Terrorismo e relações internacionais
Introdução
O terrorismo das perseguições, das injustiças e das intolerâncias jamais
constituiu problema menor para a sociedade humana. Apesar disto, a quase
totalidade dos Estados, salvo raríssimas exceções, sempre pretendeu considerá-
lo como patologia marginal. Bem recentemente, a luta contra o terrorismo
internacional pontuava-se na busca de altas tecnologias, criação de complexos
contra ataques de mísseis, armas nucleares, agentes químicos, biológicos etc.
As estratégias dos Estados na cruzada contra o terror, principalmente nos
países centrais, desde a queda do muro de Berlim, transformaram-se em apáticas
e desacreditadas indústrias antiterror. Envolvidos por interesses financeiros
da indústria de informação e produção de mísseis, os serviços de inteligência
confiaram demais na alta sofisticação tecnológica. Esqueceram-se que além da
aparente vitória dos computadores contra o terror, coisas outras existem por
detrás dos biombos da mundialização; que a terra é feita de interesses. Noutras
palavras, ignoraram a História e suas velhas lições, inclusive a Guerra de
Tróia.
Todo o aparato defensivo de altíssima tecnologia, no qual o contribuinte do
mundo inteiro tanto dinheiro enterra, acabou burlado por métodos simples
atrelados ao sofisticado terrorismo financeiro, engendrados por redes humanas
dentro do território do país considerado inexpugnável e locomotiva da economia
mundial.
O cavalo de Tróia do terror, exibido bem no coração dos Estados Unidos, pela
dramaticidade de sua simbologia, pelo anonimato de seus autores, pelo
sensacionalismo da mídia na exploração das imagens da destruição, acabou maior
que o "presente de grego". Espalhou o medo e o pânico em escala jamais
concebida. Seus amargos frutos estão por ser colhidos em qualquer lugar. Daí o
esforço analítico para apresentar ao leitor da Revista Brasileira de Política
Internacional o presente esboço do complexo mapeamento teórico em busca das
tendências e causas estruturais da violência do terror na comunidade das
nações.
Novo teste da hegemonia política
A demonstração do poderio bélico dos Estados Unidos ' de seus gigantescos
porta-aviões, de sua portentosa força aérea, de suas divisões com guerreiros
fantasiados de invencibilidade ' tão enaltecido após a II Guerra Mundial,
continua penetrando diuturnamente nos lares estadunidenses e nos países sob sua
órbita de influência. Por meio da televisão e da eficientíssima engrenagem do
aparato cultural chamadoHollywood, inclusive a derrota no Vietnã é lembrada
como acidente casual de passado remoto.
Nos países comunistas, o aparato de poder era exposto mais parcimoniosamente,
ou seja, no primeiro de maio e nas suas respectivas datas nacionais. Toda esta
força conhecida, incapaz de enfrentar o terrorismo que atingiu em cheio os
símbolos da segurança e da prosperidade do capitalismo norte-americano, ou
seja, o Pentágono e as duas torres em Nova Iorque, terá contra si as iras da
manipulada opinião pública estadunidense.
O sacrifício dos limites impostos pelo estado de direito e pelo estado
democrático na luta contra o terror fere o que há de nobre, precioso e sagrado
na alma da democracia americana, ou seja, o respeito às liberdades individuais.
Opor-se ao terror consoante a filosofia democrática e a ética cristã, respeitar
os valores que se procura salvar e deixá-los fora do alcance dos terroristas é
elogiável. Mas reagir com violência semelhante, ou seja, converter a campanha
contra o terrorismo em uma espécie de outra guerra santa, que faz vítimas
inocentes com os bombardeios ao Afeganistão, desvenda as ambigüidades e a
hipocrisia da pax americana.
O colapso da moralidade
O colapso da moralidade convencional e o colapso dos princípios da segurança
humana em que também se assentam os pilares do Estado-nação levam a crer que,
de todas as deficiências da política antiterror dos Estados Unidos nas relações
internacionais, a mais grave é a desconsideração das desigualdades. Vale dizer
as desigualdades como causas estruturais, fomentadoras do terrorismo
internacional.
A forma pouco sofisticada, nada técnica politicamente falando, como começou a
ser implementada a caça aos terroristas, revela que o mundo permanece vítima de
cenas repetidas, de ações que nunca deram certo no passado. Por exemplo, em 20
de agosto de 1998, aviões dos Estados Unidos invadiram o espaço aéreo afegão
acreditando eliminar Osama bin Laden, apontado como responsável pelos atentados
contra representações diplomáticas estadunidenses em Dar es-Salam e Nairobi,
perpetrados treze dias antes.
Está sendo levado a cabo no combate ao terror, sem paralelo na história da
humanidade, um novo teste da força da hegemonia política nas relações
internacionais. O terror é um fenômeno global e seu combate há de levar em
consideração amplo espectro de posturas, longe do unilateralismo praticado pela
maior potência mundial. Pede trabalho conjunto, solidariedade e acentuada
aproximação respeitosa com outras culturas e sociedades. A luta contra o terror
exige preenchimento do déficit da human intelligence nos serviços de
informação; verdadeiros exercícios com humildade para aprender lições com
outros povos, inclusive saber falar, entender suas línguas e outras
manifestações culturais1.
A revanche armada como resposta à transnacionalidade do terror semeia
inseguranças. Faz temer pelo futuro das fronteiras nacionais: corta a confiança
no ethos da responsabilidade compartida e no princípio do respeito mútuo. Tudo
isto tonifica a quase secular doutrina intervencionista dos Estados Unidos. Em
resumo, a violência da força militar até hoje quase nada fez para cortar as
raízes do terrorismo mundial.
Com ou sem o poderio de vigilância dos Estados Unidos, a porosidade das
fronteiras nacionais sempre foi fato. Também não é de agora que são tecidas
pelo hedonismo consumista as frustrações entre os povos com baixo poder
aquisitivo. A violência e o desperdício ensinados nos filmes, e em outros
canais da cultura dominante, fortalecem as redes sustentadoras do terror.
Infelizmente quase nunca levam-se em conta as inconsistências das ações contra
o ódio étnico, de classe ou religioso.
