Max Weber, as múltiplas modernidades e a reorientação da teoria sociológica
INTRODUÇÃO
É inegável que muitas idéias dos clássicos da sociologia, os chamados "pais
fundadores" da disciplina, têm sido cada vez mais pressionadas pelos argumentos
dos sociólogos ligados ao campo do pensamento pós-moderno, aos estudos pós-
coloniais ou aos estudos subalternos. Estes argumentos, nem sempre
convincentes, são às vezes superficiais, outras vezes irrelevantes e com
freqüência mais destrutivos do que construtivos. Mas não se pode negar que
alguns acertam o alvo e, com isso, a vertente macrossociológica das grandes
teorias vem sendo submetida a crescente e rápido descrédito. Em virtude desses
ataques críticos, as descrições de Max Weber sobre a história e o
desenvolvimento excepcional das sociedades ocidentais parecem-nos hoje cada vez
menos convincentes. Mas isso não quer dizer que os instrumentosanalíticos de
Weber e de outros pensadores clássicos devam tornar-se necessariamente inúteis
e sem sentido. Muito pelo contrário, estou certo de que os textos clássicos,
apesar de suas inúmeras distorções e preconceitos etnocêntricos e
eurocêntricos, ainda nos podem ensinar a fazer boas pesquisas
macrossociológicas. Mas essa afirmativa somente se tornará convincente quando
nos dispusermos a confrontar séria e cautelosamente os fatos históricos,
metodológicos e teóricos com as grandes narrativas canônicas.
Assim, o termo "reorientação" citado no título deste ensaio não indica de modo
algum um apoio incondicional à tentativa de Andre Gunder Frank de dar nova
orientação a todo o programa da ciência social ocidental e, por conseguinte,
renunciar à maior parte das obras da sociologia clássica em virtude de seu
inerente viés etnocêntrico (Frank, 1998; 2004). Os argumentos holísticos
radicais de Frank (ele simplesmente declara que existeum sistema econômico
mundial e que todo o resto tem de ser analisado em função deste sistema) e seu
patente materialismo, que reduz as instituições, a cultura, as ações e tudo
mais a epifenômenos das estruturas da economia mundial, jogam fora a criança
junto com a água do banho, por assim dizer, e ficam muito aquém dos insights
válidos dos textos clássicos; o resultado disso é o enfraquecimento dos
aspectos persuasivos da argumentação que ele nos oferece. Em vez de jogar no
lixo da história a teoria sociológica clássica, meu artigo tem uma intenção
mais modesta: fazer uma reflexão sobre as conseqüências metodológicas para a
teoria macrossociológica da produção recente sobre a história da Europa e da
China. Pergunto-me de que maneiras os cientistas sociais deveriam estruturar
seus argumentos em face dos novos produzidos pela pesquisa histórico-
sociológica recente, se realmente desejam participar de modo metodologicamente
defensável do debate acerca das "múltiplas modernidades". Considerando que a
tese das "múltiplas modernidades", defendida com tanta veemência pelas idéias
de Shmuel N. Eisenstadt, inspira-se visivelmente no projeto intelectual de Max
Weber, pretendo argumentar também que justamente esse tipo de sistematização
metodológica é a maneira mais fecunda de descobrir o que ainda é defensável nos
estudos sociológicos clássicos ' e o que não é!
VARIÁVEIS E CASOS
Começarei com algumas observações sobre o premiado estudo histórico a respeito
da chamada "ascensão do Ocidente", publicado por Michael Mitterauer, em 2003,
na Alemanha ("Warum Europa? Mittelalterliche Grundlagen eines Sonderwegs"; uma
tradução aproximada seria: "Por que a Europa? Origens Medievais de uma Via
Excepcional"), que se alinha claramente a uma tradição de estudos originada em
Max Weber ou mesmo em épocas anteriores nos séculos XVIII e XIX, quando os
historiadores e cientistas sociais começaram a tratar teoricamente das causas
do evidente (!) domínio econômico, político e militar da Europa no mundo. Entre
os estudos recentes nessa linha de análise, publicados antes do estudo de
Mitterauer, devem ser mencionados os de Eric Lionel Jones (1981), John A. Hall
(1985) e David Landes (1998)1. O livro de Mitterauer, admiravelmente bem
escrito, filia-se à mesma tradição, de modo que a estrutura de sua argumentação
é muito semelhante à dos demais. Segundo esse autor, é possível detectar a
existência de uma longa cadeia causal de vários fatores que remonta pelo menos
à Idade Média. Mitterauer refere-se, por exemplo, à existência na Europa de um
tipo particular de agricultura, que diferenciou positivamente essa parte do
mundo; ressalta a existência de uma estrutura familiar típica da Europa Central
e Ocidental que deve ter promovido uma excepcional mobilidade geográfica e um
grau incomum de individualismo; faz referência a uma forma especial de
feudalismo, que parece ter dado origem a modos democráticos de participação; e
ressalta o papel da Igreja católica, as conseqüências da imprensa e outros
fatores.
À primeira vista, o argumento geral parece bastante plausível, principalmente
porque, como historiador, Mitterauer apresenta uma enorme quantidade de fatos
que os cientistas sociais dificilmente conseguem questionar, e, mais ainda,
porque ele adota uma argumentação multicausal que rejeita, de modo enérgico e
convincente, as ambições reducionistas tanto dos francamente materialistas
quanto dos francamente culturalistas. Creio que o livro de Mitterauer é uma
interpretação histórica e sociológica muito bem realizada. No entanto, a
despeito de todos os argumentos arrolados na tese da "ascensão do Ocidente",
duas debilidades parecem-me particularmente evidentes: uma de ordem
metodológica, outra de ordem empírica.
O problema metodológico pode ser resumido na frase: "Variáveis demais, casos de
menos!" (Lijphart, 1971; Lieberson, 1991; King, Kehoane e Verba, 1994). A
explicação de Mitterauer sobre a "ascensão do Ocidente" ' como a de todos os
autores dessa linha de pensamento ' é em certo sentido sobredeterminada. Na
opinião de Mitterauer, todos os fatores anteriormente citados parecem ter
efetivamente impulsionado o Ocidente a seguir uma via peculiar que se acabou
revelando vitoriosa. Mas levando em conta que somente umas poucas civilizações
podem ser usadas como pontos de referência comparativos aceitáveis para uma
explicação dessa ordem (provavelmente a Índia, a China e algumas regiões
importantes do Islã), é claro que, por definição, também é quase impossível
avaliar ou cotejar os fatores mencionados. Assim, adotando-se uma estratégia de
pesquisa baseada em tão poucos casos, jamais saberemos quais fatores causais
apontados por Mitterauer (Igreja católica, feudalismo, tipos de família etc.)
são suficientes ou necessários, e quais seriam inclusive inúteis para a
explicação da "ascensão do Ocidente". Uma estratégia de pesquisa que tem cinco,
seis ou mais variáveis e apenas três ou quatro casos arrisca-se a produzir
resultados arbitrários, isto é, os seguidores dessa tradição analítica, como
Mitterauer e outros ' como poderia alegar uma crítica baseada na chamada
"small-N-research" [pesquisa centrada em pequeno número de casos] ' até
poderiam contar uma boa história, mas tudo ficaria dependendo da predisposição
do público a querer ou não acreditar nela2.
