Indivíduo e mistura de gêneros: dissonâncias culturais e distinção de si
De Thorstein Veblen (1978 [1899]) a Pierre Bourdieu (1979) passando por Edmond
Goblot (1925), uma longa tradição intelectual destacou as funções sociais da
arte e da cultura nas sociedades diferenciadas e hierarquizadas, e sobretudo os
lucros sociais de distinçãoligados à apropriação das formas culturais mais
raras e mais legítimas. Os sociólogos da cultura já estão acostumados a pensar
"a Cultura" (a "alta" ou a "grande" cultura) em suas relações com as classes
sociais ou com as frações de classes e a constatar as desigualdades sociais de
acesso à "Cultura". Classes sociais e sua distância maior ou menor em relação à
cultura dominante, hierarquias culturais que classificam os grupos,
instituições, obras e práticas do mais legítimo ao menos legítimo, eis os
elementos-chave da interpretação sociológica das práticas e preferências
culturais há 40 anos na França (Bourdieu, 1979; Bourdieu et alii, 1965;
Bourdieu e Darbel, 1969), como nos Estados Unidos (Lynes, 1954; Murphy, 1988;
Levine, 1988; Beisel, 1990). A situação social global descrita desde meados dos
anos 1960 na França pode ser resumida da seguinte forma: classes dominantes
"cultas", com uma relação fácil com a cultura para aqueles que tiveram uma
educação cultural precoce; classes médias caracterizadas por "boa vontade
cultural" e tensão hipercorretiva, oscilante entre o "nobre" e o "popular"; e
classes dominadas mantidas à distância da Cultura e sob permanente vergonha ou
indignidade cultural.
Esse é o esquema que pode ser questionado adotando-se uma perspectiva de
conhecimento diferente daquela que analisa apenas as distâncias interclasses:
perspectiva que considere de modo sistemático as práticas e as preferências
culturais sob o ângulo da variação intra-individual dos comportamentos (Lahire,
2004).
Ao proceder assim, lança-se outro olhar sobre a tão debatida e complexa questão
dos públicos da cultura. A história cultural francesa foi levada, há já quase
20 anos, a discutir o uso pouco reflexivo e muito automático de categorias de
classificação dos "públicos" ou "populações" mantidas por muito tempo como
evidentes na história estatística. Por exemplo, em vez de utilizar categorias
sociais que não foram pesquisadas (elite/povo, dominantes/dominados,
hierarquias socioprofissionais ou socioculturais) para conseguir detectar as
diferenças culturais, o historiador Roger Chartier propõe o caminho inverso:
partir dos objetos, das obras, dos códigos, das formas, dos dispositivos
simbólicos, a fim de reconstruir as comunidades que deles se apropriam.
Descobrem-se então princípios ' plenamente sociais ' de diferenciação
relativamente inéditos, que uma "visão mutilada do social" (1989:1.511) tinha
feito esquecer: sexo, geração, situação familiar (celibato, viuvez, casamento
etc.), confissão religiosa, tradição educativa e corporativa, escolaridade,
posição intelectual etc. Mas em vez de ir dos objetos, instituições ou práticas
para os públicos que os atraem e que deles se apropriam, também é possível
indagar como os mesmos indivíduos podem fazer parte de públicos tão diversos
(público da televisão, do rádio, do teatro, do cinema, dos museus, das salas de
concerto, da literatura etc., mas também públicos de certos gêneros de
programa, de espetáculo, de filme, de música, de literatura etc.), por vezes
nitidamente heterogêneos. Quem se concentrar demais na lógica das interpretive
communities(comunidades interpretativas), no sentido de Stanley Fish (1980),
pode acabar esquecendo que os indivíduos costumam passar de uma "comunidade"
para outra e que se caracterizam, sob esse aspecto, por uma pluralidade de
pertencimentos sociais e simbólicos, inserindo suas práticas (e sobretudo suas
práticas culturais) em múltiplos lugares e tempos.
O QUE REVELA A MUDANÇA DE PERSPECTIVA DE CONHECIMENTO?
Não se trata absolutamente de negar a existência de desigualdades sociais
diante das formas culturais mais legítimas, e sobretudo o papel sempre central
do capital cultural no acesso às formas mais eruditas de cultura. Mas a mudança
de escala de observaçãopermite esboçar outra imagem do mundo social. Começando
por considerar as diferenças internas à série de comportamentos e de gostos de
cada indivíduo (variações intra-individuais: o mesmo indivíduo faz isto
eaquilo, gosta disto masgosta tambémdaquilo, gosta disto mas em
compensaçãodetesta aquilo etc.) antes de voltar às diferenças entre classes
sociais (variações interclasses), chega-se a uma representação do mundo social
que não descarta as singularidades individuais e evita a caricatura cultural
dos grupos sociais. Vê-se então que a fronteira entre a legitimidade cultural
(a "alta cultura") e a ilegitimidade cultural (a "subcultura", o simples
"divertimento") não separa apenas globalmente (estatisticamente) as diferentes
classes, mas divide as diferentes práticas e preferências culturais dos mesmos
indivíduos, em todas as classes da sociedade. Sejam quais forem suas
características sociais (classe social, nível de diploma, idade ou sexo), a
mesma pessoa terá muitas probabilidades estatísticas de ter práticas e gostos
variáveis sob o ângulo da legitimidade cultural, segundo as áreas (cinema,
música, literatura, televisão etc.) ou as circunstâncias da prática.
Em escala individual, dois grandes fatos impõem-se à análise. O primeiro é a
forte freqüência estatística dos perfis culturais individuais compostos de
elementos heterogêneos, dissonantes(no sentido em que alguns pertencem a
registros culturais muito legítimos e outros a registros culturais quase nada
legítimos): esses tipos de perfis são absoluta ou relativamente majoritários em
todos os grandes grupos sociais (embora mais prováveis nas classes médias e
superiores que nas classes populares), em todos os níveis de diploma (mesmo que
bem mais prováveis entre os que concluíram no mínimo o curso secundário) e em
todas as faixas etárias (embora cada vez menos prováveis à medida que a idade
aumenta). O segundo fato a destacar é a maior probabilidade, para os indivíduos
que compõem a população pesquisada, de ter um perfil cultural consonante"por
baixo" (de fraca legitimidade) que "pelo alto" (de forte legitimidade):
seguindo assim a pirâmide das condições sociais, é sociologicamente bem mais
difícil manter um alto nível de legitimidade cultural em uma série de domínios
do que se manter afastado de toda forma de legitimidade cultural1.
Se retivermos os resultados conseguidos na escala das variações intergrupos ena
escala das variações intra-individuais, é possível dizer que os indivíduos das
sociedades contemporâneas têm, ao mesmo tempo, uma forte probabilidade de se
comportar como os outros membros do grupo social a que pertencem euma forte
probabilidade de não ter apenascomportamentos ligados ao grupo social a que
pertencem, ou seja, forte probabilidade de ter alguns comportamentos atípicosem
relação ao grupo social a que pertencem. Por isso, cabe afirmar que não há nada
mais estatisticamente freqüente que a singularidade individual e, por
conseguinte, que as exceções estatísticas nada têm de excepcional: é o que há
de mais comum, e tais exceções tocam a maioria dos indivíduos que compõem os
diferentes grupos sociais.
Ao contrário do que se imagina, a questão dos comportamentos estatisticamente
"marginais" (ou atípicos) está longe de ser marginal do ponto de vista
sociológico, isto é, ela não constitui um interesse de segunda ordem para o
sociólogo que não tenha como único objetivo comentar as tendências estatísticas
mais acentuadas. Esse lugar primordial das "margens" aparece com clareza
quando, em vez de considerar os vínculos entre grupos (ou categorias) e
práticas ou preferências, focalizam-se os indivíduos que compõem os grupos e
observam-se suas práticas e preferências em diferentes compartimentos ou
subcompartimentos de sua vida cultural. Adotando aqui (por exemplo, em matéria
de gostos cinematográficos e preferências literárias) o comportamento típico ou
modal de seu grupo (aquele que é o mais freqüentemente ligado ao grupo social a
que pertence), ele é lá (por exemplo, em matéria de gostos musicais ou de
consumo televisual) marginal no sentido de seu comportamento não ser
estatisticamente o mais freqüente no grupo social ao qual pertence. Típicos e
marginais ao mesmo tempo,éoque quase sempre são considerados os indivíduos na
longa seqüência de seus comportamentos. Em um ou em outro grau, em tal ou qual
setor de seus comportamentos, qualquer indivíduo, aliás o mais conforme à
cultura de seu grupo, ficará entre as exceções estatísticas e comportar-se-á
como a maioria dos membros de outro grupo. Se desdenharmos as margens ou as
exceções estatísticas, não estaremos perdendo apenas as beiras do quadro, mas o
quadro inteiro.
