Trajetórias de Multinotabilidades: Reconfigurações Históricas e Condicionantes
Sociais das Inscrições Políticas e Culturais de Parlamentares Brasileiros
APRESENTAÇÃO
No espaço social mais amplo, o acesso a determinados conhecimentos
eaotrabalhodeformulaçãointelectual (emoposiçãoao mundo prático, não reflexivo,
pragmático, ordinário) legitima posições de poder, sedimentando reputações
distintivas em e entre diversos segmentos de grupos dominantes (jurídicos,
midiáticos, religiosos, universitários etc.). Particularmente no universo
político, observa-se a associação corrente à capacidade de uso da "palavra"
(escrita e oral) como recurso de entrada e trunfo contundente para a construção
de carreiras.
Há uma extensa bibliografia produzida por cientistas sociais brasileiros nas
últimas décadas sobre carreiras e perfis de políticos. Grossomodo, a
literatura-a despeito das divergências entre os autores que adotam ênfases mais
societais, organizacionais, de caráter mais obje-tivista ou perspectivista -
lança luzes sobre os padrões de institucionalização dos partidos brasileiros1,
as clivagens partidárias e o recrutamento/seleção política2. A noção de
carreira aqui utilizada é relacionada aos desdobramentos das apostas feitas por
agentes políticos desde suas entradas na política(Offerlé,_1996), procurando
apreender as modificações nos princípios de aferição de excelência humana e a
sua reconversão em critérios de hierarquização política e intelectual, bem como
as gramáticas que fixam complementaridades entre os domínios políticos e
culturais em distintas conjunturas.
A questão que se coloca neste artigo é: como, no trabalho político e cultural,
"arte de escrever" e "vocação para representar" sintetizam um duplo e
indissociado reconhecimento instituído na inscrição em domínios concorrenciais
de atuação e na autoridade reivindicada/atribuída para definir e agir sobre o
mundo social? Ou seja, no universo em pauta os agentes estão, a um só golpe,
autorizados, por delegação instituída, a tomar decisões políticas em arenas
públicas, com pleno poder de ação e direito de preempção (Bourdieu,_1984); e,
no mesmo grau, contam com o reconhecimento (não adstrito às certificações dos
meios políticos, mas também culturais) da sua autoridade para dizer (produzindo
então representações) o que é ou deveria ser o "Estado", a "sociedade", a
"economia", a "cultura" etc.
A oportunidade de conquistar tal reconhecimento é dada por uma dinâmica em que
apolitizaçãosintetiza processos que interseccionam diferentes vias, como aquela
que diz respeito ao descolamento histórico de uma esfera especializada de
exercício da atividade política (no sentido weberiano); outra relacionada aos
discursos, às vezes estruturados em jargões de uma moral cívica que retoma a
filosofia política para consagrar o aprendizado da "participação" e o
"interesse dos cidadãos por política"; e a politizaçãoda vida social que, em
contextos como o brasileiro, abrange a importação e a redefinição das duas
anteriores, resultando em arranjos nos quais as disposições políticas e os
posicionamentos sobre temáticas políticas ou politizáveis são gerados no
amalgamento de registros e práticas ambivalentes (morais, culturais,
burocráticas, sociais, éticas, estéticas etc.). Isso, quando associado à
concentração e uso de determinados recursos que efetivamente contam
(principalmente de origens sociais, títulos escolares e redes de relações),
colabora para a ocupação das posições as mais bem alocadas na hierarquia social
como um todo e naquelas homólogas nos domínios sociais específicos (Reis_e
Grill,_2008).
Com efeito, se, por um lado, tem-se uma configuração histórica marcada por uma
forte multidimensionalidade condicionada e condicio-nadora de práticas,
sentidos e reconhecimentos, por outro, tem-se a possibilidade de apreensão de
um sistema de posições, oposições e posicionamentos com a operacionalização de
dimensões articuladas de análise, quais sejam: a origem social dos agentes; os
instrumentos legítimos de expressão monopolizados; a visibilidade e reputações
logradas; a encarnação de atributos de excepcionalidade valorizados; e a
ratificação pelos aparatos de celebração e outros modos de autorização fundados
em certificações institucionais.
Para os dois níveis acima (o primeiro de inspiração mais empírica e o segundo,
analítica), sugere-se aqui uma ponte de mediação ou de síntese entre eles: a
noção de multinotabilidade,cuja raiz encontra-se na definição weberiana do
"notável" como sendo aquele que consegue converter a estima decorrente da sua
origem social, da sua fortuna ou de recursos passíveis de serem distribuídos
aos seus seguidores em posição de poder (Weber, 1987). Contudo, para o emprego
atualizado da ideia de notabilidade,não se deve perder de vista, emprimeiro
lugar, que ele é parcial quando desconsidera a associação feita por Max
Weberentre a figura do notável e a situação econômica específicados indivíduos
que ocupavam cargos eletivos sem necessidade de remuneração ("viviam para a
política"). Em segundo, admite pensar como os notáveis de outrora se acomodaram
à formação de uma elite política especializada, profissionalizada e às
exigências de burocratização e modernização da política. Vale igualmente o
oposto, isto é, como as novas gerações de políticos profissionais assimilaram
formas "tradicionais" ou readaptadas de notabilização,num processo ininterrupto
de interpenetrações e osmoses (Phelippeau,_2002;Grill,_2008). Noutra direção,
pode-se perceber como mudanças mais gerais contribuem para a afirmação de
"novos notáveis"3. Neste último caso, trata-se de agentes específicos que
conseguem reunir e mobilizar suportes de reputação pessoal em domínios e
lógicas específicos ou múltiplos.
O estudo das trajetórias de dois personagens da política brasileira no século
XX - cujos meios e espaços de ingerência alimentaram um montante de recursos de
intervenção de caráter multidimensional e de capitais simbólicos personificados
- traz elementos que permitem testar pistas de investigação sob o registro das
transformações históricas mais gerais, dos trunfos combinados em diferentes
circuitos, assim como acerca da pertinência do arcabouço conceitual aplicado.
São aqui analisados dois modelos de notabilizaçãoque se sucedem ao longo do
tempo e se mesclam em personagens que desfrutam do duplo reconhecimento como
intelectuais e políticos profissionalizados: Afonso Arinos e Delfim Netto. A
escolha desses casos exemplares foi amparada na exploração sociográfica mais
ampla que mapeou as propriedades sociais, carreiras políticas e gêneros de
escrita para uma gama ampliada de parlamentares brasileiros com itinerários
políticos relativamente bem-sucedidos (em termos de longe vida de e deposição
alcançada na hierarquia de postos) eque se aplicam (ou se empenharam em algum
momento) na produção e publicação de livros. Esboçou-se, assim, um espaço de
relações de força entre agentes com certas características ou injunções
necessárias à ocupação das posições dominantes (Grill_e_Reis,_2012).
Os dois protagonistas são políticos e intelectuais do "seu tempo". Examinando
os períodos em que exerceram suas atividades de forma mais intensa e com
notoriedade, verifica-se os investimentos que priorizaram na aquisição/
explicitação de saberes, habilidades e lugares de atuação consonantes com seus
recursos de origem e com as condições específicas de concorrência (perspectiva
sincrònica). Porém, não foram somente protagonistas de "um tempo", pois
seguiram rotas prolongadas cujos desdobramentos ensejam perceber quais lógicas
e imposições agiram na inovação de estratégias e trunfos de afirmação,
decorrentes de reconfigurações da sexigências e das bases de reconhecimentos
legítimos. Esta dinâmica de interdependências é revelada aqui na sequência dos
respectivos trajetos (perspectiva diacrônica). Em tela, duas matrizes (política
especializada e cultura erudita) que garantem posições variadas e relativamente
bem assentadas em diversos domínios (parlamentar, universitário, midiático,
burocracia de Estado, instâncias de consagração intelectual, lugares de
formulação de políticas públicas, entre outros). E, por intermédio da
construção dos percursos e assinalando as tomadas de posição, é possível
situar, igualmente, processos, bases e linguagens de notabilizaçãovigentes no
Brasil ao longo do século XX.
