O melhor governo possível: Francesco Guicciardini e o método prudencial de
análise da política
"Alcançam fins vãos ou a superfície das coisas aqueles que, sem leitura ou
experiência, não possuem olhos penetrantes. [...]. Não te deves comover com as
coisas vãs que comovem os outros, mas somente com a razão verdadeira, sólida e
fundada nas coisas" (Francesco Guicciardini. Consolatoria, tradução do autor).
O MELHOR GOVERNO POSSÍVEL
Quando a Península Itálica se encontrava à mercê das tropas francesas e
espanholas, na primeira metade do século XVI, o Renascimento italiano mostrava
seus últimos sinais de brilho. No que diz respeito à reflexão política, dois
nomes podem ser mencionados, dentre vários que se destacaram no cenário
florentino, especialmente pela repercussão póstuma de seus escritos: Nicolau
Maquiavel (1469-1527) e Francesco Guicciardini (1483-1540). Do primeiro ficaram
várias imagens, que vão do escritor maldito ao defensor ferrenho da liberdade
republicana; o Príncipe e os Discorsi estão entre os textos mais debatidos e
comentados do Ocidente, sendo mobilizados, lidos e reinterpretados desde que
chegaram pela primeira vez ao grande público. O segundo não teve suas obras tão
vulgarizadas quanto seu conterrâneo; ainda assim, desde 1561 ' data da primeira
publicação da Storia d'Italia ', seu nome tornou-se sinônimo do relato mais
agudo da crise da Península Itálica no século XVI, e por que não dizer da crise
dos valores que caracterizaram a Renascença.
Pode-se afirmar que o "historiador Guicciardini" ficou conhecido antes do
"analista político": apenas em meados do século XIX, seus opúsculos anteriores
a 1527 foram redescobertos (Ridolfi, 1967:272). Os "papéis secretos" de
Guicciardini, conservados por mais de 300 anos em um "baú" familiar, foram
publicados por Giuseppe Canestrini entre 1857 e 1867 em diversos volumes. Deles
constavam textos até então inéditos, como o Discorso di Logrogno, o Dialogo del
Reggimento di Firenze, as várias versões dos Ricordi, as Considerazioni sopra i
discorsi del Machiavelli, as Storie Fiorentine, entre outros.
Contemporâneo e interlocutor de Maquiavel, Francesco Guicciardini compartilhava
com o amigo o apego à prática política e aos valores do vivere civile.
Consideravam-se prudentes, homens dotados de extrema sabedoria prática,
discretos conhecedores da arte do estado ' conjunto de preceitos empíricos
associados à condução da res publica ou de um stato principesco, os quais
visavam a manutenção e ampliação dos seus domínios (Viroli, 1992:180). Como
nota Mario Santoro, ambos se mostravam concordantes com as lições do humanista
napolitano Giovanni Pontano acerca da necessidade de uma análise mais apurada
da realidade e das suas condições determinantes, como as motivações
particulares dos agentes políticos e as disposições naturais do ser humano
(Santoro, 1978:170). Diz Guicciardini (1994:33, tradução do autor), em passagem
do Dialogo del Reggimento di Firenze: "se quisermos tecer juízos sobre um
governo ou outro, não devemos considerar tanto de que espécies sejam, mas os
efeitos deles". Tal análise efeitual, contudo, não implica uma rejeição dos
preceitos clássicos do bom governo ' concórdia, liberdade, justiça e harmonia,
tornadas possíveis pela condução virtuosa da res publica. Em seus textos,
especialmente no Dialogo, Guicciardini debate ativa e criticamente com as
tradições filosóficas antiga e humanista (Bignotto, 2006:129), agregando aos
valores tradicionais do bom governo um convite ao exame atento das "coisas do
mundo" e dos efeitos particulares das ações políticas.
Tanto Maquiavel quanto Guicciardini procuravam discorrer, em muitos dos seus
textos, sobre o emprego de meios capazes de incidir com eficiência na atenuação
ou reversão dos processos de corrupção dos costumes e degradação dos valores
republicanos que, segundo eles, assolavam a Península Itálica nas primeiras
décadas do século XVI. Nota-se, nesse sentido, uma guinada teórica em relação
aos autores quatrocentistas ' os "humanistas cívicos", segundo denominação
proposta por Hans Baron1. No caso específico de Guicciardini, a busca pela
"efetividade" analítica revela-se o alicerce de um procedimento prudencial
fundado na idéia metafórica do olhar penetrante e agudo: na medida em que
possuam tal predicado ' formado pela associação entre prudência natural,
experiência prática e leitura cuidadosa das "histórias antigas e modernas" ', o
governante e o analista se habilitam a discorrer com alguma precisão sobre as
vicissitudes das "coisas do mundo", mostrando-se capacitados a estabelecer
juízos políticos seguros sobre a realidade e suas transformações. Delineia-se,
assim, uma teoria da ação política, calcada tanto no exame dos interesses e
motivações permanentes dos homens ' "substância das coisas" ' quanto na
observação das diversas contingências próprias das escolhas particulares e
movimentos eventuais ' os accidenti, dominados pela Fortuna. Esta teoria tem
por objetivos: (a) a tentativa de antecipação dos efeitos das ações de
príncipes e condutores de Repúblicas, com vistas à delimitação das escolhas
pertinentes a serem tomadas pelo governante prudente; (b) definir os
procedimentos adequados a uma reforma política e moral da cidade de Florença.
Conquanto demonstrasse profundo apego aos princípios habituais do bom governo,
a relação de Guicciardini com a tradição filosófica antiga e humanista adquiria
quase sempre contornos críticos, pois a flexibilidade moral necessária à
efetividade analítica do prudente muitas vezes se chocava com a rigidez dos
preceitos sustentados pelas autoridades clássicas, ou então com os valores
cívicos arraigados entre os assim chamados ottimati florentinos. Como reformar
eficientemente o reggimento (governo) de Florença, tornando-a apta a participar
adequadamente dos jogos diplomáticos europeus, sem que os valores republicanos
fossem assolados pelo estabelecimento de um regime tirânico? Como lidar com o
predomínio mediceu ' logo, com a redução a patamares mínimos da liberdade,
segundo ele natural à cidade de Florença (Guicciardini, 2000a:8) ' e ainda
assim manter viva ao menos a "sombra" de um governo livre? (Guicciardini,
2000c:64). Sustento que, em seus escritos políticos, Guicciardini procura
equilibrar e conciliar os valores fundamentais do bom governo com a defesa dos
preceitos empíricos da arte do estado, de modo a ressaltar a possível
complementaridade entre ações estratégicas que busquem resultados eficientes e
os valores fundamentais, coletivamente compartilhados e estabelecidos, de uma
República bem-ordenada: em suma, um melhor governo possível2.