O problema do pequeno número de casos aflige muitos projetos de pesquisa
macrossociológica que não usam métodos quantitativos, mas é especialmente
incômodo para a pesquisa comparativa de civilizações que segue o paradigma das
"múltiplas modernidades", já que parece ser bastante difícil em tais condições
elaborar uma estratégia de investigação convincente e metodologicamente correta
pelo simples fato de que não há muitas civilizações a analisar. A situação
agrava-se quando os cientistas sociais, nas suas buscas de causas, recuam ainda
mais no tempo histórico do que Mitterauer: Shmuel N. Eisenstadt, por exemplo,
faz de sua tentativa de teorizar a "era axial" o ponto de partida para o estudo
das civilizações. Nesse caso, poder-se-ia inclusive descobrir variáveis
independentes mais "relevantes" que as de Mitterauer, o qual recuou "tão-
somente" ao ano 1000 a.C. Assim, a proposta de Eisenstadt de pesquisar períodos
anteriores a Cristo piora ainda mais o problema metodológico. Ao que me consta,
até hoje nenhuma discussão rigorosa foi feita sobre as conseqüências do
problema do pequeno número de casos para a análise de civilizações ou para o
debate das "múltiplas modernidades", uma discussão que, no entanto, me parece
indispensável se realmente quisermos estabelecer uma sólida tradição de
pesquisa nessa área. Na minha opinião, em princípio, só há quatro soluções para
o problema do pequeno número de casos, soluções que, no entanto, são muito
diferentes quanto ao grau de satisfação que poderiam proporcionar a um
pesquisador metodologicamente refinado ou a um defensor "ortodoxo" daquele
paradigma. Vejamos:
1) É possível manter-se fiel ao paradigma civilizacional e ao mesmo tempo ser
metodologicamente correto se nos dispusermos a aumentar o número de casos por
meio da construção de vários períodos de tempo em que as variáveis
independentes e os resultados sejam exaustivamente analisados. Seguir essa
estratégia significa não só comparar a Europa, a Índia, a China e o mundo
islâmico em geral, mas também todas essas civilizações em diversas fases ou
"estágios" da história de cada uma, o que por si só serviria para aumentar o
número de casos ou observações e aperfeiçoar a estratégia geral de pesquisa.
Mas pelo que sei, essa estratégia ainda não foi submetida a um teste
sistemático, embora sua viabilidade tenha sido demonstrada pelo menos por
alguns historiadores. Se R. Bin Wong (1997), por exemplo, compara a história da
China e a da Europa Ocidental em momentos diversos e examina se nesses períodos
houve diferenças ou semelhanças nas formas de construção do Estado [state-
building], nas estruturas familiares (as variáveis independentes) e diferenças
significativas ou não nos resultados econômicos (a variável dependente), pode-
se considerar a estrutura do livro de Wong como uma tentativa de aumentar o
número de casos mediante a subdivisão do período examinado. Ainda que esse tipo
de estratégia metodológica pareça muito fácil e simples, suas dificuldades não
devem ser subestimadas, já que freqüentemente ela exige um conhecimento
profundo e sólido de fases históricas, muitas vezes bastante diferentes, de
duas ou mais civilizações. Na verdade, Wong demonstrou que, até o início do
século XIX e durante longos períodos, a variável dependente (as estruturas de
mercado) eram bem parecidas na China e na Europa Ocidental, se bem que a
variável independente (as estruturas do Estado, por exemplo) variassem muito
não só entre as duas civilizações mas na história de cada uma.
2) A estratégia de pesquisa também pode ser aperfeiçoada se relaxarmos um pouco
a estrutura teórica da análise comparativa ou do discurso das "múltiplas
modernidades". É certamente possível, no caso de algumas questões de pesquisa,
comparar regiões (Szücs, 1988) entre e dentro de civilizações diversas, o que
também permite aumentar o número de casos sob observação. Por exemplo, em vez
de falar sobre uma civilização "americana" (que quase sempre subentende os
Estados Unidos da América), talvez seja mais útil fazer uma distinção entre o
Norte e o Sul dos Estados Unidos3, ou, em vez de falar de duas Américas (do
Norte e Latina), tentar agrupar as regiões que cortam fronteiras, tão pouco
valorizadas por tanto tempo. Ou então, por que não juntar o Sul dos Estados
Unidos com partes do Caribe, da América Central (Townsend, 2000) ou da América
do Sul, de acordo com as semelhanças de seus padrões iniciais de imigração ou
de suas estruturas econômicas, já que todas ou a maioria dessas "regiões" se
basearam em economias de plantation? Quanto à Europa: por que comparar a Europa
ou a Europa Ocidental em seu conjunto com a China e não com partes da
Inglaterra ou com a região do delta do Yangz**, como sugeriu Kenneth Pomeranz
(2000)? A explicação é que o caso europeu inclui subcasos tão completamente
diferentes entre si que generalizações amplas não fazem sentido.
Esses procedimentos nos permitiriam elevar o número de casos e observações, mas
convém ter em mente que não é essa a estratégia comumente utilizada por
Eisenstadt e seus seguidores, e por uma razão muito simples: a introdução da
palavra "região", ou seja, da pesquisa sobre regiões de modo geral, não se
adapta a uma forma de análise que normalmente estrutura seus casos (isto é,
civilizações) em termos culturais ou religiosos. Trazer as regiões de volta ao
debate poderia desmontar o eixo teórico mais importante do pensamento de
Eisenstadt: o conceito cultural e religioso de uma "era axial", estreitamente
associada à noção de civilizações. E como "regiões de importância histórica às
vezes se caracterizam por constelações multicivilizacionais duradouras"
(Arnason, 2004), essa é mais uma sugestão de que "regiões" e "civilizações" são
conceitos difíceis de relacionar um com o outro. Entretanto, reinserir o
conceito de regiões pode ser uma das soluções mais promissoras para o
aperfeiçoamento da condição metodológica da análise de civilizações4.
Concentrar a análise em comparações sistemáticas entre países ou Estados-
naçõesem civilizações pode ser uma solução alternativa. Só que isso acabaria
desarticulando todo o paradigma civilizacional e todo o discurso sobre as
"múltiplas modernidades", já que esses conceitos introduzem uma relação não
resolvida entre, de um lado, os países e, de outro, as civilizações. E logo
viria à mente esta embaraçosa pergunta: por que você está usando o modelo
teórico civilizacional se, na realidade, sua análise faz uma comparação
sociológica tradicional que considera os Estados-nações como unidades
comparativas básicas? Além disso, a alternativa tornaria insólito o trabalho de
teorização das múltiplas modernidades, porque se o pesquisador usar os Estados
nacionais como unidades de análise, acabará se deparando com dezenas ou mesmo
centenas de trajetórias distintas para a modernidade ' um resultado que
certamente não era o que esperavam inicialmente os criadores daquele paradigma.
