A atuação internacional do Estado em benefício de interesses privados: uma
análise jurídica da formação da "micropolítica" externa
Introdução: em busca do interesse nacional na política comercial externa
Há cinqüenta anos, Charles Wilson expunha ao Armed Services Committee do Senado
norte-americano sua visão da política externa: "o que é bom para a General
Motors, é bom para o país."1
A condução da política externa de um Estado implica perseguir, no cenário das
relações internacionais, o interesse nacional. Dentro de uma democracia, o
termo deve significar mais que um argumento de retórica política e traduzir-se
em mecanismos institucionalizados de diálogo entre o governo e os setores da
sociedade que têm interesse nos mais variados campos de atuação externa do
Estado. Desse modo, fica claro que, a par da dificuldade da defesa do interesse
nacional (que é externa, no sentido de que trava relações com outros atores
internacionais), o comportamento externo pressupõe o diálogo internono qual é
definido, concretamente, o que abrange o interesse nacional2 .
Sob a perspectiva da teoria liberal das relações internacionais, o Estado age
como representante de interesses de setores da sociedade que têm acesso às
instâncias decisórias que determinam, concretamente, o alcance do
interesse nacional3
. Nesse sentido, a própria idéia de interesse nacionalé desvirtuada,
autorizando Stephen KRASNER a sustentar que, na teoria liberal, "the concept of
public interest slips away" na medida em que "from a liberal perspective, the
public or national interest can only mean some summation of private interests"4
.
Desse modo, a importância da transparência que decorre da institucio-nalização
do diálogo Estado-sociedade repousa sobre esse ponto ' a busca em propiciar o
mais amplo diálogo possível ' de modo a evitar a "feudalização" da condução da
política externa e, ao contrário, permitir o mais amplo acesso à sua formação5
.
O incremento da legalização dos regimes internacionais6 de comércio coloca na
pauta das discussões a forma como um Estado elabora a sua política comercial
externa, justamente porque as normas internacionais produzem, de maneira
crescente, efeitos domésticos7 . Com efeito, as negociações de abertura de
mercados transformaram as burocracias estatais em defensoras dos interesses de
suas economias domésticas.
O advento da Organização Mundial do Comércio (OMC), com os órgãos e
procedimentos técnicos que criou, ilustra exemplarmente essa atuação da
diplomacia econômica que fez com que os Estados tivessem de voltar-se para a
discussão no nível técnico (econômico e jurídico)8 , na medida em que a
discussão política diminuía seu impacto, sem deixar, contudo, de estar
presente.
Analisada juridicamente, a Rodada Uruguai atribuiu uma série de novos deveres
aos Estados que então ingressavam na OMC (no sentido do aumento tanto do
freequanto do fair trade), ao mesmo tempo em que franqueava aos agentes do
comércio internacional ' particulares, na maioria dos casos ' "direitos" de
acesso aos mercados estrangeiros. Eis, em síntese apertada, a "fenomenologia"
das normas decorrentes dos acordos da OMC: Estados obrigando-se a garantir
melhor acesso aos seus mercados, o que corresponde, inegavelmente, a benefícios
criados para particulares9 .
O argumento pode ser visto, sob uma ótica mais ampla, como um exemplo da
estrutura do próprio International Trade Law, considerado como um conjunto de
regras de Direito Internacional (porque criadas entre Estados10 ), visando
liberalizar o comércio internacional por meio da redução das atividades
estatais que, de alguma forma, obstaculizam ou prejudicam o comércio leal. Como
as operações de comércio internacional são protagonizadas por particulares, são
estes os principais sujeitos beneficiados pelas normas, ao passo que são os
Estados os sujeitos passivos das obrigações.
O aumento do fluxo comercial internacional atribuído a esse movimento de
abertura de mercados projeta a concorrência comercial definitivamente para a
escala internacional e uma série de agentes privados desponta como atores das
relações internacionais.
Porém, a despeito da aparente "auto-suficiência" dos agentes particulares para
competir no cenário internacional, uma vez que os mercados ficam mais
acessíveis, a institucionalização do Direito Internacional do Comércio não
acompanhou o ganho de complexidade das relações internacionais e as empresas
ainda mantêm-se atadas aos seus Estados; é imprescindível a atuação externa do
Estado em seu benefício.