PLURALIDADE DAS ORDENS DE LEGITIMIDADE CULTURAL E PERFIS INDIVIDUAIS
Ao contrário do que as derivas legitimistas da teoria da legitimidade cultural
conseguiram fazer crer (Grignon e Passeron, 1989), saindo da zona
institucionalmente balizada e controlada pela Escola, a legitimidade cultural
nem sempre dispõe de meios para impor-se como uma evidência. Numerosos casos de
"resistência" (fraca ou forte, circunstancial ou permanente) à ordem cultural
dominante são observáveis, e constata-se que a pluralidade dos grupos ou
instituições (dos maiores aos mais restritos; dos mais duradouros aos mais
efêmeros) que compõem a formação social produz ordens de legitimidade
específicas mais ou menos fortes e mais ou menos duráveis. A possibilidade de
resistir à legitimidade cultural dominante (ainda hoje, apesar de profundas
mudanças em curso, de ordem principalmente literária e artística) sempre se
baseia em grupos ou instituições possuidores de lógicas concorrentes: grupos de
pares, meio familiar, meio profissional, comunidade religiosa, fã-clube, rede
de sociabilidade, instituição midiática etc.
Por motivos tanto teóricos (a crítica na ordem teórica de deslizes legitimistas
da teoria da legitimidade cultural) quanto históricos (as transformações
históricas da oferta cultural durante os últimos 40 anos), é impossível
continuar como se estivéssemos diante de um espaço cultural homogêneo sob o
ângulo da legitimidade, isto é, estruturado de parte em parte pela unívoca
oposição legítimo/ilegítimo; oposição que todos conheceriam e executariam, à
qual todos concederiam o mesmo significado e na qual todos acreditariam com a
mesma intensidade. Não se pode fazer de conta que existe uma identidade de
crenças culturais no mesmo momento em todas as regiões do mundo social, como se
o conjunto dos grupos sociais tendesse a alinhar-se pelos consumos legítimos
dos membros mais "cultos" das frações intelectuais da classe dominante.
Ora, mudando o enfoque e olhando o mundo social pela escala dos indivíduos,
percebe-se que cada indivíduo é suscetível de participar sucessiva ou
simultaneamente de vários grupos ou instituições, e tenta-se encontrar os meios
para compreender sociologicamente os motivos das maiores ou menores variações
intra-individuais dos comportamentos culturais. A variação intra-individual das
práticas e preferências culturais é o sinal e o sintoma, na escala do social
incorporado, por um lado, da pluralidade da oferta cultural e, por outro, da
pluralidade dos grupos sociais (dos mais micro aos mais macro), capazes de
sustentar (suportar) essas diferentes ofertas culturais e de difundir
hierarquias culturais específicas que compõem nossas formações sociais tão
diferenciadas. Ela é o produto da forte diferenciação social, e mais
precisamente da pluralidade das influências socializadoras, dos contextos e dos
tempos da prática. Por conseguinte, a compreensão das realidades mais
individuais não remete à singularidade irredutível dos destinos individuais,
nem à "liberdade de escolha" de indivíduos "autônomos" (e desimpedidos de todos
os determinantes sociais), mas, ao contrário, remete à estrutura de conjunto
das sociedades que as produziram.
A pluralidade dos grupos (ou instituições) e a multiplicidade dos quadros de
vida social que cada indivíduo pode freqüentar simultaneamente (de fato,
alternativamente) ou sucessivamente (no decorrer da vida) estão ligadas à forte
diferenciação social das funções características de nossas sociedades. A
realidade social é portanto mais complexa do que o que a teoria da legitimidade
cultural dá a entender. E o estudo sistemático das variações intra-individuais
dos comportamentos culturais ' que obriga a que se vejam os deslocamentos
efetuados por um mesmo indivíduo de um registro cultural para outro ' enfatiza
a pluralidade dos "subsistemas" (Passeron, 1991:109) com os quais os atores têm
de conviver.
REVOGAÇÃO DE UM MODELO: O CONSUMIDOR DEFINIDO POR SEUS "GOSTOS" CULTURAIS
O estudo preciso e circunstanciado das variações intra-individuais das práticas
culturais questiona radicalmente o modelo implícito de um "consumidor cultural"
definido essencialmente por seus gostos pessoais. Quanto mais se examinam com
cuidado as práticas culturais, mais dúvidas aparecem em matéria de percepção
dos "gostos", que são quase sempre considerados um marcador fundamental da
identidade social dos indivíduos. De fato, quando a análise baseada em
entrevistas consegue mostrar que muitas práticas culturais individuais, e por
vezes a grande maioria delas, não estão ligadas a gostos mas a circunstâncias
instigadoras, obrigações ou injunções leves ou fortes de todo tipo, cabe
indagar se os indivíduos em questão se definem mais pelo que consideram próprio
da sua esfera de gostos pessoais ou pela multidão de suas práticas efetivas. Os
gostos aparecem então como a parte visível ' e destacada ' de um enorme
iceberg.
O modelo de um consumo cultural fundado no gosto individual baseia-se na imagem
simplificada de indivíduos reduzidos a meros representantes oficiosos (enquanto
dura a enquete sociológica) de classes, de frações de classe ou de grupos
sociais; indivíduos caracterizáveis por gostos pessoais que são essencialmente
os gostos de sua classe. Ora, é preciso ressituar esses indivíduos muito
abstratos na rede concreta de suas ligações de interdependência a fim de obter
uma imagem um pouco mais justa do que são os consumos e as atividades
culturais.
As variações intra-individuais das práticas culturais sob o aspecto do seu grau
de legitimidade levam a reintroduzir outros "motivos" na explicação das
práticas culturais, além do gosto e da paixão pessoais: a prática por obrigação
escolar, por imposição profissional ou por imposição de uma situação
excepcional, a prática habitual sem gosto particular, o acompanhamento mais ou
menos desejado de outrem (filhos, cônjuge, amigos), a prática por cortesia
(para agradar ou não aborrecer pessoas de que se gosta), o desejo pessoal de
descansar ou de espairecer pelo consumo de bens culturais ou pela prática de
atividades culturais que não estão no topo da hierarquia de suas preferências,
a estrita delimitação temporal (tempo de férias, de uma festa etc.) de uma
folga que a pessoa se concede, a "simples" curiosidade ou a boa vontade sem
entusiasmo, o consumo irônico (de "segundo grau") ou, ainda, o consumo em
contexto de gratuidade do acesso à oferta que compromete menos pessoalmente,
enfim, todas as modalidades menos intensas (às vezes mínimas) e menos
francamente positivas e entusiásticas (às vezes até ambivalentes) do consumo
cultural2.
CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DE PERFIS CULTURAIS HETEROGÊNEOS
O estabelecimento de uma série de novos fatos estatísticos relativos aos perfis
culturais individuais dissonantes (os mais freqüentes) e consonantes (os mais
raros) leva a esclarecer as condições sociais e históricas de produção dessas
variações intra-individuais dos comportamentos culturais. Aanálise
pormenorizada dos retratos culturais individuais permite mostrar que todas
essas variações podem ser reduzidas ao problema central da exposição do
indivíduo a influências socializadoras heterogêneas: efeito de uma trajetória
de mobilidade social ou profissional ascendente ou declinante, efeito de uma
rede de relações culturalmente diversificada, efeito de uma relativa
heterogamia do casal sob o aspecto cultural, efeito da interiorização de
preferências escolares defasadas com referência às do meio de origem, efeito
das injunções conjugadas que vive a juventude escolarizada (entre grupo de
pares, escola e família)3, efeito de influências socializadoras contraditórias
provindas de instâncias culturais concorrentes (família, escola, tevê, imprensa
etc.), efeito de influências culturais dentro da própria família de origem
etc.4
E, para compreender a importância adquirida por essas influências
socializadoras heterogêneas em matéria cultural, convém explorar diferentes
dimensões de nossas formações sociais: as mobilidades sociais, escolares ou
profissionais, as imposições e influências relacionais, a diminuição de
intensidade da crença na cultura literária e artística, a necessidade de um
"relaxamento" (público ou privado) das tensões em uma sociedade em que os
compromissos profissionais e escolares são intensos, os efeitos do acesso cada
vez mais privado aos bens culturais (televisão, rádio, vídeos etc.) e a
natureza da oferta que incita à mistura de gêneros outrora separados.