É plausível estabelecer uma aproximação heurística entre as reflexões do
escritor florentino e a filosofia prática aristotélica: na busca do equilíbrio
entre uma moral ideal e as possibilidades efetivas do agir, Aristóteles parte
da observação dos próprios desígnios que os agentes se impõem, de suas condutas
e motivações, no sentido de delimitar os bens por eles almejados (Wolff, 2001:
43). De acordo com o estagirita, "já que o termo 'bem' tem tantas acepções
quanto 'ser' [...] obviamente ele não pode ser algo universal, presente em
todos os casos e único" (Aristóteles, 1985, livro I, parte 1.096a). Do mesmo
modo, o bom governo, em Guicciardini, não pode desconsiderar as "condições dos
tempos" e as especificidades de uma determinada cidade e seus habitantes. Por
esta razão, o novo tratamento conferido à questão da prudência revela-se o
elemento-chave para a fundamentação de uma análise política aguda e penetrante,
apropriada a uma reflexão sobre os rumos da República que tome por base tanto
os valores fundamentais que os homens estabelecem para si mesmos ' sendo a
liberdade, entendida como ausência de dominações externas e capacidade de
autodeterminação política (Pettit, 1997:51-79), o princípio mais importante no
caso dos florentinos ', como também as vicissitudes e contingências de um tempo
particularmente refratário a tais preceitos, tempo este que exige dos analistas
e dos governantes celeridade decisória e profunda visão do complexo movimento
das "coisas do mundo".
AS TRADIÇÕES DO BOM GOVERNO E A QUESTÃO DA PRUDÊNCIA
Antes de passar ao exame do conceito de prudenzia em Guicciardini, traçarei um
brevíssimo panorama sobre a gênese e consolidação da idéia de bom governo na
Península Itálica.
Entre 1337 e 1339, o artista Ambrogio Lorenzetti pinta, na Sala dei Nove do
palácio público de Siena, um afresco composto de representações dos princípios
gerais envolvidos no bom ordenamento de uma República; embora não fosse seu
nome original, a pintura logo passa a ser conhecida como buon governo, e assim
ganha notoriedade (Skinner, 2002:39). Os painéis tematizam preceitos éticos
presentes em muitos tratados políticos dos séculos XII e XIII, como os de
Brunetto Latini e Orfino da Lodi, dando especial destaque à liberdade, justiça,
temperança e concórdia. Para que estas pudessem se concretizar, exigia-se dos
governantes a observância das virtudes cardeais, principescas e cristãs
(Skinner, 1999:146-149). As primeiras ' justiça, prudência, fortaleza e
temperança ' diziam respeito ao equilíbrio moral do cidadão, enquanto as
virtudes principescas ' magnanimidade, honestidade e liberalidade ' referiam-se
à maneira correta de conduzir a República. Aliavam-se a estas as virtudes
cristãs, imperativas em relação a todos os seres humanos.
Ainda que a expressão tenha surgido nos séculos finais da Idade Média, pode-se
dizer que as pedras angulares do bom governo remetem ao tipo de consideração
dos assuntos políticos instaurado pelas filosofias platônica e aristotélica. Em
primeiro lugar, pode-se destacar a fundamentação positiva da finalidade última
da vida coletiva. Contrariamente à "ética das obrigações", típica da
modernidade ' calcada nas noções de dever e obrigação, cumprimento dos deveres
e respeito aos direitos alheios, fundamentadas utilitariamente ou
deontologicamente ', o bom governo se alicerça em uma "ética das virtudes", em
que as finalidades as quais os homens se impõem só podem ser realizadas
plenamente através da perseguição de um fim último, necessariamente mais
elevado que os objetivos egoístas: o bem comum (Eisenberg, 2003:79). As
motivações dos agentes devem visar ao interesse coletivo; para tanto, os
cidadãos ' sobretudo os governantes ' necessitam de um forte aparato moral,
para que suas ações não se orientem exclusivamente pela inclinação a propósitos
individuais. Para que o bem comum pudesse ser alcançado, tanto Platão quanto
Aristóteles defendiam o imperativo do equilíbrio, não só entre os diversos
setores e grupos que compunham a pólis, como também ' e fundamentalmente ' o
controle e equilíbrio dos apetites individuais. Haja vista o caráter
excepcional de uma pólis cujos membros fossem predominantemente virtuosos ' a
ideal superposição entre ética e política ', valorizava-se sobremaneira a
virtude do governante, porquanto se entendia que este, ao realizar ações
virtuosas, contribuía decisivamente para a solidificação do bem comum. Com
vistas à condução correta da cidade, o governante deveria possuir uma série de
aptidões e habilidades específicas. No trato dos assuntos públicos, a prudência
' phrónesis ou prudentia ' mostrava-se a virtude mais importante, isto em
autores os mais diversos, como Platão, Aristóteles, Cícero, Tomás de Aquino e
Marsílio de Pádua.
Para Platão, a phrónesisarticula um tipo de ciência da política ' politiké
epistème, como define na República ' subordinada à sabedoria filosófica
(sophia). Já no Político, Platão (1980) tratará a política como uma tékhne.
Como nota Pierre Aubenque (1986), a discordância acerca do exato papel da
phrónesis constitui um dos elementos centrais da crítica de Aristóteles ao seu
mestre. Para o estagirita, a phrónesis não poderia ser considerada um tipo de
episteme ou tékhne, mas deveria ser tratada como disposição da alma racional '
virtude intelectual ', voltada para a ação no mundo (MacIntyre, 2001:105).
Ademais, Aristóteles ressalta que o reconhecimento do phrónimos ' o homem
prudente ' é anterior à sua própria definição: este é apontado consensualmente
por sua sabedoria prática e não, como em Platão, pela sabedoria filosófica
(Aubenque, 1986:35). Ainda assim, pode-se dizer que os dois modelos apresentam
um núcleo comum, exatamente a busca da melhor vida possível, modelada a partir
da perseguição de uma vida ideal ' o que, em Platão, é mais evidente nas Leis e
no Político que propriamente na República.