E aqui está o objetivo do presente trabalho: mostrar que, apesar da
"globalização" dos mercados, as empresas ainda precisam de seus Estados para a
defesa dos seus interesses perante a maior parte das instâncias internacionais.
Em outras palavras, o exame seguinte procura mostrar por que as empresas, por
um lado, são atores das relações internacionais, mas, por outro, ainda não
sujeitos de Direito Internacional.
Assentada essa premissa, demonstrada adiante, pode-se entender por que, em
Direito Internacional do Comércio, a atuação externa do Estado é pautada por um
"interesse nacional" que se confunde com aquele das empresas interessadas na
solução de um determinado problema; a idéia é que seja a resultante da
"mediação" de todos os interesses dos setores atingidos. Assim, para
compreender como se atualiza esse "interesse nacional" impõe-se empreender um
exame dos meios institucionalizados de diálogo entre setores interessados da
sociedade e o governo, o que possibilita avaliar as vias de acesso ao Estado e,
em parte, compreender o seu processo decisório.
As decisões dos Estados que digam respeito à defesa internacional do interesse
de sua indústria doméstica são, definitivamente, decisões de política externa.
No entanto, reconhecendo o alcance da decisão, convém adotar um neologismo ' a
"micropolítica" externa ' para destacar o caráter tópico dessa espécie de
decisão, que se oporia às demais decisões de política externa, aquelas nas
quais as principais linhas de ação internacional do Estado são estabelecidas e
que, portanto, têm abrangência maior.
Segue, em suma, uma análise que tenta responder: quais as normas que regulam o
contato de um particular ao seu Estado para que defenda interesse seu? Qual
margem de decisão possui o Estado para dar prosseguimento internacional à
queixa de sua indústria? Como os setores da sociedade interessados participam
desse processo decisório? Uma perspectiva jurídica dessas questões deverá ser
capaz de mostrar como o diálogo entre o governo brasileiro e a sociedade é
pouco institucionalizado.
Delimitação do exame
O estudo ocupa-se em mostrar a formulação da "micropolítica" externa em dois de
seus momentos, ambos inseridos no contexto do Mecanismo de Solução de
Controvérsias (MSC)11 da OMC: (a) a provocação da atuação do Órgão de Solução
de Controvérsias (OSC) e dos órgãos técnicos que lhe são subordinados (os
painéis e o Órgão de Apelação); e, (b) o descumprimento, por parte do Estado
perdedor em uma controvérsia, das decisões emanadas do OSC.
Vistos sob a perspectiva dos particulares interessados, os dois tópicos
traduzem-se nos dois capítulos em que se divide o exame, que privilegia o
diálogo ' que se trava no plano interno ' entre o Estado e setores da
sociedade. Assim, cuida-se de compreender como, no Brasil, a queixa de um
particular chega até ao OSC (I) e, em um segundo momento, demonstrar quais os
efeitos que a indústria nacional pode sofrer com o eventual descumprimento pelo
Brasil de uma decisão emanada do OSC (II).
I. O acesso da queixa da indústria doméstica à OMC
Como assinalado, as normas da OMC atribuem deveres a Estados e criam
correlativos benefícios a particulares. Juridicamente, porém, os particulares
beneficiados por tais normas não podem reivindicar na Organização a punição do
Estado que eventualmente tenha reduzido ou retirado algum benefício.
Um dos principais requisitos para que se possa atribuir a personalidade
jurídica internacional é que o beneficiário da norma possa reclamar contra a
sua violação em foro internacional12 . Assim, não basta que a norma, em sua
redação, atribua "direitos" a alguém; é preciso que, igualmente, confira o
direito de pleitear, perante tribunais internacionais, contra a violação desses
direitos. Isso não é o que sucede com os particulares na OMC.
Com efeito, as normas da OMC não apenas foram negociadaspelos Estados, como
também serão fiscalizadas por eles, a partir sobretudo da provocação da atuação
do MSC, cujo acesso (locus standi) lhes é restrito; ou seja, os particulares
não possuem titularidade para colocar em marcha o procedimento do MSC13 .