As debilidades estruturais fomentadas pela corrupção doméstica e pela injustiça
externa são argumentos a favor da luta de classes. São reforçadas como nunca
pelas disparidades do sistema internacional, pelos juros da dívida externa e
inclusive pelo dólar, papel transformado em dinheiro sem lastro ouro, fincado
no mundo inteiro. As elites, tanto dos países pobres quanto dos países ricos,
precisam somar esforços na luta contra as diferenças entre classes sociais,
atenuando a patologia do consumismo capitalista, antes que o terror se espalhe
em versões ainda mais assassinas que as até agora conhecidas.
A ética antiterror sabe que a paz é igualmente fruto da justiça. Que o novo
nome da paz deveria ser desenvolvimento sustentável, emprego e comida para
todos. A problemática vista por este ângulo encara o terrorismo como fenômeno
político por excelência e, como tal, precisa ser combatido. Suas assimetrias,
igualmente atacadas com remédios políticos amargos, se necessário.
O terror possui capacidades, vários fôlegos. Cogitar em abatê-lo com a ação
única da guerra é um equívoco. As tensões sociais, o ódio étnico, a
discriminação racial, a exclusão das maiorias das benesses do capitalismo, o
fascismo, o anti-semitismo, a xenofobia, o nacionalismo doentio, os
fundamentalismos religiosos judeus e islâmicos, entre outros, são como sangue
nas veias do terror da contemporânea história humana. Ao se desejar a paz, para
que ela permaneça e faça parte desta mesma história, não há como deixar a
mobilização contra o terror ser conduzida por mentores da guerra.
O TIAR e a generalização do conflito
Face à ousadia dos bárbaros gestos do terrorismo internacional, pouco adianta
retirar da cova, como fez a reativa diplomacia brasileira, o Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR). A Organização dos Estados
Americanos (OEA), jamais se desfez das cicatrizes do Destino Manifesto. O
comportamento político da Organização, tradicional acólito do mandonismo dos
Estados Unidos, em sessão convocada pela diplomacia presidencial de Fernando
Henrique Cardoso, aprovou como esperado, a aplicação do TIAR como troco às
investidas do terror em Washington e Nova Iorque. Assinado em 1947 na ex-
capital brasileira, desmoralizou-se quando do conflito argentino com o Reino
Unido.
Na Guerra das Malvinas, em 1982, o TIAR não pôde ser invocado porque o agressor
era a Argentina. Entretanto, na luta contra o terror, a lógica do TIAR, se
ressuscitada, favorecerá a generalização do conflito. O risco que se corre é de
vê-lo ser invocado na cruzada contra o internacionalizado narcoterrorismo na
Amazônia ou na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina2. No novo
contexto da luta antiterrorista, atentado destruidor como o ocorrido anos atrás
contra a Associação Judaica em Buenos Aires, se repetido dentro de qualquer
país signatário, também servirá de argumento para a invocação do TIAR.
Como se não bastasse a subalternidade ocorrida com a Base de Alcântara, a
postura do Itamaraty em relação à instalação do escritório do US Secret Service
na capital paulista sem o consentimento do Congresso Nacional espelha
debilidades no serviço exterior. Mais uma vez o Brasil sofre nas relações
internacionais as contradições e deficiências causadas pelos equívocos dos
formuladores de sua política externa.
A recomposição do esqueleto do TIAR e seu anacrônico renascimento proposto como
agrado aos Estados Unidos da América pela diplomacia brasileira terminaram
sendo vistos, externamente, como barganha comprometida pela maioria dos latino-
americanos dentro da Doutrina Monroe, agora revigorada pela multilateralização.
Internamente, como nova demonstração do velho alinhamento incondicional. Tantos
gestos de dependência ameaçam a tradição pacifista brasileira de ir para os
ares. A luta antidrogas "para inglês ver" do governo tampouco consegue estancar
o crescente número de vítimas do narcoterrorismo. Assim as coisas caminham:
democracia e segurança, apesar de anos como temas fundamentais da agenda da
política externa desgraçadamente não representaram progresso a favor do
fortalecimento do estado de direito em canto algum do continente. Nem mesmo
depois do discurso "Século das Américas", do Presidente Bush em Miami, em
agosto de 2000.
Os defensores da ressurreição do TIAR esqueceram-se que há anos existe contra o
terrorismo continental a Resolução 1080. Aprovada na quinta sessão plenária da
Organização dos Estados Americanos (OEA), realizada em Washington, em 5 de
junho de 1991, a Resolução pretende resolver, por meio de "decisões que forem
consideradas apropriadas" tudo que ameace a estabilidade da democracia
representativa regional. Apesar de sua existência, o narcoterrorismo não pára
de flagelar a sociedade das Américas3.
A economia das redes do terror
A falta do cálculo político racional na luta contra as diversas modalidades do
terror, há décadas, obriga a sociedade latino-americana a carregar enorme peso.
O narcoterrorismo de quotidiana presença no continente ceifa vidas. Corrompe
descaradamente o legislativo, o judiciário e o executivo. Suas operações no
palco interno e externo, sofisticadas e rudimentares, difusas e, às vezes,
muito concentradas, criaram redes de apoio ao terror da corrupção espalhadas
pelas Américas, pela Europa e por partes do Oriente Médio. Segmento
considerável destas redes estende-se para dentro do território dos Estados
Unidos, o maior consumidor de drogas e, também, o maior receptador dos
dividendos dos bilionários negócios da corrupção e do narcotráfico. Tais redes,
de dificílima penetração, ligadas à lavagem do dinheiro sujo, podem servir
também ao ódio étnico, racial e religioso, entre outros. Neste caso, a culpa
não é só do fundamentalismo islâmico, transformado, depois do fatídico 11 de
setembro, em bode expiatório de quase todas as desgraças mundiais.
A impostura dos centros bancários funcionando nos paraísos fiscais desafia a
propalada ética antiterror que se quer implantar nas relações internacionais.
Não são desmantelados porque Wall Street e centros financeiros como os de
Frankfurt, Londres, Paris, Zurique e Milão, entre outros, necessitam da
convivência em refúgios da ilegalidade presentes nos paraísos fiscais e nos
interesses que abrigam. Protegidas de regulamentação e impostos, as melhores
praças de proteção ao capital financiador do crime organizado estão no Panamá,
Belice, Costa Rica, Antilhas Holandesas, Bermudas, Bahamas, Ilhas Turks e
Caicos, Ilhas Virgens, Anguilla, São Vicente, Santa Lúcia, Kitts-Nevis,
Libéria, Madeira, Suíça, Luxemburgo, Ilhas Cayman, Andorra, Mônaco, Sark e
Jersey, Irlanda, Lienchtenstein, Chipre, Líbano, Dubai, Barhein, Uruguai,
Maurício, Malta, Singapura, Hong Kong, Macau, Samoa Ocidental, Vanuatu, Ilhas
Cook, Ilhas Marshal e Ilhas Mariana4.