CARREIRAS POLÍTICAS E PRODUÇÃO ESCRITA
Em uma pesquisa anterior, cuja fonte principal foi o Dicionário Histórico-
Biográfico Brasileiroda Fundação Getulio Vargas (Abreu_et_al.,_2001), foram
localizados 1.181 agentes (deputados federais e senadores) que, em seu
conjunto, registram por volta de 4.062 títulos de trabalhos classificados em
diferentes gêneros de escrita: generalistas, setoriais, históricos, literários
e (auto)biográficos. Nesta exploração preliminar, além da recorrência
diferenciada dos próprios gêneros em termos numéricos, foram identificados o
estado de origem e o período de atuação desses políticos no intervalo de 1945 a
2010 (Grill_e_Reis,_2012).
A convergência entre uma não negligenciável produção escrita (em termos de
livros) e uma sólida regularidade na ocupação de cargos públicos e eletivos
(captada pela duração das carreiras de cargos eletivos) foi o principal
critério para proceder, naquela ocasião, à delimitação de 299 casos. Operou-se,
para esses, correlações dos gêneros de escrita com as décadas de entrada na
política, com os títulos escolares e profissionais conquistados e com a
posiçãopolíticagalgada. Isto proporcionou de um modo geral, por um lado, a
verificação dos contornos de uma "elite letrada e votada" no universo político
(Grill_e_Reis,_2012;Reis_e_Grill,_2008) e, por outro, o estabelecimento de
parâmetros para a escolha dos dois casos pertinentes à análise de trajetórias
exemplares, alvo central deste artigo. Daquela incursão exploratória, algumas
constatações gerais podem ser retomadas.
Sobre a periodização, por exemplo, foi verificada a tendência histórica ao
aumento de escritos sobre temáticas especializadas, que exigem saberes técnicos
específicos; adiminuição das publicações dedicadas à consagração de heróis,
personalidades políticas, eventos históricos julgados singulares, bem como da
produção de textos mais literários (como poesias, crônicas, novelas, romances
etc.); e a persistência das preocupações gerais, que tratam de grandes
questões, projetos de sociedade, destinos sociais e coletivos, pensam
determinada região e seguem um viés mais ideológico, ou, mesmo, moral.
Outra tendência que chamou a atenção, agora concernente aos títulos escolares e
profissionais, foi a da existência de uma clivagem entre, por um lado, um
padrão que associa saberes técnicos com o gênero setorial e, por outro, um que
mobiliza conhecimento em "humanidades" com o tipo "generalista".
No que se refere às correlações com carreiras políticas, algumas recorrências
também podem ser sublinhadas. Quando tomamos o cargo político mais alto
ocupado, observamos, entre outras coisas, que aqueles agentes que foram no
máximo deputados federais escrevem sobre temas mais especializados, numa
propensão crescente à produção de caráter mais técnico ou setorializado; ao
passo que aqueles que conquistaram governos de Estado e cadeiras no Senado da
República tendem a seguir ocupando-se de generalidades (grandes temáticas
sociais e políticas) e publicando biografias históricas, colocando-se, por esse
intermédio, a serviço da memória política, dos seus vultos e ícones. Este dado
é reforçado quando se correlaciona os gêneros de escrita privilegiados com
informações sobre o tempo dedicado a mandatos eletivos e a cargos político-
administrativos. Evidenciou-se, pois, que parlamentares com carreiras
predominantemente eletivas escrevem mais sobre generalidades e literatura,
acionando menos os saberes especializados, enquanto aqueles que combinam cargos
eletivos e administrativos ao longo de suas carreiras fazem o contrário, ou
seja, têm inclinação para escrever mais sobre temas especializados e menos
sobre literatura e generalidades. Já os senadores e deputados que ocupam
principalmente cargos administrativos, dedicam-se prioritariamente à produção
setorializada.
Afonso Arinos e Delfim Netto representam casos modelares dessas tendências e a
construção das suas trajetórias propicia delinear de forma dinâmica os
processos e condicionantes das práticas e lógicas dominantes em distintas
conjunturas históricas que conduziram à definição e à redefinição de
estratégias de inscrição políticas e culturais mais específicas. O que
significa a possibilidade de traçar, na série articulada de configurações de
interdependências, o esboço de diferentes fases do mercado de produção de bens
simbólicos conjugado ao exame das posições e das tomadas de posição.
NOTÁVEIS LETRADOS E ARQUITETOS DA NAÇÃO (1920-1950)
No Brasil, o século XX trouxe, como espólio do período imperial, o peso de uma
elite restrita, socialmente homogênea e com formação cultural semelhante que se
empenhara, notadamente a partir dos anos 1920, na concepção da "identidade
nacional". Uma série de reconfigurações mais amplas, como a transferência do
eixo dominante das transações culturais da Europa para os EUA, contribuiu para
o paulatino deslocamento das posturas intelectuais e políticas, asseveradas na
atenuação da ideologia cosmopolita e na ascensão da atitude nacionalista,
condicionado por estratégias de reconversão dos herdeiros de famílias
dirigentes em declínio econômico (Garcia Jr., 1993; Miceli,_1979).
O desenrolar desse processo foi a urgência de reconstrução do Estado nacional
nos anos 1930 e, no seu bojo, o avigoramento do mercado editorial - cujas
publicações, não raramente, vinham imbuídas da temática nacionalista -,
tributário da diversificação e expansão do mercado de diplomas universitários e
fator importante das modificações no espaço de possíveis carreiras intelectuais
(Sorá,_2010; Garcia Jr., 1993; Pécaut,_1990; Pontes,_1988; Miceli,_1979). Duas
preocupações orientavam singularmente os intelectuais entre 1925 e 1940: a
identidade nacional e as instituições. Planando sobre o social, compartilhavam
das mesmas representações do fenômeno político de buscar "dentro do real, uma
unidade anterior a todos os processos de instituição do social e que pudesse
escorar as formas de unidade da sociedade política", assim como não dissociavam
o exercício de uma atividade intelectual do universo da política (Pécaut,_1990:
14-18). A desilusão coma República Velha impulsionou a cooperação dessa geração
com o Estado para a "construção da sociedade em bases racionais", apoiados na
"marca da origem social", num "elitismo socialmente marcado" e na exibição de
títulos que "consistiam na posse de um saber sobre o social, reconhecido e
valorizado por amplos setores da sociedade" (idem:22-33).
Afonso de Melo Franco é um personagem por excelência desse período. Nasceu em
1905 na capital de Minas Gerais4 e acrescentou o "Arinos" ao nome
posteriormente, em homenagem a um tio Afonso Arinos de Melo Franco, escritor
regionalista e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Pertencente a uma
tradicional família mineira, contou com a origem social alta em todos os
sentidos, constituindo-se como descendente de uma genealogia de políticos,
intelectuais, diplomatas e reproduzindo um padrão de transmissão/conquista de
posições centrais de poder observado desde o Império5.
Os avós, paterno e materno, de Afonso Arinos de Melo foram
respectivamente: deputado provincial do Império e senador em Minas
Gerais (1892 e 1923); e deputado-geral por Minas Gerais, presidente
da província do Rio de Janeiro, governador de Minas (1889-1892),
ministro da Justiça (1890), prefeito do então Distrito Federal, Rio
de Janeiro (1898-1900). Opai foi deputado estadual por Minas Gerais
(1903-1906), deputado federal (1906-1929), ministro da Viação (1918-
1919), embaixador do Brasil na Liga das Nações (1924-1926), ministro
das Relações Exteriores (1930-1933), presidente da Comissão
Constitucional visando a redação do anteprojeto da nova Constituição
(1934), constituinte do estado de Minas Gerais (1935) e deputado
estadual (até 1937). Virgílio, um dos irmãos mais velhos de Afonso
Arinos, foi: líder da juventude civil revolucionária (1930), deputado
constituinte por Minas (1934), deputado federal (1935-1937), fundador
da União Democrática Nacional (UDN). Outros dois (também mais velhos)
seguiram carreiras diplomáticas.