Desse modo, por exemplo, o prejuízo que um setor da indústria brasileira sofre
com o comportamento infrator de um Membro da OMC deve ser encaminhado ao
governo brasileiropara que este, então, conduza a reclamação ao OSC; isso
implica dizer que, se o governo brasileiro entender que não há conveniência
política em encaminhar a queixa à OMC, o prejuízo da indústria doméstica não é
reparado. Estamos, portanto, diante do instituto jurídico da proteção
diplomática14 .
A proteção diplomática, clássica figura do Direito Internacional, decorre da
ficção, consagrada em normas jurídicas, de que a "sociedade internacional" é
composta apenas por Estados, e que estes servem de mediadores entre seus
nacionais e os demais Estados. Cuida-se, na verdade, de regra procedimental que
serve para explicar como as queixas dos nacionais de um Estado podem ser
opostas contra outro: sempre através do Estado nacional.
A Comissão de Direito Internacional da ONU tem se debruçado sobre o tema desde
1996 e, em seu Relatório acerca da matéria, define a relação existente na
proteção diplomática da seguinte forma: "In the present articles diplomatic
protection means action taken by a State against another State in respect of an
injury to the person or property of a national caused by an internationally
wrongful act or omission attributable to the latter State."15
Ainda uma outra ficção sustenta a idéia da proteção diplomática: a ficção de
que o prejuízo causado por um Estado a um estrangeiro é, ao mesmo tempo, um
dano causado ao Estado do qual o estrangeiro é nacional. Em virtude dessa
ficção, o prejuízo ensejado ao particular ganha dimensão internacional porque
coloca dois Estados a ocupar nos pólos da controvérsia16 .
O Direito Internacional condiciona o exercício da proteção diplomática à
observância de dois requisitos: primeiramente, a nacionalidade do reclamante
deve ser, em regra, a do Estado que propõe internacionalmente a queixa; em
segundo lugar, o particular deve demonstrar ao Estado nacional ter esgotado os
recursos internos que o Estado infrator lhe proporcionara para, autonomamente,
reclamar. Só então o Estado nacional pode lançar-se contra o outro Estado.
Espaço que não é ocupado pelo Direito Internacional, contudo, é o do diálogo
entre o particular lesado e o Estado nacional. Esse espaço é preenchido pelo
direito interno de cada Estado, que pode determinar não apenas as formas pelas
quais o particular acessa o Estado ' para apresentar sua queixa, mas também o
âmbito de decisão que o governo detém para endossar ou não a queixa.
E é nesse segundo ponto que radica a principal desvantagem das ficções que
sustentam o instituto da proteção diplomática: a decisão do Estado nacional de
amparar a queixa do particular é política, o que pode fazer com que os
prejuízos fiquem desamparados por conta dos cálculos de conveniência que podem
demonstrar ser politicamente custosa a controvérsia vis-à-vis o Estado
infrator.
Eis um espaço atribuído à discricionariedade do Poder Executivo: apesar de ser
beneficiado pela norma jurídica, o indivíduo, pode-se dizer, não é titular de
direito subjetivodele decorrente, na medida em que não pode fazê-la valer17
autonomamente nos casos de violação. A proteção diplomática, assim, sinaliza a
descentralização da sociedade internacional; ao consagrar juridicamente a
ficção de que apenas Estados compõem a sociedade internacional, culmina por
negar as expectativas que as normas internacionais legitimamente criam para
particulares18 .
Transplantadas as noções em torno da proteção diplomática para o campo do
comércio internacional, duas conclusões devem ser tiradas.
A primeira é de que, conquanto as normas de Direito Internacional do Comércio
possam beneficiar particulares, as eventuais violações a esses benefícios ficam
à mercê do cálculo político realizado pelo Estado nacional, que decidirá sobre
encaminhá-las à OMC ou não. Desse modo, da mesma forma em que nos demais campos
do Direito Internacional, o encaminhamento da queixa do particular à OMC passa
pelo "filtro estatal", que é político19 .
A segunda conclusão, de ordem técnica, repousa sobre o fato de que a proteção
diplomática em Direito Internacional do Comércio pode assumir feições
particulares em alguns pontos.