3) Outra possibilidade é rejeitar por completo as ambições explicativas e
limitar-se à mera descrição com a pura e simples finalidade de contrastar
civilizações, comparando-as somente com o intuito de individualizá-las. Esta
parece ter sido a escolha de Shalini Randeria (Conrad e Randeria, 2002) para
estudar o "entrelaçamento" [entanglement] de modernidades. O objetivo da autora
não é tanto o de explicar a lógica endógena dos processos sociais em várias
civilizações; na realidade, Randeria não acredita na existência de nenhuma
lógica endógena, e sua intenção é antes a de explicar teoricamente o impacto
recíproco das civilizações, sem afirmar muita coisa sobre as causas necessárias
ou suficientes dos processos que geraram no passado conseqüências culturais,
políticas e econômicas.
Essa estratégia cautelosa e modesta parece ser bastante conveniente, porque, na
realidade, seria extremamente difícil cotejar todos os fatores e variáveis
endógenos e exógenos envolvidos nas situações, uma estratégia seguida não só
por Randeria, como também pelos historiadores que se reúnem sob o rótulo de
"histoire croisée" (cf. Werner e Zimmermann, 2002). Porém, alguns pesquisadores
consideram que essa estratégia exclusivamente descritiva não é suficientemente
rigorosa para a ciência social, porque incorre em outras dificuldades tão
grandes quanto as que afligem a análise comparativa tradicional de
civilizações. Um dos argumentos críticos pelo menos me parece fundamental: é
sem dúvida correto sugerir que raramente se encontram entidades isoladas, como
as nações ou as civilizações. Estas "entidades" são quase sempre influenciadas
por fatores externos, o que traz à discussão o problema de Galton (cf.
Tenbruck, 1992): se os casos em observação (digamos, civilizações como os
Estados Unidos e a Europa, ou a Europa e a China) influenciam uns aos outros,
então qualquer comparação entre eles se tornará passível de um viés
sistemático, e as asserções causais serão praticamente inúteis. A esse
respeito, pode-se dizer que o método comparativo no campo da macrossociologia é
uma ferramenta muito problemática, simplesmente porque, insisto em dizer, não
há casos isolados. Levando tudo isso em conta, poderíamos concluir que o melhor
é abandonar de todo o método comparativo, conforme, aliás, já foi sugerido por
alguns pesquisadores (cf. Magubane, 2005). Mas a questão é saber se essa
conclusão é de fato inteligente, por um motivo: falar de influências ou
impactos (externos) pressupõe a idéia de que há "alguma coisa" influenciada,
algo que sofre um impacto. E para determinar essa estranha "coisa", que,
evidentemente, não é um dado como parecem crer os empiristas e os positivistas,
é preciso fazer comparações. Definir fenômenos sociais implica compará-los,
significa construir ' mediante comparações ' tipos ideais, como propôs Weber.
Assim, no final das contas, é impossível evitar o método comparativo, ainda que
haja consciência de que usar tal método para fazer afirmações causais é um
empreendimento espinhoso, visto que o problema de Galton quase sempre se
insinua nas ciências sociais.
4) O problema de variáveis demais e casos de menos também poderia ser resolvido
por uma estratégia completamente diferente: reduzir o número de variáveis, pura
e simplesmente. Sem querer chegar a uma solução tão grosseira, eu diria que, em
princípio, a análise comparativa de civilizações de Eisenstadt é uma tentativa
ousada de caminhar nessa direção. O que Eisenstadt faz ' e minha descrição de
sua estratégia de pesquisa certamente tende agora a um simplismo excessivo, e
por isso mesmo injusto ' é estruturar as civilizações em torno de um núcleo
religioso ou cultural, afirmando que, no final das contas, esse núcleo é
justamente o causador da variação dos processos entre civilizações diferentes e
da peculiar configuração de suas instituições5. Mas essa solução também
apresenta seus problemas. Abstraindo a crítica de que a estratégia de pesquisa
de Eisenstadt tem muitos pontos de contato com uma abordagem idealista ou
culturalista, podemos pelo menos alegar que as investigações históricas
realizadas nos últimos 10 ou 15 anos, mencionadas no começo deste artigo, vêm
tornando seus procedimentos ainda mais problemáticos, por duas razões
principais: a) o debate sobre a "era axial" já chegou a um ponto em que toda a
idéia corre o risco de se tornar difusa, como afirmou Peter Wagner (2005)6.
Além disso ' citando novamente Wagner ', é preciso estar consciente de que
talvez pareça bastante inusitado falar em uma via européia quando se
constataram tantas mudanças de direção nesse caminho durante vários períodos
históricos. Os insights gerados por certa inovações axiais, como a
reflexividade, a historicidade e outros, foram repetidas vezes perdidos e
redescobertos durante a história da Europa, de modo que não é convincente os
transformar em traços culturais e, portanto, em conquistas da era axial, isto
é, em momentos definidores da Europa; b) a idéia emanada da historiografia
recente de que até o século XVIII a Índia e a China, por exemplo, eram tão ou
mais dinâmicas e economicamente desenvolvidas que a Europa tem certa relação
com o último argumento e nos induz a um mergulho no campo das questões
empíricas, mas não obscurece um problema metodológico que salta aos olhos. Se
essas descobertas empíricas forem corretas, se a divergência econômica entre a
Europa e a China somente se tornaram visíveis depois do século XVIII, não tem
muita lógica realçar a importância fundamental de especificidades religiosas
que se originaram há 200 anos para explicar tais diferenças. Esse argumento é
obviamente relevante para Eisenstadt, mas também o é para Weber, que se vale de
uma explicação semelhante ao analisar as estruturas do passado chinês
remontando até o tempo de Confúcio (Weber, 1951).
Recapitulando essa discussão metodológica, um debate crítico sobre a tese das
"múltiplas modernidades" e, acima de tudo, do paradigma civilizacional terá de
considerar alguns dos argumentos discutidos no ponto 4. Mais concretamente,
estou convencido de que o tipo de pesquisa histórica, ou histórico-sociológica,
sobre a dinâmica de áreas não-européias mencionadas anteriormente vai ter um
grande impacto nas análises macrossociológicas vinculadas à tradição do
paradigma das "múltiplas modernidades", na tradição de Eisenstadt e de Weber.
Por isso, gostaria de fazer algumas indicações acerca da importância do
conteúdo empírico de alguns estudos publicados nos últimos 15 anos.
Desenvolverei a idéia de que é possível detectar uma certa lógica nessa
discussão histórica, uma lógica que nos fornecerá algumas pistas sobre os
caminhos e os trajetos adequados a uma análise macrossociológica no futuro
próximo.
HISTÓRIA E MACROSSOCIOLOGIA
O conhecido livro de Janet Abu-Lughod, Before European Hegemony: The World
System A. D. 1250-1350 (Abu-Lughod, 1989), contém uma das mais importantes
críticas ao paradigma de Eisenstadt; na verdade, o livro analisa criticamente a
maioria das interpretações propostas pelo debate sobre a "ascensão do Ocidente"
que consideram fatores culturais ou religiosos, muito distantes na dimensão
histórica, como variáveis de grande importância para a explicação de processos
mais ou menos contemporâneos. Essa observação é surpreendente porque o objetivo
original da obra de Abu-Lughod era contribuir para a discussão sobre a teoria
dos sistemas mundiais dominada com tanto brilhantismo por Immanuel Wallerstein.