O incondicional amparo governamental a interesses financeiros levou os Estados
Unidos a rejeitar o acordo sobre a lavagem de dinheiro proposto pela
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O lucro dos
negócios envolvendo narcóticos e contrabando de armas dá passos gigantescos:
aproveita do poder dos interesses que favorece a rede bancária e os fundos de
hedge nos paraísos fiscais. Poder que igualmente usufrui da abordagem
unilateralista da política externa dos Estados Unidos.
O dinheiro dos corruptos roubado da sociedade brasileira é tanto que foge do
imaginário. A título de comparação, as somas desviadas do INSS por Georgina de
Freitas e seus comparsas, somadas ao que roubou dos cofres públicos o bando do
juiz Nicolau dos Santos Neves, são superiores à fortuna de Osama bin Laden
estimada em trezentos milhões de dólares. O monumental ganho obtido com tráfico
de material bélico e de drogas ilícitas depositado em bancos dos Estados Unidos
e em dezenas de paraísos fiscais já nominados neste texto movimentam múltiplas
engrenagens da economia dos Estados Unidos. O terror organizado abastece e
supre suas necessidades aproveitando-se das rachaduras da crise ética e moral
emersas nas debilidades do tempo da unipolaridade. Rachaduras que, de forma
direta ou indireta, amparam a desgraça responsável pelo soterramento de tantas
e tantas pessoas inocentes sob os escombros das duas torres símbolos da
prosperidade capitalista.
Caso a prometida luta contra a lavagem de dinheiro circunscreva-se apenas aos
momentos da febre de indignação contra ações terroristas perpetradas nos
Estados Unidos, o terror organizado desfrutará de enormes facilidades para
obtenção do dinheiro ilegal, lavado ou não. Com fartura de capital é possível
sustentar quaisquer estruturas corruptoras e cooptadoras, presentes dentro e
fora das fronteiras estadunidenses. Tal fartura tem se transformado em presente
de mão beijada da globalização aos grupos terroristas.
Na reconfiguração hodierna das formas de luta pela segurança humana contra o
terrorismo urge mostrar a ineficácia das velhas receitas da repressão movida
por golpes militares, tortura e desrespeito aos direitos humanos. Oxalá, a
política de contenção ao comunismo inspirada na Doutrina Truman, gerada na
Guerra Fria, não reencarne na política internacional de contenção ao
terrorismo. Pouco importa se sob o nome de operação justiça infinita, liberdade
duradoura ou outros!
Em face dos tantos insucessos do combate ao ódio, inclusive ao terror da fome,
ao terror da corrupção, ao terror das desigualdades, a análise do generalizado
aumento dos conflitos nas relações internacionais necessita ir além das
conveniências dos paradigmas aplicados pelas diplomacias das grandes potências
e das que giram em sua órbita.
A imprensa internacional, tanto a falada quanto a escrita, geralmente capta o
que julga valer aos seus interesses. Raramente sugere políticas públicas em
favor da pacífica solução das controvérsias. Controvérsias igualmente
sopradoras do terror. Falta educação para os marginalizados e preço justo aos
produtos agrícolas para que a população rural da periferia mundial não continue
na tentação da produção da papoula sustentadora da economia dos talibãs, como
ocorre no Afeganistão. Na luta contra a produção de cocaína nos países
amazônicos, prevenção e repressão deveriam significar a aplicação da justiça.
Justiça é a única saída capaz de atenuar a patologia da violência sustentáculo
do terror.
Obig stickno combate ao terror
A reação do executivo estadunidense em face dos recentes atentados terroristas
merece ser aquilatada à luz de recursos históricos. Nada custa relembrar a
Emenda Plate, de 1901, dando poderes aos Estados Unidos para invadir Cuba.
Referida emenda, impregnada de conceitos da Doutrina Monroe, aplainou terreno
para o aparecimento, em 1904, do Corolário Roosevelt acompanhado do odiado
"Grande Porrete". Em substância, quase todo igual ao modelo do porrete agora
exibido pelo texano George W. Bush, na selvagem cruzada contra o terrorismo.
Passado um século e pouco, o Big Stick reaparece no novo Far West, em versão
modernizada, fortalecido com armas nucleares, porém imprestáveis na defesa da
segurança interna. Confessadamente pouco eficazes para o sucesso da política
antiterror estadunidense. Política desta vez dirigida não só para a surrada
América Latina, vítima do narcoterrorismo, mas para toda a terra.
Infelizmente, são relativamente poucas as vozes clamando contra o uso da força
militar no combate ao terror. A militarização do combate à violência do
terrorismo fundamentalista e do narcoterrorismo é questionável. Até hoje não
solucionou problema nenhum, porque a paz dos cemitérios não é a paz que se
almeja nas relações internacionais.
A derrubada do muro de Berlim em 1989, símbolo do fim do poder bipolar
significou a autodecomposição do comunismo burocrático. Abriu imediatamente as
portas do mundo às insuficiências do poder unipolar. Quase sem barreiras, as
transnacionais da violência atiçam contradições a favor do terror. A violência
nutre-se da degradação dos valores cristãos presentes na extremamente hedonista
democracia estadunidense. Por tal razão, a luta contra as causas do terrorismo
hodierno promete novas interpretações, não apenas às relacionadas à força
militar, mas também às relacionadas à dominação econômico-cultural pelos países
centrais, vale dizer, pelo senhorio das novas Romas com seus novos bárbaros.
A violência nas relações internacionais pressagia outro capítulo no velho livro
conhecido como Destino Manifesto, há décadas estigmatizado por seu caráter
tanto expansionista como intervencionista presente na ética capitalista dos
Estados Unidos da América. O Destino Manifesto historicamente repleto de
violações na América Latina dominou, pouco a pouco, o cenário internacional.
Cobre de sombras o prestígio da moral estadunidense que, depois de décadas e
décadas semeando influências, começa no novo milênio a colher reações políticas
e ideológicas adversas.