No seu percurso escolar, Afonso Arinos estudou nos Colégios Brasileiro, Anglo-
Mineiro e Arnaldo (nos quais foi colega de outras "personalidades" da política
e da literatura brasileiras). No Rio de Janeiro, foi frequentando o Internato
Pedro II que teria vindo à tona o "seu gosto pela literatura escrevendo, entre
1919 e 1920, poesias e artigos para a revista estudantil Primavera"(Abreu_et
al.,_2001:336).
A formação em Direito foi iniciada em 1922 na Faculdade de Direito do Rio de
Janeiro (por onde passaram outros contemporâneos ilustres) e, no transcorrer do
curso, Arinos acompanhou o pai em missões diplomáticas para Santiago do Chile e
Genebra. A obtenção do título de bacharel, no ano de 1927, viabilizou a
ocupação do cargo de promotor de Justiça da comarca de Belo Horizonte, exercido
à sombra de pressões políticas contra as supostas pretensões do seu pai de
concorrer a governador do estado. Nesta estada em Belo Horizonte começou,
então, a escrever artigos sobre política internacional no órgão de notícias
chefiado por Carlos Drummond de Andrade. Porém, em 1928, desvinculou-se do
posto na promotoria, casou-se com a neta de um ex-presidente da República
(Rodrigues Alves) e foi residir no Rio de Janeiro (Abreu_et_al.,_2001:337).
Na então capital federal, atuou como fiscal de bancos e advogado de uma grande
empresa concessionária dos serviços de distribuição de energia elétrica;
vinculou-se a uma rede de intelectuais católicos (Alceu Amoroso Lima, Heráclito
da Fontoura Sobral Pinto, Francisco Clementino de San Tiago Dantas e José Lins
do Rego) aglutinados em torno da Livraria Católica dirigida por Augusto
Frederico Schmidt6; passou a produzir crònicas para O Jornal, de Francisco de
Assis Chateaubriand, e para a Revista do Brasil,dirigida por Rodrigo Melo
Franco de Andrade (com o qual possuía laço de parentesco). Essas inserções
colaboraram para o fortalecimento das relações políticas e literárias de um
circuito mineiro de intelectuais com os chamados "modernistas" (Graça Aranha,
Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Morais Neto, Ronald de Carvalho, Manuel
Bandeira, Gilberto Freyre, Gastal Cruls, Agripino Grieco e Hamilton Nogueira).
Ao mesmotempo, Afonso Arinos dedicou-se ao empreendimento oposicionista
frustrado de composição da chapa encabeçada por Getúlio Vargas e João Pessoa
para concorrer nas eleições presidenciais de 1930, pela Aliança Liberal. No
entanto, foi internado durante vários meses para tratamento de saúde no
Sanatório Hugo Werneck, em Belo Horizonte. Enquanto isso, seu pai (Afrânio de
Melo Franco)e seu irmão (Virgílio Alvim de Melo Franco7) envolviam-se nos
arranjos contra o governo federal de Júlio Prestes. Com a instauração do
governo provisório de Vargas, o pai fora indicado ao Ministério das Relações
Exteriores e ele publicou, pela Graphica Ypiranga, o livro Responsabilidade
Criminal de Pessoas Jurídicas.Em meados de 1931, ainda por motivos de saúde,
Arinos foi para a Suíça e isso oportunizou sua indicação para ser secretário da
delegação brasileira enviada a Genebra para a Conferência Internacional de
Desarmamento, ocorrida em 1932.
Com o êxito de Getúlio Vargas em derrotar a Revolução Constitucionalista de São
Paulo, as eleições para a Assembleia Nacional Constituinte (incumbida de
produzir a nova Constituição e eleger o presidente da República) foram marcadas
para maio de 1933. Sem deixar de acompanhar o protagonismo político do irmão
(Virgílio), Afonso Arinos assumiu a direção dos jornais Estado de MinaseDiário
da Tarde,de Belo Horizonte (ambos faziam parte dosDiários Associadosde
Chateaubriand e eram politicamente vinculados à facção da qual Virgílio era uma
das lideranças); publicou artigos como editor de política e lançou o livro
Introdução à Realidade Brasileirapela Coleção Azul da Editora Schmidt -no qual
teria expressado "aquela fase da revolução brasileira ainda marcada pelo
predomínio das elites, da ordem intelectual e das preocupações institucionais"
(Arinos, depoimento, apudAbreu_et_al.,_2001:337). Outro ensaio político lançado
em 1934 foi "Preparação para o Nacionalismo", este pela Editora Civilização
Brasileira. O fluxo de publicações de Afonso Arinos não teve nenhum período
longo de estagnação, pelo menos até o início da década de 19808.
Depois de ter dirigido o jornal oposicionista Folha de Minascom Virgílio (agora
desvinculado do governo central9), passou a ser assistente de consultoria
jurídica do Banco do Brasil no Rio de Janeiro (1935) e assumiu a cadeira de
História do Brasil da Universidade do Distrito Federal, fundada por Anísio
Teixeira. Inaugurava-se um período de relativa distância das empreitadas
políticas (que durou até a metade da década de 1940) e de intensos
empreendimentos na condição de "escritor". Neste caso, o espaço para
publicações disponível para Arinos merece destaque.
O "florescimento de um mercado do livro" resultou da diversificação e expansão
do mercado de diplomas universitários que formou públicos favoráveis
(estudantes universitários, professores, funcionários do setor privado,
profissionais liberais, entre outros) ao consumo de determinados produtos.
Fortaleciam-se os empreendimentos no mercado editorial, a presença de
financiadores e a afirmação de produtores e produtos de bens culturais
variados, notadamente com influência norte-americana (Miceli,_1979).
O "frenesi de reinterpretar o passado nacional, de interpretar e diagnosticar o
presente" consubstanciou-se na produção de coleções publicadas nas maiores
editoras do período (Pontes,_1988:58). Se na década de 1920 "editar" era um
ofício restrito a alguns imigrantes, nos anos 1930 editoras foram fundadas por
brasileiros, sobretudo nos grandes centros urbanos (Rio de Janeiro, São Paulo,
Belo Horizonte e Porto Alegre), havendo um aumento de 600% na edição de livros
entre 1930 e 1936, abrangendo livros didáticos (altamente rentáveis), gêneros
como a "literatura de ficção em geral e da literatura brasileira em particular"
(ibidem:60). Naquela conjuntura, várias coleções foram organizadas para
demarcar o debate político e ideológico em jogo (como aquela lançada em 1932,
pela Schmidt, a Coleção Azul e, em 1934, pela José Olympio, Problemas Políticos
Contemporâneos)e/ou para agregar interpretações sobre a "realidade brasileira"
(com destaque para: Brasiliana, Documentos Brasileirose Biblioteca Histórica
Brasileira)10.
No decorrer de mais ou menos 12 anos (entre 1935 e 1948), Afonso Arinos foi
conferencista em universidades, ministrou cursos no exterior (história
econômica e política na Universidade de Montevidéu; cultura brasileira na
Sorbonne, em Paris; literatura brasileira na Faculdade de Letras de Buenos
Aires; história do Brasil no Instituto Rio Branco) e organizou simpósios que
geraram livros. Em 1943 produziu, com outros ativistas (dentre eles, seu
irmão), o "Manifesto dos Mineiros", em oposição declarada ao governo varguista.
O falecimento do pai nesse mesmo ano estimulou o início da pesquisa e produção
do trabalho Um Estadista da República - Afrânio de Melo Franco e seu
Tempo11,publicado em três volumes 12 anos mais tarde, em 1955, pela livraria
José Olympio12.
Em 1945 empenhou-se na fundação da UDN, escrevendo o manifesto inaugural com
João Mangabeira. Devido à ocupação do cargo de secretário-geral do partido e à
desistência em disputar um mandato, Virgílio colaborou na campanha de Arinos à
Assembleia Nacional Constituinte, em 1945. E ele, mesmo conquistando somente a
primeira suplência da bancada mineira da UDN, com aeleição para governador de
Milton Campos, acabou assumindo, em 1947, a vaga aberta na Câmara. Logo foi
indicado como vice-líder da bancada udenista e à Comissão de Justiça, tornado-
serelator da subcomissão incumbida de formular leis complementares à
Constituição (Abreuet al.,2001:338).