Esta forma de conceber a política teve forte sedimentação entre os autores
latinos, especialmente Cícero. E foi através do resgate de seus textos '
juntamente com as obras de Salústio, Sêneca, Quintiliano, Tito Lívio, entre
outros, e também o Digesto compilado no período de Justiniano ' que a tradição
do bom governose solidificou na Península Itálica. Tais autoridades eram
mobilizadas notadamente como alicerces para a legitimação do autogoverno nas
pequenas repúblicas, contra as pretensões centralizadoras do Sacro Império
(Skinner, 2002:13). Como não poderia deixar de ser, o conceito de prudentia,
tão importante nos escritos ciceronianos, passa a ser amplamente destacado nos
tratados humanistas. Para Cícero, a prudentia consiste na principal dentre as
virtudes, uma vez que se responsabiliza pela adequação da ação singular ao
princípio máximo da justiça: "a prudência, sem a justiça, é impotente para
gerar a fé [...] sem a justiça, a prudência não terá força alguma" (Cícero,
1999, livro II, § 34). Os "humanistas cívicos" de maior renome ' Salutati,
Bruni, Palmieri etc. ' mantiveram este entendimento em seus tratados. Em
Guicciardini, a prudenzia preserva sua centralidade, com uma novidade, porém,
que altera significativamente o conceito: ela é tratada como a disposição
responsável pelo exame acurado das "coisas do mundo", procedimento capaz de
orientar estrategicamente as ações dos agentes políticos, sem necessariamente
subsumi-las à justiça ou a qualquer outra virtude ' tal reconsideração do
conceito de prudentia a partir da interpretação dinâmica e problemática da
existência humana, iniciada em fins do século XV pelo humanista Giovanni
Pontano (Santoro, 1978:45), alcança seu apogeu na Florença da primeira metade
do século XVI, especialmente nas reflexões de Maquiavel e Guicciardini.
"DISCREZIONE" E AGUDEZA NO DISCURSO POLÍTICO DE GUICCIARDINI
Francesco Guicciardini considerava-se um personagem ativo no jogo político
italiano, e de fato o era. Ao longo de sua vida, foi nomeado para os cargos
mais significativos da cidade de Florença. Serviu aos Medici durante muitos
anos, quando estes ocupavam o papado com Leão X e Clemente VII; indicado por
eles, governou cidades importantíssimas, como Parma, Reggio, Módena e Bolonha,
além de ter sido presidente da Romanha e lugar-tenente papal em vários
conflitos. A experiência acumulada se faz ver em seus textos, que têm quase
sempre por objeto a discussão do melhor reggimento para a cidade de Florença e
a busca das maneiras adequadas de consolidar, em conjunturas turbulentas e na
medida do possível, os valores tradicionais do bom governo' o que, segundo ele,
só seria possível através de um exame agudo da realidade. Apenas os prudentes '
donos de olhos penetrantes, discrezione, experiência e conhecimento das
"histórias antigas e modernas" ' mostravam-se aptos a estabelecer, através da
separação analítica entre "diversidades substanciais" e accidenti, juízos
eficientes acerca da ação política e da reforma das leis. Diz Guicciardini, em
carta de 18 de maio de 1521 destinada a Maquiavel:
"[...] veja que, mudando somente os rostos dos homens e as cores
exteriores, as mesmas coisas sempre retornam, e não vemos
acontecimento algum que em outros tempos não se tenha visto. Mas o
mudar de nomes e figuras das coisas faz com que somente os prudentes
as reconheçam: por isso é boa e útil a história: porque te coloca
adiante e te faz reconhecer e rever aquilo que diretamente não
conheceu ou viu" (Maquiavel, 1989:298, ênfases e tradução do autor).
Na máxima 76 dos Ricordi, ele apresenta argumentos similares, ao dizer que
"tudo aquilo que foi no passado e é no presente será ainda no futuro; mas os
nomes e as aparências das coisas mudam de tal maneira que quem não tem bom olho
não as reconhece" (Guicciardini, 1995:83, ênfases do autor). No Dialogo del
Reggimento de Firenze, há uma passagem em que o personagem Bernardo del Nero
reproduz os mesmos pontos de vista:
"E, assim, tudo aquilo que foi no passado, parte é no presente, parte
será em outros tempos e algum dia retornará a ser, mas sobre aspectos
exteriores diferentes e várias cores, de modo que quem não possui os
olhos muito bons o toma por novo e não o reconhece; mas quem tem a
vista aguda e que se aplica a distinguir cada caso, e considera quais
são as diversidades substanciais e quais são aquelas que importam
menos, facilmente o reconhece, e com o cálculo e medida das coisas
passadas pode calcular e medir o futuro" (Guicciardini, 1994:36,
ênfases e tradução do autor).
Guicciardini não só afirma, no Dialogo, os mesmos princípios sustentados na
carta endereçada a Maquiavel e na máxima 76 dos Ricordi, como defende a
possibilidade de "calcular e medir" o futuro, desde que o analista tenha a
"vista aguda", atenta às "diversidades substanciais". Ora, na correspondência
ele estabelece relação bastante similar: "o mudar de nomes e figuras das coisas
faz com que somente os prudentes as reconheçam". Se relacionarmos as três
passagens, torna-se possível dizer que, para o autor, ter a "vista aguda"
implica notar o que está para além das "mudanças de nomes e figuras". Também na
Oratio Consolatoria, Guicciardini se vale da metáfora dos olhos penetrantes:
"Alcançam fins vãos ou a superfície das coisas aqueles que, sem leitura ou
experiência, não possuem olhos penetrantes" (Guicciardini, 1993:115, ênfases e
tradução do autor).
Tais asserções só podem fazer sentido se pensadas em função de uma concepção
cíclica do tempo, ainda que assimétrica ' assimétrica porque não se trata do
"eterno retorno do mesmo", mas de tendências de estabilidade ou alternância de
padrões gerais, análogos aos ciclos naturais e associados tanto a certos
princípios cosmológicos quanto à idéia de uma natureza humana permanente, sem
que impliquem, todavia, a repetição dos accidenti (Mazzarino, 2004:412-461). Ao
separar analiticamente o substancial do acidental, os prudentes, donos de
"olhos agudos e penetrantes", habilitam-se a desvendar os meandros do que "foi,
é e será".
Na máxima de número 6 dos seus Ricordi, porém, Guicciardini recomenda uma
postura zelosa na formulação de tais juízos:
"[...] é um grande erro falar das coisas do mundo indistinta e
absolutamente e, por assim dizer, por regola: porque quase todas têm
distinções e exceções pela variedade das circunstâncias, as quais não
se podem estabelecer com uma mesma medida: e estas distinções e
exceções não se encontram escritas nos livros, mas é preciso que a
discrezione as ensine" (Guicciardini, 1995:53, ênfases do autor).
A dessemelhança mostra-se aos olhos de todos; aqueles que têm a "vista aguda",
porém, são capazes de perceber o que está para além das "cores" diferentes. Por
esta razão, Guicciardini classifica, em passagem do Dialogo citada
anteriormente, as diversidades em dois tipos: "substanciais" e "acidentais". As
substanciais são aquelas relacionadas à imutabilidade da natureza humana, ao
que "foi, é e será", aos padrões recorrentes de conduta e motivações humanas
gerais, àquilo que é desigual apenas por aparência externa. Já as diversidades
acidentais ' accidenti ' dizem respeito ao sentido mortal dos homens e das suas
produções, o fortuito, tudo aquilo que está sujeito ao acaso e à Fortuna: "Quem
considerar bem, não pode negar o grande papel que tem a Fortunanas coisas
humanas, porque se verifica que estas recebem a toda a hora impulsos de
acidentes fortuitos" (Guicciardini, 1995:65, máxima 30, ênfase do autor).