A história promete ser dura, caso a presente diabolização do terror continue
desacompanhada de ações para eliminar suas causas, se os conflitos submersos
nas relações internacionais não forem igualmente atacados. Só que a sociedade
dos países centrais não permanecerá como dantes, apenas como telespectadora:
agora é também vítima. Suprimir as liberdades civis básicas, desrespeitar os
direitos humanos na luta contra o terror equivalerá a colocar mais lenha na
fogueira das contradições.
Convenções antiterror e falhas no trato diplomático
O narcoterrorismo e o terrorismo político provaram andar de mãos dadas. Em seu
combate, somas bilionárias se consomem, pagas pelo contribuinte. Todavia, ao
invés de políticas públicas para superação das contradições que geram
conflitos, cuja manifestação maior tem sido a violência, se faz é esquecer a
paz!
Com a guerra, o narcoterrorismo cresce. Suas fortes ramificações há anos
minaram, em várias nações, as bases da democracia. O terror dos negócios das
drogas mostra-se próspero. A prometida investida contra a lavagem do dinheiro
fica só nas intenções. A luta contra o terror, capaz de soterrar o Afeganistão
com bombas, é incapaz de reverter atitudes que dificultam o combate à lavagem
de dinheiro e à produção da heroína.
As células ou grupos sustentadores de planos em categorias operacionais
obtiveram, com a dita globalização, facilidades para execução de suas
atividades criminosas. Depreende-se então, que o caráter transnacional do
terrorismo pede políticas públicas de âmbito mundial contra o terror e não
indústrias antiterrores que fabricam o terror. Políticas públicas a favor da
paz implementadas preferencialmente sob a égide das Nações Unidas. Em todos os
países, ricos e pobres diminuiriam então as cruamente expostas chagas das
debilidades do trato diplomático internacional no combate ao terror.
A incompetência no âmbito das relações internacionais na construção de
políticas para a paz e a não-violência abre portas para o uso da força na luta
contra o terrorismo. Por exemplo, as conferências de Tóquio, em 1963, Haia, em
1970, Montreal, em 1971, a Convenção de Nova Iorque, em 1977, a Convenção
Européia para a Supressão do Terrorismo, na cidade francesa de Estrasburgo e a
Convenção de Genebra, ambas realizadas em 1977, mais a primeira Convenção Árabe
de Luta Contra o Terrorismo no Cairo em 1998, todas quase nada aportaram em
termos de iniciativas contra o terror internacional.
O Direito Penal Internacional, tal qual as convenções, no estado de natureza
das relações internacionais hodiernas, é letra morta e assim continuará até que
algo apareça para defender o mais fraco da lei do mais forte. Tomara que tal
iniciativa não seja o próprio terror.
Limitadas e sem visão, preocupadas quase que exclusivamente com a proteção de
autoridades diplomáticas, as mencionadas convenções apresentaram poucos
resultados positivos para o mundo. O caráter cosmético dessas iniciativas da
diplomacia reservou às citadas convenções medíocre espaço na arena
internacional. Além de não terem conseguido número suficiente de adesões,
enfrentaram a falta de ratificações.
Questões básicas como soberania nacional, direito sem fronteira, razão de
Estado, critérios para extradição e jurisdicionalidade permaneceram na estaca
zero. A discussão do uso da força bruta utilizando ações unilaterais de combate
ao terror ainda soava, nos tempos da bipolaridade e imediatamente após o seu
fim, como verdadeira heresia a desfavor do outrora sagrado princípio da
inviolabilidade territorial.
Apropriação do nome de Deus
A negligência dos países desenvolvidos com relação ao terrorismo das
desigualdades nas relações internacionais precisa ser combatida, porque tal
batalha manterá acesa a chama da indignação contra atos terroristas, contra
suas causas. Ajudará na busca do consenso acerca da necessidade da eliminação
do ódio.
Sabendo ser pouco demais o que a Organização das Nações Unidas realiza contra o
terror, inclusive a desfavor das desigualdades por causa do seu obcecado temor
diplomático de ferir susceptibilidades nacionais, a ONU, ao qualificar o
terrorismo como crime internacional, chove no molhado. Variadíssimas
interpretações podem ser dadas ao Artigo 51 da sua própria Carta, em que se
reserva aos países o direito da autodefesa. O Iraque e a Líbia, por exemplo,
estão roucos de tanto invocá-lo.
A domesticação do terror da violência com a banalização do valor da vida, em
flagrante desrespeito ao próximo e aos direitos humanos, mais a apropriação do
nome de Deus no combate ao terror entre as partes conflitantes ' vejam-se, por
exemplo, os discursos de George W. Bush e Osama bin Laden ' complicam
enormemente a arena da ética antiterrorista. A invocação do nome de Deus
deveria preocupar as diferentes confissões religiosas. Sobre isso não se ouviu
quase nada das lideranças eclesiásticas ocidentais, inclusive por parte do
Vaticano. Relativamente poucas vozes nas igrejas checam a moralidade dos
bombardeios lançados pela nação mais poderosa contra provavelmente uma das
menos favorecidas. Apelar para a ética cristã é lembrar a onipresença divina
manifestada tanto em Washington quanto em Cabul ou em Brasília.
O sentido espiritual da Jihad, Guerra Santa, precisa ser respeitado e conhecido
no Ocidente. Jihad significa igualmente empenho em busca do equilíbrio a
serviço do Criador; empenho traduzido como esforço de defesa dos valores da fé
islâmica. A tradição maometana prega caminhar da Jihad menor para a Jihadmaior.
A Jihad maior é o empenho da fé e do exemplo. Também implica ascese testemunhal
por meio de usos e costumes (suna) ensinados pelo Profeta, em Medina5.
Diferentes leituras aplicam-se à bíblia e ao corão. Fundamentalistas encontram-
se tanto no islamismo, no judaísmo e no cristianismo, quanto no budismo.
Misturar islamismo com terrorismo equivale a esquecimento da essência do
radical monoteísmo abraânico presente no judaísmo, no islamismo e no
cristianismo. Entender esta trilogia como se fossem civilizações em choque e de
outro mundo, como pretende Samuel Huntington6, com suas cortinas de ferro, de
bambu e de veludo, só reforça equívocos e preconceitos históricos transmitidos
por ideologias compromissadas. Existe choque sim, mas de poder. Luta de
classes, não de civilizações!