Pequenas e Grandes Mobilidades Individuais
Parte dos perfis culturais dissonantes explica-se por situações de mobilidade
social (o indivíduo não tem a mesma posição social dos pais), escolar (o
indivíduo não tem o mesmo nível escolar dos pais ou aumentou seu próprio
capital escolar por ter retomado os estudos) ou profissional (o indivíduo mudou
de posição na hierarquia profissional). Se tais mobilidades, pequenas ou
grandes, muitas vezes se traduzem por uma heterogeneidade das práticas e
preferências culturais do ponto de vista de seu grau de legitimidade, é porque
os indivíduos que tiveram essa experiência ocuparam posições diferentes nas
hierarquias social, cultural ou profissional e, por isso, freqüentaram
ambientes socializadores ou agentes socializadores variados. Conviveram ou
confrontaram-se com registros culturais diferentes dos que conheciam
anteriormente e, por esse motivo, conservam em si, sob a forma de disposições
mais ou menos fortes, os vestígios do conjunto dessas experiências
socializadoras heterogêneas, por vezes até nitidamente contraditórias.
A esses deslocamentos individuais, podem acrescentar-se as distâncias culturais
possíveis entre cônjuges, pois os casais não são perfeitamente homógamos
(raramente têm as mesmas posições sociais e as mesmas origens sociais, os
mesmos níveis de escolaridade e diplomas de mesma natureza etc.) e, por
conseguinte, não contraíram necessariamente os mesmos hábitos e as mesmas
preferências culturais. É possível também evocar as distâncias culturais entre
os membros de uma mesma rede de sociabilidade entre amigos; ou ainda as
múltiplas mudanças significativas de contexto relacional e cultural (mudança de
domicílio seguida de recomposição da rede de sociabilidade, mudança de contexto
profissional, novo casamento etc.)5.
Considerando o conjunto desses dados sob o aspecto dos efeitos que produzem nas
socializações infantis, cabe dizer que um dos grandes resultados é que as
crianças são levadas a viver situações sociais (familiares principalmente) nas
quais o confronto de normas sociais, de modos de ver, de sentir e de agir, de
gostos ou de preferências relativamente heterogêneas e, por vezes,
contraditórias, são historicamente cada vez mais freqüentes e precoces (Lahire,
1998).
A Crise de Fé na Cultura Literária e Artística
Queda importante da proporção dos fortes leitores entre os detentores de
diplomas superiores e entre os profissionais superiores, independentemente da
origem social, menor freqüência nos teatros e salas de concertos (Dumontier,
Singly e Thélot, 1990): os dados de enquetes podem não afiançar os discursos
catastróficos deplorando o declínio cultural ou a "derrota do pensamento", mas
assinalam transformações significativas na relação dos franceses (inclusive das
elites) com a cultura desde os anos 1960.
A cultura legítima clássica foi de certa forma vítima durante os últimos 40
anos da ascensão da cultura científica (dentro do sistema escolar) e da
extensão da cultura de lazer (promovida pela indústria mais rentável dos
lazeres e da cultura). As novas relações de força entre cultura literária e
cultura científica, por um lado, e cultura literária e artística e culturas do
divertimento, por outro, explicam a queda significativa de intensidade da fé na
cultura literária e artística. E tal enfraquecimento contribuiu para tornar
mais prováveis as saídas de registros culturais para todos que, até então,
tinham como ponto de honra evitar as regiões mais comerciais, ligadas ao
divertimento e populares ou estigmatizadas como infraculturais, embrutecedoras
ou vulgares.
Descanso e Liberação
Se os indivíduos de perfis culturais legítimos muito consonantes são bem raros
é porque, até os mais dotados do ponto de vista escolar, são obrigados pela
vida social (profissional sobretudo) a moderar suas exigências culturais e a
adotar uma política mais flexível de alternância entre momentos especificamente
culturais (e que eles percebem como tais: momentos de "instrução", de
"enriquecimento" ou de "elevação") e momentos de divertimento. Donos de grandes
capitais culturais que dispõem de pouco tempo fora do trabalho, vidas
profissionais ou escolares extenuantes e cansativas, duplas vidas profissionais
e familiares (particularmente pesadas para as mulheres), tudo isso ajuda a
explicar a produção social de uma "necessidade" de participação sem complicação
em coisas comuns, informais, divertidas, em emoções coletivas, em momentos
festivos, enfim, em culturas "quentes"6 sem nenhum "conteúdo cultural"
propriamente dito, se "cultural" for entendido como essa mais-valia específica
que o conhecimento ou a reflexão podem trazer a toda situação vivida. É bem
diferente da figura do Homem culto que aproveita o tempo fora do trabalho para
se ilustrar e aprender. Doravante, os mais diplomados podem, como os outros,
procurar o relaxamento que diverte após a extenuante jornada de trabalho.
Os entrevistados costumam opor ' sejam quais forem suas condições sociais '
trabalho (escolar ou profissional), obrigações, esforço, cansaço, tensões,
complicações, dificuldades, contrariedades, brigas, preocupações ou estresse,
de um lado, a descanso, relaxamento, descontração, descompressão, facilidade e
expansão, de outro. Assistir à televisão ou ao cinema, ir a espetáculos ou ler
"coisas fáceis" (mesmo que se saiba que são "fraquíssimas", "débeis",
"idiotas", "estúpidas" ou "bobocas"), que não exigem "esforço", tudo isso
permite "não pensar em nada", "não quebrar a cabeça", "lavar a cuca"7, "fazer
lobotomia", "liberar ou descansar a mente", "esvaziar a cabeça", "entregar-se",
"distrair-se", "descansar", "divertir-se", "soltar-se", "espantar os
problemas", "deixar de lado as preocupações" e até "dormir".
Nobert Elias aventou a hipótese de que as atividades de lazer têm a função
social de "contrabalançar as tensões e o estresse desagradável das sociedades,
e trazer uma forma de descanso". São "antídoto contra as tensões" (Elias e
Dunning, 1944:56). Nesse sentido, é possível afirmar que, quanto mais as
sociedades ou os grupos sociais dentro das formações sociais exigem alto grau
de tensão e de estresse da parte de seus membros, tanto mais certos lazeres
tornam-se necessários para relaxar, na vida pública ou privada, as tensões.
Tais relaxamentos das obrigações podem repetir-se, mas só ocorrer em tempos
estritamente delimitados. Por essa razão, a mais séria cultura erudita pode
perfeitamente coexistir nos mesmos indivíduos com a cultura do relaxamento ou
do entretenimento8.
Consumos gratuitos e privados: o enfraquecimento dos efeitos de legitimidade
A televisão e o rádio trouxeram a cultura "para grande público" que coincide em
parte com os gostos populares hedonistas de divertimento e de informalidade
(Verret, 1988). Ao defender publicamente, cotidianamente e junto a um grande
público a primazia da distração ou do repouso sobre a cultura literária e
artística ou científica, ela muito contribuiu para a queda geral do grau de
crença na cultura legítima dominante, para a desculpabilização dos consumidores
quanto aos "erros culturais" cometidos bem como para o reforço de todas as
formas populares ou dominantes de antiintelectualismo (dos operários aos
patrões, passando por todos os dirigentes de formação científica e técnica).
Essa mídia só podia ajudar a diminuir a força dos efeitos de legitimidade e a
derrubar o grau de vergonha cultural sentida pelas populações mais afastadas
dos legítimos detentores da cultura como por aquelas que lhes são a priorias
mais próximas9.
