A agenda internacional depois da Guerra Fria: novos temas e novas percepções
Este trabalho visa analisar como e em que sentido as transformações ocorridas
na estrutura das relações internacionais se refletem na agenda internacional.
Ao longo do último quarto deste século, um fenômeno tão central como a Guerra
Fria deixou de existir sem que estudiosos de qualquer tendência tivessem
previsto sua ocorrência e, em seu rastro, uma variada gama de temas passaram a
ocupar as atenções dos analistas e formuladores de política. Hoje, está
bastante claro que esse fenômeno está relacionado com mudanças complexas e
inter-relacionadas entre si na tecnologia, na estrutura da produção e do
comércio, nos fluxos financeiros e nas relações de poder.
A agenda internacional caracteriza-se pela mudança contínua. Essa
característica é uma decorrência da própria natureza do meio internacional,
composto de atores em contínua transformação, e também altamente sensível a
mudanças nos padrões econômicos e sociais. Mudanças tecnológicas, por exemplo,
em um curto espaço de tempo, podem alterar fluxos comerciais e financeiros
tornando um grande negócio de hoje uma atividade econômica inviável amanhã.
Disponibilidade de mão de obra e de recursos naturais deixaram de ser, a médio
prazo, garantias para as nações. Mesmo estruturas industriais maduras, para não
serem ultrapassadas, precisam modernizar-se continuamente tanto do ponto de
vista tecnológico quanto administrativo. Essas mudanças, obviamente, não
ocorrem de maneira uniforme. Países e regiões não se transformam na mesma
direção e quando, porventura, o sentido das mudanças pode ser considerado
semelhante, a velocidade com que esse processo ocorre difere substancialmente
de lugar para lugar. Além disso, fatores mais difíceis de serem percebidos e
quantificados como os de base cultural e étnica podem combinar-se de muitas
maneiras, em geral imprevisíveis, produzindo fatos e circunstâncias que
condicionam a agenda internacional.
Na imprensa dos anos 60, a corrida armamentista entre a OTAN e o Pacto de
Varsóvia ocupava lugar de destaque, ao lado de focos de tensão condicionados
pela Guerra Fria nos vários continentes. Esse condicionamento também era
visível no processo de descolonização onde, geralmente, os "movimentos de
libertação" recebiam a ajuda soviética enquanto, por outro lado, apesar da luta
pela independência ser travada contra as tradicionais potências coloniais
européias, invariavelmente, as manifestações públicas favoráveis à
descolonização incluíam a queima da bandeira dos Estados Unidos. Nessa época,
questões desse tipo constituíam o que os analistas denominavam de "alta
política" ou "grande política" (high politics), que definia o jogo de forças e
as grandes estratégias de segurança internacional. As iniciativas e instâncias
representadas por instituições como o GATT ou o FMI e as questões sociais eram
classificadas como "baixa política" (low politics) indicando, claramente, que
ocupavam posição secundária na agenda internacional.
Neste final de século, a agenda internacional se apresenta muito diferente. A
separação entre high politics e low politics deixou de existir e novos itens
passaram a ocupar lugar de destaque: meio ambiente, narcotráfico, as novas
bases da competitividade internacional, direitos humanos, conflitos étnico-
religiosos, entre outros. Na verdade, as questões relativas à segurança
estratégica não deixaram de ocupar posição de destaque, mas passaram a ser
vistas de modo cada vez mais integrado a esses novos temas da agenda
internacional.
A maioria das análises produzidas nos anos 90 sobre as relações internacionais
inicia destacando a importância central do fim da Guerra Fria como
condicionante da política internacional. As razões são muitas, pois, sem
dúvida, constituiu um evento central deste final de século e marcou mudanças
importantes na maneira de se ver e conduzir a política internacional. No
entanto, o fim da Guerra Fria não deve ser interpretado como um episódio e sim
como parte de um amplo processo de mudança. Eventos como a queda do muro de
Berlim e o colapso da União Soviética devem ser vistos por seu sentido
emblemático, como um referencial importante, que deixa claro o fato de que o
mundo passava a viver uma nova época.
Na condição de processo histórico, os eventos associados ao fim da Guerra Fria
formaram, na verdade, o epílogo de uma longa sucessão de fatos. De um lado,
porque, tanto a queda do muro de Berlim quanto o colapso da União Soviética,
não teriam acontecido se as bases políticas e econômicas que davam sustentação
ao bloco socialista não estivessem já deterioradas a ponto de tornarem inócuas
quaisquer tentativas de reforma do sistema. Enquanto, por outro lado, também a
disputa por áreas de influência pelos dois pólos de poder já vinha perdendo
impulso desde a segunda metade dos anos 70 quando, não apenas a détente passou
a marcar a política externa das grandes potências, mas também, visivelmente,
muitos eventos de destaque no cenário internacional passaram a ter cada vez
menos relação direta com a disputa bipolarizada, típica da Guerra Fria. Assim
sendo, a análise das mudanças ocorridas no sistema internacional deve
considerar vários desenvolvimentos que ocorreram ao longo de, pelo menos, duas
décadas. Esses desenvolvimentos estavam associados a mudanças tecnológicas e
econômicas e, até mesmo, a transformações no quadro de valores sociais, que
faziam emergir um novo conjunto de referenciais para a política exterior dos
países.
Apesar de tudo, a Guerra Fria foi, ao longo de quatro décadas, ao mesmo tempo,
produto de uma época e também justificativa para a ação política. Estratégias
de segurança, programas internacionais de cooperação técnica e econômica e até
mesmo disputas políticas dentro dos países geralmente eram consideradas a
partir do entendimento da Guerra Fria como um referencial importante, às vezes
central, nos processos de tomada de decisão. Em conseqüência, o seu
desaparecimento trouxe também, para os analistas, a tarefa de encontrar novas
explicações para as possíveis forças que moveriam a política internacional.
Mudanças nas percepções acerca do meio internacional
O contexto ideológico, apesar de ser uma noção bastante fluida, não há nenhuma
dúvida de que é muito real, sendo uma condicionante central para qualquer
avaliação de estratégias de ação tanto no contexto interno quanto externo. O
ambiente ideológico define a maneira pela qual a realidade é percebida
servindo, por essa razão, de orientação para as ações. O homem primitivo olhava
as nuvens no céu, sentia a brisa na pele e fazia conjecturas sobre a colheita;
outras vezes consultava o oráculo que o aconselhava sobre a guerra, a paz e o
futuro. Na modernidade, o avanço da razão e dos conhecimentos tem feito os
homens tentarem compreender possíveis relações de causa e efeito ocultas sob
fatos e números que mostram fenômenos como o tamanho das populações, o
movimento das trocas comerciais, ou a eleição de governantes liberais,
conservadores ou socialistas.
O século XIX, por exemplo, foi um período em que o liberalismo parecia oferecer
as melhores respostas para as questões da riqueza, do emprego e da renda. Não
foi acidental que Adam Smith intitulou sua obra Uma Investigação sobre a
Natureza e a Causa da Riqueza das Nações. A visão contida em sua obra, apesar
das variadas interpretações e dos desdobramentos que se seguiram, em sua
essência, predominou ao longo de todo o século XIX. A ordem econômica
internacional, definida pela busca do livre comércio, pela liberdade na
movimentação dos recursos financeiros e por um sistema monetário baseado na
segurança da libra esterlina e na livre movimentação do ouro, refletia
amplamente essa fé liberal. Aqueles que argumentavam em outra direção, como
Alexander Hamilton, nos Estados Unidos, e Friedrich List, na Alemanha, que
diziam que o livre comércio não era uma receita eficaz para todas as nações,
permaneceram na penumbra.1 A idéia de que o comércio se constituía no "motor do
crescimento" era uma percepção generalizada e tão indiscutível a ponto de
Alfred Marshall, em seu Principles of Economics, escrever que "...crescimento
econômico é uma questão afeita ao comércio internacional" sem ter que sustentar
essa afirmação com argumentos de qualquer natureza.
Agora sabemos que as idéias de Hamilton e List, embora em desacordo com a visão
predominante, estavam em sintonia com os esforços de industrialização de seus
países. Por outro lado, é curioso observar que a Grã-Bretanha, a partir de
1919, vai liderar os esforços de retomada do padrão ouro, muito embora, nas
condições da época, essa nação haveria de ser uma das mais prejudicadas com a
volta desse sistema. Quer seja pelo fato de refletir a fé liberal, que renascia
vigorosamente no pós-guerra imediato, ou pelo seu fato de ter se transformado
em um símbolo da estabilidade internacional e da supremacia britânica, o fato é
que a volta ao padrão ouro passou a ser defendido com entusiasmo apaixonado por
estadistas e estudiosos.
No início dos anos 20, entre as raras vozes que discordavam do entusiasmo pelo
padrão ouro, estava John Maynard Keynes, um economista relativamente pouco
conhecido à época.2 A grande maioria dos estadistas, conservadores ou liberais,
e economistas das mais variadas tendências, entendiam que o padrão ouro trazia,
implicitamente, a ordem e a disciplina necessárias à recuperação e à volta do
crescimento da economia internacional.
No segundo pós-guerra deste século, o quadro das percepções havia se alterado
de modo dramático. A dolorosa experiência da crise dos anos 30 havia mostrado
as limitações da ordem liberal, que havia predominado no século XIX. Ao
contrário do que havia ocorrido em 1919, na Conferência de Bretton Woods não se
pensava em "reconstruir" a ordem econômica. Keynes e White tinham pontos de
vista diferentes a respeito de como estruturar a nova ordem econômica
internacional, mas ambos, assim como praticamente todos os demais participantes
da Conferência, concordavam em que essa ordem deveria ser substancialmente
diferente daquela que havia fracassado nos anos 30. O comércio de commodities
deveria ser administrado e as finanças internacionais deveriam ser manejadas
pelas autoridades nacionais e agências internacionais que, dessa forma,
evitariam as oscilações danosas dos preços nos mercados de commodities e a
volatilidade dos capitais, que haviam estado no âmago do processo de
desencadeamento da crise dos anos 30.
Os primeiros anos do segundo pós-guerra presenciaram também a emergência de
outro elemento condicionante das percepções que iriam influenciar fortemente as
relações internacionais: a Guerra Fria. Os argumentos de Keynes, economicamente
consistentes, a respeito da falta de liquidez internacional não foram aceitos
em Bretton Woods, mas foram amplamente atendidos a partir de 1947, depois que
as disputas e rivalidades da Guerra Fria foram transformadas em prioridades na
agenda internacional por parte dos Estados Unidos. Com efeito, as expressivas
somas transferidas para a Europa pelo Plano Marshall praticamente resolveram a
carência de liquidez internacional, à sombra de uma doutrina de segurança
estratégica internacional voltada para a contenção do avanço soviético.