As elites dominantes ocidentais, convictas da morte e sepultamento do marxismo,
acordam atônitas com o explodir das reações em cadeia às respostas fratricidas
perpetradas pelo sofisticado aparato bélico industrial dos Estados Unidos.
Destas ações, por condenáveis que sejam, ingente mérito não se pode negar:
ressuscitaram a utopia marxista soprando vigorosamente o espírito da teologia
da libertação.
Em nome de interesses toma-se o santo nome de Deus em vão. O abuso de Deus,
seja pelos movimentos terroristas, seja pela repressão mundial ao seu encalço,
certamente traduz convicções mais profundas que as estudadas até o presente na
sociologia das relações internacionais. Por exemplo, o Miutzan Elohim (Ira de
Deus) vingava o brutal assassinato de atletas israelenses nos Jogos Olímpicos
de Munique em 1972, observando o "dente por dente, olho por olho" do
ensinamento bíblico. Respondia com terror o terror do Setembro Negro de Yasser
Arafat que, anos mais tarde, dividiria, com Shimon Perez o Prêmio Nobel da Paz.
O Ruhollah(Sopro Divino) dos xiitas iranianos, o Portão do Céu californiano, o
Templo do Povo, causador de centenas de mortes por envenenamento, na Guiana, a
Jihad Islâmica do Egito, o Hezbollah (Partido de Deus) no Líbano e o Hamas
(Fervor) constituem modelos de manipulação do messiânico no desespero do
terror. Fosse vivo, Antônio Conselheiro e seu bando de fanáticos sertanejos
famintos talvez se confundissem com os talibãs afegãos integrando a lista da
história terrorista dos presentes dias7.
Direito de intervenção e terrorismo
Direito de intervenção, soberania limitada e as novas, tais quais as antigas
cruzadas assassinas de muçulmanos e de judeus, alteraram a fisionomia e
expuseram a heterogeneidade da interpretação do significado da liberdade. A
guerra com sangue de inocentes contra as redes do terrorismo organizado
transformou princípios, notadamente os do centro mundial de poder, quase em
ultrapassados símbolos éticos e morais.
Tomara que autoridades políticas nos Estados Unidos da América façam sua mea
culpa pelos pecados no passado e no presente; redimam-se lutando a favor da
solução estrutural dos problemas da segurança humana. A América Latina, dopada
décadas e décadas nos conceitos e nos mitos da segurança hemisférica, terá
dificuldades em levar suas elites dirigentes a ver que a distribuição da renda
e a justiça social são, até agora, os realmente seguros instrumentos de
superação das contradições sociais e o melhor antídoto contra a hodierna luta
de classes, que poderá ter no terror seu braço forte.
Na lei da selva das relações internacionais, em que conflitos integram o seu
quotidiano, há tempos deveriam estar prontos os arranjos para o pacto social a
favor do entendimento contra o terrorismo internacional em suas variadas
manifestações. Todavia, é impossível criar o pacto social na vigência do estado
de natureza, na desordem das relações internacionais em que um país apoiado
pela força de seus exércitos julga sem ser julgado, condena sem ser condenado;
tem a coragem de proclamar "cada nação tem uma decisão a tomar. Ou está conosco
ou com os terroristas"8. Tal contexto repete a velha política maniqueísta do
bem e do mal.
Os formuladores da política antiterror estadunidense, com certeza, não fazem
distinção entre seus bens e os dos outros. Thomas Hobbes tem razão. Pontuou não
existir propriedade, nem império sobre coisa nenhuma. Nem distinção entre o que
é teu e meu. Pertence ao homem só aquilo que ele consegue manter e tão somente
durante o tempo em que pode defender9. Seu realismo e a visão filosófica de
John Locke consideravam a violência como espécie contrária de justiça.
Na conjuntura internacional da violência, falta a proveitosa presença do
Leviatã, monstro protetor dos pequenos contra o grande e poderoso predador. A
metáfora hobbesiana aplaude a necessidade da ordem justa na desordem injusta
presente no relacionamento internacional. Um estado de sociedade universal com
justiça, seja ele o sonhado por Kant, Hegel, Marx ou Rousseau, com certeza
minaria a força do terror. Poria a sociedade das nações nos trilhos da ordem
justa. Resta saber qual Leviatã possuirá clarividência e ideal suficientes para
mostrar à sociedade das nações os caminhos da paz e da prosperidade.
Terror como continuação da política por outros meios
A sociedade humana dispondo de uma Organização das Nações Unidas manietada,
sequer lembrada nos discursos a favor da luta contra o terrorismo
internacional, num contexto político em que Estado algum abre mão de suas
prerrogativas a favor do governo universal, deveria recorrer ao realismo de
Clausewitz10. Pode em brados afirmar que, na atualidade, ao invés da luta de
uma nação contra outra, o terrorismo é a continuação da política por outros
meios.
Observa-se então que no relacionamento internacional, pouco importa por parte
de quem os equívocos da luta contra o terror pelo terror aportarão tempos de
intolerância e irracionalidade. Contra tal política relembremos os tão
consagrados Princípios da Filosofia do Direito, em que seu autor, o filósofo
Hegel, mostra que Estado algum, povo algum pode atribuir-se, invocando sua
pretensa representatividade, qualquer supremacia sobre outros povos11.
Com a globalização da insegurança, a intolerância arma suas emboscadas: escuta
apenas a voz daquele que grita mais alto. Em face das tantas vítimas dos
diversos tipos de terror, que se lembre de Tertuliano. Transformemos sua
afirmativa em objeto de reflexão nestes conturbados dias sem endereço dos
refúgios da razão. "Sanguis martirum est semen cristianorum", sangue de mártir
é semente de cristão. Esta máxima não se aplica apenas à civilização ocidental.
O fundamentalismo islâmico consegue, dentro de sua visão de mundo, incontável
enormidade de fiéis prontos para morrer em nome da defesa de sua fé e de seus
princípios religiosos. Daí o equívoco do combate do terror pela violência
semeadora de terror.
Tipologias do terror
Os tupamaros uruguaios, o peruano Sendero Luminoso, a salvadorenha Frente
Farabundo Marti de Libertação Nacional (FMLN), o filipino Novo Exército Popular
e o malaio Partido Comunista, por décadas, foram rotulados de terroristas com
inspiração maoísta. Também os sandinistas eram vistos como sinônimo de terror.