Assim, esse personagem adentrou no cenário público num momento em que persistia
o "cosmopolitismo introjetado no modo de pensar da elite imperial brasileira" e
em que o curso de Direito somente atestava a participação na classe dirigente,
com a ocupação de altas posições políticas, administrativas e intelectuais
(Alonso,_2002:27; Miceli,_1979:35). Entretanto, essas condições já estavam em
reconfiguração. A reforma do ensino superior, que ocorrera no início da década
de 193013, levou à expansão de outras áreas de conhecimento (Ciências Sociais,
Educação, Psicologia, Economia, entre outras), assim como interferiu
contundentemente para a diversificação do espaço de concorrência política e
intelectual, com a multiplicação dos lugares necessários de inscrição dos
agentes visando o acúmulo de trunfos atinentes à conquista ou manutenção de
posições (híbridas) bem alocadas, a exemplo da imprensa, das instituições
culturais, das organizações políticas etc.
A "expansão da máquina burocrática" no decorrer do regime Vargas e ouso de
mecanismos de cooptação empregados pelo Estado agiram na incorporação de
agentes com agriffede "intelectual" no chamado estamento burocrático. Esses,
por sua vez, podiam reconverter atributos acumulados nos meios políticos e
administrativos para os domínios intelectuais, ocupar lugares em instâncias de
consagração "propriamente" culturais (como a ABL) e distinguir-se internamente
pela vinculação ou não do trabalho burocrático ao de criação - haja vista que
seus bons rendimentos e disponibilidade de tempo poderiam sustentar a dedicação
à produção cultural (Miceli,_1979).
No pós-45, especialmente a partir da década de 1950 e até 1965, observa-se um
período de intensificação do processo de industrialização, de crescimento
econômico e de urbanização do país. Foi criado o Projeto de Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, com debates sobre os parâmetros das escolas
públicas e privadas e a instituição da Universidade de Brasília (UnB) (1961) -
celebrada como o "ápice" da "modernização do ensino superior no Brasil" -,
adicionado ao aumento de 161 mil matrículas e à federalização de instituições
estaduais e privadas (Martins,_2009; Fávero,_2006).
No plano político, o sistema partidário da denominada "democracia populista"
foi em grande parte composto por forças mobilizadas no "regime varguista" ou
por setores da "oligarquia" marginalizados no mesmo período. As composições
sociais dos principais partidos concorrentes, UDN e Partido Social Democrático
(PSD), eram diversas em termos econômicos e sociais, sendo a base substancial
do recrutamento dos "udenistas" os "círculos de maior prestígio das profissões
liberais e intelectuais junto às elites de grandes proprietários rurais em
alguns estados nordestinos e nos remanescentes do pessoal político a serviço de
antigos clãs oligárquicos já atuantes durante a primeira República" (Miceli,
1981:563), enquanto os "pessedistas" eram majoritariamente selecionados entre
lideranças do empresariado industrial, o pessoal político das interventorias e
alguns elementos das corporações burocráticas, como as militares. A maior ou
menor proximidade com o poder central no Estado Novo constituía a força de
atração para uma ou para a outra sigla.
Afonso Arinos movimentou-se, no espectro de forças partidárias, em oposição aos
partidos considerados pró-Vargas (PSD e PTB - Partido Trabalhista Brasileiro),
por terem sido mobilizados pelo comando do Estado Novo. Liderou, pois, a sigla
(UDN), que reunia dirigentes políticos estaduais anti-Vargas. Ao longo da sua
carreira política, compôs a Comissão de Reforma Administrativa, foi relator da
Comissão Especial para emitir parecer sobre a autonomia do Distrito Federal e
propôs a lei contra a discriminação racial. Com as teses intituladas As Leis
Complementares da Consituição e História e Teoria do Partido Político no
Direito Constitucional Brasileiro, conquistou as cátedras de direito
constitucional nas Universidades do Distrito Federal (atual Universidade do
Estado do Rio de Janeiro - UERJ) e do Brasil (atual Universidade Federal do Rio
de Janeiro - UFRJ), entre 1949 e 1950, quando ocupava o primeiro de três
mandatos como deputado federal. Reeleito em 1950, assumiu novamente seu mandato
em 1951, ano da aprovação da lei contra o preconceito de raça e de cor que
ganhou o seu nome (Lei no1.390, de 3 de julho de 1951).
Foi em 1951 também que Getúlio Vargas assinou a Lei no 1.411 que instituiu a
profissão de economista no Brasil, coincidindo com o ano em que Antônio Delfim
Netto diplomou-se em Economia na Faculdade de Ciências Econômicas e
Administrativas da Universidade de São Paulo (FEA-USP)14, instituição na qual
ingressara em 1948 (terceira turma) após ter obtido, em 1946, o título de
Contador pela Escola Técnica de Comércio Carlos de Carvalho (Macedo,_2001:375).
Filho de uma costureira e de um funcionário da empresa de transportes da
Prefeitura de São Paulo, Delfim começou a trabalhar como contínuo ou office
boydepois do falecimento do pai, aos 14 anos de idade (quando ele nasceu,
Arinos era promotor de Justiça em Belo Horizonte), e com 18 anos, frequentou a
Escola Técnica. No período em que ainda realizava o curso universitário,
trabalhou no Departamento de Estradas e Rodagem, ocupação que lhe permitiu
escrever textos como "Uma Estimativa de Custos de Operação dos Equipamentos
Rodoviários" e "Alguns Métodos Estatísticos para Cálculos de Depreciação numa
Economia Sujeita à Inflação". Suas origens sociais são, portanto, semelhantes
àquelas de seus contemporâneos de Faculdade de Economia da USP, instituição
que, como mostrou Loureiro, era "procurada por jovens de extração social mais
baixa, provenientes de escolas técnicas do comércio que não tinham condições
econômicas de frequentar escolas de Direito ou Engenharia" (1992:57).
Depois de formado, Delfim Netto conseguiu uma posição como assistente do
professor Luiz de Freitas Bueno15(catedrático de econometria) na cadeira de
Estatística I e, em 1953, atuou na Bolsa de Mercadorias de São Paulo como
professor de um curso de análise matemática para economistas (Abreu et
al.,2001:1806).
Também foi em 1953 que, à frente da bancada udenista, Arinos se opôs
frontalmente ao governo de Getúlio Vargas, chegando a advogar pelo cumprimento
do tratado militar entre o governo brasileiro e o norte-americano em função da
"Guerra Fria" e do "princípio da solidariedade continental". Confirmado pelo
Congresso em março do mesmo ano (com vigor até 1977), o acordo era apontado
como possibilidade de "modernização dos equipamentos militares" e como
assistência técnica dos EUA, tendo sido criticado, sobretudo, pelo provável
interesse do governo daquele país "na requisição de tropas brasileiras para a
guerra na Coréia" (Abreu et al.,2001:339).
Persistindo na oposição ao governo, Arinos contestou a política de cooperação
entre as diferentes agremiações partidárias empreendida por Vargas e, em 1954,
suas críticas foram intensificadas e vertidas com o manifesto de 82 coronéis e
tenentes-coronéis contra o aumento de 100% do salário mínimo apresentado pelo
então ministro do Trabalho, João Goulart, o que interferiu na substituição
deste último por Hugo Faria, assim como na modificação do ministro da Guerra.
Com o atentado contra Carlos Lacerda (UDN) e a morte do major-aviador Rubens
Vaz, em agosto do mesmo ano, os conflitos entre governo e oposição se
exacerbaram e Arinos discursou pelo afastamento do presidente (idem).
O suicídio de Vargas ocorreu justamente em 1954 causando imensa comoção
popular, favorecendo o relativo aumento do apelo eleitoral do PSD e do PTB,
enquanto a UDN sofreu o prejuízo de 10 cadeiras na Câmara Federal. Mesmo assim,
Afonso Arinos conseguiu reeleger-se pela terceira vez com uma votação quatro
vezes maior do que aquela obtida na estreia.