Mas uma das maiores transformações da ordem cultural das coisas, cuja
importância pouco foi lembrada até agora, refere-se às condições privadasde
"consumo" desses novos produtos culturais, que não deixam de ter efeito sobre a
relação que os consumidores mantêm diante das normas culturais legítimas
dominantes. De fato, televisão, rádio, alta-fidelidade, vídeo, leitor de DVD e,
mais recentemente, computador e internet, introduziram muitos produtos
culturais na esfera privada. Ora, o que acontece com as normas culturais quando
se entra na intimidade dos lares e elas se refletem no espaço doméstico
"privado"? Resistem às situações entre si, ou até de consumo solitário, nas
quais já não se teme o olhar "desaprovador" e o juízo cultural (negativo)
externo?
De fato, constata-se que a esfera privada é propícia ao relaxamento de controle
das emoções, à expressão das disposições menos formalistas e mais hedonistas
(menor controle do olhar alheio, menor tom oficial e menor formalidade da
situação) e, por isso mesmo, propícia aos consumos culturais de maior
diversão10. Em vez de superavaliar a intensidade da fé em matéria de cultura
legítima entre os mais dotados culturalmente, a percepção dos diferenciadores
culturais individuaispermite observar a variedade dos momentos em que gostos e
tendências muito diversos se exprimem. Por exemplo, ao pensar espontaneamente
que o grande leitor de romances ou de ensaios legítimos vai desdenhar com
certeza ' senso de dignidade cultural exige ' a televisão (assistindo pouco) ou
vai ter um consumo muitíssimo seletivo (só assistindo ao que há de mais
cultural nos programas existentes), a teoria da legitimidade cultural apóia-se
implicitamente em uma teoria do ator que pressupõe sua monocoerência, sua
homogeneidade disposicional e esquece a variação dos contextos. Ora, a enquete
empírica destrói tais evidências eruditas fazendo surgir a possível (e até
freqüente) variação das disposições, atitudes, gostos ou interesses culturais
em função sobretudo da área de prática considerada, de seu statuse das
circunstâncias da prática.
Os dispositivos televisual e radiofônico colocados na intimidade doméstica '
tornando o consumo dos espetáculos de tevê (filmes, telefilmes, minisséries,
programas humorísticos e jogos etc.) ou dos produtos radiofônicos (música,
jogos e divertimentos etc.) um consumo privado (individual, o casal ou a
família) ' fizeram historicamente cair de modo considerável o grau de vergonha
cultural sentida, e abriram para públicos em princípio mais recalcitrantes (por
sua alta formação escolar) as vias do consumo de produtos comerciais "para
grande público".
A segunda grande característica do consumo televisual e radiofônico, que
acompanha a privatização, mas que traz sua contribuição específica à
facilitação dos consumos heterogêneos em relação ao registro cultural mais
esperado, é a gratuidade do consumo. A simples "liberdade" de olhar programas
na tevê ou escutar programas de rádio "por curiosidade", porque se sabe que é
possível desligar à vontade, sem ter gastado nada, modifica fundamentalmente a
relação com a oferta cultural se comparada com a situação do público de filmes
em salas de cinema, que exige gastos consideráveis e supõe escolhas. Porque o
ato de pagar não tem apenas significado econômico: pagar voluntariamente para
chegar a um bem cultural é comprometer algo de si. Pagar (dar dinheiro) para
aceder a um bem determinado é também, de certo modo, "fazer um esforço",
mostrar suas prioridades, preferências, escolhas. E percebe-se, ao inverso, que
a evocação da gratuidade pode mostrar distância para com o objeto consumido
(vários entrevistados fazem o seguinte raciocínio: "Quando é gratuito, não
presto muita atenção. Mas, se for preciso pagar, sou mais exigente, seleciono,
escolho").
O rádio e a televisão são assim fornecedores permanentes, ao mesmo tempo
privados e gratuitos, de imagens e/ou de sons que permitem uma ligação mais
ampla e mais flexível com os produtos culturais do que o acesso pago nos
espetáculos e obras culturais (cinema, teatro, música, dança, ópera etc.) ou o
acesso gratuito a certas obras culturais mas que exigem um deslocamento e, em
certos casos, um consumo público (museus, exposições, bibliotecas etc.). O
rádio e a televisão tornam possível o acesso imediato a produtos culturais que
nunca se teria a idéia de pagar para consumir. E esse modo de pensar vale tanto
para os públicos de fraco capital escolar que hesitam em pagar para ver um
espetáculo (filme, peça de teatro etc.) que poderiam não entender ou que
poderia ser aborrecido, quanto para os públicos de forte capital escolar que,
quando têm de escolher, são levados mais por lógicas de busca da "qualidade" e
da "dignidade" culturais11.
Os símbolos televisuais de uma época de mistura de gêneros
A "mistura" de gêneros não é visível apenas na paleta das práticas e das
preferências culturais dos "consumidores". Aparece também na própria natureza
de uma parte da produção cultural. A não ser que seja esta que se adapte a
partir de então aos diferenciadores culturais individuais, interpretando-a como
um ecletismo dos gostos característicos dos indivíduos que compõem sua
audiência. Se, por vezes, foi feita uma ligação entre ecletismo da oferta e
diversidade dos públicos (o ecletismo audiovisual tentando, em uma estratégia
de "agradar a todos", atingir públicos diferentes em um único e mesmo programa
com convidados e assuntos dos mais diversos), nunca foi feita uma prospecção
sistemática da hipótese de uma diversidade cultural própria a cada indivíduo.
Quando se invoca o ecletismo dos públicos mais diversos, pressupõe-se o caráter
homogêneo dos gostos desses diferentes públicos, mas descarta-se a questão da
possível mistura cultural das preferências em cada indivíduo que os compõem.
Tudo se passa como se a nova estrutura da oferta, caracterizada pela mistura de
gêneros, dos mais nobres aos mais comuns, fosse ao mesmo tempo reflexo de novas
estruturas de percepção e de apreciação (que costumam gostar de misturas e até
as procuram) e o que contribui para formá-las, isto é, forjar os hábitos
mentais e o gosto pelo variado, pelo diverso, pela mistura (até então)
improvável de gêneros etc. A mistura ou indiferenciaçãode gêneros é portanto
mais que uma estratégia. É potencialmente uma verdadeira fórmula geradora das
práticas e das representações, isto é, uma disposição ou um hábito cultural que
questiona as separações, as delimitações, as fronteiras que costumavam ser
delineadas com firmeza. E quem continua a perceber e apreciar as coisas do
ponto de vista da "necessária" distinção dos gêneros só pode ver nessas
misturas confusões(de gêneros e de valores), uniões antinaturais ou
degradantes, portadoras de relativismo cultural (e isso, apesar de essa mistura
poder respeitar as diferenças de legitimidade entre os elementos que a
compõem). Como afirmava Pierre Bourdieu: "O mais intolerável, para os que se
julgam detentores do gosto legítimo, é sobretudo a reunião sacrílega dos gostos
que o gosto manda separar" (1979:60)12.
Na França, o símbolo televisual de uma época marcada pela mistura de gêneros
culturais é o programa Tout le Monde en Parle[Todo o mundo fala disso]
produzido e animado por Thierry Ardisson (France 2). "Ele mistura todos os
gêneros para grande prazer dos telespectadores", lê-se em um siteda internet
(Actustar) que dedica algumas páginas a este último. O "grande prazer dos
espectadores" é decerto uma suposição dos autores do texto, e seria possível
evocar igualmente a irritação de outros telespectadores diante desse tipo de
espetáculo. "O que é lamentável em Thierry Ardisson", escreve o jornalista Hugo
Cassavetti, "é sua mania de misturar tudo, a política e o sexo, o sério e o
trivial, a pertinência e a insolência, no meio de um show heteróclito e
barulhento no qual desfilam modelos bem avantajadas e um DJ difícil de atrair
multidões" (Cassavetti, 2002).
Em compensação, cabe dizer que é essa "mistura de gêneros" a estratégia
consciente que preside tanto a composição das atrações13 como as variações de
tipos de perguntas durante uma entrevista. Utilizando a mistura explosiva dos
temas (política, esporte, música, literatura, filosofia, cinema, teatro) e das
legitimidades (do presidente da Assembléia Nacional a uma atriz pornô, de um
prêmio Goncourt a um cômico popular considerado "vulgar" pela imprensa cultural
legítima), Ardisson é muitas vezes apresentado como "o único que se esfalfa na
tevê para juntar o cultural com o popular" (idem).