Já que Wallerstein e seus seguidores diziam estar na periferia heterodoxa do
centro ortodoxo da macrossociologia, não se esperava que Before European
Hegemonytivesse tamanho impacto sobre a macrossociologia ortodoxa. Mas os
argumentos de Abu-Lughod imediatamente levaram todo o debate macrossociológico
a um novo patamar, pois seu livro também podia ser visto como uma crítica
persuasiva ao pensamento histórico-sociológico predominante.
É verdade, porém, que o primeiro alvo dos ataques de Abu-Lughod foi a descrição
de Wallerstein de determinados períodos históricos e, principalmente, a maneira
como ele estabeleceu diferenças entre certos períodos. A autora não critica o
núcleo teórico de Wallerstein, desenvolvido com base em Karl Marx, Fernand
Braudel e ' às vezes ' Talcott Parsons; ela simplesmente defende que a história
da economia mundial deve ser contada de maneira diferente. O primeiro argumento
histórico da autora é que não havia nenhuma diferença significativa entre as
economias dos séculos XIII e XVI, nem na Europa nem na Ásia. Dessa forma, a
tese de Wallerstein de que o estágio da hegemonia européia foi estabelecido no
século XVI não tem muito sentido. De acordo com Abu-Lughod, Wallerstein ainda
dá um crédito excessivo à idéia weberiana de que algo economicamente muito
importante deveria ter acontecido nesse século. Porém, a autora não conseguiu
descobrir esse "acontecimento" de tamanha importância.
"Um fundamento empírico para a distinção entre períodos modernos' e
períodos tradicionais' poderia ser a diferença entre sociedades
organizadas para a produção de mercado, que não separam a propriedade
do capital da propriedade da força de trabalho, e as sociedades que
não fazem essa separação. Mas uma inspeção minuciosa revela que essa
distinção não se sustenta, porque o trabalho livre e a monetização da
troca existiram muito antes da moderna produção industrial', o
trabalho escravo e o escambo persistiram durante boa parte da era
moderna e provavelmente nunca houve uma sociedade urbana em que os
proprietários' não tivessem obrigações ou responsabilidades" (idem:
9-10, ênfases no original).
O segundo argumento da autora foi que desde antes do século XVI já havia um
outro sistema mundial, que se estendia do Leste asiático até uma pequena e
insignificante península ocidental da Ásia denominada Europa. Era um sistema
mundial multipolar, ao contrário do conceito de sistemas mundiais de
Wallerstein, isto é, um sistema não-centrado na Europa e dominado por cidades,
não por Estados ou cidades-Estados. A conseqüência imediata dessa percepção foi
a de pôr em dúvida a plausibilidade das hipóteses sobre a existência de uma
diferença significativa entre as formas de produção e comércio européias e
asiáticas:
"[...] apesar da tendência dos historiadores ocidentais que lidam com
o tema da ascensão do Ocidente' de enfatizar as características
excepcionais do capitalismo ocidental, o exame comparativo das
instituições econômicas revela enormes similaridades eparalelos entre
as formas de capitalismo asiática, árabe e ocidental" (idem:15,
ênfases no original).
Para este artigo, não é tão importante saber como Abu-Lughod explica as
circunstâncias da marcha da Europa rumo ao poder mundial desde então (ela cita
fatos contingentes como a peste negra e a crise econômica chinesa do século XV,
que proporcionaram à Europa uma oportunidade de preencher o espaço vazio); o
que de fato importa é o que se pode inferir do quadro histórico global
desenhado por ela. Isso porque, se o relato histórico de Abu-Lughod for
verdadeiro, então as explicações de Eisenstadt a respeito dos processos
dinâmicos peculiares da Europa e do Oriente Médio ' processos que em princípio
já podiam ser constatados durante a "era axial", quando determinados sistemas
de crença do mundo judaico-cristão criaram a possibilidade de uma rápida
mudança cultural e institucional ' evidentemente perdem credibilidade. Os
argumentos da autora tornam menos plausível a hipótese do caráter excepcional
da Europa, com sua peculiar formação religiosa (ou diversidade de formações
religiosas), desde os primórdios de seu desenvolvimento, enquanto, por outro
lado, seu papel na política mundial e na esfera da economia continuou marginal
ou periférico até o século XVI, pelo menos.
Os argumentos de Abu-Lughod, que enfatizam a existência de um sistema mundial
antes do século XVI e a posição marginal da Europa neste sistema, parecem
atingir em cheio as explicações teóricas de Wallerstein e de Eisenstadt, mas
não são tão eficazes no que respeita a alguns aspectos da obra de Weber.
Afinal, os weberianos, especialmente os defensores da tese da "ética
protestante", sempre podem alegar que as conseqüências não só da ética
protestante, como das mudanças político-institucionais iniciadas pela Reforma,
muitas vezes somente se efetivaram décadas ou séculos depois. Portanto, ainda
que Abu-Lughod esteja certa ao afirmar que não havia uma grande diferença nos
capitalismos dos séculos XIII e XVI, isso por si só não afeta o argumento de
Weber de que pelo menos as "sementes" da modernidade na Europa devem ser
detectadas na era da Reforma européia. Como a autora não disse muita coisa
sobre o período posterior à Reforma, depois desse nefasto século XVI, a tese de
Weber ou proposições similares relacionadas com a tradição da "ascensão do
Ocidente" ainda poderiam se sustentar.
Mas é curioso que o debate não tenha parado por aí, porque alguns sociólogos e
especialmente historiadores da economia demonstraram que, do ponto de vista
econômico, a Índia e a China algumas vezes estiveram à frente da Europa bem
depois do século XVI. Jack A. Goldstone (2000) denominou de "escola da
Califórnia" o grupo de autores empenhados especificamente nesse debate, pois "a
maioria deles pertence a universidades desse Estado". Não estou muito
convencido da utilidade dessa designação, porque os enfoques metodológicos dos
pesquisadores desse grupo variam muito. Entretanto, as contribuições dos
historiadores desse grupo são importantes e altamente pertinentes para o
questionamento das teses weberianas que situam o momento inicial do
desenvolvimento excepcional da Europa nos séculos XVI, XVII ou mesmo XVIII. Na
minha opinião, pelo menos dois desses historiadores, já citados aqui, são muito
importantes nesse contexto: R. Bin Wong e Kenneth Pomeranz.
Wong (1997) discute a própria noção de "capitalismo" e indaga se o conceito
pode representar por si só um obstáculo ao entendimento adequado dos processos
que conduziram à chamada "decolagem" industrial da Inglaterra e ao caminho
divergente tomado pela China (e Índia) na mesma época, a virada do século XVIII
para o século XIX. É preciso levar em conta, adverte Wong, que os economistas
clássicos ' de Adam Smith a David Ricardo e T. Robert Malthus ' eram filhos de
seu tempo, de modo que não trataram de processos econômicos gerais, mas
daqueles que ocorreram durante o período (pré-industrial) em que eles viveram.