A despeito da intensa campanha de oposição das lideranças udenistas e das
autoridades militares, a chapa Juscelino Kubitschek (presidente) e João Goulart
(vice) venceu as eleições de outubro de 1955, constituindo-se imediatamente em
alvo de condenações dos partidários da UDN, que pretendiam impedir
judicialmente a posse dos eleitos. A favor de uma saída legal, Arinos defendeu,
sem sucesso, a reapresentação da emenda parlamentarista de Raul Pilla16. Depois
concentrou suas censuras na corrupção, no crescimento da taxa de inflação e no
aumento dos gastos públicos, especialmente o "desperdício" representado pela
construção de Brasília17. Em 1957, ocupou a posição de líder do Bloco
Parlamentar de Oposição (UDN, PL - Partido Liberal e PDC -Partido Democrata
Cristão), ao mesmo tempo que o deputado Carlos Lacerda passava a liderar a
bancada da UDN na Câmara18.
Em 1958, Afonso Arinos chegou ao Senado pelo Distrito Federal (atual estado do
Rio de Janeiro), derrotando um dos filhos de Getúlio Vargas, vitória que coroou
o protagonismo político alcançado no plano nacional e indicava ainda o
incremento da força política de Carlos Lacerda, da UDN e dos discursos
oposicionistas na capital do país. Presidente da Comissão de Relações
Exteriores, apoiou a campanha de Jânio Quadros que, eleito, retribuiu com a sua
nomeação para o Ministério das Relações Exteriores em 1961. Todavia, foi
substituído sob a chefia de Tancredo Neves (primeiro-ministro durante a
experiência parlamentarista instaurada em virtude da renúncia de Jânio Quadros
e a disputa travada em torno da posse do seu vice, João Goulart, tido como o
"herdeiro de Getúlio Vargas") e seguiu atuando no âmbito das relações
internacionais. Porém, com a posse de Francisco de Paula Brochado da Rocha
(outro primeiro-ministro empossado no início da década de 1960), voltou a
assumir a chefia do Itamaraty. Neste período: chefiou a XVI Assembleia Geral da
ONU; comandou a delegação brasileira que participou da Conferência do
Desarmamento em Genebra; compareceu ao Concílio Vaticano II na condição de
Embaixador extraordinário; e esteve à frente da delegação brasileira na XVII
Assembleia Geral da ONU (Abreuet al.,2001:340).
Antes da eleição ao Senado, em janeiro de 1958, Afonso Arinos teve êxito no
pleito à Academia Brasileira de Letras (venceu João Guimarães Rosa), ocupando a
vaga de José Lins do Rego. Foi saudado por Manuel Bandeira em sua investidura,
ocorrida em julho do mesmo ano.
Nota-se que, nesse momento, quando o debate intelectual foi dominado por outras
versões de nacionalismos (diferentes daquela prevalecente nos anos 1930), a
produção de Afonso Arinos voltou-se para a consagração pessoal e familiar. Do
mesmo modo, centrou-se em temas ligados às liberdades democráticas e ao estado
democrático de direito, condizentes com as suas adesões políticas conjunturais,
assim como com os atributos que então acionava. Posicionou-se sobre questões
nacionalistas no Senado, no Ministério das Relações Exteriores e no desempenho
das atribuições diplomáticas assumidas no período. Foram tratadas as temáticas
do desenvolvimento, da afirmação nacional, da autodeterminação e da soberania,
associadas a discussões sobre relações internacionais19.
Os tipos de publicação privilegiados por Arinos, por sua vez, voltavam-se à
produção de memórias, biografias históricas, poesias e temas especializados do
direito que possuem interface com a organização do sistema político20. Logo,
manteve-se relativamente distante das disputas entre intelectuais ligados às
Ciências Sociais, posicionados mais à esquerda, que disputavam a bandeira da
soberania nacional (Pécaut,_1990:99), e daquelas que dominavam o espaço dos
economistas (monetaristas xestruturalistas), que debatiam questões relativas ao
nacionalismo, ao desenvolvimento industrial, ao planejamento econômico, à
reforma agrária etc. (Loureiro,_1992:63).
A NOVA LINGUAGEM DO PODER: ECONOMISTAS NOTÁVEIS21 E A FORÇA DA BUROCRACIA
Há uma forte associação entre a posse de título escolar em economia e a
dedicação ao gênero setorialista (Grill_e_Reis,_2012). Isto é, 86% dos agentes
com formação superior em economia escreveram precipuamente livros dedicados à
sua área de formação, mobilizando seus conhecimentos escolares e "competências"
técnicas. Quase 70% desses casos analisados possuem pós-graduação na área, mais
da metade deles com experiência de internacionalização nas suas apostas
acadêmicas em nível de mestrado e doutorado. Desses, praticamente todos atuaram
no magistério superior ministrando cursos ligados à disciplina de economia.
Outro dado vultoso obtido naquele levantamento foi a existência de dois padrões
de carreiras políticas entre os parlamentares com formação em economia. De um
lado, aqueles que exerceram cargos na esfera administrativa a partir do
reconhecimento que adquiriram como profissionais e docentes da área de economia
(em torno de 55% dos casos). De outro, agentes que se dedicaram primordialmente
a carreiras eletivas, não demonstrando conjuntamente uma especialização em
assuntos econômicos no desempenho das suas funções públicas (próximo a 45% dos
casos).
Nessa população especificamente composta por economistas com extensa produção
bibliográfica e com passagem pelo Parlamento brasileiro, o ex-ministro Delfim
Netto é um representante exemplar. Portador de um currículo acadêmico marcado
pela nova linguagem matematizada e dolarizada da economia22 e pelo
pertencimento a centros de pesquisa considerados de excelência, ocupou cargos
administrativos de relevo no aparato burocrático nacional durante o regime
militar (1964-1985) e postos políticos (parlamentares e partidários) de
destaque nas últimas décadas. Por meio do seu itinerário de mais de quatro
décadas de atuação na cena pública percebe-se transformações mais gerais em
espaços de concorrência das lideranças, equilí-brios e tensões na balança de
poder, entradas de novos protagonistas e linguagens, saídas, reconversões e
adaptações de agentes relativamente estabelecidos no jogo político.
No mesmo ano em que Arinos entrou para a ABL (1958), Delfim Netto foi aprovado
no concurso para livre-docente de estatística econômica, com a tese intitulada
O Problema do Café no Brasil, e conquistou a condição de professor catedrático
de economia brasileira na Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da
USP. Seu trabalho foi publicado pela própria FEA-USP em 195923, ano em que foi
eleito vice-presidente da Ordem dos Economistas de São Paulo. Além disso,
passou a compor o conselho editorial daRevista de Ciências Econômicas;foi
assessor econòmico na Associação Comercial de São Paulo (pela qual publicou, em
coautoria com Luiz Mendonça de Freitas, o livro OTrigono Brasil,em 1960); e
recebeu o convite para fazer parte da equipe de planejamento do governo
paulista.
Subsequentemente, desempenhou funções na Comissão Interestadual da Bacia
Paraná-Uruguai, no Serviço Estadual de Mão de Obra da Secretaria do Trabalho do
governo estadual, no Conselho Técnico Consultivo da Assembleia Legislativa, e
produziu pesquisas para a Associação Nacional de Programação Econômica e
Social, entidade financiada por banqueiros paulistas, e publicou, em 1964, o
texto "Alguns Aspectos na Inflação Brasileira".
No âmbito acadêmico, Delfim foi diretor de pesquisa da FEA-USP24 e, por esta
mesma Instituição, em 1963, prestou concurso e obteve o título de professor
catedrático de teoria do desenvolvimento econômico com o estudo "Alguns
Problemas do Planejamento para o Desenvolvimento Econômico". Despontava como "o
primeiro economista formado depois da regulamentação da profissão a ocupar uma
posição de Cate-drático nessa faculdade"25.