A mistura, que não é praticada só por ele (o que se depreende do estudo de
programas de tevê tais como On ne Peut pas Plaire à Tout le Monde [Não se pode
agradar a todo o mundo], Campus, ou, em uma época ligeiramente anterior,Nulle
Part Ailleurs [Em nenhum outro lugar]14), era muito mais improvável em um
estágio anterior da oferta televisual (com programas literários como Lectures
pour Tous [Leituras para todos] de Pierre Desgraupes e Pierre Dumayet ou mesmo
Apostrophes [Apóstrofos] de Bernard Pivot), em que o respeito das fronteiras
culturais era muito maior do que é hoje. De fato, quando os políticos,
escritores, atores, desportistas, cômicos etc. tinham programas específicos,
era raro vê-los lado a lado em um mesmo estúdio de televisão. Não estamos muito
longe dos dispositivos espetaculares descritos pelo historiador norte-americano
Laurence W. Levine: durante a primeira metade do século XIX na América do
Norte, misturavam-se indiscriminadamente cenas das peças de Shakespeare,
trechos de comédias, cantores populares, mágicos ou malabaristas com trechos de
ópera (Levine, 1988).
O GOSTO DOS OUTROS E AS DISTINÇÕES DE SI
Ao considerar os fenômenos de variações intra-individuais das práticas e
preferências culturais, não se questiona a existência de desigualdades sociais
diante da cultura, nem a função social das formas culturais legítimas
dominantes em uma sociedade hierarquizada. Mas destaca-se um tipo particular de
função social ligada aos processos de diferenciações individuais e de
construção social dos indivíduos em sociedades diferenciadas.
A principal conseqüência da muito freqüente mistura dos perfis culturais
individuais é que, ao contrário do que aparentam muitos discursos públicos, os
indivíduos não vivem a distinção entre legítimo e ilegítimo apenas como
fronteira que separa grupos ou classes diferentes ("eles" e "nós"), mas como
linha de demarcação que diferencia os diversos membros de um mesmo grupo (os
juízos de "vulgaridade" ou de "fraqueza" cultural são muitas vezes emitidos
sobre as pessoas socialmente mais próximas: membros da família restrita ou
ampliada, grupos de pares, colegas de trabalho, cônjuge etc.) e como linha
divisória entre si e si (os mesmos juízos culturais estigmatizantes podem
dirigir-se a uma parte de suas práticas pessoais passadas ou presentes), linha
discriminatória que os atravessa intimamente. O que, do ponto de vista
estatístico, separa os grupos ou as classes da sociedade, atravessa também em
um ou em outro grau (a constatação é também estatisticamente fundamentada)
grande parte dos indivíduos que compõem o conjunto de grupos ou classes. A
separação entre legítimo e ilegítimo pode ser assim vivida como uma divisão
interna, que pode provocar em certos casos lutas de si contra si(Lahire, 2005).
E essa internalização ou interiorização da oposição, da luta ou do combate,
permite, afinal, que cada um domine mais ou menos as categorias "nobre" e
"vulgar", "alto" e "baixo", "grande" e "pequeno", "digno" e "indigno", "puro" e
"impuro", "refinado" e "grosseiro", "raro" e "comum", "inteligente" e "burro"
etc., como categorias de percepção dos comportamentos e dos bens culturais.
Vivemos em sociedades diferenciadas e hierarquizadas, com mobilidade social e
geográfica muito mais forte que numerosas sociedades tradicionais; sociedades
altamente escolarizadas, mas marcadas também por fortes concorrências
educativas e culturais pela "pesca das almas" (segundo a bela expressão de Max
Weber). As condições de existência e de coexistência nesse tipo de formações
sociais são tais que é estatisticamente raro para determinado indivíduo ficar
restrito apenas ao registro da alta legitimidade cultural ou ao da
ilegitimidade cultural.
Como meio de legitimação (coletivo ou individual), as formas dominantes de
cultura fornecem um quadro que permite aos indivíduos dar um sentido
distintivoa suas práticas e seus gostos e sentir-se justificados por existir
como existem, ter o sentimento de levar uma vida digna de ser vivida, isto é,
levar uma vida mais digna de ser vivida do que outras (Lahire, 1999). Função
moral de apoio e de garantia da cultura como cultura legítima. Mas se o mundo
social é um campo de batalha, também muitas vezes os indivíduos que o compõem
são eles própriosa arena de uma luta de classificações. E a luta de si contra
si, a predominância de um si legítimo sobre a parte ilegítima de si, o
controleeodomínio do que há de ilegítimo em si contribuem para reforçar o
sentimento de superioridade distintiva em relação àqueles que se imagina não
terem nenhum domínio nem controle de si (sujeitos à sua pulsão15 etc.). Domínio
de si e domínio de outrem estão portanto indissociáveis; as distinções e as
lutas simbólicas são tanto individuais (intra-individuais e interindividuais)
quanto coletivas (interclasses).
DO MODELO DE CONSUMO CULTURAL ONÍVORO AO ESTUDO DA VARIAÇÃO INTRA-INDIVIDUAL
DOS COMPORTAMENTOS
A partir de um quadro conceptual próximo da teoria do capital cultural e do
espaço social dos estilos de vida de Pierre Bourdieu, Richard A. Peterson
formulou novas hipóteses com base em resultados de grandes enquetes
quantitativas a respeito das preferências musicais nos Estados Unidos. Embora
ele defenda e valide em parte a hipótese de que os gostos musicais são
marcadores de estilos de vida e que estão presentes de modo desigual nas
diferentes classes sociais, chega no entanto às seguintes conclusões relativas
ao gosto das elites:
"[...] o gosto das elites já não é definido como a apreciação
expressa das formas artísticas mais cultas (e como um desdém moral ou
uma tolerância meio perplexa em relação a todas as outras expressões
estéticas). Atualmente está sendo redefinido como a apreciação da
estética de cada forma distinta, juntamente com a apreciação das
artes eruditas. Como o status provém do conhecimento e participação
(quer dizer, do consumo) em todas as formas, o termo onívoroparece
apropriado" (Peterson e Simkus, 1992:169, ênfase no original).
Os trabalhos de Peterson que se referem essencialmente às preferências musicais
mostram que não só são frações minoritárias das classes superiores que consomem
os gêneros mais legítimos (o que é confirmado por minhas pesquisas) mas também
que as classes superiores não limitam seus gostos ao domínio legítimo.
De minha parte, tentei elaborar um modelo teórico de explicação das práticas e
preferências culturais que coincide com o ponto de vista de Peterson e com
muitos de seus resultados, mas que vai mais além. Faço algumas reservas ou
críticas parciais ao processo metodológico desse autor bem como a algumas
interpretações que ele apresenta. Essas reservas ou críticas só têm sentido em
relação a um processo sociológico de conjunto que, apesar de tratar de questões
bem próximas, é bem diferente do que foi realizado por Peterson. Seria assim
possível imaginar que basta constatar o paralelismo das pesquisas sem
estabelecer um diálogo entre elas. Mas cabe também pensar que os trabalhos de
Peterson teriam maior alcance se fossem considerados uma contribuição
específica à análise mais geral da variação intra-individual das práticas e
preferências culturais sob o aspecto do grau de legitimidade dessas práticas e
preferências.
As principais diferenças, tanto empíricas quanto metodológicas e teóricas,
entre meu trabalhoeode Peterson, podem ser resumidas em cinco pontos de
importância desigual.
1) Enquanto Peterson concentra a atenção no domínio musical e prospecta a
diversidade dos gostos dentro desse domínio (variações intergêneros musicais),
ampliei a área de observação a campos culturais diferentes ' leitura, música,
cinema, televisão, passeios culturais e lazeres ' para melhor abranger a idéia
de "estilo de vida cultural", o que me permite verificar tanto as variações
intra-individuais de comportamentos de um domínio cultural para outro
(variações interdomínios) quanto as variações intra-individuais de
comportamentos dentro de um mesmo domínio cultural (variações intradomínios
culturais). Já Peterson tende a generalizar sua proposta para todos os
comportamentos culturais, embora seus dados se restrinjam quase sempre ao
domínio musical. Como lembraram Van Rees, Vermunt e Verboord, a interpretação
de Peterson e seus colaboradores "exige dados sobre um amplo espectro de
preferências e práticas culturais (música, leitura, televisão, filmes, esporte
etc.) e não relativos apenas a um único setor cultural" (Van Rees, Vermunt e
Verboord, 1999:350).