Todos três acreditaram firmemente ' não sem razões plausíveis ' que o
crescimento econômico não é infinito, já que a dinâmica dos salários está
ligada a processos demográficos e um certo tipo de esgotamento de recursos
naturais deve ser esperado. Em todas as economias pré-industriais, tanto na
Europa como na China imperial, os observadores tiveram experiência semelhante.
"A China e a Europa Ocidental compartilhavam um mundo de colheitas
incertas e limitações materiais. Ambas passaram por ciclos de
expansão e contração econômica, que progressivamente engendraram
grandes economias impulsionadas por uma dinâmica smithiana similar de
divisões espaciais do trabalho e vantagens comparativas por
intermédio do mercado" (idem:31-32).
Portanto, Smith, Ricardo e Malthus formularam teorias sobre o crescimento
econômico e os processos dinâmicos, mas não acreditavam que esses processos
fossem infinitos ou ilimitados. O que eles não sabiam, pois tinham um
conhecimento limitado da Ásia, era que suas descobertas também podiam ser
constatadas na China. Algumas regiões desta eram muito dinâmicas
economicamente, para dizer o mínimo. Conforme observaram alguns historiadores,
na China ocorreu inclusive uma espécie de desenvolvimento proto-industrial no
mesmo período que na Europa, especialmente na região do delta do rio Yangzi.
Assim, Smith, Ricardo e Malthus poderiam ter descrito na China os mesmos
processos dinâmicos, inclusive uma proto-industrialização, só que esses
processos eram limitados pela quantidade de energia disponível.
Se isso for verdade, pode-se concluir que o crescimento econômico em si, mesmo
as estruturas e processos proto-industriais, não podem ser precondições
decisivas para a industrialização propriamente dita. Tanto a China quanto a
Europa Ocidental passaram pela experiência de um enorme crescimento em
determinadas áreas proto-industriais, mas somente na Europa ocorreu a
"decolagem". O argumento de Wong é que o salto industrial europeu e seu
surpreendente avanço em relação à China foram resultados de acontecimentos mais
ou menos imprevisíveis, e não conseqüências de um processo contínuo e
ininterrupto de transição de uma fase de crescimento proto-industrial para uma
fase de industrialização "de verdade".
"A capacidade de a dinâmica industrial de 1900 possibilitar a criação
de uma riqueza material inimaginável em 1800 torna difícil acreditar
que a industrialização evoluiu naturalmente de uma dinâmica pré-
industrial. Por esse motivo, a Revolução Industrial conserva um
significado que certas pesquisas sobre a industrialização tenderam a
obscurecer, se não a anular, ao enfatizarem a mudança gradual" (idem:
49).
Wong, então, exorta o leitor a não fazer distinção entre pelo menos duas formas
de capitalismo, e para isto vai buscar apoio na análise de E. A. Wrigley (1988)
sobre a Revolução Industrial. Em seu estudo, Wrigley estabelece um claro
contraste entre uma "economia orgânica" (pré-industrial), de um lado, e uma
"economia baseada no mineral" (industrial), de outro lado; esta última logrou
explorar o carvão e outros recursos minerais e, em conseqüência, aumentou o uso
de energia a um nível até então inimaginável7. Assim, a ruptura com o passado
não proveio de uma nova ética protestante (Weber) ou de formas peculiares de
acumulação de capital (Marx), mas de descobertas tecnológicas, muitas vezes
eventuais, que permitiram à Europa ultrapassar a Ásia:
"Para descobrir como a Europa escapou dessas limitações, temos de
levar em conta [fatores ligados] a tecnologia ou as forças de
produção. Se um conjunto de mudanças tecnológicas sem precedentes não
tivesse ocorrido, as pressões da população sobre os recursos teriam
aumentado ' a espécie de possibilidade que denominamos de malthusiana
por causa do enunciado sistemático de Malthus sobre esse perigo"
(Wong, 1997:52).
Nota-se que para Wong a pergunta fundamental não é por que a economia chinesa
estagnou no século XVIII (o que, de fato, aconteceu), mas por que a Europa,
especialmente a Inglaterra, conseguiu romper o ciclo malthusiano. Essa pergunta
está hoje no centro das pesquisas históricas comparativas, e é altamente
contestada. Enquanto alguns autores, seguindo a linha de pensamento marxista,
argumentam que a exploração do Novo Mundo pelas nações européias propiciou uma
acumulação de capital suficiente para induzir a dinâmica industrial européia
(Blaut, 1993)8, Wong não acredita nessa tese e afirma que ao fim e ao cabo essa
exploração não superou a economia orgânica e estática da Europa (idem:49).
Em que pese sua relevância, não examinarei esse debate aqui. Muito mais
importante é que Pomeranz (2000), em seu livro The Great Divergence: China,
Europe and the Making of the Modern World Economy, provou com fatos a
semelhança do desenvolvimento econômico da Europa e da China até o final do
século XIX, e o fez de modo muito mais convincente do que qualquer outro
pesquisador fizera antes, um argumento que, vale dizer, adquire uma certa
plausibilidade pela leitura exclusiva de fontes européias contemporâneas, pois
é sabido que os observadores europeus da China do século XVIII tinham uma
opinião notoriamente elevada sobre a cultura, a tecnologia e a política
chinesas (Osterhammel, 1998). Nessa época, a palavra "Oriente" ainda não havia
se tornado depreciativa, e isso é compreensível porque os europeus não
consideravam que a cultura e a riqueza material da China eram ímpares no mundo.
De qualquer maneira, a leitura de Pomeranz das fontes européias e chinesas
demonstra claramente que, até o século XVIII, a estrutura do capitalismo
asiático não diferia de maneira significativa da estrutura do capitalismo
europeu. Por que então ocorreu uma "decolagem" na Europa e não na China? A
razão pela qual a Europa conseguiu escapar da armadilha malthusiana e a China
não (segundo Wong) devia-se a fatores contingentes, segundo Pomeranz, em boa
parte relacionados com o colonialismo europeu nas Américas, onde os
colonizadores aprenderam novas técnicas agrícolas que transferiram para seus
países; além disso, a exploração das minas de prata das colônias proporcionou à
Europa um enorme fluxo do metal precioso, o que permitiu aos europeus
participarem dos sistemas de comércio asiáticos ' possibilidade inexistente até
então, pois, excetuando a prata, a Europa não tinha muito mais a oferecer aos
seus parceiros comerciais da Ásia9.
Recapitulando os argumentos de Abu-Lughod, Wong e Pomeranz, e admitindo que, em
essência, eles sejam bastante sólidos, podemos tirar duas conclusões que,
surpreendentemente, parecem inverter as opiniões nesse antigo debate sobre a
"ascensão do Ocidente". John M. Hobson (2004) descreveu-as com notável clareza:
"1. O Oriente possibilitou a ascensão do Ocidente pelo simples fato
de que já tinha desenvolvido uma economia vital e expansiva,
principalmente em infra-estruturas mercantis que se disseminaram no
Ocidente e foram inteligentemente aproveitadas pela Inglaterra.