Com sua significativa intervenção, membros da FEA, em 1964, criaram o Instituto
de Pesquisas Econômicas (IPE) como centro complementar do Departamento de
Economia e com o fim de realizar pesquisas econômicas e financeiras. O
Instituto teve forte atração entre os poderes públicos e o empresariado, e
resultou na Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) na década de
1970. Tais empreendimentos contaram com a contribuição do programa da United
States Agency for International Development (USAID), que fomentava a vinda de
professores norte-americanos para esse tipo de instituição de pesquisa, bem
como propiciava a ida de pesquisadores brasileiros para os EUA. O acordo MEC/
USAID teria sido o responsável "pela formação de nova geração de professores do
Departamento de Economia ao longo da década de 1970, os quais, nos anos
seguintes, chegaram aos cargos de professor-titular, com a aposentadoria dos
antigos catedráticos" (Macedo,_2001:383).
Três medidas tomadas pelo governo em relação às universidades são
paradigmáticas. A primeira foi o acordo citado acima, que oficializou a
"assistência" técnica, financeira e militar dos EUA ao Brasil. A segunda diz
respeito à consultoria dada ao MEC, em 1965, pelo norte-americano, membro da
USAID, Rudolph Atcon. O relatório de Atcon serviu de base para a produção do
documento "Rumo à Reformulação Estrutural da Universidade Brasileira", cuja
proposição às universidades brasileiras enfatizava a "defesa dos princípios de
autonomia e autoridade, dimensão técnica e administrativa do processo de
reestruturação do ensino superior, ênfase nos princípios de reformulação do
regime de trabalho docente, criação do centro de estudos básicos... [e] de um
conselho de reitores", o CRUB (Conselho de Reitores das Universidades
Brasileiras), do qual Atcon foi o secretário-geral de 1966 a 1968 (Fávero,
2006:15). Com a presidência do general Meira Mattos, a terceira medida foi a
constituição de uma comissão especial incumbida de agir no sentido de reprimir/
dirimir as mobilizações a partir do âmbito universitário (idem;Martins,_2009).
A década de 1970, junto com a reforma universitária que extinguiu as cátedras,
parece ter sido o ápice da escalada da versão da "dolarização do conhecimento",
particularmente no tocante ao ensino de economia quantitativa, de aplicação
prática, a qual Delfim filiou-se.
No plano político, por sua vez, é patente a progressiva importância de
instâncias burocráticas no processo decisório e, por conseguinte, a relevância
dos burocratas como atores centrais das decisões governamentais (em detrimento
dos "políticos"). Não por acaso, a bibliografia temática ressalta a atuação
dessa burocracia estatal na condução de políticas econômicas e na montagem do
estado nacional-desenvolvimentista. Isto é, sublinham como determinadas
agências de Estado passaram a monopolizar as atribuições de regulação,
financiamento e planejamento econômico26.
Dois aspectos, noentanto, devem serponderados. Primeiro, a demonstração da
força do papel dos "técnicos" nesta seara e no interior do chamado aparelho de
Estado não significa, conclusivamente, que o lugar desfrutado por esses agentes
seria definido exclusivamente em função da sua competência técnica ou do saber
especializado proclamados, assim como não se pode assegurar que os mesmos
estivessem imunes à dependência de outros recursos de afirmação, como o
estabelecimento de alianças estratégicas com protagonistas da política eletiva.
Ademais, e em segundo lugar, os ocupantes desse espaço burocrático muitas vezes
são eles próprios os atores das disputas partidárias. Afora o fato de que os
conhecimentos (fundamentalmente escolares), mobilizados para as tarefas de
planejamento e regulação econômica nem sempre foram monopólio de economistas,
tampouco os postos nos organismos governamentais que regem a economia são "por
natureza" ou automaticamente ocupados por indivíduos com formação econômica.
Loureiro mostra as especificidades do caso brasileiro examinando as condições
histórico-estruturais, bem como o trabalho coletivo de instituições e grupos
diversificados que ensejaram a afirmação acadêmica e governamental da ciência
econòmica no país, querdizer, doseu lugar de destaque no âmbito das
instituições de ensino superior e das agências governamentais. A "nova
competência política", simbolizada por uma "qualificação técnico-profissional"
e associada a modelos matemáticos sofisticados, quantificação, predição etc.
resultou das características sociais dos seus "promotores" (muitos deles,
aliás, além de já estabelecidos social e politicamente, acumularam também
outros títulos, como em Direito). Do mesmo modo derivou da "montagem
institucional que certos grupos puderam empreender, tanto no âmbito do aparelho
do Estado quanto nos meios intelectuais e universitários" (Loureiro, 1992:49).
Foi entre 1964 ou 1965 que Delfim Netto inaugurou sua inscrição federal
compondo o Conselho Consultivo de Planejamento (Consplan) e, por indicação de
Roberto Campos (então ministro do Planejamento), integrou o Conselho Nacional
de Economia. Este mesmo ministro o indicou para o cargo de secretário da
Fazenda do Estado de São Paulo. Nesta pasta ficou até 1967, quando assumiu a
função de ministro da Fazenda27. Durante a década de 1960, Delfim Netto
publicou um conjunto de livros sobre a questão econòmica, em especial sobre
aspectos da agricultura e do café no Brasil28.
Na gestão do Ministério da Fazenda, com o Plano Estratégico de Desenvolvimento
(PED), Delfim protagonizou um momento de ascensão da economia nacional, com uma
baixa de 23% da inflação e um crescimento de 4,8% do Produto Interno Bruto
(PIB), tendo no desempenho da indústria, principalmente no setor de bens
duráveis de consumo, o carro-chefe desse crescimento. Do ponto de vista
econòmico, alguns fatores conjunturais teriam contribuído para essa reativação
do crescimento:
(...) a grande expansão do comércio e da liquidez internacionais no
período, a expansão do setor público, responsável pela absorção de
grande parte da capacidade ociosa do parque industrial brasileiro, a
consolidação do mercado de capitais e do sistema financeiro nacionais
e a política de achatamento salarial (Abreu et al.,2001:1807).
Entretanto, o período foi de fortalecimento das mobilizações conduzidas pelos
antagonistas do governo estabelecido. Notadamente, lideranças políticas,
intelectuais, setores da Igreja Católica e estudantes promoveram formas
diversas de articulação e de contestação ao regime (composição de organizações
clandestinas, reuniões, encontros, manifestações, produção de documentos,
grupos de estudo, propagandas impressas, projetos de guerrilha etc.) que
geraram confrontos com a polícia. Para a contenção das mobilizações, os setores
militares mais radicais conseguiram fazer instituir, em dezembro de 1968, o Ato
Institucional no5, assinado pelo presidente da República e seus ministros
(incluindo Delfim).
No momento do golpe militar, em Minas Gerais, Afonso Arinos era secretário do
governo e fora eleito presidente da Comissão de Constituição e Justiça do
Senado, até Roberto Campos assumir este posto em 1965. Neste mesmo ano,
publicou o segundo volume das suas memórias, intitulado Escalada(José Olympio),
e o livro Evolução da Crise Brasileira(pela Companhia Editora Nacional). Em
1966, divulgou cinco discursos sobre a reforma constitucional, participou da
criação da Aliança Renovadora Nacional (Arena), produziu uma versão para o
capítulo do anteprojeto de Constituição referente aos direitos e garantias
individuais (por solicitação do líder da maioria no Senado, Daniel Krieger) e
apresentou uma emenda indicando a instituição do regime parlamentarista.
Terminado o mandato de senador, sem concorrer à reeleição, Arinos foi nomeado
membro do Conselho Federal de Cultura(CFC). Tornou-se, assim, um dos "cardeais
da cultura nacional"29 junto com outros intelectuais que, à frente do CFC,
encabeçaram a política para o setor cultural em um momento (1967-1978) em que o
Estado atuou como "agente financiador e organizador de projetos culturais,
tornando-o o grande mecenas da cultura brasileira" (Maia,_2012:25-26). Como
outrora, os membros do conselho teriam se centrado em forjar concepções acerca
da "cultura nacional", desta vez alicerçando-se num sentido de "civismo", isto
é, defendendo "a formação de uma 'consciência cívica'" como sendo "necessária à
convivência harmônica entre o estado e a sociedade civil" (ibidem:28)30.