2) Como já observei anteriormente, enquanto Peterson se refere ao problema das
preferênciasmusicais, ampliei a questão para práticas e preferênciasculturais,
mostrando que, no fundo, os atores sociais não se definem apenas e, às vezes,
nem principalmente, por suas preferências, mas pelas práticas efetivas. Em
matéria cultural como em tantas outras, existem práticas de acompanhamento e
uma infinidade de práticas não "escolhidas", mas que são o resultado de
compromisso com o cônjuge ou os amigos, e práticas decorrentes de hábitos ou de
automatismos, mas que não estão subjetivamente associadas a gostos,
preferências ou paixões. Certos indivíduos passam às vezes mais tempo fazendo
coisas ou consumindo produtos culturais sem acentuado "gosto pessoal" por essas
coisas ou por esses produtos, do que externando preferências culturais que
mostrem sua "identidade cultural pessoal".
Ora, a idéia de consumidor "onívoro" tende a concentrar nos próprios indivíduos
(em suas propriedades intrínsecas) o que é apenas produto do encontro entre
seus patrimônios de disposições, de apetências ou competências incorporadas, e
determinados contextos institucionais ou relacionais. Ametáfora zoológica leva
Peterson a só considerar a variedade dos gostos, ao passo que parte importante
da variedade das práticas e preferências é explicável tanto pela diversidade
dos contextos e dos motivos nos/pelos quais os consumidores são levados a agir
quanto pelo ecletismo pessoalou pela multiplicidade das propensões culturais
interiorizadas. Ao reduzir o conjunto de casos de variações intra-individuais
das preferências musicais ao modelo do ecletismo cultural, Peterson parece
ceder a um certo modismo estético e cultural.
A desconsideração, nas grandes enquetes estatísticas, das circunstâncias
particulares ou das condições mais recorrentes nas quais os atores são levados
a "consumir" este ou aquele produto cultural, dos motivos ou "motivações" que
acompanham suas práticas, contribui para aplanar a realidade social e igualar
práticas ou gostos que não são equivalentes. A metáfora zoológica, que fica nas
mentes, é portanto potencialmente perigosa na medida em que pode levar a pensar
' o que é desmentido claramente pelos dados das entrevistas ' que os
consumidores praticam tudo o que declaram praticar ou gostam de tudo o que
declaram gostar com a mesma intensidade, nas mesmas condições e pelos mesmos
"motivos" (ou com as mesmas "motivações"). O onívoro, como diz o dicionário,
"nutre-se indiferentemente de alimentos de origem animal ou vegetal". Ora, os
consumidores culturais nunca se apropriam indiferentementedos produtos
pertencentes aos diferentes registros culturais (dos mais divertidos aos mais
sérios, dos mais comerciais aos mais puros, dos mais populares aos mais
eruditos etc.).
3) Peterson e seus colegas não conseguem de fato mostrar as provas da
existência de uma estética radicalmente "nova" (mais eclética ou mais
heterogênea que "antes"). É impossível passar da constatação histórica (bem
documentada pelo historiador Laurence W. Levine) segundo a qual teria havido
períodos de separações mais fortes (e até de oposições) dos gêneros, das artes
e dos públicos, à dedução sociológica segundo a qual os membros das classes
dominantes teriam sido mais monocultos no início do século XX, e ter-se-iam
tornado mais multicultos a partir dos anos 1970-1980. Como destaquei (Lahire,
2004:166-174), os dados de enquetes dos anos 1960 na França levam a pensar que
o homo pluralisjá existia nessa época, mas que as condições públicas (a
natureza do debate público e das problematizações culturais) e científicas não
eram favoráveis à sua divulgação. Nos períodos em que as distâncias entre
registros legítimos e populares são menos pronunciadas, os comportamentos
culturais "desviantes" da elite podem ser declarados publicamente com mais
facilidade, em vez de ficarem confinados no espaço privado. O próprio Peterson
cita dados mais antigos16 que tendem a pôr em dúvida a idéia de entrada em um
"novo" mundo (chamado às vezes de pós-moderno). Parece-me haver aqui um erro de
interpretação bem conhecido em ciências sociais, ou seja, a confusão de uma
mudança de modelo da realidade (do ponto de vista de conhecimento sobre o
mundo) com uma mudança histórica na própria realidade (na natureza das práticas
culturais e das relações com a cultura).
4) Peterson constata entre as elites uma tendência ao consumo onívoro' raros
são os que ficam nos registros culturais mais legítimos ' e interpreta esse
fato como forma de "ecletismo cultural" em relação à tendência ao consumo
unívoro que seria muito mais pregnante nas classes populares. Ora, ao abrir o
campo de investigação como fiz, percebe-se que todas as classes sociais então
envolvidas, em um ou em outro grau, por essa variação intra-individual de um
registro cultural ao outro. Se as análises que desenvolvi mostraram a
importância de perfis culturais dissonantes ("onívoros", segundo a terminologia
de Peterson) entre os dirigentes e profissionais intelectuais superiores
(74,3%), mostraram também e sobretudo a predominância desses perfis entre a
juventude escolarizada (83%) e os dirigentes médios (79%). Logo, a simples
hipótese referente à emergência de novas elites ou de novos comportamentos
culturais entre as elites não se sustenta. Do mesmo modo, é difícil qualificar
de "unívoros" os membros das classes populares que têm muito mais chance
estatística de ter um perfil cultural dissonante (60,9% dos empregados; 58,5%
dos operários qualificados; e 47% dos operários não-qualificados) do que um
perfil consonante pouco legítimo (respectivamente, 18,3%; 24,6%; e 26,7%).
Todos esses fatos impõem, portanto, uma interpretação bem mais ampla da
estrutura e do funcionamento geral de nossas sociedades, como tenho tentado
demonstrar neste artigo: com uma estrutura muito fragmentada, mas sempre
hierarquizada, da oferta cultural, uma multidão de pequenas mobilidades
sociais, profissionais e escolares tanto intergenerativas como
intragenerativas, uma pluralização dos quadros de socialização (familiares,
escolares, profissionais, culturais etc.) nos quais os atores dessas sociedades
são levados a se construir-formar-fabricar e uma transformação significativa do
modo de seleção escolar de todos os alunos (e não apenas das elites).
As hipóteses formuladas por Peterson e seus colaboradores a respeito das causas
do caráter onívoro dos consumos culturais parecem-me amplas demais e às vezes
até um pouco idealistas quando consideram as raízes morais das atitudes
culturais. Assim, quando Peterson e Kern lembram que, desde o período nazista,
todo comportamento que possa ser julgado racista é mal recebido e que a
passagem "de esnobe exclusionista para onívoro inclusionista pode assim ser
vista como parte da tendência histórica a uma maior tolerância com respeito a
valores diferentes" (1996:905), esses autores cedem a uma espécie de angelismo
abstrato, sociologicamente pouco realista. Além do fato de não estar provado
que os consumidores com mais alto nível de educação tenham efetivamente vivido
em um gueto cultural legítimo durante os períodos em que a separação nítida
entre "cultura erudita" e "cultura popular" era explicitamente reivindicada e
institucionalmente organizada, o angelismo sociológico da explicação por
vontade de "mostrar respeito pelas expressões culturais de outrem" corresponde
mal à realidade das lutas de classificação que toda enquete sobre práticas
culturais consegue pôr em evidência.
Declarar que se gosta de um número maior de gêneros musicais do que as outras
pessoas será por acaso sinal de mais tolerância ou apenas o reflexo de um
conhecimento musical mais extenso que não exclui uma hierarquização simbólica
muito rígida? Inversamente, será que não gostar de certos gêneros musicais
significa necessariamente "intolerância"? Não apreciar uma coisa não é um
sentimento incompatível com aquele que consiste em pensar que outros têm todo o
direito de gostar dela. Os consumidores das classes populares, que são mais
numerosos que os das classes superiores ao designar um maior número de gêneros
musicais de que não gostam, são assim não apenas qualificados de "unívoros" mas
também suspeitos de intolerância (ou, para usar um eufemismo, de "falta de
tolerância"). E certos pesquisadores sentem-se com direito de perguntar de
forma mais geral, com a boa consciência do etnocentrista que se ignora: "Serão
os 'unívoros' menos tolerantes em outros pontos?" (Bryson, 1997:150). O
intérprete vai rápido demais e traça espontaneamente um retrato mais favorável
das novas elites mais tolerantes, mais ecléticas, menos sectárias (seria
possível dizer "culturalmente cosmopolitas"), do que das classes populares mais
restritas, menos tolerantes e menos abertas.