2. Não resta dúvida de que o Ocidente foi rápido na adoção dessas
técnicas econômicas e se apropriou de recursos da Ásia e de outras
partes do mundo. É uma façanha que não se deve negligenciar, com
certeza, mas não chega nem perto das teses de Weber, Eisenstadt (ou
de Mitterauer) a respeito de um desenvolvimento autônomo ou endógeno
da Europa".
É evidente que nenhuma razão lógica nos obriga a deduzir exatamente essas
opiniões, porque o debate sobre as "verdadeiras" causas do progresso industrial
da Inglaterra ainda não chegou a uma conclusão. É preciso não esquecer, por
exemplo, que os argumentos de Wong e Goldstone (ver nota 9) aludem a uma
peculiaridade da cultura e da técnica na Inglaterra e, por conseguinte, não
afirmam que a contribuição do Ocidente para sua própria ascensão deva ser
negligenciada. Entretanto, os dados empíricos que Abu-Lughod, Wong, Pomeranz e
muitos outros10 trouxeram à baila lançam nova luz não só sobre a questão da
"ascensão do Ocidente", mas também sobre a discussão acerca das "múltiplas
modernidades", dados que devem ter conseqüências metodológicas. Isso me leva de
volta ao começo deste artigo e à discussão sobre o problema do pequeno número
de casos. Os pesquisadores envolvidos nesse debate macrossociológico precisam
levar em consideração pelo menos cinco pontos, se não quiserem se colocar em
uma posição vulnerável aos argumentos de metodólogos refinados.
CONCLUSÕES PROVISÓRIAS
A título de conclusão, tentarei apresentar cinco pontos do modo mais claro e
sistemático possível e advirto que essas idéias são importantes não só para uma
explicação teórica da divergência de vias para o desenvolvimento na China e na
Europa, mas também na América Latina e em outras regiões do mundo. Creio que
essa questão deve ser ressaltada enfaticamente, porque, no contexto do debate
sobre as "múltiplas modernidades", centrado empiricamente na Europa e na Ásia,
o "resto" do mundo tende a ser esquecido pela sociologia, desfecho triste de
uma discussão em que a América Latina já ocupou um lugar central.
1. Fazer análises comparativas de civilizações, segundo a versão grandiosa de
Shmuel Eisenstadt, significa recomendá-la como uma forma perfeitamente legítima
de teorização macrossociológica. É preciso saber, no entanto, que esse tipo de
raciocínio permanecerá metodologicamente questionável enquanto o problema do
pequeno número de casos não for resolvido de maneira adequada. Por isso não se
deve ter ambições explicativas muito altas para uma análise dessa natureza.
Recomendo, portanto, a adoção de uma estratégia que se limite a casos
contrastantes ou que busque reconstituir o impacto de uma civilização sobre
outra, como sugere Randeria (Conrad e Randeria, 2002). Em todo caso, uma
análise civilizacional de grande fôlego deve ser cautelosa com as afirmações
explicativas.
2. Se um pesquisador quiser ater-se ao paradigma civilizacional e fazer
comparações entre civilizações no intuito explícito de propor uma explicação,
apesar de todas as críticas metodológicas, ele não deve concentrar
demasiadamente o foco em fatores e variáveis muito remotos no tempo; não só
para não agravar o problema do pequeno número de casos, mas em proveito da
plausibilidade empírica, pois é quase impossível desconsiderar os resultados
das pesquisas históricas de Abu-Lughod, Wong e Pomeranz. Concentrar a atenção
nas transformações da "era axial" não ajuda muito a explicar o fato de que a
divergência de vias para o desenvolvimento na Europa e na China deu-se no
século XVIII ou mesmo no XIX.
Pôr os argumentos sobre a "era axial" como pano de fundo para um esquema
explicativo não quer dizer, porém, que as estruturas religiosas, as
instituições religiosas, os sistemas de crença, as ideologias e tudo mais sejam
inúteis para a explicação da "ascensão do Ocidente" ou da estagnação de outras
civilizações nos séculos XVIII e XIX. É essa a inferência equivocada de Gunder
Frank e de outros autores ligados ao campo da análise de sistemas mundiais. Uma
análise de fundo reducionista (marxista) também não é muito útil para esse fim.
O fato de ser quase impossível explicar os problemas de hoje aludindo a
estruturas histórico-religiosas de mais de 2 mil anos atrás não significa que
se deva ignorar completamente estruturas religiosas, políticas ou de outra
natureza não-econômica. Ao contrário, creio que o programa de pesquisa de
Shmuel Eisenstadt pode ser especialmente valioso para a interpretação de
processos de mudança social em diferentes civilizações, porque somente a
observação de fatores e contextos religiosos e culturais permitirá compreender
configurações civilizacionais peculiares. Usando uma linguagem mais abstrata:
em vez de abandonar a multicausalidade defendida por Weber (e por Eisenstadt),
deve-se afirmar esse princípio como a mais importante estratégia para a análise
das múltiplas modernidades. Mas eu gostaria de repetir o que afirmei
anteriormente: a busca da causalidade não deve remontar muito longe na
história. Ou seja, as análises que comparam civilizações distintas devem
enfocar principalmente os últimos três ou quatro séculos. Essa recomendação me
parece necessária não só por causa do já mencionado problema do pequeno número
de casos, mas porque uma das tarefas mais urgentes da macrossociologia é
explicar por que certas regiões da Europa Ocidental, sobretudo a Inglaterra,
começaram a ultrapassar a China (e a Índia) que tinham, antes da Revolução
Industrial, economias pelo menos tão avançadas quanto as da maioria ou mesmo de
todos os países europeus na mesma época. Wong e Pomeranz, por exemplo, não me
parecem propor explicações sólidas sobre essa divergência de trajetórias. Só
que o foco principal de seus estudos não é esse enigma histórico.
Resta ver se a alusão de Goldstone a uma cultura científica peculiar à
Inglaterra resiste ao teste do tempo ou se, como outros alegam, a chave do
problema está no colonialismo europeu. Mas se houver a crença de que a teoria
do colonialismo pode ajudar a entender o problema (e há algumas indicações de
que essa pode ser uma boa solução), os participantes do debate sobre as
"múltiplas modernidades" devem refletir no mínimo sobre dois pontos que dizem
respeito aos padrões de migração e/ou à estrutura do Estado. Esses dois
aspectos podem ajudar muito a elaborar a diferença entre a América do Norte
como uma "civilização" e outras regiões das Américas:
a) Em que pese o conceito de "settler-societies" não estar hoje mais tão em
voga quanto na década de 1960, quando Louis Hartz (1964) usou a expressão,
parece-me que está voltando a se tornar atual, haja vista alguns estudos na
área da história do meio ambiente (cf. Tyrrell, 2002), e há excelentes motivos
para isso. A expansão européia propiciou a formação de diversos padrões de
povoamento e de novos modos de fazer agricultura (economia de plantation versus
sociedade de pequenos proprietários); trouxe, portanto, novas e diferentes
formas de capitalismo, com enormes conseqüências não só para as áreas
colonizadas como também para os países de origem dos colonizadores
(Osterhammel, 2000). Esse aspecto dos encontros de civilizações foi muito pouco
estudado pelos seguidores do paradigma das "múltiplas modernidades", e me
parece merecer mais atenção. A reflexão sobre esses temas também recoloca em
pauta a "América Latina" que ficou esquecida durante muito tempo nesse
debate11.
b) Deve-se mencionar ainda o papel do Estado nesses processos de povoamento.