Em seu combate, os Estados Unidos financiaram os "contras". Usaram a velha
tática do terror contra terror sem nenhum respeito à soberania. Por seus atos,
foram condenados pela Corte Internacional de Justiça da Haia e tudo continua na
mesma.
A rebeldia curda na ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, no Irã, no
Iraque e principalmente na Turquia considera-se como o que existe de pior no
terrorismo. A perseguição implacável ao PKK, por razões geopolíticas, é ajudada
por muitos e combatida por poucos. No México, o subcomandante Marcos não foge
da rotulagem de terrorista apesar de suas ações radicais em favor das
liberdades e dos direitos da maioria indígena em Chiapas. A Organização Militar
Nacional (Irgun Zvai Leumi) ao explodir, em 1946, o quartel general das forças
armadas imperialistas britânicas em Jerusalém com dezenas e dezenas de mortos,
indignou os súditos da coroa e encheu de júbilo os judeus na reconquista de sua
Terra Prometida. A maioria deles sobreviventes do terror do nacional-
socialismo, vítimas do terrorismo dos campos de concentração, em que imperava o
lema: "o trabalho liberta".
O Exército Revolucionário Irlandês (IRA) mais o ETA (Pátria Basca e Liberdade),
colocados nos porões da tortura pela repressão do Reino Unido e da Espanha,
fazem da resistência sua razão de vida. Pior de tudo, recebem o mesmo rótulo de
movimento terrorista aplicado à Força Voluntária do Ulster (UVF) e ao Ulster
Freedom Fighters, os dois últimos assassinos inclementes de católicos
militantes.
A desintegração da Iugoslávia tampouco processou-se fora do alcance do terror,
do processo chamado de limpeza étnica. O curioso na história do terrorismo é
que suas extensões domésticas são tão potentes quanto seu formidável impacto
externo. Suas manifestações, quer se queira ou não, influenciam as relações
internacionais.
O Movimento de Resistência Afrikânder, grande caçador e matador de negros no
apartheid, nunca foi considerado como movimento terrorista pelos racistas
brancos da África do Sul e da antiga Rodésia. Para a elite dominante sul-
africana, terrorista era o Congresso Nacional Africano.
Outro fato histórico a ser lembrado é o terrorismo das ditaduras militares de
direita espalhadas entre 1960 e 1980 por toda a América Latina. No Brasil, por
exemplo, o terror do regime militar contou com a ajuda de muitas burocracias na
implementação da repressão. Inclusive a diplomacia brasileira não negou
préstimos à ditadura a que tão lealmente serviu rastreando e denunciando as
vítimas do golpe militar em exílio no exterior.
Outros exemplos atuantes: o Grupo Islâmico Armado (GIA) na Argélia, o Exército
Vermelho Japonês e a Frente Nacional Islâmica Muhamad Gailani para a Libertação
do Afeganistão, que serviu de escola para a atual militância talibã. A Aum
Shirinkyo, no Japão, a Jihad Islâmica Palestina, o Grupo Abu Nidal, a Al-Fatah,
a PLOTE (Organização Popular para a Libertação do Tamil), os Tigres Tamil no
Sri Lanka, os Sikhs na Índia, a Frente de Libertação da Córsega e a Frente de
Libertação do Quebec. Todos os grupos e movimentos citados ilustram o balaio de
gatos ideológico da violência e da anarquia do terror nas relações
internacionais12.
O narcoterrorismo presente na maioria dos países amazônicos mais parece um
ninho de cobras. Envenena a sociedade por meio de assaltos a mão armada,
bancos, estabelecimentos comerciais, seqüestros, roubo de carros e de cargas
demonstrando incansável vitalidade. Pelas autoridades responsáveis, geralmente
reprimido com insuficiente rigor, o fenômeno do narcoterror, verdugo das
frágeis democracias latino-americanas, possui nas Autodefesas Unidas da
Colômbia (AUC)13 parte da sua sustentação. Também as FARC (Forças Armadas
Revolucionárias Colombianas) e o ELN (Exército de Libertação Nacional), por
suas ações extremamente próximas às fronteiras com o Brasil, transformaram-se
em perigoso instrumento de instabilidade política na região amazônica,
notadamente entre colombianos, brasileiros e venezuelanos.
Definir tanto a natureza quanto as características do terrorismo, diferenciar
os velhos dos novos atos de terror é tarefa complexa porque complexas são as
diversas causas e origens do terrorismo. Na geopolítica internacional, os
olhares sobre o terrorismo tampouco continuam os mesmos. Por exemplo, os
"freedom fighters" antes considerados como heróis da resistência afegã em luta
contra os soviéticos são, hoje, vistos como concentração de barbárie.
Nem sempre foram as mesmas as reações da sociedade internacional em face das
ações do terror contra o poder e também do terror contra os mais fracos. Nem a
Ku Klux Klan e nem a Milícia de Michigan, com suas mortes enterradas no
esquecimento da opinião pública, conseguem ser menos lembradas que o virulento
terror congolês. Paradoxalmente o mais esquecido de todos, o terrorismo no
Congo mata por dia aproximadamente duas mil e quinhentas pessoas, bem próximo
do correspondente ao número de mortos ocorrido numa das torres do World Trade
Center.
O terror da omissão
Nesta reflexão, acrescente-se que, nas relações internacionais, também se vive
o terrorismo da omissão, aproveitando-se da assimetria e da capacidade acrítica
da desordem mundial. A consciência adormecida do processo civilizatório em
pleno início do século XXI, cala em face de atos terroristas perpetrados por
rebeldes apoiados por Angola, Zimbábue e Namíbia contra o igualmente terrorista
exército do Congo, escorado por tropas de Ruanda e Uganda.
As cinzas, ainda quentes, dos conflitos étnicos em Biafra, Ruanda e Burundi, de
hútus contra tutsis e vice-versa, ardem. Apesar disso, não se conhece nenhum
gesto de abrangência mundial contra o terror que nos últimos três anos ceifou
dois milhões e quinhentas mil vidas na parte oriental do Congo.
A opinião pública mundial e a mídia propositadamente deslembram a realidade do
mundo de ser de todos para todos; que o sentimento não é exclusividade dos
países de primeira classe. O número de vítimas nos países excluídos é maior nas
mãos do terror. Triste é esquecer que fazer mártires, não importa onde e nem em
favor de que causas, só serve para aumentar o sacrifício dos martírios.