5) O modo de administração da prova utilizado por Peterson e seus colaboradores
não está plenamente adaptado à hipótese que pretendem validar, pois não é
mostrando a existência de certa diversidade de gostos culturais entre as
elitesque se pode provar o caráter "onívoro" dos membros da elite. De fato,
Peterson permanece fechado em um raciocínio e em uma metodologia na escala do
grupono seu conjunto, ao passo que sua hipótese e interpretação supõem que ele
estabeleça sua constatação de variedade cultural em escala individual, sobre os
membros do grupo, desenvolvendo o mesmo procedimento utilizado por mim. É
também a crítica que lhe fazem Van Rees, Vermunt e Verboord quando afirmam que,
para que as hipóteses de Peterson sejam válidas, os comportamentos culturais
"devem ser medidos em nível individual e não em nível agregado de
statusocupacional" (1999:350)17. É possível opor-lhe absolutamente o fato de
ele não mostrar comportamentos individuais "onívoros" e que a variedade
cultural estabelecida no nível do grupo pode simplesmente significar a
existência de uma infinidade de pequenos subgrupos ou frações de grupos
"unívoros", mais especialmente interessados por este ou aquele gênero musical.
Se Peterson e seus colaboradores não conseguem tirar todas as conseqüências de
seus resultados é porque sua cultura teórica não os torna sensíveis à questão
da escala de análisea partir da qual emitem suas constatações e não lhes
permite inserir em sua análise a questão da variação intra-individualdos
comportamentos culturaise a outra, correlativa, de seus determinantes sociais
(ou seja, da pluralidade das influências socializadoras e dos contextos de
práticas/consumos que se encontra na origem dessa variação).
De modo diverso de Richard A. Peterson, cuja teoria sociológica geral permanece
bem discreta e implícita, meu estudo funda-se em um programa científico queéoda
sociologia do social em escala individual. Essa sociologia, que se interessa
pelo social incorporado, individualizado, assim como pelas variações intra-
individuais dos comportamentos, é levada a questionar a noção de habitus
(invocada por Pierre Bourdieu para explicar culturas ou hábitos de grupos ou de
classes) como sistema de disposições transferívelou como fórmula geradora
(única) das práticas(Lahire, 2003).
Pressupondo amplamente um mecanismo geral de transferibilidade culturalem ação,
Pierre Bourdieu de fato nunca testou essa hipótese em seus trabalhos empíricos.
Assim, o sentido de legitimidade cultural adquirido em um domínio seria
implicitamente transferível para os outros domínios (Bourdieu e Darbel, 1969:
99-100). Dois motivos principais são invocados para apoiar a idéia de
transferência. O primeiro é uma espécie de atribuição estatutária e de sentido
da dignidade e do dever culturais que faz com que, considerando a posição
social, o nível de escolaridade etc., do indivíduo altamente escolarizado, ele
tenha de fazer de tudo para "manter sua posição" seja qual for o domínio
considerado. O segundoéodeuma competência técnica (uma série de hábitos
intelectuais) que, inicialmente construída na escola a partir do estudo de
obras literárias ("uma aptidão, também generalizada e transferível à
classificação por autores, gêneros, escolas ou épocas"), permite saber, por
analogia, que direção tomar para apropriar-se legitimamente das obras
extraliterárias (pintura, música, teatro, cinema etc.).
Mas um dos grandes pressupostos do modelo de transferência generalizado é
também a homogeneidade (sob o ângulo da legitimidade cultural) das múltiplas
situações culturais vividas pelos atores. Em outras palavras, sem dizer
claramente, o sociólogo formula a hipótese de que o que é legítimo e desejável
aquicontinua a sê-lo também ali. Movido por um "é mais forte que eu" cultural,
o ator não teria nenhuma noção das situações e sempre empregaria as mesmas
disposições culturais sejam quais forem as pessoas com quem se encontra
(independentemente de suas propriedades sociais e culturais) e seja qual for a
natureza ' formal ou informal, tensa ou distendida ' da situação.
Além disso, aposto cientificamente que é possível tornar mais complexo o quadro
da realidade social se for dada mais atenção à complexidade dos indivíduos
socializados. Essa complexidade deve-se a dois grandes motivos: a) os
indivíduos são, em nossas sociedades, sujeitos a experiências socializadoras
heterogêneas e às vezes até contraditórias (o que vale em matéria de cultura
como em outras áreas) e são, por isso, portadores de uma pluralidade de
disposições, apetências e competências; b) esses mesmos indivíduos não são
levados a agir sempre nas mesmas condições, nos mesmos contextos de ação e seus
patrimônios individuais de disposições, apetências e competências estão
portanto sujeitos a solicitações variáveis (Lahire, 1998; 2002; 2003).
Essa reflexão de fundo referente aos objetos da sociologia leva-me a indagar
outra vez os (bons e maus) motivos que fizeram com que, de Émile Durkheim a
Pierre Bourdieu, os sociólogos tenham tido a tendência de deixar de lado as
realidades sociais em escala individual18. E é esse tipo de indagação ' que
Richard A. Peterson não faz ' que obriga à adoção de uma metodologia adaptada,
partindo sobretudo da construção de perfis culturais individuais (a gama de
suas práticas e preferências mais ou menos legítimas em áreas culturais
variadas) antesde colocar os indivíduos em categorias (idade, sexo,
socioprofissional ou cultural). É sobre esses desafios mais gerais para a
sociologia que pretendo agora concluir.
SOCIALIZAÇÕES MÚLTIPLAS E INDIVÍDUO COMO MISTURA DE GÊNEROS
O sociolingüista William Labov sempre destacou em suas enquetes que é raro
encontrar "locutores de estilo único". O estilo lingüístico varia em um mesmo
locutor de uma para outra situação, e sobretudo em função de seu grau de
oficialidade. Quanto mais tensa e formal é a situação, tanto mais o locutor
tenta conformar-se ao estilo (registro lexical e sintático, pronúncia) mais
legítimo. Os locutores se diferenciam, é claro, de acordo com a gama mais ou
menos ampla de estilos lingüísticos de que dispõem, mas todos conhecem
variações mais ou menos fortes de suas produções de linguagem (Labov, 1976)19.
Mutatis mutandis, cabe afirmar que é bem mais raro encontrar consumidores
culturais uniestilo que consumidores culturais pluriestilos. E, como para as
produções de linguagem, as variações observáveis explicam-se essencialmente
pela pluralidade dos contextos culturais nos quais os atores foram socializados
no decurso de seu passado e que são levados a freqüentar durante suas múltiplas
interações presentes: heterogeneidade das condições de socialização culturais
passadas e pluralidade dos contextos de práticas ou de consumos culturais
presentes.
É o interesse sociológico das variações intra-individuais dos comportamentos
que tento destacar no âmbito de uma sociologia da pluralidade disposicional (a
socialização passada é mais ou menos heterogênea e proporciona disposições
heterogêneas e às vezes contraditórias) e contextuais (os contextos de
atualização das disposições são variados). Assim, o ator individual não aciona
invariavelmente, transcontextualmente o mesmo sistema de disposições(ou
habitus), mas podem observar-se mecanismos mais sutis de entrada em descanso/
entrada em açãoou de inibição/ativaçãode disposições; mecanismos que supõem,
evidentemente, que cada indivíduo é portador de uma pluralidade de disposições
e atravessa uma pluralidade de contextos sociais. O que determina a ativação de
tal disposição em tal contexto é então o produto da interação entre relações de
força interna e externa: relações de força entre disposições mais ou menos
fortemente constituídas durante a socialização passada (interna) e relações de
força entre elementos (características objetivas da situação, que podem ser
associadas a pessoas diferentes) do contexto que pesam mais ou menos sobre o
ator (externo).