Por que a Europa conseguiu colonizar o mundo e ganhar hegemonia nos séculos
XVIII e XIX em comparação com rivais que muitas vezes estavam economicamente
bem mais avançados do que ela? O problema do Estado ' e não me refiro apenas ao
poder militar estatal ' ainda está na ordem do dia como um ponto relevante não
só para questões explicitamente históricas12, mas para os acontecimentos de
nossa época.
Quando falamos de "estruturas estatais encaixadas" socialmente13, temos de nos
perguntar como os Estados foram capazes de construir algum tipo de consenso com
atores (coletivos) da sociedade civil e por que esse projeto falhou tantas
vezes em muitas regiões do mundo. Certamente não é por acaso que alguns
pesquisadores de sociologia histórica (embora não diretamente ligados ao
paradigma das "múltiplas modernidades") estão atualmente começando a estudar
sistematicamente o Estado na América Latina e sua gênese no século XIX, uma vez
que essa análise poderia inclusive responder a algumas perguntas relacionadas
com o desenvolvimento econômico14.
Estou convencido de que é possível e necessário associar mais estreitamente a
tese das "múltiplas modernidades" com as reflexões sobre o papel do Estado,
seja na atualidade, seja há alguns séculos. Um debate mais centrado na política
(melhor dizendo, centrado no Estado) acerca das múltiplas modernidades poderia
nos levar a entender por que, no mundo contemporâneo, somente determinadas
regiões são bem-sucedidas na competição econômica mundial. Essa situação, com
certeza, não mudou desde os primórdios do capitalismo (qualquer que tenha sido
a data inicial) ' um sistema que jamais se baseou exclusivamente em uma
dialética econômica de meios e fins.
3. Centrar a análise no Estado também é uma oportunidade de observar o
capitalismo a partir de um novo ângulo. Está em curso no momento um grande
debate sobre os vários capitalismos contemporâneos; mas curiosamente essa
abordagem está praticamente esquecida na pesquisa histórico-sociológica atual.
Indagar sobre as diversas formas assumidas pelo capitalismo em diferentes
regiões do mundo poderia ser bastante fecundo, especialmente porque possibilita
relacioná-las com os padrões de colonização européia no mundo não-europeu e com
suas conseqüências econômicas. Aliás, não estou certo se a distinção
estabelecida por Weber entre o capitalismo "tradicional" (existente na maioria
das fases da história mundial) e o capitalismo "moderno" (que, segundo Weber,
seria típico da modernidade ocidental) tem muita utilidade nesse sentido. A meu
ver, é mais promissor insistir nas distinções introduzidas no debate pelo livro
de Wrigley, levando em conta principalmente que idéias semelhantes também podem
ser encontradas nos estudos de Fernand Braudel, que sempre se interessou pela
diferenciação de tipos de trocas de mercado [market exchange] (cf. Braudel,
1985 e outros). A distinção que Braudel estabelece entre a esfera da vida
material, as trocas de mercado e o capitalismo não é de modo algum a última
palavra no debate. Mas é no mínimo estimulante ver que alguns autores situados
no centro do debate sobre as "múltiplas modernidades" começaram a lidar com
esse problema (Arnason, 2002).
4. Tudo isso somado, ainda não resolvi se é melhor falar de civilizações ou de
subunidades de civilizações. Pomeranz (2000:6 e ss.), entre outros, chama a
atenção para um pressuposto demasiado freqüente nas análises comparativas de
civilizações: o de que há uma estranha espécie de identidade entre os países
europeus, isto é, a tendência a descrever a ascensão industrial da Inglaterra
como a decolagem industrial de toda a Europa. Isso é muito questionável.
Ninguém sabe ao certo se a ascensão da Europa Ocidental teria ocorrido se outro
país que não a Inglaterra ' por uma série de causas, inclusive aleatórias '
tivesse dado esse salto anteriormente. Assim, ainda não está claro como devemos
comparar o peso de padrões civilizacionais entre diferentes países ou regiões.
Resumindo o argumento: é preciso avaliar cuidadosamente se é de fato necessário
adotar uma abordagem civilizacional abrangente para explicar a divergência de
caminhos para a modernidade entre a Europa e a China, ou se é melhor subdividir
essas civilizações e fazer comparações menos ambiciosas entre unidades menores
' regiões ou Estados-nações, por exemplo. Esse último enfoque, repito, também
abre a possibilidade de tratar de modo mais convincente o problema do pequeno
número de casos.
5. Parece-me ser necessário focalizar de modo muito mais sistemático, por um
lado, os acontecimentos contingentes, e, por outro, as estruturas e processos
altamente estáveis. Essa observação toca vagamente no segundo argumento aqui
mencionado, em que afirmei que as análises de civilizações deveriam ater-se aos
últimos dois séculos se realmente visam à explicação de caminhos divergentes. O
que une essas duas idéias, porém, é o fato de os pesquisadores precisarem estar
conscientes da possibilidade de haver acontecimentos inexplicáveis que poderiam
direcionar a história para trilhas inesperadas. Por isso, deveria haver uma
cooperação mais estreita entre os estudiosos da macrossociologia ligados ao
debate das "múltiplas modernidades" e os neo-institucionalistas. A razão disso
é que os neo-institucionalistas já começaram a tratar historicamente a questão
de por que certas estruturas são altamente estáveis enquanto outras são
mutáveis e voláteis, suscetíveis à influência de acontecimentos contingentes
(Thelen, 2003). Tenho certeza de que apenas esse tipo de argumento poderá dar
fundamentos sólidos à teoria das "múltiplas modernidades". Enquanto os teóricos
dessa tese não tiverem argumentos plausíveis e convincentes para explicar por
que um determinado caminho seguido por subunidades de uma civilização (Estado-
nação, região etc.) não muda com facilidade, em função exatamente de
determinadas limitações civilizacionais, o paradigma continuará a ser alvo de
intenso bombardeio crítico ' e com justa razão! Somente se houver alguma noção
teórica de como um tipo específico de modernidade se fundamenta em
instituições, o paradigma civilizacional ou das "múltiplas modernidades"
conseguirá suplantar as abordagens macrossociológicas concorrentes. Em qualquer
outra situação, os pesquisadores que se mantiverem fiéis a comparações
internacionais tradicionais terão bons argumentos para não aderir ao paradigma
das "múltiplas modernidades".