Além de Afonso Arinos, participavam do CFC: Gilberto Freyre, Pedro Calmon,
Josué Montello, Gustavo Corção, Djacir Lima Menezes, João Guimarães Rosa,
Rachel de Queiroz, Ariano Suassuna, Roberto Burle Marx, Hélio Viana, entre
outros que, segundo Tatyana Maia, "eram companheiros de uma longa trajetória no
campo político e intelectual iniciada naqueles estonteantes anos 1920". Cabendo
sublinhar aqui que a"identidade de grupo" fundava-se em" laços de
companheirismo e amizades", bem como "era associada aos cargos exercidos nas
fileiras do Estado" (Maia,_2012:42-43).
Afonso Arinos, entre 1967 e 1969, investiu na publicação do segundo
volume deHistória do Povo Brasileiro(1967, Editores Culturais); na
ABL proferiu o discurso de recepção a João Guimarães Rosa; lançou a
segunda edição de "Curso de Direito Constitucional Brasileiro"
(Revista Forense), além do terceiro volume de suas memórias Planalto
(1968, José Olympio) e História do Povo Brasileiro,em colaboração com
Jânio Quadros (1968, Editores Culturais). No início da década de
1970, publicou uma brochura do curso de extensão ministrado na
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul sobre "História
das Idéias Políticas" (1970); ganhou o prêmio Intelectual do Ano
conferido pela Sociedade Paulista de Escritores (1973); lançou a
segunda edição da História do Banco do Brasile Rodrigues Alves-Apogeu
e Declínio do Presidencialismo(1973, José Olympio) e Jean Baptiste
Debret(1974, Editora Fontana). Em 1975, Arinos se aposentou do
magistério, criou a Fundação Milton Campos (Centro de Estudos
Políticos ligado à Arena) e divulgou "Problemas Políticos
Brasileiros" e a segunda edição de Pela Liberdade de Imprensa(José
Olympio). Em 1976, publicou a segunda edição de O Índio Brasileiro e
a Revolução Francesa(José Olympio), e de Um Estadista da República
(Nova Aguilar), o quarto volume das suas memórias Alto-mar-Maralto
(José Olympio) e Direito Constitucional(1a edição, Forense). Em 1979,
o quinto volume de suas memórias Diário de Bolsoseguido deRetrato de
Noiva(Editora Nova Fronteira).
Ocorria então o início da "distensão lenta, gradual e segura" quando Delfim
Netto ocupou o posto de Embaixador do Brasil na França, permanecendo em Paris
de 1975 a 1978 (a equipe ministerial foi redefinida com a posse de Ernesto
Geisel, em 1974). Em 1979, após deixar o cargo, viu frustrada a sua pretensão
de ser o governador de São Paulo pela Arena (partido de sustentação do regime
militar) e foi acusado de subestimação dos índices inflacionários de 1973.
Porém, teve êxito na indicação para ocupar o Ministério da Agricultura no
governo do general João Baptista Figueiredo - foi formado um "ministério de
composição entre o chamado 'grupo da Sorbonne', ligado às origens da Escola
Superior de Guerra, e a equipe mais próxima ao ex-presidente Geisel" (Abreu_et
al.,_2001:1809).
A crise internacional e os descontentamentos relativos à combinação de
ineficácia das medidas contencionistas adotadas e o crescimento da inflação
("em virtude do aumento dos custos financeiros das empresas e do agravamento do
déficit do Tesouro"), levaram à renúncia do então secretário de Planejamento,
Mario Henrique Simonsen, e à nomeação de Delfim na chefia da Seplan, em 15 de
agosto de 1979, na qual ficou até 1985. Neste período, publicou a segunda
edição de O Problemado Café no Brasil(1981, pela Fipe/USP); assumiu a cátedra
de análise macroeconômica na USP (1983); negociou novo empréstimo junto ao
Fundo Monetário Internacional (1983); defendeu uma política salarial (orientada
pelo FMI) que limitava o reajuste dos salários a 80% do Índice Nacional de
Preços ao Consumidor (INPC) (1983); escreveu "Mudanças Estruturais da Economia
no Governo Figueiredo" (1984, pela Seplan);foi denunciado pelo envolvimento no
caso Coroa-Brastel31 (idem).
Delfim Netto coordenou ainda a campanha exitosa do ex-presidente Jânio Quadros
(coligação PTB-PFL - Partido da Frente Liberal) à Prefeitura de São Paulo
(derrotando o peemedebista Fernando Henrique Cardoso), em 1985. Desde essa
atuação, apostou sistematicamente na arena político-eleitoral incrementada,
principalmente, a partir da Assembleia Nacional Constituinte, eleita em 1986.
Enquanto isso, Afonso Arinos seguia empenhado no trabalho de sustentação
intelectual de seus posicionamentos políticos e jurídicos. Chegou a fazer uma
"pesquisa de opinião", enviando questionários para prefeitos, professores de
direito, juristas, dirigentes sindicais, empresários, políticos e profissionais
liberais, visando perscrutar "as aspirações médias da sociedade" que poderiam
servir de "subsídios para uma reforma da Constituição brasileira" (Abreu_et
al.,_2001:342). Isso no mesmo ano (1980) em que substituiu Temístocles
Cavalcanti, falecido, na diretoria do Instituto de Direito Público e Ciência
Política (Indipo) da Fundação Getulio Vargas (FGV), "voltado para a pesquisa e
comandado por juristas líderes do pensamento brasileiro" (Rodrigues_e_Falcão,
2005:6-7). Os resultados da pesquisa foram publicados na Revista de Ciência
Política(Indipo, 1984).
Com a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral de janeiro de 1985, Arinos
foi indicado para presidir essa Comissão Provisória de Estudos Constitucionais,
responsável por apresentar propostas à Constituinte, mantida mesmo com a posse
do vice-presidente José Sarney na chefia do Executivo, após a morte de
Tancredo. Ficou conhecida como "comissão Afonso Arinos" e rotulada, por seus
oponentes,
como uma "comissão de notáveis". Formada por 50 personalidades de juristas,
advogados, professores de direito, empresários, cientistas sociais,
jornalistas, um médico e um economista, a composição foi contestada por
lideranças da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Central Única dos
Trabalhadores (CUT) e Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), enfim,
lideranças que a identificavam como tendo "um caráter conservador e elitista"
(Abreu_et_al.,_2001:342).
Na ocasião de entrega do texto ao presidente, Arinos foi condecorado com a Grã-
Cruz da Ordem Nacional do Mérito. Em novembro do mesmo ano, candidatou-se ao
Senado, sendo eleito constituinte pelo PFL em aliança com o Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Faleceu antes de concluir o último
mandato de senador. Seu livroPresidencialismo ou Parlamentarismo,em colaboração
com Raul Pilla, foi reeditado em 1999, pela Editora do Senado.
Nota-se como, na fase final de sua carreira, Afonso Arinos agregou às
certificações conquistadas via títulos em direito, exercício do magistério
superior, produção de livros e artigos, outros domínios em técnicas e saberes
como a produção de pesquisas de opinião, a atuação em fundações de estudos em
partidos e em conselhos na esfera pública. Ajustava-se, portanto, à linguagem
do poder progressiva e crescentemente importada das instituições norte-
americanas e fundada na credibilidade científica e na adesão à ideologia
democrática.
Nas últimas décadas, Delfim Netto, por sua vez, publicou vários trabalhos,
ocupou postos e acumulou honrarias de diversas ordens. Foi presidente da
Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados; vice-presidente e
presidente do diretório nacional do Partido Democrático Social (PDS); eleito
Economista do Ano pela Ordem dos Economistas de São Paulo; vice-presidente do
Partido Progressista Brasileiro (PPB); membro-titular da comissão especial do
projeto sobre o Sistema Financeiro Nacional; entre outras.