Nesse contexto, a América Latina em geral, e o Brasil em particular, ficaram à
margem das prioridades da política externa americana, significando também que
ficaram à margem da única fonte de recursos financeiros para o desenvolvimento
na época. Entre outras razões, essa circunstância decorria, paradoxalmente, do
fato de não se constituírem em regiões problemáticas para os Estados Unidos no
mapa das possíveis zonas de confrontação leste-oeste. Programas como a Aliança
para o Progresso, com vistas à promoção do desenvolvimento econômico na região,
somente passaram a ocupar posição de prioridade na agenda da política exterior
dos Estados Unidos no início dos anos 60, depois dos violentos protestos contra
o então Vice-Presidente Nixon em visita a algumas capitais da América do Sul e,
mais particularmente, depois da ascensão de Fidel Castro. Desde então, ficava
claro que a América Latina poderia, perfeitamente, derivar para área de
influência soviética. Assim sendo, passava a ser adequado aplicar, nessa
região, fórmulas semelhantes àquelas que haviam produzido, com sucesso, a
reconstrução econômica da Europa e assegurado a sua manutenção dentro da
aliança estratégica ocidental.
O fim da Guerra Fria teve um papel importante na mudança da agenda
internacional. A mudança não apareceu de modo tão evidente na composição dessa
agenda, mas sim no grau de importância atribuída às diversas questões. Isto é,
a maioria das questões integrantes dessa agenda já existia, no entanto, a
maneira pela qual essas questões passaram a ser percebidas é que sofreu
transformações significativas com o fim da Guerra Fria. Com efeito, a promoção
dos direitos humanos constitui tema tradicional da ONU (a Declaração Universal
dos Direitos Humanos foi adotada pela Assembléia Geral em 1948), o tema do meio
ambiente já havia sido objeto de uma conferência mundial em 1972 (Estocolmo) e
a globalização é um fenômeno cujas raízes se assentam no próprio conceito de
modernidade. Até mesmo a "desregulação" dos mercados financeiros, considerada
um verdadeiro símbolo da globalização, já ganhava impulso com a expansão dos
mercados de eurodólares nos anos 60 e 70. O fim da Guerra Fria, no entanto, fez
com que as preocupações e as abordagens de questões como essas deixassem de ser
matizadas ou mesmo distorcidas pela disputa leste-oeste. Nesse sentido, uma
organização de defesa dos direitos humanos não deveria mais ser encarada como
parte de uma ação concertada para desestabilizar governos simpatizantes de um
dos lados e a promoção das questões ambientais, comerciais e financeiras
passavam a ser, nas mesas de negociação, objeto de novas alianças, deixando de
lado considerações de segurança estratégica internacional típicas do jogo de
poder da Guerra Fria.
Segurança estratégica e relações econômicas na agenda internacional
O abandono da dicotomia high politics e low politics foi um desenvolvimento
importante, que reflete as novas percepções contidas na nova agenda
internacional. A distinção entre as questões relativas à segurança estratégica
e as questões econômicas e sociais, que caracterizava a agenda internacional,
na realidade, não resultava de diferenças na natureza dos fenômenos dessas duas
áreas. A interconexão entre recursos de poder militar e vitalidade econômica
das nações sempre foi considerada muito importante pelos estudiosos. Eventuais
discussões surgidas quanto à primazia de um campo em relação a outro, quando
vistas sob uma ótica mais precisa, assumiram sempre o caráter do velho dilema
"do ovo e da galinha".
Com efeito, a primazia atribuída à segurança internacional ou ao progresso
econômico dependia das circunstâncias e da agenda internacional em pauta e
também, obviamente, da posição ocupada pelo país no cenário internacional.
Muitas iniciativas do Governo Americano, a começar pelo Plano Marshall, tiveram
por premissa a necessidade de fomentar a recuperação e o crescimento econômico
como base de sustentação de uma estratégia de segurança internacional. De modo
semelhante, mas por razões diferentes, muitas das ações de política externa de
países do então chamado Terceiro Mundo insistiam na inadequação do
condicionamento do meio internacional ao conflito Leste-Oeste. No início dos
anos 60, a chamada "Política Externa Independente" do Governo Brasileiro já
refletia com notável clareza essa percepção.
A razão porque, até meados dos anos 70, essa distinção entre high politics e
low politics tinha importância relevante derivava do quadro político
internacional fortemente condicionado pelas percepções geradas pela Segunda
Guerra Mundial e pela sucessão de crises associadas à Guerra Fria. A Segunda
Guerra Mundial, além de suas dimensões trágicas, foi também percebida, por
muito tempo, como um capítulo que apenas dava continuidade à tradição imemorial
das nações, especialmente das grandes potências, de recorrer ao uso da força
para resolver disputas por fronteiras, direitos de sucessão, domínios
coloniais, rotas comerciais, etc. A novidade que surgia no século XX era a
ampliação dessa noção de conflito para uma escala virtualmente global, à qual
se somava o desenvolvimento da tecnologia das armas de destruição em massa.
Nada de novo havia surgido que pudesse fazer supor que o relacionamento entre
povos houvesse mudado em sua essência. Ao contrário, as duas guerras mundiais
haviam apenas servido para mostrar que o meio internacional continuava
essencialmente conflituoso e que, em razão da crescente interdependência entre
os países, esse potencial havia se tornado ainda maior. Diferentemente do que
ocorrera com a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra, apesar de suas
dimensões muito mais trágicas, em momento algum foi entendida como "uma guerra
para por fim a todas as guerras".
De fato, a frustração produzida pela Liga das Nações reforçava essas percepções
acerca da natureza intrinsecamente conflitiva do meio internacional. No
entreguerras, em torno da Liga das Nações, pensadores e estadistas construíram
um imenso edifício de esperança e fé na razão, na democracia e em valores
morais que, a partir de então, deveriam passar a alicerçar a sociedade mundial.
No entanto, a crise econômica dos anos 30, a ascensão de regimes anti-
democráticos e, por fim, o trágico balanço da Segunda Guerra Mundial produziram
uma enorme reversão nessas percepções. Nesse ambiente, tornava-se difícil,
tanto para governantes quanto para a opinião pública, acreditar que a política
internacional, algum dia, poderia deixar de ser uma arena onde, mais cedo ou
mais tarde, a política de poder não acaba, invariavelmente, resultando em
conflito armado entre as nações.
Analistas do porte de Morgenthau3 traduziam as percepções dominantes do
realismo político, caracteristicamente cético em relação a uma possível ordem
internacional estavelmente sustentada sobre instituições e ordenamentos
jurídicos supra-nacionais. Pode-se dizer que a famosa assertiva de Clausewitz
de que "a guerra é a continuação da política por outros meios"4 era entendida
não como uma forma possível de condução da política exterior das nações, mas
como uma forma de ação política provável das nações face à insegurança
predominante na política internacional.
Efetivamente, depois da Segunda Guerra Mundial, ao longo de um quarto de
século, o cenário internacional foi marcado por tensões e conflitos sucessivos
originados a partir de razões variadas, mas sempre apoiados pelas grandes
potências, que viam nesses conflitos manifestações da disputa sem quartel por
áreas de influência entre as duas ideologias, assentadas sobre duas alianças
estratégicas antagônicas. Assim, a percepção era a de que, potencialmente, a
qualquer momento, esses conflitos poderiam se degenerar, transformando-se em
uma confrontação direta entre as grandes potências. Além disso, no plano
doméstico, o fator ideológico servia para justificar regimes autoritários e
medidas de exceção. Esse ambiente fazia com que muitas questões econômicas e
disputas políticas triviais fossem transformadas em focos de tensão que
transcendiam os limites locais e regionais. Todo o processo de descolonização,
por exemplo, foi fortemente condicionado por esse fator ideológico. A Guerra
Fria, desse modo, era percebida como o conjunto de motivos e justificativas
peculiares ao mundo de meados do século XX, sobre os quais a velha política de
poder entre as nações continuava a ser praticada.
Mudanças nessa percepção começaram a aparecer ainda nos anos 60 e,
curiosamente, as armas nucleares, por seu potencial de destruição e pela
impossibilidade de conter seus efeitos dentro de limites geográficos
administráveis, acabaram por ajudar a questionar o uso da força como
instrumento de solução de conflitos entre as grandes potências. A crise dos
mísseis de Cuba, em fins de 1962, pusera em evidência essa questão, dando
início às primeiras conversações entre as superpotências para tentar limitar o
ímpeto da corrida armamentista.
Sob certos aspectos, as doutrinas estratégicas formuladas nesse contexto também
refletiam essa atitude. Mesmo a doutrina da retaliação maciça (massive
retaliation), cujo sentido era o de deter o rival por meio da posse de
capacidade de destruição maciça, implicitamente significava criar desestímulos
ao uso da força. Era uma espécie de versão extremada do antigo adágio si vis
pacem, para bellum. Posteriormente, com o poderio nuclear estratégico das
superpotências relativamente equilibrado, a doutrina que ficou conhecida como
second strike deixava ainda mais clara essa idéia de conter possíveis
iniciativas do adversário por meio da posse de superioridade estratégica: o
receio dos efeitos destrutivos das armas atômicas conduzira à crença de que a
única forma de evitar que o adversário tomasse a iniciativa do ataque e, assim,
provocasse a sua aniquilação, seria dispor de recursos tecnológicos para
revidar esse ataque, ainda que a nação atingida por armas atômicas já estivesse
completamente destruída.
O fato é que as armas atômicas não foram empregadas, nem na guerra da Coréia,
onde dezenas de milhares de soldados americanos foram mortos em uma época em
que os Estados Unidos detinham enorme superioridade estratégica. A crise dos
mísseis de Cuba, por sua vez, pode ser considerada um marco importante na
mudança de percepções sobre as noções de segurança estratégica internacional.
Ao colocar pela primeira vez, desde a criação da OTAN, as duas superpotências
em uma situação de confrontação direta e ao se chegar a considerar publicamente
a possibilidade do emprego de armas atômicas, serviu para pôr em evidência a
insensatez da corrida armamentista na era nuclear.
Nesse quadro, a doutrina da coexistência pacífica do lado soviético vai ter, em
seguida, sua correspondência na détente do lado americano e, assim, a busca de
padrões de convivência entre os blocos rivais surge como solução natural. Essa
nova percepção tomou forma definitiva com o fracasso americano no Vietnã onde,
apesar da inequívoca superioridade estratégica, os Estados Unidos não
conseguiram submeter uma nação pobre, situada em um lugar longínquo. Por outro
lado, em geral, atribui-se importância central ao fracasso no Afeganistão para
que a União Soviética também adotasse uma política mais tolerante de
convivência com o Ocidente, mas os estudos mais recentes têm mostrado que, nos
vinte anos que precederam a queda do muro de Berlim, os problemas econômicos já
eram uma fonte de dificuldades crescentes para a sustentação de uma política de
ações externas mais amplas e ousadas por parte da União Soviética.
