéricos, pode-se afirmar que essa pragmática formal se distingue da
lingüística semântica pelo fato de estudar não frases ou orações, mas sim
proposições ou elocuções, e da sociolingüística porque estas proposições são
estudadas como sendo independentes dos contextos específicos onde são
produzidas. No centro da teoria da ação comunicativa e da análise habermasiana
sobre a racionalidade comunicativa, encontra-se a tese de que os atos de fala
invocam vários tipos de pretensão de validade:
"Irei desenvolver a tese de que qualquer sujeito que actue
comunicativamente deve, ao pronunciar qualquer acto discursivo,
mobilisar pretensões universais de validade e assumir que elas serão
acolhidas. [...] O acordo baseia-se no reconhecimento das pretensões
de validade correspondentes de compreensibilidade, verdade,
sinceridade, e retidão" (idem:2-3).
Habermas, deste modo, propõe-se a analisar as características formais dos
processos cotidianos de comunicação lingüística com vista ao entendimento mútuo
de forma a comprovar a asserção de que existe uma ligação entre a linguagem e
as várias dimensões de validade. A função constitutiva desta pragmática formal
consiste, pois, em identificar e reconstruir as condições universais para um
entendimento mútuo. Daqui decorre que o tipo de ação cujo propósito seja
alcançar esta compreensão mútua se assuma como o fundamental.
Deste modo, a teoria da ação comunicativa assenta, não só mas também, em uma
teoria reconstrutivista que procura identificar os pressupostos universais da
comunicação cotidiana das sociedades modernas: a pragmática formal cumpre
precisamente esta função. Na medida em que pode ser descrita como uma análise
quase-transcendental2 que pretende reconstruir o conhecimento pré-teórico e
implícito que possibilita os processos práticos de entendimento comunicativo,
essa pragmática formal se distingue da empírica por esta última se preocupar
não com a reconstrução das competências comunicativas humanas universais, mas
com a descrição e análise de elementos específicos da prática comunicativa
lingüística. Por outro lado, esta pragmática formal é pragmática na medida em
que analisa o uso da linguagem, nomeadamente os atos de fala ou proposições, ao
contrário da lingüística semântica que estuda as propriedades de frases
isoladas (Cooke, 1994). Esta pragmática formal pode, por conseguinte, ser
entendida enquanto uma parte essencial da teoria crítica de Habermas dado que
sobre ela assenta a sua teoria sociológica da ação comunicativa.
Em suma, podemos concluir esta análise ao papel que a problemática
epistemológica desempenha no projeto habermasiano de uma teoria crítica da
sociedade com duas idéias fundamentais. Em primeiro lugar, e como conseqüência
do falibilismo que sempre caracterizou as suas propostas epistemológicas,
Habermas defende que a base última do discurso científico não é uma verificação
factual ou uma lógica formal, mas um processo de argumentação: "A filosofia
pós-empiricista da ciência deu-nos boas razões para acreditar que o instável
acordo racionalmente motivado entre os participantes na argumentação é a nossa
única fundamentação – em questões de física não menos do que nas de moralidade"
(Habermas apud Morrow, 1994:157).
Em segundo lugar, e como observa Redondo, The Theory of Communicative Action,
mais do que um livro acabado, é sobretudo uma espécie de história interna dos
problemas centrais na filosofia e teoria sociológica contemporâneas (Redondo,
1987:11). Ou seja, e tal como Habermas observa, na história do pensamento
sociológico (Marx, Durkheim, Weber, Parsons) podemos encontrar um problema
recorrente – como conciliar o paradigma dos sistemas e o paradigma da ação? A
sua resposta a este problema consiste em relacionar os dois paradigmas entre
si, objetivando explicar como o sistema econômico capitalista destrói as
condições necessárias à reprodução simbólica do "mundo da vida" (Lebenswelt)
(Habermas, 1986:91). É por esta razão que o projeto de Habermas constitui um
esforço sistemático e continuado de procura de uma justificação teórica para
uma teoria social cujo interesse fundamental é, hoje como ontem, crítico e
emancipatório, e por isso mesmo, irredutivelmente moderno.