Neste ponto, cabe ressaltar a diferenciação feita, na anteriormente citada
máxima de número 6 dos Ricordi, entre o falar do mundo por regola e o falar do
mundo com discrezione. Guicciardini critica, aí, os discursos que, em nome de
um parlare generalmente, deixam de considerar as contingências dos assuntos
humanos; estes falam da realidade por regola, costume, sem reflexão, incapazes
que são de agir com discrezione, ou seja, com discernimento. Também no discurso
Del Governo di Firenze dopo la Restaurazione de' Medici nel 1512, o autor
condena o "falar em geral e com uma mesma regola", opondo a este o "falar
geralmente com distinzione" (Guicciardini, 2000b:44, tradução do autor). A
possibilidade de tecer afirmações de caráter generalizante não é negada; estas,
todavia, devem ser urdidas com discernimento e zelo. Ou seja: o analista
precisa atentar a cada caso, e então separar o que é substancial, recorrente,
do acidental e fortuito.
"As coisas futuras são tão falazes e submetidas a tantos acidentes
[accidenti], que o mais das vezes mesmo os mais sábios se enganam; e
quem anotasse as suas opiniões, máxime nos particulares das coisas '
porque nas gerais advinham com freqüência ', verificaria que há pouca
diferença entre eles e os que são tidos como menos sábios [...]"
(Guicciardini, 1995:61, máxima 23, ênfases do autor).
Mesmo os sábios que se propõem a falar do futuro em seus detalhes sujeitam-se a
cometer graves equívocos. Porém, aqueles sábios que buscam discutir as coisas
"gerais advinham com freqüência", podendo planejar com alguma precisão as ações
presentes. Deve-se notar que nesta máxima Guicciardini se refere aos sábios,
pessoas capazes de olhar com discrezione para as "coisas do mundo": esta se
revela, assim, um elemento crucial do olhar guicciardiniano para a política,
exatamente por constituir um predicado decisivo de analistas e governantes
(Sasso, 1984:13).
Seguindo este raciocínio, penso que a famosa máxima 117 dos Ricordi, em que
Guicciardini critica o recurso excessivo aos exemplos, não deva ser
interpretada como uma condenação veemente das comparações entre situações
diferenciadas, mas como a exigência de rigor analítico em tais aproximações: "É
falacíssimo julgar pelos exemplos porque, se não são semelhantes em tudo e por
tudo, não servem, pois cada mínima variedade no caso pode ser causada de enorme
variação no efeito. Para sermos capazes de discernir estas variedades, quando
não são pequenas, devemos ter olhos bons e perspicazes" (Guicciardini, 1995:
101, ênfases do autor).
Note-se que Guicciardini não nega a possibilidade de estabelecer juízos
eficientes a partir de analogias. Ele defende, isto sim, o imperativo da
discrezione, dos "olhos bons e perspicazes", especialmente quando as variedades
entre passado e presente se mostram significativas. Se não forem estabelecidas
com discernimento, as analogias constituídas no recurso a exemplos serão quase
sempre falaciosas, porque rasas, desatentas à diversidade dos "nomes e cores" e
aos elementos estáveis por trás das oscilações da realidade.
A discrezione permite, assim, a distinção da "qualidade das pessoas, dos casos
e dos tempos". Ela não opera com "regra indistinta e fixa" (idem:131, máxima
186): a flexibilidade e a capacidade de adaptação são suas propriedades
básicas, uma vez que somente o olhar agudo para os fatos singulares, ao
penetrar a substância das "coisas do mundo", torna possível o estabelecimento
de um juízo eficaz para a análise da ação política. Tal capacidade deve-se,
primordialmente, a uma "prudência natural", a qual pode ser aprimorada pela
experiência prática e pela educação retórica, especialmente pelo estudo das
"histórias antigas e modernas" (Kahn, 1985). Diz Guicciardini: "que ninguém
confie tanto na prudência natural ao ponto de persuadir-se de que esta basta
sem a experiência como acessório, porque todos os que lidaram com negócios,
ainda que prudentíssimos, puderam verificar que com a experiência se chega a
fazer muitas coisas, o que não é possível apenas com o talento natural" (1995:
55, máxima 10).
O olhar atento para "cada caso" deve alicerçar, assim, a separação analítica
entre "diversidades substanciais" e os accidenti: a atenção ao particular se
afirma, deste modo, como a "porta" de acesso ao recorrente, desde que operada
de maneira cuidadosa. Com "olhos penetrantes", o analista se habilita a
perceber que "quase todos os mesmos provérbios ou semelhantes, ainda que com
palavras diferentes, encontram-se em todas as nações; e a razão é que os
provérbios nascem da experiência, ou seja, da observação das coisas, as quais
são as mesmas ou semelhantes em todos os lugares" (idem:55, máxima 12). Deste
modo, torna-se possível atestar a existência, em Guicciardini, de dois planos
analíticos do real, e digo analíticos porque eles só se revelam dissociáveis
por meio de abstração conceitual. Ao observador atento da realidade, apenas as
"diversidades substanciais" interessam para a urdidura de juízos políticos
inequívocos. Quanto aos accidenti, ainda que se façam presentes a todo o
momento, não podem ser previstos; ainda assim, devem ser examinados com o maior
cuidado e rigor, uma vez que, ao primeiro olhar, é muito difícil, mesmo para o
prudente, distingui-los das "diversidades substanciais". Os assuntos humanos,
como afirma Guicciardini no Dialogo pela voz de Bernardo del Nero,
"[...] possuem variações diárias, segundo o andamento do mundo, e as
decisões a serem tomadas têm por fundamento quase sempre a
conjuntura, e de um pequeno movimento dependem com muita freqüência
as coisas da maior importância, e dos princípios pouco notados nascem
muitos efeitos de conseqüências gravíssimas. Por isso é necessário
que o governante seja muito prudente, dedicando atenção aos
mínimos'accidenti', e pese bem tudo aquilo que pode acontecer,
esforçando-se em evitar de início e excluir, na medida do possível, o
poder do acaso e da Fortuna" (Guicciardini, 1994:96, ênfases e
tradução do autor).