Esses fatos, obviamente, não significam que os conflitos armados tivessem
deixado a agenda da política internacional. Significam apenas que esses
conflitos deixaram de ser percebidos como inexoravelmente ligados à
confrontação entre as duas alianças estratégicas. A Guerra dos "Seis Dias", o
conflito Irã/Iraque e o fracasso soviético no Afeganistão foram apenas alguns
entre os muitos conflitos armados que tiveram lugar depois da crise dos mísseis
de Cuba. Evan Luard lista duas dezenas de conflitos internacionais, que
resultaram em ações militares em todos os continentes nos vinte anos que se
seguiram à crise dos mísseis de Cuba.5 Esse número, sem dúvida alguma, seria
muito maior se fossem incluídas as guerras civis. Mesmo agora, na última década
deste século, o mundo vem assistindo a uma sucessão de guerras localizadas em
diferentes partes do mundo, inclusive na Europa. O que, no entanto, claramente
se tornava uma possibilidade cada vez mais remota, era uma confrontação direta
entre as grandes potências, com o emprego de armas nucleares. Como esse fato
tem sido interpretado e como seus possíveis desdobramentos têm sido entendidos
têm assumido muitas direções, todas elas, no entanto, desenvolvidas dentro da
perspectiva de um novo quadro das relações internacionais.
Visões acerca do sistema internacional depois da Guerra Fria
Em meados dos anos 80, a obra de Richard Rosecrance intitulada The Rise of the
Trading State6 despertou grande interesse entre os estudiosos das relações
internacionais. Seu argumento central consistia na idéia de que o mundo
político-estratégico estaria cedendo lugar ao mundo do comércio, isto é, a
satisfação das demandas essenciais das sociedades estava passando a depender,
cada vez mais, da qualidade das relações econômicas internacionais mantidas
pelas nações e cada vez menos da capacidade estratégico-militar. O mundo
político-estratégico, assentado sobre as noções de segurança de base
territorial, argumenta Rosecrance, estava, rapidamente, cedendo espaço para o
mundo do comércio, que permite às sociedades obter, por via pacífica, todas as
matérias-primas e bens de que necessitam para assegurar a satisfação de suas
necessidades de bem-estar e de progresso. Nesse quadro, a satisfação das
necessidades materiais das nações passava, portanto, a depender muito mais de
bons portos e de uma economia bem administrada do que dos tradicionais recursos
de poder militar.
A experiência de quatro décadas, após a Segunda Guerra Mundial, revelava dados
que corroboravam fortemente essas percepções. Entre as nações consideradas bem
sucedidas, havia uma lista crescente de países com escassos recursos naturais.
Alemanha e Japão eram apenas os casos mais notáveis. Na Europa, a partir do
núcleo constituído pelos seis países que originaram a Comunidade Econômica
Européia - CEE, o dinamismo econômico não se verificava apenas no campo da
indústria e das finanças, mas passava a se estender até mesmo para o campo da
agricultura, atividade que, tradicionalmente, era entendida como típica de
países com grandes extensões de terra. Além disso, em que pese a comprovação de
acusações de forte protecionismo contido na Política Agrícola Comum feitas
pelos Estados Unidos e pelos países em desenvolvimento contra os países da CEE,
a médio e longo prazos, não seria possível sustentar essa política a menos que
as economias dos países da CEE possuíssem dinamismo suficiente para arcar com
seus custos. Esses custos poderiam ser transferidos para a economia desses
países na forma de preços domésticos mais elevados ou de subsídios
governamentais que, naturalmente, teriam de ser alimentados por impostos e
taxas cobrados de outras atividades econômicas, onerando, de qualquer modo, a
sociedade e seu sistema econômico.
O fato é que a Europa industrial passava a apresentar consideráveis superávits
na agricultura e o que tornava o argumento de Rosecrance mais plausível era o
fato de que, comparativamente, os grandes países do Terceiro Mundo conseguiam
resultados muito modestos e, além disso, no âmbito dessa categoria de países,
as economias que mais se destacavam em termos de progresso econômico eram
justamente aqueles notavelmente pobres em recursos naturais: os chamados Tigres
Asiáticos. Outro argumento era o fato de que Japão e Alemanha, totalmente
dependentes das importações no que tange às suas enormes necessidades de
petróleo, não sofreram abalos significativos, ao longo da crise energética dos
anos 70, enquanto os grandes países do Terceiro Mundo, mesmo os exportadores de
petróleo, se viram imersos em um longo período de estagnação econômica e de
endividamento que se estende até nossos dias. A conclusão geral é a de que os
fatores tradicionais de produção (terra e mão-de-obra) deixavam de ser
considerados estratégicos para a realidade emergente.
Uma linha de explicação para essa redução da importância relativa dos
tradicionais fatores de produção era oferecida por Peter Drucker que, também em
meados da década de 80, escrevia um artigo na revista Foreign Affairs sobre as
mudanças na economia mundial.7 Drucker argumentava que, entre os aspectos que
caracterizavam essa nova economia destacavam-se alguns "desacoplamentos",
gerando conseqüências para o comércio, para as finanças e para a distribuição
dos empregos no mundo. Entre esses desacoplamentos, três seriam especialmente
relevantes para a explicação da perda de importância relativa dos fatores
tipicamente de base territorial: a) a mão-de-obra deixara de ser fator
determinante dos custos de produção; b) o aumento da produção industrial havia
se "desacoplado" das necessidades de matérias primas; c) os fluxos financeiros
e o mercado de divisas deixaram de estar atrelados ao comércio internacional.
Essas mudanças seriam uma decorrência de mudanças tecnológicas que alteraram,
em um curto espaço de tempo, os padrões de produção e de competitividade. Outra
conseqüência inevitável foi o alargamento da distância entre os países
industrializados e as economias do então chamado Terceiro Mundo, que se
assentavam fortemente sobre as exportações de uns poucos bens primários e
produtos manufaturados de baixo valor agregado.
Embora houvesse algum otimismo em relação à possibilidade de que os avanços
tecnológicos não significassem redução nos níveis de emprego, dados históricos,
muito anteriores à crise do sistema Bretton Woods, mostravam que, depois da
crise dos anos 30, era possível observar a existência de um "resíduo
tecnológico" que explicava pelo menos 1/3 dos aumentos da produção nos Estados
Unidos, isto é, o aumento da força de trabalho e os investimentos de capital
explicavam apenas 2/3 e não a totalidade dos aumentos da produção.8 Com os
avanços tecnológicos dos anos 70 e 80 essa tendência apenas tornou-se mais
acentuada seja com o uso cada vez mais intensivo da automação, seja com a
introdução de novas técnicas gerenciais, inicialmente pelo Japão e, depois, por
todos os principais centros dinâmicos da economia internacional.
No que se refere ao "desacoplamento" entre a produção industrial e o consumo de
matérias primas, um estudo publicado na revista Scientific American, em 1986,
com o título de Beyond the Era of Materials, analisava, entre outros itens, o
emprego do aço na economia americana mostrando que de 1880 a 1930 o consumo de
aço crescera de 70 kg para 200 kg para cada US$ 1.000 do PNB e que, no entanto,
a partir de 1930 essa quantidade de aço consumida para cada US$ 1.000 do
produto passa a declinar até voltar, em 1980, aos mesmos níveis de cem anos
atrás.9
A importância dos fluxos financeiros para o comércio sempre foi reconhecida. A
visão tradicional da análise econômica, todavia, considerava o comércio como um
estimulador desses fluxos a ponto de muitos economistas considerarem o comércio
como "motor do crescimento". Em seu artigo, Drucker, no entanto, mostrava que
as transferências de fundos entre os mercados financeiros do mundo
ultrapassavam em dezenas de vezes o valor do comércio internacional. Esse fato
significava que, em última instância, esses fluxos não dependiam do comércio,
sendo mais plausível entender que, ao contrário, a movimentação de fundos
passava a ter capacidade de influenciar os mercados de bens e serviços
internacionais. Desse modo, os principais centros financeiros do mundo, e não
os países territorialmente bem aquinhoados, cada vez mais, aumentavam seu poder
de orientar os fluxos de comércio internacional.
Na verdade, desde os primórdios da modernidade, o argumento de que o comércio
(e por extensão, o mundo das transações econômicas) poderia substituir a
pilhagem e a conquista pela força vem recebendo a atenção de pensadores
diversos. De acordo com a chamada tese do "suave comércio", isto é, do comércio
como atividade moral que, no dizer de Montesquieu, pelo seu poder civilizador,
suaviza os costumes tornando as pessoas e os povos menos belicosos. Essa tese
foi incluída por Kant em seu Projeto de Paz Perpétua, escrito em 1795, como um
dos pré-requisitos para que essa paz perpétua pudesse ser alcançada. Em
conseqüência, o desenvolvimento do comércio, na formulação de Kant, desfruta de
importância semelhante àquela atribuída à democracia, à consciência de
cidadania universal e ao respeito a códigos de conduta na guerra em termos
humanitários.
No início dos anos 90, indubitavelmente, O Fim da História de Francis Fukuyama
produziu enorme impacto sobre a reflexão política em todo o mundo.10 Suas
observações partiam da constatação de que as chamadas sociedades pós-históricas
(que o sociólogo Daniel Bell chamava de pós-industrial) se caracterizam por
compartilhar um conjunto comum de valores e aspirações baseados na democracia e
na liberdade individual e, por essa razão, estariam fadadas a eliminar o uso da
força militar como forma de resolver suas divergências. Conflitos continuariam
a aparecer, mas estariam restritas ao âmbito de instâncias como o G-7 e o GATT
(na época em que escreveu o livro, a Organização Mundial do Comércio - OMC
ainda não existia).
Além do título, extremamente provocante para a reflexão acadêmica, talvez o que
mais tenha motivado respostas quase indignadas às suas formulações é a visão
bastante pessimista a respeito do destino humano contida em seus argumentos. De
acordo com Fukuyama, a vida do "último homem" terá o tédio por característica.
No mundo pós-histórico, o homem está fadado a ter uma vida sem privações e de
relativa fartura, onde todos possuem mais do que o necessário para suas
necessidades de sobrevivência, mas também será uma vida sem sonhos, sem ideais.
Nas sociedades pós-históricas, os homens não estarão mais fazendo história, mas
simplesmente se ocupando de cuidar dos museus, onde são guardadas as memórias
da história construída e acabada. Ao lado desse mundo, sem privações, mas
enfadonho, continuaria a existir um mundo histórico, mais numeroso, repleto de
religiões e ideologias muitas vezes excludentes e violentas, e também cheio de
privações, focos de doenças endêmicas e bolsões de pobreza. O mundo pós-
histórico, contudo, argumenta Fukuyama, de posse da maior parte da riqueza, da
tecnologia e dos recursos de poder, perpetuará seu predomínio sobre o mundo
histórico.