A aproximação de Habermas ao pragmatismo americano fá-lo partilhar uma intuição
fundamental com Rorty, apesar da distância que separa a forma como estes
autores olham para o legado pragmatista. Tal intuição remete para a convicção
de que a vida coletiva depende de formas vulneráveis de comunicação,
recíprocas, inovadoras e produto da livre vontade das partes. Apesar de
reconhecer que partilha esta intuição fundamental com Rorty, Habermas (1985),
emO Discurso Filosófico da Modernidade, rejeita aquilo que considera ser uma
perspectiva contextualista da linguagem influenciada pela Lebensphilosophie na
versão nietzschiana. Pensando ter identificado uma intenção de nivelamento
entre literatura e filosofia em Rorty, Habermas compara o fluxo de
interpretações presente em todas as esferas da vida cultural com a história da
ciência de Kuhn: "O fluxo das interpretações pulsa, como a história da ciência
de Kuhn, ritmadamente, entre revolucionamento e normalização da linguagem"
(idem:195). Ou seja, para Habermas, Kuhn e Rorty são dois exemplos de uma certa
forma de interpretar o pragmatismo que ele não pode subscrever: "Vemos assim
como o pathos nietzschiano de uma filosofia da vida virada para o plano
linguístico ensombra as sóbrias opiniões do pragmatismo" (idem:196). Dada a sua
importância, prometo ao meu leitor voltar a esta posição nas considerações
finais deste artigo.
A esta crítica, responde Rorty, em "A Ciência Natural é uma Espécie Natural?",
sublinhando a relação existente, em seu entender, entre o pragmatismo e o
romantismo. Neste sentido, a racionalidade não é nem o uso de uma faculdade
mental chamada "razão", nem um método particular, constituindo "simplesmente
uma questão de ser aberto e curioso, e de confiar na persuasão em vez da força"
(Rorty, 1988:399-400). Noutros termos, contra a predileção de Habermas pela
razão, contrapõe Rorty uma preferência pela liberdade, e em particular pela
liberdade de pensamento e de comunicação. Tal posição é inaceitável aos olhos
de Habermas. Para este autor, o sublinhar da contingência da linguagem faz-nos
esquecer o elemento essencial da ação comunicativa, ou seja, a ação humana cujo
objetivo é o entendimento mútuo através da troca de argumentos – a "força
efectiva do contrafactual, a qual se faz sentir nos pressupostos idealizantes
da acção comunicativa" (Habermas, 1985:196). Isto porque Rorty, tal como
Heidegger, Adorno e Derrida, ainda luta contra os conceitos de "teoria",
"verdade" e "sistema" "que, porém, há mais de 150 anos que pertencem ao
passado" (Habermas, 1999:199n). É por esta razão que Habermas pensa que Rorty
tem que recorrer à noção de uma linguagem ideal "que não exige interpretação,
de que não nos podemos distanciar, que não pode ser ridicularizada pelas
gerações vindouras. É a esperança de um vocabulário que é intrinsecamente e
auto-evidentemente final, não apenas o vocabulário mais completo e produtivo
que criámos até ao momento" (Rorty apud Habermas, 1999:199n).
Habermas rejeita tal idéia de um vocabulário que se explica a si mesmo, fechado
e definitivo, que não requer ou permite qualquer comentário. A sua proposta,
que aspira à verdade, transcendendo assim o tempo e o espaço, embora consciente
de que esta aspiração é formulada em um contexto particular, o que implica a
possibilidade da sua revisibilidade, assenta sobre uma noção crucial – "A
consciência falibilista das ciências também já alcançou a filosofia" (Habermas,
1985:199n). Este falibilismo antipositivista (ou pós-positivista) de que fala
Habermas é um traço que, como vimos, o acompanha desde o início da sua
carreira. Um outro traço, talvez mais importante ainda, que marca o percurso
intelectual de Habermas reenvia à sua insistência em dialogar com referências
teóricas de modo a ir formando a sua própria posição. Se tais referências se
localizam em um passado distante, como é o caso de um Aristóteles ou de um
Hegel, ou se são seus contemporâneos, como é o caso de Rawls ou de Rorty, pouco
importa. O relevante é, em minha opinião, a disponibilidade revelada por
Habermas em levar a noção de "diálogo" a sério. Mais do que uma concepção
reguladora das suas propostas teóricas, a idéia de "diálogo" constitui um traço
constitutivo da sua estratégia de construção teórica. Acontece, porém, e como
tentei demonstrar neste artigo, que a forma como Habermas enceta estes diálogos
enfrenta algumas dificuldades. É justamente com uma reflexão sobre estas
últimas que gostaria de terminar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se existe um quadro civilizacional que configura os propósitos teóricos de
Habermas, esse quadro é o da modernidade ocidental. É neste contexto que
devemos compreender a preocupação fundamental da sua teoria da sociedade – a
explicação e a crítica do sistema econômico capitalista através de uma análise
às suas conseqüências no plano do "mundo da vida". Em meu entender, o projeto
de Habermas caracteriza-se por uma continuidade de fundo (quanto às premissas)
e uma evolução constante (quanto ao grau de sofisticação teórica). Como tentei
demonstrar ao longo deste artigo, a estratégia de reconstrução racional de
várias teorias filosóficas e sociológicas pode ter os seus méritos discutidos
se selecionarmos uma dessas correntes, o pragmatismo, e verificarmos como esta
última, de acordo com outras interpretações (maxime a sugerida por Rorty), se
caracteriza justamente pela rejeição da possibilidade de reconstrução racional.