O prudente não pode desconsiderar o poder da Fortuna e o papel do acaso nos
assuntos humanos. Cada acontecimento e suas condições, cada nova situação e
seus desenlaces, devem ser estudados, analisados e calculados com extremo
cuidado, de modo que os "mínimos acidentes" possam ser isolados e seus
possíveis efeitos, distinguidos e examinados. Aqui, o alto grau de segurança
dos juízos formulados a partir do exame das "diversidades substanciais" dá
lugar à medida do possível, juízos prováveis, não-necessários, mas nem por isso
pouco eficientes. A divisão dos argumentos em possíveis ou necessários é
questão amplamente discutida em tratados clássicos de retórica. No De
Inventione, Cícero (1997:44), seguindo Aristóteles, sustenta que "a
argumentação é qualquer tipo de procedimento concebido que demonstre que algo é
provávelou necessário".
Assim, embora o conhecimento prudencial da política possa, muitas vezes,
constituir juízos necessários ' aqueles formulados a partir do exame das
"diversidades substanciais" ', estes devem ser complementados pelos juízos
prováveis, formulados pelo exame atento dos accidenti e dos movimentos da
Fortuna ' entendida, segundo Santoro, como "complexo de circunstâncias, de
eventos, que condicionam de modo imprevisível o agir do indivíduo" (1978:160).
A crítica de Guicciardini à astrologia tem por base precisamente esta distinção
entre conhecimento seguro e provável: os astrólogos tentam, segundo
Guicciardini, deliberar com segurança sobre o fortuito, o acaso. Para o
escritor florentino, não se pode prever o futuro com estes meios: "pensar em
saber o futuro por este caminho é um sonho" (1995:141, máxima 207). Somente o
analista prudente pode afirmar com boa margem de acerto o "vir a ser", pois que
este "foi" e "é"; e mesmo o prudente não pode tecer generalizações sobre os
accidenti, na medida em que estes, por estarem sob a jurisdição da Fortuna, não
dizem respeito ao recorrente, mas ao contingente3. Deste modo, a formulação de
juízos prudentes deve levar em conta, segundo Guicciardini, tanto os argumentos
necessários quanto os prováveis, que devem ser considerados de acordo com a
questão analisada.
O PROBLEMA DA CORRUPÇÃO
Passo agora à discussão dos princípios cosmológicos que alicerçam este tipo de
olhar prudencial para a realidade ' questão diretamente relacionada à concepção
circular-assimétrica do tempo, aludida anteriormente. Trata-se de uma questão
crucial para a compreensão do problema dacorrupção, uma vez que o discurso
político de Guicciardini ' assim como o de Maquiavel ' se volta em grande
medida para a tentativa de elaborar uma teoria da ação capaz de amenizar ou
reverter a corrupção dos costumes ' expansão dos vícios e contração das
virtudes ', processo este associado à própria natureza, seus ciclos e à relação
do homem com tais tendências naturais.
Na máxima 189 dos Ricordi, Guicciardini afirma que "todas as cidades, os
Estados, todos os reinos são mortais; todas as coisas, natural ou
acidentalmente, terminam e findam alguma vez" (Guicciardini, 1995:131-132,
ênfases do autor). Nas Considerazioni intorno ai Discorsi del Machiavelli, ele
pondera que também a religião, as artes e os estados estão sujeitos a tais
alterações cíclicas (Guicciardini, 2000d:379). Como se pode ver, Guicciardini
enfatiza especialmente o problema da degradação dos costumes e das formas de
governo, assim como o faz Maquiavel nos Discorsi. No Discorso di Logrogno, ele
afirma que "a corrupção que há no mundo não é de hoje; dura já por muitos e
muitos séculos, o que atestam os escritores antigos que tanto detestaram e
falaram contra os vícios de seus tempos" (Guicciardini, 2000a:40, tradução do
autor).
Tudo no mundo passa por estágios de ascensão e queda. Este é um princípio
natural, e não só o homem "singular" se sujeita aos ciclos naturais; mesmo os
costumes e formas de governo não são estáveis, como haviam atestado Heródoto e
Políbio. Afirma Guicciardini, na Storia d'Italia: "não constitui vergonha para
as cidades ilustres se após muitos séculos caem finalmente em servidão, porque
era fatal que todas as coisas do mundo fossem submetidas à corrupção" (1988,
livro II, cap. 1:151, tradução do autor). Em um paradoxo aparente, este
princípio universal da decadência reforça a idéia de uma natureza humana
estável (Maravall, 1986:351): os homens morrem e nascem, suas cidades se
expandem e retraem, as virtudes e os vícios se alternam, e ainda assim os que
lêem as histórias legadas pelos antigos nelas vêem refletidas as mesmas
preocupações e anseios similares. Em períodos de decadência, os vícios adquirem
realce, de modo que o homem, naturalmente bom, deixa-se levar por cupidez ou
interesses alheios à verdadeira glória e honra:
"Todos os homens são por natureza mais inclinados ao bem que ao mal,
e desde que outro aspecto não os conduza a direção contrária, não há
ninguém que não faça voluntariamente mais o bem que o mal; mas a
natureza dos homens é tão frágil e tão freqüentes no mundo as
ocasiões que convidam ao mal que os homens deixam-se facilmente
desviar do bem. E por isso os sábios legisladores encontraram os
prêmios e as penas: outras coisas não fizeram que manter os homens
firmes na inclinação natural deles" (Guicciardini, 1995:107, máxima
134).
Para Guicciardini, aquele que "por natureza seja inclinado a fazer
voluntariamente mais o mal que o bem [...] não é homem, mas animal ou monstro,
já que lhe falta a inclinação que é natural de todos os homens" (idem:107,
máxima 135).
Eugenio Garin (1997:36) afirma que a idéia de um "declínio inevitável" das
coisas humanas era um lugar-comum no pensamento renascentista, assim como a
crença em ressurgimentos. Este juízo fundava-se em uma concepção de realidade
centrada na distinção entre as coisas celestes, imutáveis e perfeitas, e as
coisas terrenas, sujeitas à corrupção e aos ciclos naturais. Por esta lógica
que dirigia o universo, entendia-se que as coisas inferiores eram governadas
pelas superiores, e tudo o que ocorria no mundo sublunar ' mudanças das
estações, nascimento e morte das plantas e animais ' era regido pela perfeição
dos céus e das estrelas. O homem e suas produções ' governos e costumes, por
exemplo ', como partes do mundo sublunar, submetiam-se aos mesmos princípios
naturais de decadência e regeneração.
Estas questões, relativas à posição do homem diante da natureza, e desta em
relação à imutabilidade dos "céus", eram abordadas de diversas formas pelos
autores políticos do período. Maquiavel, por exemplo, alicerça boa parte das
reflexões centrais dos Discorsi nestes princípios cosmológicos, como demonstra
A. J. Parel. A "concepção maquievaliana da história" está calcada, nas palavras
de Parel, na premissa de que "todos os movimentos no mundo sublunar, sejam
naturais ou humanos, são pensados como dependentes dos movimentos que emanam
dos céus, dos planetas e das estrelas" (1993:254, tradução do autor). De modo
análogo, o raciocínio inverso mostrava sua validez: a conexão entre homem e
mundo natural permitia que alterações súbitas e violentas nos negócios humanos
fossem entendidas como causas de distúrbios severos na "ordem da natureza".