De certo modo, a indignação com que as teses do "fim da história" foram
recebidas se assemelham ao que aconteceu com Malthus dois séculos atrás, quando
seus contemporâneos (e, de certa forma, até hoje) passaram a vê-lo como um
mensageiro de más notícias e, pior, entendendo que o cenário traçado, no fundo,
refletiria, de alguma forma, o desejo do autor e não constituiria simplesmente
uma interpretação de possíveis desdobramentos das forças econômicas e sociais
em ação. De qualquer modo, independentemente de se aceitar ou não os argumentos
de Fukuyama, seu trabalho também pressupõe, implicitamente, a filosofia contida
na tese do "suave comércio" de pensadores como Montesquieu e Kant, ou do
"estado mercador" de Rosecrance.
Logo após a publicação do Fim da História, de Fukuyama, Samuel Huntington
sugeria que seria um equívoco imaginar que as disputas entre unidades políticas
possam ser limitadas ao campo do comércio e à busca do bem estar material em
bases universais. Na visão de Huntington, especialmente depois do fim da Guerra
Fria, com as ideologias que a sustentavam perdendo importância, as diferenças
culturais entre os muitos povos do mundo teriam passado a ser centrais para a
política internacional.
Com efeito, muitas dessas diferenças vêm assumindo feições tragicamente
conflituosas, sendo o fundamentalismo islâmico apenas uma entre as muitas
manifestações possíveis. Na visão de Huntington, fatores que permaneceram
reprimidos ou camuflados por muito tempo, tais como heranças ancestrais,
tradições, língua e religião, tendem a desempenhar papel cada vez mais decisivo
para a redefinição das identidades nacionais e também para a formulação de
objetivos e metas de política externa. Em unidades políticas multi-étnicas essa
redefinição pode resultar em conflitos separatistas com grande potencial para
se estenderem regionalmente, envolvendo outros países onde as etnias em choque
se façam presente.
Em The Clash of Civilizations, esse autor argumenta que há no mundo sete ou
oito grupos de culturas ou civilizações de maior expressão e que as grandes
potências da atualidade pertencem a diferentes grupos. "A questão chave na
agenda internacional, argumenta Huntington, envolve diferenças entre
civilizações. O poder está se transferindo, depois de muito tempo, do Ocidente
para as civilizações não-ocidentais. A política mundial tornou-se multipolar e
multi-civilizacional".11 Ao longo da história, sempre que ocorreu o fenômeno da
transferência de poder, invariavelmente, o meio internacional se tornou mais
instável, face ao inevitável surgimento de políticas revisionistas a respeito
de fronteiras, direitos sobre regiões e fontes de recursos naturais, e outras
demandas potencialmente geradoras de conflitos. Huntington argumenta que o meio
mais eficaz de trazer mais estabilidade ao sistema internacional seria uma
combinação de políticas não intervencionistas, por parte das potências, com um
arranjo "inter-civilizacional" que congregasse as nações líderes daqueles sete
ou oito grupos mais expressivos de culturas ou civilizações. Na sua avaliação,
as instâncias internacionais, hoje existentes, foram concebidas dentro de uma
outra época e não contemplam a multipolaridade e muito menos a variedade multi-
civilizacional identificadas em The Clash of Civilizations.
Uma outra linha de interpretação a respeito dessas mudanças é aquela que
entende que o sistema internacional não está mudando, mas está chegando ao seu
fim. Segundo essa interpretação, o estado nacional, nascido a partir do colapso
da ordem medieval, está em franca decadência e fadado a ser substituído por uma
sociedade global. O sistema internacional que nos é familiar, em sua essência,
é a projeção política de categorias tradicionais como estado, classe social e
nação e, por essa razão, não é capaz de assimilar a dimensão planetária que os
processos sociais vêm assumindo em praticamente todos os campos. Dessa maneira,
a tradicional associação entre povo, território e governo soberano, no
entendimento desses novos globalistas, perde continuamente seu significado na
medida em que mercados se interligam de modo crescente, corporações industriais
e financeiras têm seu raio de ação definido em termos de mercados globais,
questões como meio ambiente e narcotráfico não podem ser tratados nos limites
territoriais de um estado, e redes de comunicação interativa se estendem por
todo o planeta. Nesse quadro, as fronteiras definidas pela geografia política
tornam-se cada vez mais porosas, os governos nacionais perdem sua eficácia e
novos atores têm se tornado cada vez mais importantes na definição do
relacionamento entre povos e regiões. Essa nova realidade, de acordo com essa
visão, precisa estar refletida nas instituições políticas.
Nessa linha de entendimento, desenvolve-se a idéia de que o tradicional sistema
de Westphalia, constituído de estados nacionais soberanos, estaria sendo
minado, rapidamente, por um processo de construção de instituições de
governabilidade global. Em outras palavras, entidades nos vários campos das
relações entre indivíduos e grupos vão assumindo a administração dos fluxos de
comércio, das finanças, da disseminação de tecnologias, dos fluxos e
processamento da informação, etc. Essa governabilidade incluiria também outras
questões amplas e diversificadas como narcotráfico, proteção dos direitos
humanos, direitos do consumidor e mesmo segurança internacional.
O argumento do fim do sistema de Westphalia começou a ganhar forma mais
definida no princípio dos anos 90 e, entre os argumentos surgidos nessa época,
destaca-se a idéia de que, face às mudanças em curso decorrentes de uma
inusitada aceleração do avanço tecnológico, o estado estaria se tornando uma
instituição disfuncional. Kenichi Ohmae, em artigo intitulado The Rise of the
Regional State, publicado na revista Foreign Affairs(1993), argumentava que o
estado havia se tornado demasiadamente grande para administrar questões de
alocação de recursos produtivos e questões sociais, incluindo-se emprego,
instrução, moradia, segurança pública, etc. Nessas questões as empresas e as
comunidades locais seriam capazes de melhor entender e dimensionar as questões
por estarem muito mais próximas dos problemas, sendo também estruturas muito
mais leves e menos dispendiosas tanto nos processos decisórios quanto no manejo
dos recursos necessários.
Por outro lado, continua o argumento, o estado tornou-se pequeno demais para
administrar questões de natureza global ou regional. Meio ambiente, mercados
internacionais de bens e serviços, fluxos financeiros, regimes monetários,
desenvolvimento e transferência de tecnologia, sistemas de informação, etc.,
seriam casos que, tipicamente, só poderiam ser tratados por meio de
organizações e instâncias que transcendessem os limites dos estados nacionais,
que compõem a atual geografia política, e sobre os quais se assenta a concepção
corrente de sistema internacional. Ohmae conclui que arranjos regionais
poderiam ser uma resposta mais eficaz às demandas de novas formas de
organização política.
Nessa perspectiva, a União Européia pode ser considerada um exemplo, em estágio
mais avançado, de arranjo mais adequado ao tratamento de questões que,
caracteristicamente, afetam toda uma região. Sua estrutura permite formular
políticas mais adequadas para problemas ambientais, emprego, seguridade social,
estabilidade monetária, e outras questões que, em geral, afetam regiões
inteiras e não apenas países individualmente. Ao mesmo tempo, conclui o
argumento, mecanismos baseados no princípio da subsidiaridade contidos na União
Européia, permitem às comunidades tratarem questões locais ou limitadas a áreas
específicas como transporte local, limpeza urbana ou segurança pública, de
maneira mais apropriada e menos dispendiosa. Nesse arranjo a noção de
soberania, tradicionalmente associada à figura do Estado Nacional, passa a ser
institucionalmente diluída e o exercício da autoridade, por sua vez, se
distribui por diferentes níveis ou instâncias, dependendo da questão em pauta.
A outra vertente de analistas que entendem que o sistema de Westfália estaria
vivendo seu ocaso, desenvolve a idéia da construção de uma estrutura de
governabilidade global e tem sua expressão mais elaborada na área do meio
ambiente. Na verdade, de uma forma mais precisa, os formuladores dessa visão
não argumentam que, necessariamente, o Estado tenha que desaparecer. Observam,
no entanto, que, além de ter que dividir espaço com muitos outros atores, o
Estado deverá sofrer revisões bastante drásticas em seus papéis e em suas
instituições, sobretudo no que diz respeito às prerrogativas de soberania,
tradicionalmente associadas à noção de Estado Nacional. Assim, indivíduos,
instituições e organizações sociais se globalizam não apenas em decorrência da
emergência de problemas com dimensões globais, mas também em razão do
estreitamento das distâncias e dos mercados, pela permanente revolução nos
meios de comunicação e transporte. Esse fato faz com que as instâncias
políticas também sejam obrigadas a acompanhar esse processo.
Esses analistas entendem, portanto, que o Estado Nacional em sua concepção
tradicional, que privilegia a noção de soberania, constitui um entrave ao
estabelecimento de arranjos ou regimes que facilitem o tratamento de questões
globais e permitam que as sociedades tenham condições de se beneficiar dos
desenvolvimentos e dos conhecimentos produzidos de modo interativo em
diferentes partes do mundo. Privilegiar a soberania, impedindo a integração de
mercados, segundo essa visão, é condenar as empresas ao atraso, à ineficiência
e, conseqüentemente, no longo prazo, à redução da própria produção e da renda.
Paralelamente, sob a denominação de regimes internacionais, desenvolveu-se nos
anos recentes várias formulações com vistas à abordagem de várias questões da
atualidade. Notadamente no campo do meio ambiente, essa abordagem vem se
configurando em torno de temas como mudança climática, regiões polares e
aproveitamento de recursos naturais dos oceanos e do espaço cósmico. Oran
Young, destacado estudioso dessa ótica, em seu livro International Governance.
Protecting the Environment in a Stateless Society (1994) procura reunir a base
teórica e conceitual da abordagem dos regimes internacionais aplicados às
questões ambientais. Sua formulação parte do pressuposto de que há uma
distinção entre governo e sistemas de governança (ou governabilidade, segundo
alguns autores). Sistemas de governança seriam as instituições e normas que
orientam as ações e atitudes de indivíduos e grupos em relação a certas
práticas sociais enquanto os governos seriam as organizações e os meios
materiais que permitem o exercício da governança. A partir dessa distinção,
Young argumenta que, sob certas condições, os governos podem se revelar não
apenas ineficazes ou ineficientes para o sistema de governança, mas podem ser
até mesmo desnecessários. Em seu lugar, arranjos transnacionais poderiam
revelar-se muito mais eficazes.
A grande dificuldade dessa ordem de argumentos é a distribuição dos custos e
responsabilidades. A implementação de arranjos transnacionais exigirá gastos e
implicará também o emprego de instrumentos de coerção, isto é, em que medida
iniciativas originárias de instâncias transnacionais que contrariem os
interesses de atores de maior peso político serão efetivamente implementadas?