É como se o objeto da reconstrução de Habermas se recusasse activamente a ser
alvo de tal reconstrução.
Com efeito, as reconstruções racionais que Habermas leva a cabo das propostas
dos seus interlocutores são, a meu ver, tão profícuas quanto funcionais à sua
própria estratégia. Se, por um lado, a forma como Habermas reconstruiu o legado
pragmatista vem constituindo uma fonte de inspiração para toda uma geração de
cientistas sociais e políticos fora do contexto norte-americano, por outro, não
deixa de ser verdade que tal reconstrução parece não respeitar alguns dos
princípios centrais do paradigma pragmatista. Refiro-me concretamente ao
pronunciado pendor historicista e anticartesiano que encontramos em autores
como Dewey e Mead, e que decorre da influência que autores como Aristóteles e
Hegel exerceram sobre o pragmatismo americano (sobretudo sobre a sua versão
nominalista, já que o "pragmaticismo" de Peirce resulta de uma outra linhagem).
É justamente este o motivo que leva Rorty a associar pragmatismo ao romantismo
alemão: a rejeição do universalismo abstrato e de uma concepção pura da razão
humana, mais próximas de Kant e do liberalismo, é, aos olhos deste
neopragmatista, uma implicação necessária do neo-hegelianismo naturalista de
Dewey (e Mead, acrescentaria eu).
Uma alternativa às reconstruções racionais de Habermas é, em minha opinião,
olhar para o passado das ciências sociais enquanto um repositório de tesouros
que só podem ser resgatados se respeitarmos a sua natureza. Doutra forma, se
violarmos a sua integridade impondo a nossa própria agenda e grelha de
interpretação, estes tesouros permanecerão no passado, ficando nós apenas com
os "conceptual survivors" de que falava MacIntyre no seu After Virtue(1981). Ou
seja, a alternativa que proponho consiste em reconstruir de forma
historicamente sensível os legados que a história das ciências sociais nos
deixou. O rigor de uma reconstrução histórica permite-nos evitar anacronismos
como os de atribuir a um autor do século XVI uma intenção própria do século
XXI. Só deste modo, creio, podemos entrar em diálogo com os nossos antepassados
dispostos a ouvir o que os textos que nos deixaram nos têm para dizer. Só assim
poderemos aprender com o passado por forma a não só ver reforçadas as nossas
convicções, como também vê-las questionadas por experiências ou argumentos
entretanto esquecidos; neste último caso, se formos capazes de modificar as
nossas posições por termos sido confrontados com um argumento convincente de um
antepassado nosso, estaremos a beneficiar o mais possível de uma leitura
historicista da história das ciências.
Claro que uma postura presentista como a de Habermas e tantos outros tem também
as suas vantagens, nomeadamente a proficuidade que só a reflexão normativa
sobre os problemas do nosso tempo pode garantir. Noutros termos, não estou a
sugerir que se substitua a construção teórica por reconstruções historicamente
sensíveis do passado. A minha proposta vai antes no sentido de se construir
propostas teóricas à luz de problemas presentes com base em leituras
historicamente sustentáveis dos nossos antecessores. Ou seja, ir buscar ao
passado não as soluções dos nossos problemas (estaríamos, neste caso, a cair na
falácia presentista de procurar no passado aquilo que só existe no presente),
mas a inspiração que a resolução exemplar de problemas no passado nos pode dar
para a resolução dos nossos próprios problemas. A responsabilidade pela
resolução dos problemas do nosso tempo é nossa e só nossa; dialogando com os
nossos antecessores, podemos, isso sim, ganhar uma maior distância crítica em
relação às nossas crenças e aprender com os erros e as descobertas daqueles que
nos antecederam. Esta posição é, em minha opinião, não somente mais consonante
com os ensinamentos dos pragmatistas clássicos, como também teoricamente menos
problemática do que a adotada por Habermas. A principal dificuldade que
Habermas enfrenta é a de poder ficar fechado no presente, refém das suas
próprias convicções e interesses teóricos, incapaz portanto de aprender tanto
quanto poderia com a extensa galeria de autores que convoca nos seus escritos.