Guerras, invasões, mudanças de governo ou de formas políticas: tais rupturas
suscitavam fenômenos alheios aos movimentos regulares do mundo, como marcas da
íntima conexão entre homem e natureza. Se as oscilações desta afetavam todas as
pessoas, do mesmo modo os distúrbios importantes concernentes aos assuntos
humanos incidiam na agitação provisória da natureza. Os fenômenos anormais se
davam a ler como sinais evidentes, marcas da inscrição na natureza das
desordens concernentes aos homens, como guerras sangrentas e mudanças
repentinas de governo. Diz Foucault acerca daquilo que denomina "epistème do
século XVI": "Não há semelhança sem assinalação. O mundo do similar só pode ser
um mundo marcado" (1999:36). Tais marcas apresentam-se como indícios à espera
de decifração: "o saber das similitudes funda-se na súmula de suas assinalações
e na sua decifração" (ibidem). Nas Storie Fiorentine, Guicciardini afirma que a
morte de Lorenzo de' Medici teria sido precedida de diversos eventos bizarros,
prenúncios das sérias crises que estavam por vir:
"As graves conseqüências desta morte foram anunciadas por diversos
presságios: pouco tempo antes, apareceu um cometa; ouviam-se uivar os
lobos; uma mulher enlouquecida em Santa Maria Novella gritou que um
touro com chifres de fogo incendiava toda a cidade; alguns leões
brigaram entre si, e um deles, belíssimo, foi morto pelos outros; e
por último, um ou dois dias antes de sua morte, durante a noite, um
raio atingiu a cúpula de Santa Liperata, e fez rolar algumas pedras
enormes, as quais caíram próximas à casa dos Médici [...]
(Guicciardini, 1998:172, tradução do autor).
Em Storia d'Italia, Guicciardini dedica um capítulo inteiro a acontecimentos
estranhíssimos que, segundo ele, anunciaram, pouco antes da invasão dos
franceses em 1494, a calamità que acometeria em seguida a Península Itálica:
"aqueles que dizem ter notícias das coisas futuras, ou por ciência ou por sopro
divino, afirmavam com as mesmas vozes o aparecimento de muitas e freqüentes
mudanças, acidentes muitos estranhos e horrendos que por muitos séculos não
tinham lugar em parte alguma do mundo" (1988:81, livro I, cap. 9, tradução do
autor). Este momento terrível e decisivo para sua geração era vaticinado,
segundo ele, por situações aterrorizantes, como a aparição de três sóis, em
plena noite, na cidade de Puglia. Em Arezzo, homens armados teriam sido vistos
vagando pelos céus, montados em seus cavalos; até mesmo o fantasma do rei
Ferdinando teria aparecido a um cirurgião da corte napolitana, a quem relatara
a inutilidade de qualquer tentativa de resistir às invasões francesas (idem:
133, livro I, cap. 18).
Ao mobilizar "eventos muito estranhos e horrendos" em sua história,
Guicciardini está em pleno acordo com as tradições historiográficas dos antigos
e dos humanistas, em que estas referências são abundantes. Tais situações
asseguram retoricamente força persuasiva aos relatos moralizantes, por
enfatizarem tanto os perigos do vício desmedido quanto a necessidade do
equilíbrio moral via virtude. O fato de se tratar de uma tópica retórica
recorrente em histórias da Antiguidade e do Renascimento reforça as oposições
vício/virtude e desmedida/harmonia, associadas tanto à corrupção natural quanto
à acentuação da degradação provocada por ações desmesuradas. Daí a relação
entre as súbitas alterações na ordem das "coisas do mundo" ' derrubadas de
reis, mudanças de governos, pestes etc. ' e a desarmonia da ordem natural. Na
medida em que se pode afirmar que os vícios eram então percebidos como
elementos ativadores da aceleração dos processos naturais de corrupção,
concebia-se analogamente que ações virtuosas poderiam incidir na reversão,
mesmo que parcial, destes movimentos naturais de degradação, tendências que,
todavia, podiam ou não se realizar.
Como afirma Giacomo Marramao (1995:39), acostumamo-nos a pensar o tempo
dicotomicamente: de um lado, o tempo cristão, linear; de outro, o tempo pagão,
cíclico. Estas metáforas geométricas muitas vezes impedem a percepção aguda das
singularidades de certas lógicas, como a que vem sendo discutida aqui. Diz
Maquiavel, nos Discorsi: "todas as coisas do mundo em qualquer tempo possuem
correspondência [riscontro] com os tempos antigos. Isto acontece porque, tendo
sido realizadas pelos homens, que têm e terão sempre as mesmas paixões, é
necessário que surtam o mesmo efeito" (Maquiavel, 2000:450-451, livro III, cap.
43, tradução do autor). Aqui, a palavra-chave é riscontro, correspondência. As
coisas não se repetem da mesma forma: elas são análogas, comparáveis, porém
diferentes. Como não são exatamente idênticas, torna-se possível intervir no
sentido da inversão ou aceleração dos ciclos de queda, desde que o observador
da realidade seja capaz de perceber tais movimentos. Na opinião de Maquiavel,
seria possível reverter o movimento de corrupção; Guicciardini, por sua vez,
mostra-se cético quanto a isso. Mesmo assim, dedica boa parte de suas reflexões
ao problema da degradação dos costumes e dos valores republicanos, com a
finalidade de encontrar curas parciais capazes de amenizar estes males. De todo
modo, pode-se dizer que a teoria guicciardiniana da ação política não possui um
campo de intervenção tão abrangente quanto a teoria maquiaveliana, calcada na
possibilidade de reversão completa do estado de corrupção das "coisas do mundo"
pelo resgate da antiga virtus romana.
Em suas Considerazione sobre os Discorside Maquiavel, Guicciardini procura
refutar a tese da estabilidade da "substância" virtù: "é verdadeiro que, ou por
influência dos céus ou por algum arranjo oculto, ocorre que, em certas eras,
não só em uma província, mas universalmente em todo o mundo, há mais virtù ou
mais vício que em outra era [...]" (Guicciardini, 2000d:379, tradução do
autor). Para ele, o mundo pós-1494 era marcado por muitos vícios e pouca virtù.