Por outro lado, nações menos poderosas temem que essa forma de entender o meio
internacional acabe servindo apenas para justificar ações intervencionistas das
grandes potências.
Algumas iniciativas de alcance bastante amplo no sentido de estabelecer regimes
internacionais para áreas típicas de interesse internacional têm sido levadas a
efeito no campo das comunicações, da exploração espacial, do estabelecimento de
bases na Antártida e, mais recentemente, na questão da mudança climática. Na
verdade, nesses campos, os regimes internacionais têm sido formulados não a
partir do pressuposto da "disfuncionalidade" do Estado, mas sim a partir da
ação das soberanias ou na expectativa de que essas tradicionais soberanias
sustentem sua implementação. Nas negociações do Protocolo de Kyoto, por
exemplo, é interessante observar que a posição do Governo dos Estados Unidos a
respeito das questões referentes à mudança do clima no planeta não coincidia
com muitas das cláusulas incluídas no Protocolo. Os negociadores americanos, no
entanto, acabaram por aceitá-las e, talvez mais importante, a implementação do
regime estabelecido no Protocolo depende diretamente da disposição do Governo
dos Estados Unidos e também dos Governos de outras importantes nações
industrializadas que, assim, em última instância, acabam por se constituírem,
nos verdadeiros garantes do Protocolo.
O multilateralismo em um ambiente de opções variadas
As várias visões acerca de possíveis lógicas que estariam movendo os fenômenos
internacionais também têm sua correspondência no jogo de forças e no quadro
institucional das relações internacionais. Por essa razão cabe discutir, ainda
que de maneira breve, a questão do bilateralismo e multilateralismo na ordem
internacional e a sua relação com as mudanças na distribuição do poder no
quadro da política internacional nas últimas décadas.
Do ponto de vista do jogo de forças dominante nas relações internacionais,
fala-se que o mundo que emergiu da Segunda Guerra Mundial foi um mundo bipolar.
Embora essa afirmação não seja incorreta, pode levar a uma idéia simplista, ou
até mesmo equivocada, do significado dessa bipolaridade para as relações
internacionais. A ordem bipolar deve ser entendida tanto na sua amplitude
quanto na sua variação de intensidade ao longo do tempo. No pós-guerra
imediato, apesar da criação da Organização das Nações Unidas, como entidade
universal, de fato, houve também a formação de dois blocos antagônicos com
percepções opostas sobre a segurança internacional, resultando na estruturação
das duas alianças militares: a Organização do Tratado do Atlântico Norte e o
Pacto de Varsóvia.
O surgimento dessas alianças rivais tornou-se, do ponto de vista da
estruturação da ordem internacional, uma força francamente conflitante com o
universalismo da ONU, criando enormes dificuldades para tornar mais eficazes os
instrumentos de ação da entidade. Por exemplo, o emprego sistemático do direito
de veto por parte dos membros permanentes praticamente paralisava as ações do
Conselho de Segurança, uma instância essencial no processo decisório da
organização. Entre 1946 e 1990, esse direito foi utilizado 279 vezes (124 vezes
pela URSS, 82 pelos EUA, 33 pelo Reino Unido, 22 pela China e 18 vezes pela
França).12 Em outras palavras, quanto mais fundamental e mais ameaçadora fosse
uma crise ou foco de tensão em termos da estabilidade internacional, mais
difícil era a obtenção do consenso no Conselho e, conseqüentemente, mais
difícil valer-se da ONU como instrumento de solução de disputas internacionais.
Isso explica em grande parte porque a maioria das questões importantes de
segurança internacional era conduzida à margem da ONU e o balanço de poder
entre as forças da OTAN e do Pacto de Varsóvia tornava-se fator decisivo para a
acomodação dos interesses que envolviam diretamente as grandes potências.
Outro aspecto, que também reforça a importância da influência de uma ordem
bipolar ao longo do quarto de século que se seguiu ao fim da Segunda Guerra
Mundial, é o fato de que iniciativas políticas dos EUA e da URSS tinham
fundamento nessa visão da política internacional. Todo o processo de
descolonização foi desenvolvido à sombra desse jogo de forças e a maioria dos
envolvimentos das duas superpotências em conflitos localizados só podia ser
explicada a partir desse quadro. Iniciativas levadas a efeito em regiões tão
distantes como o TIAR (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca),
assinado no Brasil (Petrópolis, 1947) e a ajuda americana à Índia, em 1962, na
guerra contra a China, pela posse de território fronteiriço na região do
Himalaia, foram casos típicos que refletem a força da Guerra Fria como
condicionante da ação política no contexto internacional no primeiro quarto de
século que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Entretanto, o mesmo quadro visto sob outro ângulo assume outra feição. No campo
econômico, na prática, o mundo se apresentava unipolar. Uma vez feita a opção
no sentido de pertencer a uma das alianças, as relações exteriores desses
países estariam, automaticamente, condicionadas à política externa da potência
hegemônica do bloco. No caso dos países do bloco soviético, não havia ilusões a
respeito de possíveis opções de política comercial e financeira. O COMECON,
mais do que um arranjo de cooperação econômica entre os países do bloco
soviético, estabelecia os limites da ação econômica desses países. Na verdade,
os planos econômicos elaborados em Moscou estipulavam metas e quotas de
produção e consumo para todos os países do bloco.
No lado da aliança ocidental, o cenário da política internacional se
apresentava mais difuso, com a possibilidade de alianças políticas e comerciais
serem feitas dentro e fora da área de influência direta dos Estados Unidos.
Esta era, contudo, apenas uma possibilidade e, por muitos anos, essa
possibilidade revelara ser, na prática, muito remota em razão da enorme
concentração da capacidade financeira e comercial na economia americana.
Somente cerca de duas décadas depois do fim da guerra essa possibilidade de
diversificação vai se tornar uma alternativa viável. Até meados dos anos 60, a
predominância da economia americana era evidente sob qualquer prisma.
Toda a ordem econômica internacional estruturada na esteira da Segunda Guerra
Mundial foi baseada na posição hegemônica da economia americana: no campo
monetário, o dólar passara a ser a moeda-chave do sistema; no campo financeiro,
a economia americana era a maior credora internacional e a única a dispor de
poupança suficiente para investir na reconstrução e desenvolvimento; no
comércio, os Estados Unidos eram o único país em condições de prover a Europa e
o mundo com bens essenciais, além de ser também o único com capacidade de
realizar importações em níveis significativos para promover a recuperação
econômica internacional.
Na Conferência de Bretton Woods, Keynes e outros negociadores reconheciam essa
centralidade da economia americana. Na verdade, a proposta de Keynes para a
estruturação de um sistema monetário para substituir o padrão ouro previa a
necessidade dos Estados Unidos proverem cerca de US$ 25 bilhões para cobrir a
falta de liquidez internacional. Depois de Bretton Woods, a reconstrução da
economia européia vai ocorrer à sombra dos recursos proporcionados pelo Plano
Marshall. A partir dos anos 50, os programas de desenvolvimento internacional
vão ser fomentados, em termos bilaterais, diretamente pela agência de
desenvolvimento dos Estados Unidos (USAID), ou multilateralmente, por meio do
Banco Mundial, cujos recursos eram também, em sua maior parte, americanos.
Iniciativas como a criação da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o
Comércio e Desenvolvimento), que não tinha a participação ativa dos Estados
Unidos, apesar de ocorrer em 1964, permaneceu por muito tempo em posição
bastante secundária. Assim, apesar do surgimento de inúmeras instâncias
multilaterais, na prática, durante cerca de duas décadas os Estados Unidos se
constituíram na fonte por excelência dos recursos para os programas de
investimento no desenvolvimento internacional.
Somente na década de 60, a recuperação da Europa e do Japão vai se completar,
transformando-os em novos centros de dinamismo da economia mundial. A partir de
então, o cenário internacional passa a exibir, gradativamente, um novo perfil
do multilateralismo ou, mais precisamente, um multilateralismo de fato, pelo
surgimento de alternativas reais à economia americana dentro de um quadro mais
amplo de reorganização do sistema internacional. Se, de um lado, Europa e Japão
davam início a um longo período de crescimento, ganhando espaço no comércio
internacional e com suas moedas e suas finanças também ganhando espaço e
credibilidade internacional, a economia americana, apesar do bom desempenho em
termos de crescimento e apesar de viver um dos períodos de maior prestígio,
começava a encontrar suas primeiras dificuldades.
Os Estados Unidos, em certa medida, passaram a viver uma situação semelhante
àquela que a Inglaterra havia vivido nas três décadas que precederam a guerra
de 1914-18, quando o seu prestígio internacional estava no zênite, mas, em
termos relativos, a economia britânica revelava uma tendência secular
declinante em seus padrões de competitividade internacional. Com efeito, no
final da guerra, os Estados Unidos detinham quase três quartos das reservas de
ouro do mundo e esse fato decorria da posição credora da economia americana,
que havia sido favorecida por muitos fatores: a elevada produtividade, as
vantagens de um grande mercado doméstico, a guerra que havia atingido de modo
muito mais severo as economias européias, etc.
Em meados dos anos 50, os Estados Unidos eram, efetivamente, a única economia
de massa do mundo. "A Europa e o Japão entraram, pois à moda respectiva de
cada um na década de 20 dos norte-americanos..." escrevia W. W. Rostow em
1958, referindo-se ao fato de que, na década de 20, isto é, 30 anos antes, os
Estados Unidos haviam vivido essa primeira onda de industrialização típica da
sociedade de consumo de massa.13 Essa situação explica porque o dólar seria a
moeda chave na ordem de Bretton Woods, mas, paradoxalmente, no momento em que
Rostow expunha essas idéias, o nível das reservas de ouro dos Estados Unidos se
reduziam, ultrapassando a barreira dos 50% das reservas mundiais e, no
princípio da década de 60, esse fato passava a ser apontado pelos analistas
como problemático para a estabilidade do sistema monetário internacional.14
Por outro lado, países como o Brasil, ainda no início dos anos 60, com a
política externa independente, já manifestavam insatisfação com a agenda
internacional onde predominavam as questões Leste-Oeste, típicas da Guerra
Fria, insistindo, sem sucesso, na necessidade de que essa agenda fosse
modificada, dando mais atenção ao desenvolvimento econômico dos países que
passavam a ser identificados como Terceiro Mundo. A convocação da UNCTAD e a
sua transformação em instância permanente tiveram motivação semelhante, isto é,
refletiam a insatisfação dos países em desenvolvimento em relação aos padrões
predominantes na política internacional.