O exemplo que decidi tratar neste artigo é, deste ponto de vista, inequívoco. É
ponto assente que as interpretações sugeridas por Habermas de autores como
Dewey e Mead merecem o nosso maior respeito e admiração. No caso de Mead, por
exemplo, e como argumentei noutros textos (como em Silva, 2004), Habermas é
tão-somente um dos mais brilhantes intérpretes de Mead, tendo sido um dos
principais responsáveis pela inclusão do autor de Mind, Self, and Society
(1934) no cânone da sociologia. A sua tese de que o pragmatismo intersubjetivo
de Mead foi o pioneiro na transição do paradigma da consciência para o
paradigma da linguagem é, ainda hoje, 30 anos volvidos após a sua publicação,
uma referência incontornável para quem quer que estude as relações entre o "eu"
e a sociedade em que desenvolve a sua ação. Porém, aquilo para que Rorty nos
alerta não é menos relevante. Como tentei demonstrar ao longo deste artigo,
Rorty chama a nossa atenção para outros aspectos da tradição pragmatista que
Habermas considera ficarem aquém das "sóbrias opiniões" dessa corrente teórica.
Não creio poder acompanhar Habermas nesta posição. Em meu entender, o
antifundacionalismo de Rorty, a sua rejeição de uma concepção
representacionista da verdade, a sua crítica ao racionalismo cartesiano, bem
como os seus apelos para uma defesa "ironista" da liberdade, são propostas tão
inspiradas no universo discursivo pragmatista quanto as de Habermas. A proposta
que aqui defendo aponta, por conseguinte, para um "pluralismo dialógico",
historicamente sensível e que não menospreza a criatividade que caracteriza a
reflexão teórica.
Tal pluralismo é, porém, incompatível com a estratégia de construção teórica de
Habermas. Longe de defender uma síntese operada por um filósofo solitário,
ainda que amante fiel do diálogo intelectual, eu gostaria de sugerir um outro
caminho, por sinal já trilhado pelos pragmatistas. A noção ideal sugerida por
Peirce de uma "comunidade de cientistas" cuja rede de comunicação se estabelece
com base no melhor argumento, mais tarde recuperada por Mead e Dewey no âmbito
de uma teoria radical da democracia, parece-me ser uma via mais promissora. Uma
via dialógica que, ouvindo o maior número de perspectivas possível, nos permita
beneficiar das vantagens que só a intersubjetividade garante, a saber, o
confronto das nossas opiniões com as dos nossos pares, quer sejam eles
cientistas ou cidadãos. Tal pluralismo dialógico, caso adequadamente
complementado pelo rigor que só a reconstrução historicista dos contributos dos
nossos antepassados assegura, parece ter duas vantagens importantes. Se, por um
lado, o seu caráter pluralista garante a contribuição do maior número de
perspectivas, por outro, o seu caráter dialógico garante que estas serão
efetivamente respeitadas. Não enfrentaria, portanto, o problema de ver um
objeto de estudo resistir ativamente aos nossos esforços de reconstrução; pelo
contrário, o historicismo que advogo garante-nos que os nossos objetos de
estudo ficam à distância imposta pelas nossas capacidades de interpretação.
A cisão sugerida por Merton entre teoria e história da teoria é, à luz deste
pluralismo dialógico que aqui proponho, errônea. Pelo contrário, a história da
teoria constitui um complemento valioso da construção teórica; o diálogo com os
nossos antecessores, desde que respeite aquilo que eles realmente quiseram
dizer, é uma fonte valiosa de ensinamentos. Um outro reside na nossa capacidade
de criatividade. Novamente, opto pela tradição pragmatista. Ao invés do
elitismo da concepção sugerida por Nietzsche do "génio criativo", os
pragmatistas sublinham o caráter irredutivelmente democrático da criatividade,
entendida enquanto uma capacidade humana de resolução de problemas concretos
com recurso à imaginação: penso que esta concepção democrática de criatividade
constitui uma via bem mais promissora. É, pois e para terminar, um pluralismo
dialógico a perspectiva que defendo, de pendor historicista, assente na
capacidade humana para a criatividade. Uma proposta inspirada nos escritos dos
autores pragmatistas, construída por referência às propostas de alguns dos meus
pares mais ilustres, mas pela qual apenas o autor destas linhas é responsável.
NOTAS
1. Já existente, embora de forma embrionária, em Knowledge and Human Interests,
onde Habermas observa, por exemplo, que "a gramática dos jogos de linguagem
associa símbolos, ações e expressões. Estabelece esquemas de interpretação do
mundo e da interação. As regras gramaticais estabelecem as condições para uma
intersubjetividade aberta entre indivíduos socializados" (Habermas, 1972:92).
2. Quase-transcendental porque, como observa Maeve Cooke, "Habermas retém a
linha universalista de questionamento da filosofia transcendental enquanto
destranscendentaliza o modo de procedimento" (Cooke, 1994:168).