A divergência pode parecer tola, mas é de fato decisiva, pois que delimita os
horizontes distintos de ação, assim como o alcance do método de cada um. Para
Maquiavel, o que estava em jogo era a "imitação" da virtù dos antigos, enquanto
Guicciardini via a corrupção e a decadência como dados inevitáveis, conquanto
passíveis de atenuação. Daí a crítica dirigida àqueles que a todo o momento
recorrem aos romanos, em busca de exemplos para a ação presente. A seu ver,
seria preciso "ter uma cidade como era a deles, e depois governar-se segundo
aquele exemplo, o qual, para quem tem qualidades desproporcionais, é tão
desproporcional quanto querer que um asno corra como um cavalo" (Guicciardini,
1995:97, máxima 110). Trata-se, segundo Vittorio de Caprariis (1993:90), de uma
"atitude madura diante do fato histórico", marca de "uma tentativa de
aprofundamento deste, um desejo de observá-lo em toda a sua complexidade",
efetiva condenação do uso não refletido do passado.
UM MÉTODO PRUDENCIAL DE ANÁLISE DA POLÍTICA
Se a imitação da virtù não poderia, para Guicciardini, orientar as ações
presentes, o que fazer contra a corrupção? De que maneira o homem poderia
intervir ativamente junto aos movimentos de queda dos valores e das
instituições? A resposta a esta questão passa pelo uso específico de um topos
recorrente entre os autores humanistas, e que remete à filosofia política
clássica: a prudentia, ou, em sua versão toscana, prudenzia. O escritor
florentino vale-se de metáforas médicas que ajudam a esclarecer acerca dos
objetivos de seu procedimento analítico: a demarcação de um conjunto de ações
adequadas, capazes de levar ao estabelecimento de curas parciais para os males
da cidade. Mesmo que estas ações não visem à reversão completa dos ciclos de
queda, elas podem incidir na neutralização dos efeitos da corrupção. "Os
médicos prudentes e experientes", diz Guicciardini,
"[...] em nada usam zelo mais exato que ao conhecer a natureza do
mal, ao perceber os traços, a qualidade e todos os acidentes, para
resolver-se, a partir destes fundamentos, qual deve ser o tratamento
[reggimento] do enfermo, de que sorte e em que tempo se deve dar a
ele os remédios; não se observando bem estes procedimentos [...], ele
dará remédios não proporcionais ao mal, ou contrários à compleição do
enfermo; o que poderia gerar a morte e ruína total do doente" (2000b:
43, ênfases e tradução do autor).
Cabe notar que a palavra reggimento, utilizada aqui no sentido de tratamento,
também possui, na língua toscana do quinhentos, a acepção de governo. É preciso
que o "médico prudente" conheça a natureza dos males que afligem o paciente
para que sua receita seja eficaz. Logo a seguir, Guicciardini vai mais além em
sua comparação entre a prudenziado médico e aquela do governante:
"E como do fato de um enfermo ser bem ou mal medicado se pode chegar
a um argumento potente sobre sua melhora ou sua morte, o mesmo
acontece no governo de um'stato', porque sendo conduzido
prudentemente e proporcionalmente, se pode crer e esperar bons
efeitos; sendo conduzido de outra forma e mal governado, em que se
pode crer senão na sua destruição?" (idem:44, ênfases e tradução do
autor).
As analogias empregadas por Guicciardini são bastante reveladoras: a medicina
renascentista não trabalhava com a noção de curas totais. O médico era visto
como um "administrador" dos males do corpo, capaz de proporcionar bem-estar,
sobrevida, mas não soluções completas. Da mesma forma, o discurso político de
Guicciardini visava à indicação dos meios capazes de propiciar a sobrevida das
cidades e seus ordenamentos, por intermédio da atenuação dos malefícios da
corrupção. Esperava-se tanto dos bons médicos quanto dos bons governantes a
capacidade de observar as verdadeiras causas do mal atuante ' no corpo ou no
stato ', para assim aplicar os melhores remédios, antecipando e antevendo os
efeitos negativos das doenças. Aqui, um ponto central é a denominação dada
àqueles médicos e governantes que possuem a "vista aguda": a estes,
Guicciardini chama de prudentes.
Antes de avaliar a extensão desta novidade no entendimento da prudenzia ' a
capacidade de predição com alguma segurança dos efeitos das ações, com base em
argumentos prováveis ou necessários, de modo que o espectro de falibilidade
inerente às "coisas do mundo" pudesse ser profundamente reduzido ', cabe tecer
alguns comentários sobre as tradições com que Guicciardini lidava no tratamento
desta questão. Como argumentei anteriormente, o tema da prudência era caro
tanto a Platão quanto a Aristóteles, porém em sentidos distintos. Se, para o
ateniense, a phrónesis constitui o equivalente a uma ciência da política, em
Aristóteles ela é vista como virtude intelectual, ligada à reflexão sobre o
contingente, capaz de orientar o homem a agir de acordo com as virtudes morais.
Cícero, por sua vez, defende que a prudentia ensina a agir, em total
concordância com as demais virtudes cardeais e principescas. Quanto à tradição
escolástica, cabe dizer que opõe pela primeira vez prudentia e Fortuna. Este
"remédio da prudência contra a Fortuna", típico do pensamento escolástico,
"valia-se de consentir ao homem reconhecer e medir o caráter provisório e vão
dos bens exteriores, e de distinguir o bem e o mal na conduta prática do viver"
(Santoro, 1978:47, tradução do autor). Tomás de Aquino caracteriza a prudentia
como a mais importante dentre as virtudes necessárias ao bem-viver, aquela que
aplica a "reta razão ao agir" (Aquino, 2005:8, questão 47, art. 4). Ele
enfatiza também seu lado intelectual, e faz da prudentia uma disposição-chave
para o conhecimento simultâneo dos princípios universais e particulares,
orientada pela distinção cristã entre bem e mal.
Entre os autores do chamado "humanismo cívico", a polaridade volta a se dar
entre Fortuna e virtus. Nesse sentido, a prudentia era vista como virtude
essencial ao retto agire (Santoro, 1978:52), ou, como escreve o autor anônimo
da Retórica a Herênio ' a qual, juntamente com o tratado ciceroniano sobre a
invenção retórica, era considerada o texto-base da formação ético-retórica
humanista (Ward, 1983) ', "prudência é a destreza que pode, com certo método,
discernir o bem e o mal" (autor desconhecido, 2005, livro III, cap. 3), através
da comparação entre vantagens e desvantagens, do conhecimento "dos meios ou dos
métodos" para executar uma ação, ou o aconselhamento de "um procedimento de
cuja história tenhamos lembrança por tê-la presenciado ou ouvido contar" (idem,
livro III, cap. 4).