A convocação da Rodada Kennedy, em 1963, tinha entre seus objetivos principais
a revisão dos padrões de comércio entre os Estados Unidos e a Europa. Os
déficits comerciais dos EUA, que no rastro do Plano Marshall eram vistos como
parte importante da estratégia de recuperação da Europa, passavam a ser vistos
cada vez mais como problemáticos para a economia americana e mundial. Assim, as
transformações nas bases de sustentação da ordem econômica internacional
continuavam a avançar rapidamente e apareciam na forma de crescentes
dificuldades da economia americana até que, no início dos anos 70, os padrões
de conversibilidade estabelecidos em Bretton Woods tornaram-se insustentáveis.
Com efeito, o fim da conversibilidade do dólar em 1971, identificado como o fim
do próprio sistema Bretton Woods, na verdade, era a expressão eloqüente desse
processo de perda da posição relativa da economia americana no mundo.
Responsabilidade e manejo da ordem internacional
A estabilidade na ordem internacional é sempre transitória. O meio
internacional está sempre em transformação mesmo quando existem forças capazes
de serem caracterizadas como hegemônicas. Ainda nos anos 60, em face das
condições difíceis de se implementar uma política externa para o Brasil no
contexto da rivalidade leste-oeste, Araújo Castro falava de um "congelamento do
poder mundial", onde tanto Estados Unidos quanto União Soviética estariam
igualmente interessados na manutenção do status quo internacional.15 Apesar de
tudo, desde então, o sistema internacional passou por grandes e contínuas
transformações, muitas delas impensáveis como, por exemplo, o próprio colapso
da União Soviética. O recurso da análise teórica pode ajudar a compreender essa
característica da ordem internacional.
Num congresso onde se discutia perspectivas para as ciências sociais, a
professora de economia A. M. Bianchi apresentou um trabalho muito sugestivo
sobre as Ciências Econômicas intitulado Of clouds, clocks, and the hardest of
the soft sciences.16 Bianchi retoma o argumento de Popper de que existem,
basicamente, sistemas de dois tipos: os sistemas que tendem a relógio e aqueles
que tendem a nuvem. Bianchi aplicava essa analogia ao caso da Economia, mas
certamente poderia ser estendida às demais áreas do conhecimento.
As chamadas ciências humanas sempre sofreram de um complexo de inferioridade
por não conseguirem, como as ciências físicas, desenvolver métodos e teorias
que assegurassem a mesma precisão e previsibilidade dos fenômenos observados. A
idéia de que os fenômenos, inclusive os físicos, podem ser distribuídos em um
continuum que vai do sistema que se assemelha a um relógio de precisão até
aquele semelhante a uma nuvem ou enxame de insetos, torna mais fácil aceitar as
"imprecisões" das ciências sociais. Com efeito, o fato das nuvens serem
fenômenos irregulares, desordenados e, em larga medida, imprevisíveis, não
desqualifica o trabalho do meteorologista.
Do mesmo modo, as relações internacionais estão longe de serem fenômenos do
tipo relógio havendo, no entanto, uma série de referenciais que ajudam na sua
compreensão. Assim como a umidade do ar e a direção e a intensidade dos ventos
constituem indicadores importantes e de grande objetividade para o
meteorologista, para o analista das relações internacionais, fenômenos como a
modificação nos fluxos de comércio, o aumento dos investimentos em defesa ou a
emergência de movimentos nacionalistas também constituem referencias
importantes e bastante objetivos para a avaliação do meio internacional.
É considerando esses referenciais de análise que dois aspectos merecem ser
destacados para o entendimento do quadro das relações internacionais neste fim
de século: o paradoxo do bem comum e o descompasso crescente no desenvolvimento
das regiões. O paradoxo do bem comum, também conhecido como paradoxo de
Olson,17 pode ser um pressuposto para se compreender as dificuldades de se
estabelecer arranjos internacionais mais eficazes e o descompasso no
desenvolvimento das regiões, como força impulsionadora de mudanças contínuas,
ajuda a compreender o caráter eminentemente instável da ordem internacional.
O paradoxo de Olson
As questões da agenda internacional, em especial aquelas que se referem à
promoção dos direitos humanos e aquelas que se referem à melhoria da qualidade
de vida no planeta como um todo, estão sujeitas ao paradoxo de Olson. De
maneira simplificada, esse paradoxo pode ser formulado da seguinte forma:
quanto mais amplo e geral for o interesse de indivíduos e grupos sobre uma
determinada questão, menos indivíduos e grupos estarão dispostos a participar
efetivamente na sua implementação, destinando esforços e recursos para esse
fim.
O argumento de Olson, estruturado a partir da análise de grupos sociais,
notadamente sindicatos, baseia-se na idéia de que, quando há a percepção de que
uma determinada questão interessa a um grande número de pessoas ou
organizações, haverá sempre uma forte tendência à disseminação de um
comportamento do tipo "carona" (free rider), à espera de que outras pessoas ou
organizações realizem o esforço de implementar as medidas necessárias e, assim,
ganhar os benefícios sem ter gasto tempo e recursos. A tendência à atitude de
"carona" deverá ser tanto mais forte quanto maior for o universo de
interessados e quanto menor for a possibilidade de que os ganhos não sejam
particularizados. Isto é, um aumento de salário obtido por um sindicato é
extensivo a todos os trabalhadores da categoria, não importando o nível de
participação ativa de cada indivíduo dessa categoria na luta salarial. Esse
fato, de acordo com Olson, explica a grande dificuldade das lideranças
sindicais em conseguir adesões para iniciativas que incluam riscos e gastos
como a organização de piquetes em porta de fábricas para assegurar a eficácia
de um movimento grevista. Deixar de comparecer ao trabalho pode implicar custos
como a perda do pagamento e, no caso dos ativistas, até a perda do emprego,
além de ter de enfrentar possíveis ações repressivas da polícia. Entretanto, ao
final, qualquer benefício auferido pelo movimento será estendido a todos os
trabalhadores, mesmo àqueles que não tiveram nenhuma participação no movimento
grevista.
Nessa linha de raciocínio, os bens públicos apresentam as características mais
perfeitas para estarem sujeitas a esse paradoxo e, na agenda internacional, a
estabilidade, os direitos humanos, a qualidade ambiental são, tipicamente, bens
que devem interessar "igualmente" às nações. Por que um país relativamente
pobre deve adquirir equipamentos e realizar investimentos por um "meio ambiente
limpo" quando a sociedade é carente de muitas outras prioridades básicas? Em
que medida cada país, individualmente, se beneficia da paz internacional? Por
que um país, ainda que seja poderoso, deve assumir responsabilidades sobre
programas internacionais de longo prazo sabendo que o futuro é incerto por
natureza? Muitas questões como essas provavelmente são levantadas pelos
governos, que dependem de votos de eleitores e do apoio de partidos políticos,
normalmente muito mais sensíveis às demandas por emprego e por crescimento
econômico do que pelos chamados temas globais.
Em grande medida, esses referenciais analíticos ajudam a explicar a atitude das
nações, especialmente das grandes potências, que vêm dando prioridade aos seus
interesses individuais mais imediatos e, sistematicamente, levantando a questão
da distribuição dos custos das iniciativas e da manutenção das atividades das
organizações multilaterais. Seja nas operações de paz, na formulação de medidas
com vistas à proteção de refugiados ou na busca de arranjos e programas de
proteção ambiental as nações tendem a não se sentir individualmente
responsáveis. Os custos devem ser divididos e, além disso, considerando-se que
as principais razões gravitam em torno de considerações morais, uma política de
envolvimento com essas questões encontra dificuldades em competir com outras
prioridades dentro do processo decisório das nações.
Mesmo nos casos em que as ameaças podem estar geograficamente próximas, como os
Bálcãs, as grandes potências européias têm se mostrado mais preocupadas em
simplesmente evitar que os efeitos dos conflitos na região se estendam para
dentro de suas fronteiras, especialmente na forma de correntes migratórias de
refugiados. A busca de soluções capazes de trazer uma estabilidade mais
duradoura para a região é politicamente mais complicada e financeiramente mais
dispendiosa e assim, dificilmente, os governos se sentem em condições de arcar
com esses custos, preferindo apoiar a "comunidade internacional" nesse esforço.
Nesse quadro, as mudanças no cenário internacional para um padrão mais
multipolarizado também trazem, inevitavelmente, mais dificuldade para o
estabelecimento de responsabilidades no manejo da ordem internacional. A
bipolaridade da Guerra Fria, como já mencionado, sugeria estratégias de
segurança e desenvolvimento internacional facilmente inteligíveis às bases
eleitorais e partidárias das lideranças políticas e, geralmente, seus
argumentos se sobrepunham sem muita dificuldade às demais demandas sociais. A
multipolarização tende a diluir essas noções e traz mais dificuldade na
distribuição de responsabilidades entre as sociedades mais poderosas.
Na Guerra do Golfo, logo após o colapso da União Soviética, em termos
militares, os recursos proporcionados pelos Estados Unidos foram
incomparavelmente maiores do que os de seus aliados, no entanto, países como o
Japão e a Alemanha pagaram considerável parte desses custos.18 O descompasso
entre o enorme interesse do Japão na contenção da política expansionista de
Saddan Hussein e na estabilização da região e os seus limitados recursos de
poder militar seriam a justificativa para esse check book diplomacy. Esse fato,
todavia, levanta também a questão do futuro das políticas de segurança: em que
medida e até que ponto o Japão estará disposto a ter sua segurança externa
dependente diretamente da política de segurança dos Estados Unidos? A questão
pode ser posta de outra maneira: até que ponto os interesses de segurança
externa do Japão e dos Estados Unidos serão convergentes?
De uma forma mais geral, o novo quadro das relações internacionais, em grande
medida, se apresenta sujeito à lógica do paradoxo de Olson. Por que os fundos,
que são arduamente disputados na distribuição dos recursos do orçamento
público, devem ser destinados à manutenção de organizações e forças
internacionais de paz? Por que as questões de segurança internacionais não são
tratadas simplesmente a partir das considerações de segurança doméstica? No
plano da ordem econômica internacional, por que empregos domésticos devem ser
sacrificados em favor de medidas com vistas à estabilidade e ao crescimento
econômico internacional? Como explicar aos deputados e aos eleitores que os
recursos destinados a programas de ajuda econômica internacional se transformam
em benefícios para a economia do país?
Os desequilíbrios internacionais
Quanto ao aumento do desequilíbrio entre as nações, como já foi mencionado,
esse fenômeno reflete uma característica intrínseca do meio internacional: os
países e regiões não vivem processos de mudança de modo homogêneo. Entre os
países, o dinamismo tecnológico varia de setor para setor e, estruturalmente,
também há a formação de focos de competência técnica e de resistência a
mudanças. Por essa razão, do mesmo modo que, ao longo do primeiro século da
revolução industrial, o mundo viu a emergência da Europa industrial, enquanto
regiões onde floresceram antigas e pujantes civilizações declinavam em termos
relativos, nas últimas décadas deste século, os centros industrializados
avançam rapidamente em termos de progresso econômico, enquanto boa parte do
antigo Terceiro Mundo se vê diante da estagnação e mesmo, em alguns casos, de
verdadeiro retrocesso. Vários países da África sub-saariana, principalmente em
razão de guerras civis, vivem o que alguns analistas chamam de déconnexion par
défault19, enquanto outros, como os países da América Latina, embora
relativamente mais estáveis e melhor estruturados em termos sociais e
políticos, participam apenas marginalmente do dinamismo tecnológico e econômico
deste fim de milênio.