Assim, a necessidade de que os particulares esgotem as instâncias internas do
Estado infrator parece não ser exigida pelos Estados nacionais antes de
encaminhar as queixas à OMC20 , até porque em alguns casos significaria um
verdadeiro contra-senso.
A outra particularidade gira em torno da necessidade de que o particular lesado
seja nacional do Estado que provoca a atuação dos órgãos multilaterais de
solução de controvérsias. Certo, a proteção diplomática pode ser estendida para
empresas; contudo, as normas multilaterais fazem alguma exigência de que um
Estado apenasencaminhe queixas de empresas nacionais?
O Entendimento de Solução de Controvérsias da OMC (ESC) não faz nenhuma
exigência nesse sentido21 ; ao contrário, uma leitura superficial de seus
dispositivos revela a idéia de que os direitos eventualmente lesados são sempre
de titularidade dos Estados22 . O dispositivo que mais de perto trata do
processo decisório que o Estado realiza quanto ao encaminhamento de uma queixa,
sem, contudo, referir o contato com os particulares, é o §7º do art. 3º:
"Before bringing a case, a Member shall exercise its judgement as to whether
action under these procedures would be fruitful."
Para resolver essa questão convém traçar uma analogia com as regras
multilaterais que dispõem sobre a defesa comercial: a despeito das diferenças
entre o processo decisório do Estado que é chamado a aplicar medidas
compensatórias ou direitos antidumping com o processo decisório de encaminhar
ou não uma queixa à OMC, é possível traçar certas identidades entre as duas
formas de diálogo indústria-governo.
Com efeito, é disso que trata a regulamentação da defesa comercial: do acesso
de particulares às instâncias governamentais para que estas coloquem em marcha
os procedimentos de investigação que podem culminar com a "punição" de produtos
estrangeiros subsidiados ou objeto de dumping. A principal diferença repousa em
que, enquanto o diálogo fundado na aplicação de instrumentos de defesa
comercial é alvo de rigorosa regulamentação, o diálogo que concerne ao
encaminhamento de queixas à OMC não é, como visto. Contudo, na medida em que
ambos são formas de acesso ao governo, é possível utilizar, por analogia, as
regras de uma das formas de acesso na explicação da outra.
Desse modo, tanto o Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC)
quanto o Acordo Antidumping (AAD) da OMC estabelecem detalhada exigência de que
as investigações de defesa comercial sejam propostas pela
domestic industry23
, ou seja, que o reconhecimento das reclamações sobre produtos subsidiados ou
objeto de dumping só pode ser feita quando promovida pela indústria doméstica.
Parece razoável dizer que o mesmo se aplicaria para os casos de queixas cujo
objeto fosse provocar as instâncias multilaterais. Se o argumento procede, pelo
menos esse requisito da proteção diplomática se mostraria também presente no
acesso das reclamações de particulares à OMC.
Seja como for, no Brasil não há normas que, de maneira expressa, regulem o
diálogo governo-particulares, quando estes pretendem fazer que eventual
prejuízo seja encaminhado à OMC. Ao que tudo indica, a formulação das decisões
de "micropolítica externa" não é regulamentada e não se vislumbra a necessidade
de que o Executivo informe os demais poderes acerca dos motivos que fundamentam
as decisões nesse campo, como ocorre normalmente nos casos de proteção
diplomática.
A experiência no direito comparado, entretanto, mostra alguns casos em que há
regulamentação sobre a matéria. Isso reflete a percepção de que os particulares
devem saber como proceder quando benefícios que lhes decorrem de acordos
internacionais de comércio são violados, algo que não é comum nos demais
assuntos em que os Estados exercem a proteção diplomática.