O terrorismo usado tradicionalmente nas guerras é fenomenologia antiga na
história da humanidade, anterior ao aparecimento dos Estados nacionais nos
séculos XV e XVI. Na falta da ordem e do estado de justiça, a Antigüidade viu o
terror como instrumento de barganha e até de esperanças. No atual contexto de
desordenamento internacional, com a globalização selvagem debilitando os
Estados nacionais, a história parece repetir a intrínseca natureza
transnacional das diversas formas de terror em ação. Tanto o narcoterrorismo
quanto o terrorismo religioso encontram na unipolaridade globalizadora do poder
mundial campo fértil para sua extensão vertical e horizontal no seio das
nações.
O terrorismo da violência espalhado pelas casas e ruas das cidades latino-
americanas, assim como o terrorismo da corrupção, profundamente enraizado nas
instituições nacionais, criam aqui e em outros países globalizados sentimentos
de impotência e passividade. A violência interna, somada a outras patologias do
terror presentes na periferia mundial, tão amoral quanto a marca do terror nos
países centrais, deixa de assustar por não despertar o clamor da mídia e nem da
opinião pública. Isto porque o terror periférico geralmente sacrifica, na
maioria das vezes, pobres, excluídos e miseráveis.
Os imolados pelo extremamente letal terror do subdesenvolvimento encontram-se
em número incomparavelmente superior ao das vítimas do terror no mundo
desenvolvido. A diferença é que este opróbrio, que também é o terrorismo da
fome e da exploração do homem pelo homem, está propositadamente esquecido pela
hipocrisia do sistema internacional, hipocrisia destruidora do que ainda resta
da coragem civil pelos cantos da terra.
Do anarquismo ao terrorismo
A descrição das construções interparadigmáticas tricotada em torno do fenômeno
do terror é exercício explicativo sujeito a equívocos. Mesmo assim, valeria a
pena tecer algumas considerações a respeito. Acontecimentos históricos para
subsidiar tal análise não faltam. Por exemplo, durante o século XIX até meados
da segunda parte do século XX, o Ocidente confundia anarquismo com terrorismo.
Possivelmente porque os anarquistas, de forma menos condescendente que os
marxistas, sempre lutaram pela radical eliminação do Estado nacional, coisa que
agora a globalização impiedosamente executa sem perseguição alguma contra ela.
A utopia anarquista, dentre as utopias, talvez tenha sido a mais reprimida. O
suicídio montado na prisão alemã de Stammheim contra a liderança da Facção do
Exército Vermelho, somado ao fim dado às Brigadas Vermelhas, na Itália, deu
provas de ações nada democráticas contra o anarquismo em nome da razão de
Estado.
O cenário do terror da guerra dos países centrais na periferia mundial, apesar
de todas as vantagens da tecnologia, recomenda lembrar que "na guerra os
números por si só não conferem vantagem alguma. Não avances confiando no mero
poderio militar"14. A advertência proclamada por Sun Tzu cerca de meio milênio
antes da era cristã pode ser aplicada nos momentos atuais, em que a noção do
valor heurístico passa por rápidas mutações. O mesmo ocorre com a sociedade e
as ideologias revolucionárias. "A relação com os valores, a idéia que se faz,
por exemplo, de uma época ou de uma doutrina sob a forma do idealtipo, a fim de
captar sua significação, não corresponde forçosamente à idéia que os
contemporâneos daquela época ou os militantes daquela doutrina faziam delas"15.
Assim, nada impede que a perseguição movida na caça a Osama bin Laden o promova
a mártir, se ele for morto e em herói se continuar vivo. Em ambos os casos, no
ídolo que o terror fundamentalista islâmico tanto anseia. Tal qual ocorreu na
bárbara repressão levada a cabo pelas ditaduras militares latino-americanas,
responsáveis pela transformação de Ernesto Che Guevara em herói e mártir para
milhares de latino-americanos e europeus , entre outros.
Com a contribuição da análise por meio de reflexões formuladas entre outros por
pensadores como Michail Bakunin, Peter Kropotkin, Pierre J. Proudhon, William
Godwin, Elisée Reclus, Leo Tolstoi, Errico Malatesta, John Most, Emma Goldman,
Gustav Landauer, Erich Mühsan e Rudolf Rocker, a substância teórica do
anarquismo brotou em mananciais nos quais movimentos terroristas,
principalmente europeus, saciaram sua sede teórico-explicativa16.
O lema do grupo Baader Meinhof, "destrua o que vos destrói" reapresenta-se,
agora, despojado ou não da ideologia do materialismo dialético, renovado em
versões messiânicas, como por exemplo, a morte em nome da fé, o sacrifício da
vida em nome da salvação etc. A audácia dos terroristas de hoje, mutatis
mutandis, parece imbuída de coragem, sem dúvida diferente, porém não menos
audaciosa que a dos cristãos mortos no Coliseu contra a ordem pagã e o
hedonismo do Império Romano.
Dos anarquistas nasceram idéias, sonhos, quase todos transformados em pesadelo
por causa da repressão. Por exemplo, o mencionado macht kaputt was euch kaputt
macht, destrua o que vos destrói, bandeira da Facção do Exército Vermelho, fez
tremer as bases de democracias criadas no pós-guerra sobre os escombros da
derrota nazista. Significou o grito de expressivo segmento da juventude
ocidental rica e hedonista impressionada com a desnecessária carnificina das
guerras. Paralelamente a isto, a angústia existencial dos anos dourados
bipartia a juventude entre "alienados" e "revolucionários".
Na alienação buscou-se o consolo nas drogas e na despolitização o silêncio dos
injustiçados. Alienação e despolitização versus militância sadia, como a
conhecida na expansão mundial dos protestos estudantis nascidos na França em
1968, por paradoxal que pareçam, transformaram-se em sementes para posterior
germinação do terror, inclusive em países onde não se negam condições à
mocidade de expressar com certa liberdade suas reivindicações.