Quando a noção de desenvolvimento econômico passou a ocupar destacada posição
na agenda internacional, os índices de analfabetismo eram um dos indicadores
mais importantes na definição dos padrões de desenvolvimento econômico e
social. Neste fim de século, informatização, integração a redes de comunicação
e uso intensivo de tecnologia nas atividades mais tradicionais como a agro-
pecuária tornam a alfabetização apenas um indicador social básico, que está
longe de significar a existência de condições capazes de permitir à sociedade
integrar-se efetivamente na vida econômica e social do mundo moderno. Pode-se
afirmar, em uma analogia talvez um pouco exagerada, que as sociedades mais
avançadas integram um mundo que já ultrapassou as revoluções da relatividade,
da física quântica e da microeletrônica, enquanto as sociedades periféricas
ainda tentam penetrar o universo "newtoniano". Enfim, sob muitas formas, o
salto tecnológico do último quarto de século aumentou consideravelmente a
distância entre essas categorias de sociedade.
Essa realidade, além das conseqüências imediatas em termos humanitários,
dramáticas em alguns casos, apresenta outras facetas importantes para a ordem
internacional que devem ser consideradas. A mais óbvia delas se traduz no fato
de que, no longo prazo, a ampliação desse fosso traz consigo grande potencial
de problemas uma vez que, quanto mais aumenta essa diferença, mais difícil se
torna a integração dessas regiões na ordem política, econômica e social sob a
liderança dos centros mais industrializados da América, Ásia e Europa. Esse
processo pode produzir grandes focos de pressão sobre a ordem internacional,
atingindo primeiramente as regiões mais próximas das sociedades retardatárias
e, depois, se estendendo para o meio internacional como um todo. Essas pressões
podem assumir formas corrosivas da ordem social como imigração desordenada,
tráfico de armas e de drogas ilegais e crime organizado.
No longo prazo, esse processo pode contaminar instituições centrais para as
relações sociais e a própria democracia. São cada vez mais freqüentes as
denúncias de que a "lavagem de dinheiro" vai deixando de se restringir aos
chamados paraísos fiscais para envolverem até instituições financeiras situadas
em tradicionais centros industrializados. Nesse sentido, para os Estados
Unidos, por exemplo, estabilidade e progresso econômico no México e Caribe
podem ter efeito bastante positivo sobre sua própria sociedade. Em países como
o Brasil, as preocupações com a ação dos grupos organizados em torno de
atividades ilegais são crescentes. A região do Prata deixou de ser uma área de
preocupação com eventuais questionamentos sobre limites territoriais para
tornar-se um foco de preocupações com o contrabando, o narcotráfico e outros
ilícitos que não apenas desconhecem fronteiras da geografia política, mas até
mesmo valem-se dela como forma de fugir à ação do fisco e da polícia.
Esse desequilíbrio também deve ser visto como um potencial de oportunidade de
crescimento e estabilidade para a economia internacional. Países como o Brasil
têm muitos de seus problemas sociais claramente relacionados com seus próprios
desequilíbrios sócio-econômicos, muito mais do que com o de seus países
vizinhos. A melhoria desse quadro, no entanto, pode ter influência
significativamente positiva sobre o crescimento econômico regional com efeitos
consideráveis sobre a economia internacional como um todo: a inclusão de
milhões de novos consumidores com certeza significaria uma substancial
ampliação de mercados para bens, serviços e investimentos. Nessa perspectiva, a
recuperação do dinamismo tecnológico constitui elemento fundamental para que
essa integração internacional mais ampla possa ocorrer.
Obviamente, a recuperação desse dinamismo depende essencialmente das
iniciativas individuais das sociedades, entretanto, dificuldades existentes em
termos de comércio, de acesso a recursos financeiros, além da própria
disseminação de tecnologias, poderiam ser reduzidas, facilitando, assim, a
redução do fosso tecnológico que separa as nações mais industrializadas das
sociedades menos desenvolvidas.
Muito embora a percepção dominante seja a de que a vitalidade da economia
internacional depende apenas do vigor das chamadas economias centrais, cabe
recuperar algumas lições da história. Com efeito, mesmo reconhecendo o papel
periférico que certos países desempenham no contexto da economia mundial, a
história mostra que, acompanhando a alternância dos períodos de crescimento e
de crise, as chamadas economias periféricas têm sido percebidas de modos
diferentes. Em períodos de crescimento, essas economias têm sido vistas com
certo desprezo enquanto, por outro lado, ao final de longos períodos de
crescimento, os chamados países periféricos têm sido vistos com atenção, como a
chave para a continuação do processo de expansão econômica. Ocorreu no final do
período que marcou o padrão ouro anterior a 1914 e ocorreu novamente nos anos
70 quando a crise energética pôs fim aos "anos dourados" das quase três décadas
que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Neste fim de século, apesar do otimismo corrente quanto a uma possível
manutenção de taxas de crescimento nas principais economias do mundo, há muitos
sinais de que há focos de fragilidade e vulnerabilidade nos padrões de
funcionamento da economia internacional. As elevadas taxas de desemprego
continuam difíceis de serem contidas e empresas tradicionais encontram
dificuldade para se sustentarem no mercado. No entanto, as regiões até há pouco
identificadas como Terceiro Mundo, somente poderão ter algum papel
significativo como elementos de estabilização se estiverem em condições de se
integrarem mais efetivamente à economia mundial. O potencial de investimento em
atividade econômica de baixa tecnologia está, em alguns casos, praticamente
esgotado, ou é virtualmente irrelevante em face das grandes transformações
tecnológicas das últimas décadas. No comércio mundial, por exemplo, as
commodities hoje representam apenas uma pequena parcela do total. Nas bolsas de
valores, não são mais as grandes corporações que possuem ativos em outros
países na forma de plantações e companhias de comércio de commodities aquelas
que têm as ações mais valorizadas, como ocorria até meados deste século, mas
sim as companhias de alta tecnologia.
Os investimentos nas áreas de grande conteúdo tecnológico, contudo, são
problemáticas para a maioria dos países em desenvolvimento. Esses investimentos
implicam formas diversas de transferência de tecnologia e transferências de
tecnologia somente são possíveis nos casos em que haja capacidade técnica
instalada capaz de compreender e processar tecnologias com níveis semelhantes
de complexidade, isto é, mão-de-obra adequadamente qualificada, base industrial
em condições de fornecer peças e componentes, mercado relativamente bem
estruturado, entre outras condições. Pode-se dizer que o nível de qualificação
técnica necessária a uma sociedade para receber tecnologia não difere muito do
nível exigido para promover a inovação tecnológica. Esse é, sem dúvida, um dos
motivos que explicam porque mais de 80% do comércio mundial de patentes ocorre
entre os países industrializados.
O atraso tecnológico, portanto, resulta na exclusão dos fluxos internacionais
de investimento o que leva também, inexoravelmente, à impossibilidade de que
países com estruturas tecnológicas precárias se constituam em fatores efetivos
de estabilidade e crescimento da economia internacional.
O Estado e a estratégia de inserção internacional
À guisa de conclusão, cabe uma consideração sobre as perspectivas para os
problemas aqui tratados. Neste fim de século, a complexa agenda internacional
não se diferencia muito daquela que predominava na última década da Guerra Fria
em termos de sua composição. Na verdade, a maioria das questões hoje
consideradas de destacada importância já integrava essa agenda, como são os
casos da proteção dos direitos humanos e do meio ambiente. Há, no entanto, na
atual agenda internacional, diferenças substanciais quanto à forma como essas
questões são percebidas e encaminhadas. Uma componente importante dessas
percepções em mudança refere-se aos papéis atribuídos aos atores envolvidos. Há
consenso a respeito do papel cada vez mais ativo de atores não estatais
(notadamente as organizações não-governamentais ONGs e as empresas
transnacionais) e há também uma crescente sensibilização acerca da necessidade
de que novas instâncias transnacionais sejam criadas ou antigas instituições
sejam redirecionadas a fim de tratarem, de modo mais eficaz, questões que
afligem vários países ou mesmo a totalidade do planeta. Há até mesmo alguns que
entendem que o mundo está entrando em uma fase em que a própria noção de
"relações internacionais" deveria ser substituída pela idéia de
"governabilidade global". Assim sendo, a título de conclusão, parece oportuno
tratar do papel dos principais atores no quadro das relações internacionais
deste fim de século.
Como já discutido anteriormente, sob a temática da globalização, argumentos têm
sido construídos sobre o fim do sistema de Westphalia e sobre o Estado como
instituição anacrônica. Neste momento, obviamente não cabe retomar essa
discussão, mas torna-se necessário apontar para algumas considerações
importantes sobre o papel dos atores no encaminhamento de alternativas que se
apresentam na agenda internacional.
Durante longo tempo, o Estado foi considerado como uma espécie de cornucópia de
onde deveria fluir, inesgotavelmente, soluções para os problemas que afligiam
as nações e as sociedades. No último quarto deste século, contudo, essa noção
foi sendo substituída por um sentimento de ceticismo crescente. Esse sentimento
vai se refletir na ideologia popularizada como "neoliberal", que não apenas
retoma a fé na iniciativa privada e no mercado como instrumento de alocação de
recursos, mas passa a encarar o Estado como fonte de ineficiência e
desperdício.
O Estado continua, entretanto, sendo um ator central na ordem internacional por
muitas razões, entre elas o fato de que o Estado continua sendo a garantia da
ordem tanto no plano interno quanto no meio internacional. Mancur Olson, no
livro que terminou de escrever pouco antes de sua morte, analisa o intrigante
fenômeno da riqueza e pobreza das nações.20 Por que algumas nações se tornam
ricas enquanto outras fracassam e, nos casos mais recentes, por que o fim do
comunismo na União Soviética e em outros países da cortina de ferro não trouxe
prosperidade, mas, ao contrário, muitas dessas nações estão em condições ainda
piores? O argumento de Olson é que o Estado, enquanto elemento organizador da
sociedade, tem um papel central na geração de riqueza. De sua eficácia depende
o funcionamento das empresas e a ação dos demais agentes econômicos. Em países
em que o Estado funciona mal, ou está em crise profunda em decorrência de
guerras civis ou de corrupção disseminada por suas instituições, os agentes
econômicos não encontram ambiente para desenvolver suas atividades, os
investimentos não fluem para esses países e a escassa poupança nacional tende a
migrar para outras sociedades mais organizadas. Apesar de tudo, há algumas
dificuldades importantes a serem apontadas relacionadas à capacidade do Estado
administrar as forças econômicas e sociais em ação.