A medida da amplidão dos fenômenos de "perfis culturais dissonantes" leva não
apenas a conceder um lugar entre as ciências sociais à interrogação sobre as
variações intra-individuais dos comportamentos ' o que ainda não é muito
conhecido (Lahire, 1998; 2002 e 2004:695-736) ' mas também a elaborar uma
teoria do ator indissociavelmente disposicionalista e contextualista que se
diferencia tanto das teorias sociológicas que esquecem os contextos (suas
especificidades e suas variações) explicando tudo pela cultura, pela
mentalidade, pelo código de comportamento ou pelo sistema de valores ou de
disposições de que seriam portadores os indivíduos, quanto das teorias que, ao
contrário, colocam toda a explicação do lado dos contextos, de suas estruturas
ou de suas possibilidades (Gibson, 1979). Só uma sociologia da pluralidade
disposicional e contextual pode explicar da forma mais completa possível esses
fenômenos (muito regulares e também objetiváveis estatisticamente quanto os
ligados aos grupos) de variações intra-individuais dos comportamentos
culturais.
Nas sociedades social e culturalmente diferenciadas, os mesmos indivíduos
freqüentam quase sempre sucessiva ou alternativamente vários registros
culturais (dos mais legítimos aos menos legítimos, passando pelos que estão em
via de legitimação). As realidades microscópicas (as variações intra-
individuais e interindividuais), quase sempre ignoradas por motivos teóricos
pelas ciências sociais, remetem às propriedades mais fundamentais da realidade
macroscópica. O espaço de investigação que se abre ao leitoréodeuma sociologia
em escala individualque analisa a realidade social levando em conta sua forma
individualizada; uma sociologia que leva em consideração que traços de
experiências socializadoras diferentes, e às vezes contraditórias, podem
(co)habitar (no) mesmo corpo, que disposições mentais e comportamentais mais ou
menos duravelmente incorporadas podem manifestar-se ou ser mantidas latentes
nos diferentes momentos da vida social (segundo os domínios da prática) ou de
um percurso biográfico.
A sociologia tem assim os meios teóricos e metodológicos de dar corpo à idéia
segundo a qual cada indivíduo pode ser definido ' tendo em vista a pluralidade
de influências socializadoras que pode ter vivido e a diversidade dos contextos
nos quais é levado a agir ' como uma "mistura de estilos" ou uma "mistura de
gêneros".
NOTAS
1. O procedimento metodológico complexo utilizado a partir da enquete "Práticas
culturais dos franceses ' 1997" (DEP/Ministério da Cultura; n = 3.000) e que
permite enunciar sinteticamente tais resultados é longamente exposto em Lahire
(2004:117-207). Nele, o leitor encontra a explicação completa e os principais
resultados dessa pesquisa. Os perfis culturais individuais foram construídos a
partir de indicadores dos gêneros musicais mais ouvidos, os gêneros de livros
mais lidos, os gêneros de filmes preferidos, os programas de televisão
escolhidos, os gêneros de passeios ou de visitas culturais e os lazeres-
divertimentos praticados. Esse procedimento estatístico foi completado por 111
entrevistas realizadas com pessoas de características sociais diversificadas
(segundo a idade, o sexo, o nível de escolaridade, o tipo de formação escolar,
a origem social e a posição socioprofissional).
2. E não se compreenderiam as evoluções individuais em matéria de práticas e de
gostos culturais se não fossem reconstruídas as dinâmicas que fazem, de um
simples hábito, paixão ou, ao contrário, algo que logo se abandona; que o que
era obrigatório possa, ao final de um longo processo de interiorização ou por
outras circunstâncias, transformar-se em gosto pessoal; que tudo o que era
praticado para agradar aos outros se transforme em prática para o prazer
pessoal, ou que o que era gosto ou paixão passe a ser simples hábito etc.
3. Neste texto não abordo tal ponto porque exige a explanação de uma longa
série de argumentos e de provas empíricas. Mas ele está amplamente desenvolvido
em Lahire (2004, cap. 14:497-555).
4. Para as análises minuciosas de cada um desses pontos, baseadas em uma longa
série de elementos de provas empíricas, remeto à leitura de Lahire (2004:411-
668).
5. Nossas análises coincidem nesse ponto com as de Erickson (1996).
6. Sobre a distinção entre "cultura quente" e "cultura fria", cf. a obra da
helenista Florence Dupont (1994).
7. O filósofo Ludwig Wittgenstein dizia a respeito dos filmes norte-americanos
a que gostava de assistir depois de um esforço intelectual intenso que eles
tinham "o efeito de um bom banho de chuveiro" (Malcolm, 1988:336-337).
8. Cf. sobre esse ponto a análise do karaokê(Lahire, 2004:616-624) que, embora
sendo o oposto da cultura da fria contenção, do domínio dos sentimentos ou das
emoções característica dos apreciadores esclarecidos de museus ou dos
espectadores de concertos de música clássica ou de ópera, pode fazer parte do
programa de pessoas de forte capital cultural.
9. Convém lembrar que a porcentagem de lares franceses proprietários de um
aparelho de tevê era, em 1960, de 13% e, desde 1989, chegou a 96%. Quanto ao
rádio, passou de 5% em 1930 a 96% em 1973.
10. Isso não surpreende os leitores do sociolingüista norte-americano William
Labov, cujas pesquisas mostram que o esforço dos locutores para falar em um
registro padrão é tanto maior quanto a situação for pública e oficial (Labov,
1976).
11. Mede-se, por exemplo, o efeito da passagem dos filmes das salas de cinema
para a televisão (com difusões múltiplas e possibilidade de gravação em vídeos
ou DVD) sobre as características de seus públicos (Guy, 2000). Quanto mais
antigos são os filmes, maior é a chance de serem vistos, e até apreciados, por
um público diferente do que se havia deslocado para vê-los nas salas de cinema.
Por um lado, os filmes de autor "reservados" inicialmente ao público mais
diplomado e cinéfilo encontram assim públicos mais amplos que não se teriam
deslocado nem pagado para vê-los com medo de se aborrecer ou de não entender
nada, mas que têm a curiosidade de vê-los na tevê. Por outro lado, os filmes
para um público maior e os menos legítimos (filmes de ação ou de aventuras,
filmes policiais ou cômicos) podem ser vistos por públicos de exigências
culturais habitualmente mais altas, que não teriam ido vê-los nos cinemas '
nobreza cultural exige ' mas que gostam de vê-los gratuitamente em casa, sem
sentir vergonha cultural e sem estar junto de públicos de características
sociais e culturais muito diferentes das suas.
12. Por exemplo, Marc Fumaroli, professor no Collège de France (Cátedra de
Retórica e Sociedade na Europa ' séculos XVI e XVII), declarou no final do
século XX sua repulsa à confusão entre "o Fórum e o Circo, Quaresma e Carnaval"
(1992:300-301); também Alain Finkielkraut, professor de filosofia na École
Polytechnique e ensaísta, critica a "mestiçagem" de seus contemporâneos em La
Défaite de la Pensée(1987).
13. Analisei a composição das atrações (de 2001 a 2002) de dois programas de
grande audiência da televisão francesa ' Tout le Monde en Parle[Todo o mundo
fala disso] e On ne Peut pas Plaire à Tout le Monde[Não se pode agradar a todo
o mundo] ' em La Culture des Individus(Lahire, 2004:637-668).
14. Tais programas tratam da atualidade cultural, política e midiática. A
respeito de Nulle Part Ailleurs, programa que fez parte do sucesso da cadeia
francesa chamada Canal +, existe um trabalho de Le Guern e Teillet (2003).
15. Tema que se encontra tanto em um filósofo estudioso do declínio como Alain
Finkielkraut (1987) como nos textos mais politicamente engajados do sociólogo
Pierre Bourdieu (2001).
16. "De fato, nos anos 1960, Wilensky (1964:194) 'não conseguia achar um só que
fosse, entre 1.354 moradores da área de Detroit, que, de alguma maneira, não
houvesse tido contato com material de categoria média ou ruim' [...]" (Peterson
e Kern, 1996:901).
17. Cf. também Van Eijck (2000).
18. Cf. "Post-Scriptum: Individu et Sociologie" (Lahire, 2004:695-736).
19. Dediquei em L'Homme Plurielum parágrafo intitulado Code Switchinget Code
Mixingau Sein d'un Même Contexte que destaca a importância de uma parte da
sociolingüística para a sociologia das variações contextuais dos comportamentos
individuais (Lahire, 1998:74-76).