Conclusão
Não basta qualificar vertentes do terror, entre outras de narcocriminal,
cibernética, pluralista, financeira, igualitária, repressiva, religiosa,
separatista e revolucionária. Proceder à rotulação como a aplicada ao
bioterrorismo manipulador doBacillus Anthracis,ou formular novas tipologias
básicas do terrorismo no cenário internacional, separadamente da explicação
estrutural da fenomenologia da dominação e da luta de classes, mostrará
ineficácia no trato analítico. Seguramente, além da observação da máquina do
terror, a visão analítica das estruturas hodiernas da indústria da violência
nas relações internacionais, longe de pura ponderação metafísica, contribuirá
para o diagnóstico dos porquês do tão precoce agravamento da degenerescência da
democracia no trato do terror gerado em suas entranhas. A civilização ocidental
cristã, ao não aplicar os princípios de sua moral e sua ética, tolera a
injustiça. Tolerando injustiças, transforma-se em hospedeira nata do vírus da
delinqüência.
A natureza indiscriminada do terror hodierno atacando alvos, com e sem
especificidades, semeia o medo propagando o mal como a papoula entre o trigo. O
medo provou ser a droga nociva das relações internacionais sob a unipolaridade,
porque acovarda a sociedade. Mais penoso do que isso, o desiderato de cada
nação em salvar a si própria leva à falta de solidariedade e fertiliza a mútua
incompreensão entre os povos na luta contra o terror. Não menos grave é o
renascer da crença na mensagem do homo homini lupus, homem lobo do homem. Dá a
falsa idéia de que o construído por mãos humanas é negativo e sujo e de que a
visão kantiana da paz perpétua não passa de sonho.
Na sociedade das nações conhece-se cada vez mais a história das coisas e dos
fatos. Em contrapartida, é menor o espaço para o exercício da cidadania do
homem que quotidianamente torna-se menos sujeito da sua própria história.
Talvez por isso os valores e os ideais avançam movidos por cobiça e dominação
colocando em risco as esperanças no futuro da segurança humana.
Desgraçadamente, tais fatos reforçam os individualismos nacionais. Tornam
remota a certeza da vitória na luta contra o terror no caminho repleto de
armadilhas das relações internacionais sob o signo da lei do mais forte.
Notas
1 Procópio, Argemiro. O Terrorismo e a Segurança..Correio Braziliense.
Brasília, 23.09.2001, p.10.
2 Procópio Argemiro. L'Amazonie et la mondialisation - Essai d'écologie
politique. Paris: Ed. L'Harmattan, 2000.
3 Procópio, Argemiro (org.) Narcotráfico e Segurança Humana. São Paulo: Ed.
LTR., 1999, p. 86.
4 Procópio, Argemiro. O Brasil no mundo das drogas. Petrópolis: Ed. Vozes.,
1999, p.199.
5 Ver: Bartholo Jr., Roberto S. e Campos, A. E. (orgs.), Islã. O credo é a
conduta. Rio de Janeiro: Editora Imago,1990.
6 Ver: Huntington, Samuel. O Choque das Civilizações. Editora Objetiva.
7 Ver: Cunha, Euclides: Os Sertões. Editora Record..
8 Discurso do Presidente George W. Bush, no Congresso dos Estados Unidos da
América, em 20 de setembro de 2001.
9 Hobbes de Malmesburry, Thomas: Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado
Eclesiástico e Civil. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1983.
10 Ver: Clausewitz, Carl von. Penser la guerre. Paris: Gallimart, 1976.
11 Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. Editora
Martins Fontes.
12 Ver Degaut Pontes, Marcos Rosa. "Terrorismo: Críticas, Tipologia e Presença
nas Relações Internacionais." Dissertação de Mestrado em Relações
Internacionais, Brasília, Fevereiro de 1999, p. 37 a 88.
13 Procópio, Argemiro. Estado, Soberania e o Plano Colômbia. Tempo e Presença.,
n. 318, Rio de Janeiro, Ano 23, Julho/Agosto de2001, p 15.
14 Tzu, Sun. A Arte da Guerra. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1997, p.99.
15 Freund, Julien. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Companhia Editora
Forense, 1970, p.52.
16 Bakunin, Michail. Freiheit und Sozialismus.Impressum/ Liberdad-Verlag.
Anarchistischer Bund Berlin. 1978; Kropotkin, Peter. Gesetz und Autoritåt.
Impressum/ Liberdad-Verlag. Anarchistischer Bund Berlin. 1978; Proudhon, Pierre
J. Eigentum ist Diebstahl. Impressum/ Liberdad-Verlag. Anarchistischer Bund
Berlin. 1978; Godwin, William. Über die Politische Gerechtigkeit. Impressum/
Liberdad-Verlag. Anarchistischer Bund Berlin. 1978; Reclus, Elisée. Evolution
und Revolution. Impressum/ Liberdad-Verlag. Anarchistischer Bund Berlin. 1978;
Tolstoi, Leo. Patriotismus und Regierung.Impressum/ Liberdad-Verlag.
Anarchistischer Bund Berlin. 1978; Malatesta, Errico. Anarchismus-
Syndikalismus.Impressum/ Liberdad-Verlag. Anarchistischer Bund Berlin. 1978;
Most, John. Kommunistischer Anarchismus. Impressum/ Liberdad-Verlag.
Anarchistischer Bund Berlin. 1978; Goldman Emma. Anarchismus ' Seine Wirkliche
Bedeutung. Impressum/ Liberdad-Verlag. Anarchistischer Bund Berlin. 1978;
Landauer, Gustav.Staat und Geist. Impressum/ Liberdad-Verlag. Anarchistischer
Bund Berlin. 1978; Mühsam, Erich. Der Geist der Freiheit. Impressum/ Liberdad-
Verlag. Anarchistischer Bund Berlin. 1978; Rocker, Rudolf. Anarchismus und
Organisation. Impressum/ Liberdad-Verlag. Anarchistischer Bund Berlin. 1978.
Abreviaturas
AUC ' Autodefesas Unidas da Colômbia
ELN ' Exército de Libertação Nacional
ETA ' Pátria Basca e Liberdade
Estados Unidos ' Estados Unidos da América
FARC ' Forças Armadas Revolucionárias Colombianas
FMLN ' Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional
GIA ' Grupo Islâmico Armado
IRA ' Exército Revolucionário Irlandês
OCDE ' Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico
OEA ' Organização dos Estados Americanos
ONU ' Organização das Nações Unidas
PLOTE ' Organização Popular para a Libertação do Tamil
PKK ' Partido dos Trabalhadores do Kurdistão
TIAR ' Tratado Interamericano de Assistência Recíproca
UVF ' Força Voluntária do Ulster