Uma primeira ordem de dificuldades refere-se ao estreitamento dos limites da
capacidade de formulação de políticas econômicas em decorrência da considerável
redução ocorrida na eficácia da atividade de planejamento na administração da
economia. As transformações ocorridas, especialmente nas duas últimas décadas,
que alteraram substancialmente a velocidade das mudanças tecnológicas e os
padrões de competitividade, produziram uma nova economia política. Nessa nova
economia política são evidentes as inadequações de regimes autoritários
caracterizados por governos que se auto-denominam porta-vozes da vontade do
povo e se julgam capazes de definir objetivos e noções a respeito de
"interesses estratégicos" da nação, sem uma interação ampla, dinâmica e aberta
com as múltiplas forças em ação na sociedade.
Em outras palavras, as relações entre estado e mercado, no momento, estão
passando por profundas revisões. O planejamento econômico perdeu bastante de
sua eficácia enquanto os aspectos políticos das questões econômicas têm se
tornado centrais no processo de tomada de decisão. Por outro lado, o aumento da
incerteza e da sensação de que o potencial de instabilidade da economia
internacional cresceu têm levado os governos a pensar com ansiedade em meios de
controle. O uso da autoridade do Estado no plano doméstico e no plano
internacional tem sido freqüentemente invocado como instrumento para reduzir os
efeitos danosos de fenômenos como o da volatilidade dos fluxos financeiros.
Todavia, até agora, as iniciativas em curso ainda estão muito longe de serem
consideradas suficientemente eficazes e tranqüilizadoras. Além disso, até mesmo
no que se refere às tradicionais funções do Estado, essa fragilidade também se
evidencia para muitos países quando se considera as dificuldades de uma ordem
democrática pouco consolidada, típica da maioria dos países em desenvolvimento.
A sociedade aberta e o regime democrático têm se revelado muito mais coerentes
com as características do dinamismo econômico e social deste fim de milênio,
mas requer considerável grau de amadurecimento das instituições para que se
evitem quebras de continuidade e viabilizem programas de investimentos de longo
prazo. Nesse contexto, a vulnerabilidade das economias em desenvolvimento às
incertezas de um mercado em constante mutação aparece em toda a sua extensão na
forma de sucessivas crises. Outros aspectos igualmente importantes a serem
considerados são as incertezas que cercam os possíveis desdobramentos de
processos de mudança política em curso em países onde o desenvolvimento e a
modernização econômica convivem com regimes políticos autoritários. Qual a
probabilidade de que processos de liberalização como o da China não resultarão
em turbulência política, ao invés de desenvolvimento e integração à economia
internacional?
Conforme mencionado, a realidade que emergiu do colapso do bloco soviético
ficou muito longe das expectativas que cercavam a abertura da economia dos
países que o compunham. De acordo com Olson, ao se levantar a cortina de ferro,
ao invés de se ver surgir um vigoroso capitalismo nascente, surgiu a "máfia
russa" e um enxame de quiosques da economia informal que se espalharam
rapidamente pelas praças e outros logradouros públicos. Por outro lado,
economias em desenvolvimento, que avançaram rapidamente na industrialização sob
regimes autoritários, também encontram dificuldade no sentido de manter níveis
elevados de eficiência econômica e, ao mesmo tempo, processar a democratização
das instituições políticas. 21
Essa realidade põe em evidência a importância de que estratégias de
desenvolvimento econômico estejam associadas a iniciativas e medidas que
assegurem a consolidação da ordem democrática. No estágio atual de integração
das economias e de mudanças tecnológicas rápidas, o planejamento econômico
torna-se um instrumento de limitada utilidade. Cabem, no entanto, às agências
governamentais, novas funções essenciais com vistas à adequação das sociedades
a esse quadro. Em suma, normas ou padrões de relacionamento entre estado e
mercado devem ser revistos. A privatização constitui apenas uma dessas formas
e, além disso, não são aplicáveis a todos os casos e, tão importante quanto a
privatização em si mesma é a maneira de fazê-la. A desregulamentação, por sua
vez, é também um processo complicado, especialmente para países como o Brasil,
de grandes desequilíbrios regionais e de sistema federativo, uma vez que o
impacto da desregulamentação incide de modo diferente sobre as regiões.
O nível de institucionalização das relações internacionais tem aumentado
consideravelmente, evidenciando a necessidade de novos papéis e novas
capacitações, entre elas a de participar ativamente de foros de negociação.
Arranjos formais e regimes que procuram organizar a cooperação internacional
têm surgido nos mais diferentes setores da atividade econômica e política das
sociedades modernas. A Rodada Uruguai, por exemplo, foi marcada por duas
características emergentes nas relações internacionais. De um lado, a ampliação
da agenda de negociação traduziu-se na inclusão dos chamados "novos temas", que
associou o comércio às finanças, à propriedade intelectual e às questões
ambientais e sociais. De outro lado, o aumento do nível de institucionalização
traduziu-se na transformação do GATT em Organização Mundial do Comércio. Além
disso, os temas globais, que não podem ser abordados individualmente pelos
países, têm se revelado cada vez mais críticos para as sociedades e também têm
incluído um número crescente de países criando novas instâncias multilaterais.
Meio ambiente, clima, narcotráfico e telecomunicações são apenas alguns entre
os vários temas cujo tratamento não pode ser dissociado de sua dimensão
internacional. Desenvolvimentos como esses mostram a importância do Estado
dispor de instrumentos de negociação, de defesa de direitos e de meios para
participar ativamente na construção de regimes internacionais nos mais
diferentes domínios.
Na atualidade, diferentemente do que ocorria até duas ou três décadas atrás, é
muito difícil de se construir um paradigma claramente definido para se
caracterizar a realidade internacional. Até bem recentemente era possível
reconhecer a existência de padrões e forças predominantes no meio
internacional, notadamente a confrontação leste-oeste. Na atualidade, padrões
como "globalização" e "emergência de atores não-estatais" são difusos por
natureza, o que dificulta a formulação de políticas organicamente estruturadas.
Além disso, do ponto de vista do Brasil, a considerável complexidade alcançada
não apenas pela economia, mas pelo próprio perfil sócio-político do País como
um todo, torna inviável a busca de objetivos e metas que satisfaçam,
simultaneamente, os diferentes segmentos da sociedade. Os interesses
econômicos, políticos e culturais, tanto em relação aos parceiros tradicionais
quanto em relação a novos e potenciais parceiros, caracterizam-se pela
multiplicidade ao mesmo tempo em que, internamente, os interesses são muito
variados. As disputas recentes, genericamente designadas como "guerra fiscal",
são apenas manifestações de uma parte dessa diversidade. Essa realidade, muito
mais variada e dinâmica, representa uma considerável ampliação de
oportunidades, mas significa também maior dificuldade na construção de
estratégias de inserção internacional.
Notas
1 A. Hamilton, Report on the Subject of Manufactures, 1791.
F. List, The National System of Political Economy, 1841. Um
dos argumentos contidos nessas obras era a idéia de que o livre comércio pode
ser benéfico para as economias situadas nas duas extremidades: as
industrializados e as de base primária.
2 Ver J. M. Keynes, The Economic Consequences of Peace (1919) e também The
Economic Consequences of Mr. Churchill (1925)
3 Hans Morgenthau, "Politics among Nations". Knopf, New York, 1948. "In Defense
of the National Interest". Knopf, New York, 1951.
4 Carl von Clausewitz, "Da Guerra" (1832). Editora Universidade de Brasília,
1979.
5 E. Luard, Conflict and Peace in the Modern International System. A Study of
the Principles of International Order. Macmillan Press, London, (1968) 1988.
6 R. Rosecrance, The Rise of the Trading State: Commerce and Conquest in the
Modern World. Basic Books, New York, 1986.
7 Peter F. Drucker, Sérias Mudanças na Economia Mundial. Revista Diálogo
(USIS), n.o 2, vol. 20, 1987. Traduzido de Foreign Affairs, Spring, 1986.
8 Denison, E. United States Economic Growth. Journal of Business, vol. 35,
April, 1962, pp.109-121.
9 E. D. Larson et. al. Beyond the Era of Materials. In Scientific American,
June, 1986, vol. 254, no. 6
10 F. Fukuyama, The End of History and the Last Man. Hamish Hamilton. London,
1992.
11 S. P. Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of World
Order. Simon & Schuster , New York, 1996 (p. 29)
12 E. S. Fujita. O Brasil e o Conselho de Segurança. Notas sobre uma Década de
Transição: 1985-1995. Revista Parcerias Estratégicas, Dez./1996, pp. 95-110.
13 W. W. Rostow, Etapas do Desenvolvimento Econômico, (1958) Zahar Edit., R. de
Janeiro, 1978, 6ª edição, p. 110.
14 Robert Triffin argumentava que a maneira pela qual o sistema monetário
surgido dos acordos de Bretton Woods poderia ser mantido seria a transferência
para o Fundo Monetário Internacional dos saldos obtidos pelos países em seu
comércio com os Estados Unidos (R. Triffin, The Gold and the Dollar Crisis. The
Future of Convertibility. Yale University Press, 1960).
15 Amado, Rodrigo (Org.), Araújo Castro. Editora Universidade de Brasília,
1982.
16 Bianchi, A . M. Of Clouds, Clocks, and the Hardest of the Soft Sciences.
Trabalho apresentado no Annual Meeting of the Allied Social Sciences
Association, Anaheim, CA, 1993.
17 Olson, Mancur, The Logic of Collective Action. Public Goods and the Theory
of Groups. Harvard University Press, 1965.
18 Nessa guerra os Estados Unidos teriam deslocado cerca de meio milhão de
homens, isto é, cerca de cinco vezes mais que todos os demais aliados somados.
Além disso, provavelmente muito mais decisivo, a disparidade dos recursos
técnicos (aviões, mísseis, etc.) foram ainda maiores. (W. C. Mc Williams &
H. Piotrowski, The World Since 1945. A History of International Relations.
Lynne Rienner Pub. 1997)
19 Países como Somália, Burundi e Etiópia simplesmente se vêem abandonadas à
própria sorte, não despertando o interesse das agências de fomento ao
desenvolvimento e nem mesmo de mercadores gananciosos. Um dos casos mais
dramáticos é o de Angola que, ao longo de um quarto de século vem sofrendo as
conseqüências nefastas de uma guerra civil longa e sangrenta. Ver D. C. Bach,
Avant-propos. Afrique: la Déconnexion par Défault. Edição especial de Études
Internationales. pp. 245-251.
20 M. Olson, Power and Prosperity. Outgrowing Communist and Capitalist
Dictatorships. Basic Books, New York 2000.
21 Idem.
Maio de 2000