Em 1987, Delfim Netto escreveu o texto "Só o Político Pode Salvar o
Economista" e, principalmente na segunda metade da década de 1990,
produziu uma multiplicidade de artigos para revistas mais ou menos
especializadas de grande circulação, como Economia Aplicada, Exame,
Conjuntura Econômica, Carta Capital, Isto É Dinheiro,entre muitas
outras, principalmente para a FEA-USP. Dentre os livros, destacam-se
as coau-torias de O Plano Real e a Armadilha do Crescimento Econômico
(Uni-camp/IE, 1997),50 Anos de Ciência Econômica no Brasil(Vozes,
1997) e
O Futuro da Indústria no Brasil e no Mundo: Os Desafios do Século XXI
(Campus, 1999), e ainda a publicação de A Crônica do Debate
Interditado(Topbooks, 1998) e Como as Nações se Desenvolvem(Campus,
1999).
Como é possível observar, ao longo do seu itinerário, Delfim ocupou quase
sempre cargos administrativos, de consultorias e assessorias fundadas na sua
formação em economia, assim como os seus textos dificilmente fogem dessa área,
seja ela numa perspectiva mais especializada ou generalista32. Posteriormente,
consagrado por sua escalada deoffice boy a" czarda política econômica",
passando por posições de poder e de produção científica (Macedo,_2001), Delfim
Netto ocupou o cargo de deputado federal de 1987 a 2006.
Os percursos de economistas-parlamentares revelam distintas vias
denotabilizaçãoque guardam relação com a posse do título de economista. Quer
dizer, mesmo no período democrático inaugurado nos anos 1980, o monopólio das
decisões na área econômica permaneceu sob o controle de grupos de economistas
que gozavam de notoriedade nos meios universitários, fator que a manteve como o
meio de expressão e legitimação anteposta no espaço político. Assim, o
avigoramento desse instrumento como recurso indispensável à produção de
explicações não apenas ao mundo econômico, mas também sobre políticas sociais,
culturais e arranjos democráticos, impulsionou os investimentos de pretendentes
à ocupação das posições de poder nesse tipo de saber (Loureiro,_1997).
Acentua-se no período recente, da mesma maneira, a progressiva valorização de
recursos adquiridos nas instituições de ensino em grandes centros (no Chile, na
Europa e, principalmente, nos Estados Unidos) e a autoridade (ou suposta
"neutralidade") fundada na posse de uma competência "científica" e acadêmica -
tanto mais eficaz quanto mais alicerçada no acúmulo e ativação do "capital
internacional". A consolidação de princípios de expertise e o consenso acerca
da preeminência democrática teriam sido determinantes para a substituição dos
políticos-bacharéis pelos técnicos-políticos logo, para a reconfiguração dos
espaços de luta pelo poder em suas diferentes dimensões e direções (Dezalay_e
Garth,_2000; Guilhot,_2001).
Sendo assim, processos deste tipo estão na gênese da redefinição de
competências e códigos de realização política, o que significa a emergência e
ascensão de novas categorias de profissionais no espaço político ou usos
diversificados dos mesmos títulos ao sabor dos alinhamentos partidários e
ideológicos em curso. A configuração internacional esboçada e as lógicas
exógenas que progressivamente se impõem nos países do sul, interagem com as
modificações endógenas da agenda de problemáticas, causas e etiquetas legítimas
próprias às realidades nacionais não centrais. Os jogos de poder fundem lógicas
governamentais e não governamentais, ou estatais e não estatais, desenhando
arenas coabitadas por profissionais que transitam em empresas de consultoria,
organizações não governamentais, movimentos sociais, centros universitários de
pesquisa, associações categoriais, cargos políticos (eletivos ou
administrativos) numa conexão simbiótica entre militância e expertise (Guilhot,
2001; Buclet,_2009; Reis,_2013)33.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As modificações conjunturais e estruturais ocorridas ao longo do século XX são,
no mesmo golpe, produto e produtoras da reordenação de diversos segmentos de
"elites" e da recomposição dos grupos dirigentes, operando amplas
transformações nas linguagens, hierarquias e repertórios de atuação nos espaços
do poder nacionais e transnacionais.
Grifam-se os condicionantes e os efeitos (em diferentes níveis e configurações
nacionais) da ingerência norte-americana e do deslocamento do eixo das
transferências culturais outrora marcados pela ascendência europeia. Uma das
consequências foi a afirmação dos "técnicos-políticos" (com fortes influências
"dolarizadas" e uma linguagem econômica do poder) em detrimento dos "políticos-
bacharéis" oriundos de famílias "tradicionais" (com influências "cosmopolitas"
e uma linguagem honorífica do poder)34.
Enlaçado a isso, ocorreram processos de recomposição daquilo que define uma
condição de intelectual e das imbricações necessárias para armazenar
notabilidades múltiplas, condizentes com a capacidade de trânsito entre e em
espaços nacionais e transnacionais, com uma profusão de certificações advindas
do pertencimento a lugares que aferem excelência social (de acessos raros,
extraordinários) e com conexões possíveis a causas vistas como desinteressadas
("nobres", "universais", "transcendentais", até mesmo "sagradas").
Em que pese a exigência crescente de determinados tipos e usos de saberes e
qualificações, é possível identificar a personificação desses atributos em
personagens híbridos, uma vez que são hábeis em: acumular sinais de distinção
devido à proximidade com a esfera científica que demonstram; entabular teias de
relações no domínio político que garantem acessos, aliados, meios de luta e
superfície de influência; monopolizar a mediação de "grupos", "segmentos",
"interesses" específicos que eles mesmos auxiliaram a edificar. Quer dizer,
trata-se de agentes que se notabilizam na ocupação de posições de porta-vozes
de temas legítimos por meio da inscrição simultânea ou sucessiva em várias
dessas instâncias.
Os dois casos aqui analisados, Afonso Arinos e Delfim Netto, retratam as faces
dos criadores e das criaturas desses processos. O primeiro é contemporâneo da
geração que se dedicou a pensar os "rumos da nação", letrados pertencentes a
famílias estabelecidas, próximos dos núcleos centrais do espaço do poder,
dotados de competências políticas (herdadas e adquiridas) e envolvidos em
projetos de instituições de formação de quadros dirigentes. O segundo é um
exemplar de rotas ascendentes e alicerçado no pertencimento a um segmento
específico das elites dirigentes no Brasil, aquele associado à competência
técnico-científica, condição essa reforçada pelo lugar ocupado no regime
autoritário que proporcionou o acesso aos organismos governamentais e vantagens
em relação aos seus concorrentes externos (políticos tradicionais ou homens de
partido).
Enfim,tratou-seaquideagentesquesedistinguememtermosgera-cionais, não somente
devido às datas de nascimento, mas também por suas entradas na política,
eventos marcantese seus interlocutores/concorrentes na arena pública. Nas
dinâmicas e estratégias de afirmação, acionaram, de modo contrastante, os
saberes detidos com vistas à intervenção nas agendas de "problemas sociais" que
os interpelaram, sobretudo no que diz respeito ao uso dos títulos escolares e
aprendizados em geral explicitados na ênfase de registros mais generalistas ou
mais técnicos na produção de suas tomadas de posição (indissociavelmente
políticas e intelectuais). Conjuga-se a isso as divergentes identificações
político-ideológicas relativas ao espectro de forças políticas dominantes em
momentos conjunturais contínuos.
Entretanto, de um modo geral, as trajetórias demonstram em comum a
fortemultiposicionalidadeque garante as multinotabilidadesacumuladas.
Aproximam-se igualmente no fato de que, mesmo em diferentes momentos,
posicionaram-se na linha de frente das batalhas em torno de concepções ou
modelos de "Estado" e "sociedade", de "cultura" e "economia", que geraram
polêmicas (defesa do parlamentarismo, do mercado econômico etc.), bem como
refletiram e contribuíram para a adoção de parâmetros de conduta e de
pensamento ainda em voga. Assim, constituíram-se como intérpretes da "realidade
nacional" (prescrevendo o que seriam os "melhores" caminhos possíveis ou
necessários para o Brasil) e se pretenderam seus operadores, apresentando-se
como aptos a ocupar a posição de condutores a partir do exercício de cargos
políticos.