Nos EUA, se o US Trade Representative decide não iniciar o procedimento de
investigação, que pode culminar com o encaminhamento, deve informar o Congresso
das razões para não fazê-lo24 :
"If the Trade Representative makes a determination under subparagraph
(B) not to initiate an investigation, the Trade Representative shall
submit to the Congress a written report setting forth, in detail '
(i) the reasons for the determination, and (ii) the United States
economic interests that would be adversely affected by the
investigation."25
Tratando-se de blocos regionais, é possível notar uma maior regulamentação do
diálogo entre governo e setores domésticos, com vistas a encaminhar demandas
aos órgãos de solução de controvérsias. O Artigo 1904.5 do NAFTA refere-se ao
encaminhamento de queixas de particulares aos órgãos regionais de solução de
controvérsias. A regra dispõe que:
"An involved Party on its own initiative may request review of a
final determination by a panel and shall, on request of a person who
would otherwise be entitled under the law of the importing Party to
commence domestic procedures for judicial review of that
determination, request such review." (grifado)
O dispositivo é claramente original porquanto estabelece que o particular tem
direito a convocar um painel para julgar sua controvérsia. Considerando que a
titularidade do pedido de constituição de um painel no NAFTA, para os casos
abrangidos pelo dispositivo (direitos antidumping e medidas compensatórias), é
dos Estados que formam a zona de livre comércio, o dispositivo confere ao
particular um direito à proteção diplomática("An involved Party (...) shall
(...) request such review"). Trata-se de caso aparentemente sem similares no
Direito Internacional.
O Direito Comunitário europeu não avança tanto quanto o NAFTA neste particular.
Porém, por outro lado, a Comissão Européia centraliza a atividade de encaminhar
queixas da indústria comunitária à OMC, algo ausente no NAFTA, em que a defesa
da indústria nacional no foro multilateral é encargo de cada membro.
Seja como for, a Regulação de Barreiras ao Comércio26 (Trade Barriers
Regulation), que substituiu o "Novo Instrumento de Política Comercial" (NIPC),
estabelece os parâmetros do diálogo Comissão-indústria, com vistas a, entre
outros, encaminhar reclamações à OMC27 . Apesar das alterações motivadas pela
necessidade de adaptar o mecanismo comunitário ao marco multilateral decorrente
da Rodada Uruguai, a atuação da Comissão ainda continua passível de revisão
judicial.
Desse modo, as empresas comunitárias cuja queixa não tenha sido deferida pela
Comissão ' e que, portanto, não seguem para a OMC, podem acionar a Corte de
Justiça das Comunidades para que uma revisão judicial da decisão da Comissão
seja procedida. Nesse sentido, por exemplo, o caso Fediol, ainda na vigência do
NIPC:
"1. No âmbito da aplicação do Regulamento nº 2641/84, relativo à
defesa contra as práticas comerciais ilícitas, as empresas que, a fim
de obterem a adopção de medidas de defesa, tenham apresentado uma
denúncia desatendida pela Comissão, podem pedir ao Tribunal que
fiscalize a legalidade da referida decisão no caso de esta se limitar
a qualificar a prática denunciada de não contrária às disposições do
Acordo Geral sobre as Pautas Aduaneiras e o Comércio, sem incluir uma
apreciação sobre o interesse da Comunidade na abertura de um processo
de inquérito ou mesmo sobre o prejuízo ou a ameaça de prejuízo para a
produção da Comunidade em questão"28
Em outros termos, o Direito Comunitário não apenas assenta os critérios que
pautam a decisão da Comissão como também prevê a possibilidade de submeter as
decisões ao escrutínio judicial. Evidentemente, a margem de judicial review é
aquela dos atos administrativos discricionários: circunscreve-se à legalidade
dos atos, sem pronunciar-se sobre a oportunidade e conveniência da decisão, que
são decisões políticas.
Desse panorama delineado, vê-se que as normas de direito internacional do
comércio estabelecem benefícios aos particulares, principais protagonistas do
comércio internacional. Delas decorrem expectativas que fornecem o pano de
fundo para o incremento da interdependência das economias nacionais.
Contudo, as expectativas que nascem da vigência de tais normas podem ser
frustradas porque a regulamentação do acesso aos órgãos multilaterais de
solução de controvérsias permite que permaneçam sem solução.
Disso decorre a politizaçãodas controvérsias comerciais internacionais, já que
é preciso que o Estado nacional provoque o outro, o que confere ao conflito uma
dimensão maior do que provavelmente teria se a empresa/indústria lesada tivesse
titularidade para questionar a conduta do Estado infrator29 .