Isso me leva novamente a Max Weber e aos clássicos ' e às minhas observações
finais. Creio que vai se tornar cada vez mais difícil aceitar o aspecto
macrossociológico da obra de Weber, pois é bem provável que outros estudos na
linha da "escola da Califórnia" venham a ser publicados. Nesse momento, não me
parece provável que essa escola de pensamento seja outra vez relegada a um
segundo plano, o que significa que os esforços de Weber para explicar a
estagnação da Índia e da China e o dinamismo da Europa com base em estruturas e
acontecimentos da Idade Média, ou mesmo algumas centenas de anos atrás, tendem
a perder credibilidade. A explicação de Weber sobre a ascensão do Ocidente não
é mais defensável ' por razões empíricas (isto é, históricas) e metodológicas.
Mas essa crítica não atinge a avaliação da maior parte de seus instrumentos
analíticos e terminológicos. Desse ponto de vista, seus estudos ainda têm
grande valor para os pesquisadores da macrossociologia, pois a sua insistência
na multicausalidade, sua atenção concreta aos atores (coletivos) e às
instituições societárias (Kalberg, 1994) podem nos dar muitas indicações sobre
o modo de estruturar argumentos macrossociológicos sem o risco de cairmos nas
armadilhas do reducionismo.
NOTAS
1. A referência a esses livros não deve fazer esquecer que nesse ínterim alguns
dos autores mudaram de posição, às vezes de maneira importante, no debate sobre
a "ascensão do Ocidente": Eric L. Jones (1988) e John A. Hall (2004), por
exemplo, parecem hoje muito mais cautelosos na explicação dessa ascensão em
virtude das evidências históricas agora disponíveis.
2. Além disso, não se deve esquecer que há muito ceticismo, especialmente entre
os historiadores, quanto à possibilidade metodológica de fazer "comparações
totais" entre civilizações (cf. Osterhammel, 2001).
3. Ver, por exemplo, a explicação histórica ou etnológica de Fischer (1989);
para uma abordagem mais sociológica, Knöbl (2006).
4. Na opinião de Perry Anderson (1994), é impossível negar que o termo "região"
possui muitas conotações políticas, mas isso também é verdade no que respeita
ao termo "civilização", que está longe de ser uma noção "inocente". Contudo, se
a maioria dos autores define "civilização" quase exclusivamente em função da
cultura e/ou da religião, o mesmo não se pode dizer do termo "região", pois os
economistas o utilizam tanto quanto os historiadores e os geógrafos, o que
sugere a multidimensionalidade potencial dessa noção.
5. Contudo, a literatura sobre as "múltiplas modernidades" inclui algumas
tendências ao desistoricizar a noção de civilização justamente para livrá-la de
uma definição excessivamente culturalista. Assim, Randall Collins tentou
definir civilizações como "zonas de prestígio": "Ao contrário, o conceito de
civilização como uma zona de prestígio dirige a atenção a uma atividade social
e a uma variação cultural. Uma zona civilizacional possui centros; floresce e
desaparece à medida que nela se realizam atividades que promovem seu
magnetismo. As civilizações não são estáticas, mas ativas; nos termos da
sociologia de Durkheim, elas se constroem em torno de lugares onde se
desenvolvem rituais sociais de elevado grau de intensidade, gerando assim
energia emocional e carisma social. [...] A outra vantagem de lidar com zonas
de prestígio civilizacional em vez de códigos culturais é compreender que uma
civilização geralmente se constitui mediante uma diversidade de padrões
culturais. Por serem centros de criatividade, as civilizações normalmente são
modeladas através da história por posições rivais" (Collins, 2004:133).
6. De maneira análoga, Gregory Melleuish afirma que as civilizações são
difíceis de definir porque geralmente são entidades muito grandes e amorfas,
que se modificam com o tempo e contêm várias unidades complexas, as quais
conseguem criar por si sós diversas possibilidades históricas de
"desenvolvimento" (Melleuish, 2004:235). Cf. as diversas contribuições ao livro
de Arnason, Eisenstadt e Wittrock, que penam para definir esses marcos axiais.
Eisenstadt (2005) prefere agora falar em "complexos axiais" (e não mais em "era
axial"), Wittrock (2005) afirma que é preciso levar em consideração pelo menos
cinco diferentes trajetórias para a era axial, o que torna o conceito ainda
mais difuso do que na década de 1970, quando Eisenstadt deu início ao seu
projeto de teorização da era axial.
7. "A principal característica da economia baseada no mineral foi sua
capacidade de libertar a produção da dependência da produtividade da terra
[...]" (Wrigley, 1988:32).
8. A opinião de Blaut também é diferente da de Wong e de Pomeranz, porque ele
fixa a data do desvio de rumos entre a Europa e a Ásia em um período histórico
muito anterior, decisão perfeitamente compatível com suas premissas de que o
colonialismo foi um dos principais fatores da acumulação de capital.
9. Isso nos traz de volta ao centro do debate sobre as "verdadeiras" razões da
decolagem industrial da Europa/Inglaterra. Já afirmei que ainda não há solução
para esse debate e, com certeza, nenhum consenso se formou ' fora o fato de que
a maioria dos observadores admite que, na busca de causas, não se deve
focalizar a Europa e/ou a Ásia, mas a Inglaterra e determinadas regiões da
China (como o vale do rio Yangzi). Jack Goldstone (1987), um dos mais
experientes sociólogos envolvidos no debate, já formulou há tempos uma espécie
de explicação cultural e tecnológica. Pelo menos desde a década de 1980,
Goldstone atribuiu a uma cultura científica e técnica especificamente inglesa
(não européia) a viabilização da invenção de tecnologias que acabaram
permitindo evitar o ciclo econômico malthusiano. Ver também Goldstone (2002).
10. Veja também as contribuições de um dos mais proeminentes antropólogos da
atualidade: Jack Goody (1996; 2004).
11. Uma das razões desse esquecimento está com certeza ligada ao fato de que os
debates sobre a posição da América Latina se deram no âmbito da teoria dos
sistemas mundiais ou da teoria da dependência. Visto que ambas tendem a
diminuir a importância de momentos culturais tão relevantes para a maioria dos
autores que defendem o paradigma das "múltiplas modernidades", é perfeitamente
compreensível que poucos desses autores ousem penetrar no campo dos estudos
latino-americanos.
12. Cabe notar que os autores da chamada "escola da Califórnia", antes citada,
dispõem-se a discutir outros fatores além dos econômicos. R. Bin Wong, por
exemplo, afirma com todas as letras que os processos de construção do Estado e
do Império seguiram rumos completamente diferentes na Europa e na China. Ver
Wong (1997, esp. pp. 77 e ss.).
13. Cf. Evans (1995). Sem dúvida, a questão do "encaixe" [embeddedness] esteve
e ainda está presente no centro das preocupações dos analistas dos processos de
modernização (cf. Davis, 2004).
14. Veja, por exemplo, o estudo de Miguel Angel Centeno (2002) que destaca a
ocorrência na América Latina do século XIX de um tipo diferente de contendas
armadas, que não levou à formação das mesmas estruturas estatais existentes na
Europa Ocidental, resultando em uma fragmentação do Estado na região. Veja a
mesma questão interpretada por uma ótica distinta em James Mahoney (2003).