Esta rápida incursão tem por objetivo apontar algumas heranças com que
Guicciardini lidava: ao opor Fortuna e prudenzia, ele parece retomar, ao menos
em parte, a forma com que os escolásticos tratavam a questão ' de Tomás de
Aquino, especificamente, o autor recupera a noção de que esta seria capaz de
discorrer sobre o particular e o universal, embora não no sentido de uma moral
cristã. O direcionamento a um retto agire,típico do "humanismo cívico", também
se faz presente, ainda que dissociado do imperativo ético da justiça. Existem,
porém, algumas diferenças cruciais: contrariamente a Cícero e aos humanistas,
Guicciardini não subsume a prudência à justiça. A primeira consiste, para o
escritor florentino, em uma disposição prática. Nesse sentido, Guicciardini
parece trabalhar com um modelo similar ao da phrónesis de Aristóteles, que
relaciona a prudência à análise efetiva da contingência, sem que esta se
distancie, todavia, da noção de bem comum. Como argumentei, o estagirita
reconhecia a figura do phrónimos, o prudente, como o homem habilitado a tomar
decisões corretas no âmbito da pólis. Nesse sentido, pode-se dizer que
Guicciardini reivindica para si o papel do prudente escrevendo sobre a
prudenzia.
Deve-se notar, contudo, que o entendimento guicciardiniano de prudenzia não
pode ser inteiramente englobado pelo modelo aristotélico: para o escritor
florentino, a prudenzia constitui o principal alicerce de uma forma de análise
das coisas da política fundada na capacidade de antecipação, necessária ou
provável, dos efeitos das ações humanas. A idéia de que a prudenzia pudesse
atuar como elemento de predição não era inteiramente nova, embora não tivesse
sido muito explorada pelos humanistas. Cícero, no De Officiis, afirma que uma
das qualidades centrais do homem sábio e prudente consistia exatamente na
capacidade de "antever as coisas futuras e, no momento crítico, resolver os
problemas tomando a decisão oportuna" (Cícero, 1999, livro II, § 33). No De
Inventione, o filósofo romano afirma que as partes da prudência são "[...] a
memória, a inteligência e a previsão [providentia]. A memória é a faculdade que
permite à mente recordar o passado; a inteligência, o que faz compreender os
acontecimentos presentes; a previsão, o conhecimento da realização de uma coisa
antes que aconteça" (Cícero, 1997, livro II, § 160, ênfase e tradução do
autor).
Em Guicciardini, tal capacidade de previsão constitui um elemento decisivo do
olhar prudencial para os fenômenos políticos. Por esta razão, discordo da
afirmação de John Pocock de que a prudenzia, para o escritor florentino,
consistiria apenas em uma "política de manobras" e precauções temerosas, sem
visar à intervenção direta e à ação no mundo (Pocock, 1975:238). Diz
Guicciardini, na Storia d'Italia:
"[...] não se deve confundir ' como poucos observadores das
propriedades, dos nomes e da substância das coisas afirmam ' a
timidez com a prudenzia; nem se deve reputar como sábios àqueles que,
tomando por certo todos os perigos, agem como se todos fossem
acontecer. Não se pode chamar de sábio ou prudente àqueles que temem
o futuro mais que se deve" (1988:284, livro III, cap. 4, tradução do
autor).
Ser prudente não é adotar posturas medrosas. Para Guicciardini, prudenzia
implicava a capacidade de se colocar no mundo, de agir com rapidez, de tentar
antecipar os efeitos das ações e decisões dos principais agentes políticos.
A experiência do homem de Estado ' a qual, como diz o personagem Piero
Guicciardini no Dialogo, "não se aprende nos livros dos filósofos"
(Guicciardini, 1994:24, tradução do autor) ', somada ao conhecimento das
histórias e à prudência natural, constituem assim os alicerces do "método
prudencial" de Guicciardini, método este que será, senão negado, ao menos
bastante problematizado em seu último escrito, a Storia d'Italia, texto marcado
pelo desencantamento político e resignação diante do amplo predomínio da
Fortuna. Em suas obras políticas de juventude e meia-idade, porém, as histórias
são tratadas como repositórios de fatos, dos quais o analista se valerá para
formular seus juízos, constituindo-se assim como aberturas para o presente de
experiências alheias (Koselleck, 1985:272).
Existe, ainda, um elemento que torna possível a união entre experiência e
sabedoria histórica na forma de conhecimento: a ragione. Afirma o personagem
Bernado del Nero, no Dialogo: "sou daqueles que nunca me valeria da
experiência, a menos que esta viesse acompanhada da ragione" (Guicciardini,
1994:45, tradução do autor). No sentido empregado, ragione indica a capacidade
de articular a experiência e o conhecimento das histórias na forma de um juízo
prático eficiente. Não se trata, aqui, da razão cartesiana, lógica e abstrata,
que caracterizará a modernidade, mas da faculdade de estabelecer o que é
ragionevole, racional porque razoável. Sobre a razão em Guicciardini, afirma
Gennaro Barbuto:
"era uma razão que nascia na ágora, no confronto entre a opinião dos
mais 'sábios', que se valiam dos exemplos passados da história
florentina, mas, em particular, do caráter persuasivo da 'razão',
conectada à contingência particular, sem pretensão alguma de fixar
princípios gerais e intangíveis" (2002:36, ênfase no original e
tradução do autor).
Esta forma de abordar os fenômenos políticos tem por fundamento a necessidade
do exame agudo dos efeitos de cada ação, cada movimento, cada jogada dos
principais agentes responsáveis pelos rumos das Repúblicas e dos principados
italianos. Trata-se de um procedimento analítico que exige a consideração
atenta das inúmeras vicissitudes de uma realidade sempre cambiante e das
possibilidades efetivas diante de tais circunstâncias. Pode-se dizer, deste
modo, que a idéia de República bem-ordenada deva ser entendida nos textos de
Guicciardini como a busca de um melhor governo possível, adequado à dinâmica do
seu tempo, tendo o bom governo como um horizonte regulatório ideal, a orientar
criticamente o jogo a ser jogado no complexo tabuleiro da história.
NOTAS
1. Existe um grande debate acerca da pertinência do emprego do conceito
"humanismo cívico". Optei pelo uso, por considerá-lo delimitador de um tipo
específico de humanismo, associado às reflexões retórico-políticas de
chanceleres e magistrados republicanos, especialmente na Florença da primeira
metade do século XV, em oposição a outros humanismos, como o neoplatônico.
2. Viroli (1992) considera Guicciardini um autor de transição, na encruzilhada
entre a arte do bom governo e a arte do estado, juízo a meu ver equivocado,
menos pela teleologia da análise que pelo obscurecimento da singularidade da
análise guicciardiniana acerca da relação entre ideal e possível.
3. A importância do conceito de Fortunanos escritos de Guicciardini acentua-se
a partir de 1527, ano em que se dá o saque de Roma. A partir desse momento, o
conceito de Fortuna exercerá um papel de destaque em seus escritos,
especialmente na Storia d'Italia (Gilbert, 1984).