A politização das controvérsias comerciais ainda produz o efeito de fazer com
que a indústria doméstica prejudicada tenha de garantir bom acesso ao seu
governo, o que implica, a contrario sensu, que os setores sem acesso ao governo
ficam desamparados. Nessa perspectiva, a existência do "filtro político"
exercido pelo Estado através da proteção diplomática confirma juridicamente a
perspectiva da teoria liberal das relações internacionais nesse microcosmo:
apenas chegariam à OMC as queixas que fossem convenientes ao governo, vale
dizer, aos setores que possuem poder decisório no Estado30 .
Sob essa perspectiva, a existência de regras que estabelecem a margem de ação
da administração é um avanço; a possibilidade de submeter a decisão
administrativa ao controle judicial, um avanço ainda maior.
II. O descumprimento de decisão da OMC pelo Brasil e o efeito de ricochete
sobre os particulares
O exame precedente enfocou a hipótese em que uma empresa brasileira é lesada
por país membro da OMC e requer que o governo provoque a ação dos órgãos
multilaterais. A análise permitiu destacar a falta de regulamentação do contato
entre empresa e governo.
O presente capítulo inverte essa perspectiva e se ocupa de visualizar os casos
em que o Brasil é "acionado" por outro membro da OMC e é considerado infrator,
de modo que as medidas adotas pelo Brasil, ipso facto, devem ser retiradas. O
objetivo é mostrar como, também aqui, a falta de diálogo institucionalizado no
Brasil pode trazer prejuízo a particulares.
A solução de controvérsias na OMC é regida pelo Entendimento de Solução de
Controvérsias (ESC). O Art. 21.1 do ESC determina que o Estado perdedor deve
adotar medidas para garantir pleno cumprimento das decisões do OSC, em um
período a ser informado em reunião dentro de 30 dias da adoção da decisão final
(Art. 21.3). O Membro perdedor pode, ao invés de adequar-se às normas que
violou, oferecer compensaçõesao Estado ganhador (Art. 22.1).
No entanto, se o Estado perdedor não retirar a medida violatória e as
compensações eventualmente oferecidas não forem aceitas, o Art. 22.2 autoriza o
ganhador a requerer a suspensão de concessõesatribuídas ao infrator.
As concessões que podem ser suspensas são, na verdade, as condições de acesso
ao mercado do Estado ganhador que os produtos provenientes do Estado perdedor
fariam jus em virtude dos compromissos assumidos nas rodadas de negociação. A
sanção decorrente da atividade do OSC nada mais é do que o retorno da relação
entre os países envolvidos na controvérsia ao estado anterior às negociações.
A imposição da sanção é organizada pelo Entendimento. Com efeito, o parágrafo
3º do Art. 22 estabelece que a suspensão deve atingir: (a) em primeiro lugar, o
mesmo setor do produto que ensejou a controvérsia; (b) em hipótese secundária,
outros setores regidos pelo
mesmo acordo31
; (c) e, em último caso, a sanção pode incidir sobre concessões decorrentes de
outro acordo.
A leitura do Artigo, assim, mostra que é possível que uma disputa envolvendo um
setor da economia doméstica (aviação civil, produtos agrícolas, etc) possa
produzir efeitos em outros setores, na hipótese do Estado não cumprir a decisão
final expedida pelo OSC.
Isso, na verdade, não é algo novo no ambiente do Direito Internacional; trata-
se, ao contrário, de uma característica que define um de seus traços clássicos,
a
responsabilidade coletiva32
, i.e., a punição de toda a coletividade pelo ilícito internacional praticado
em nome do Estado.
A particularidade que as normas de Direito Internacional do Comércio reclamam,
contudo, repousa sobre o fato apontado anteriormente: é preciso que os setores
que serão atingidos por ricochete não apenas saibam disso mas, sobretudo, que
possam participar do processo governamental que envolve as decisões sobre o
cumprimento (ou sobre como cumprir) as determinações do OSC.
De que forma o governo dialoga com os setores que podem ser atingidos por tais
sanções?
Sem dúvida, a regulamentação mais precisa acerca do assunto é aquela que
estabelece o procedimento seguido pelo USTR. Desse modo, circulada a decisão da
OMC o USTR deve comunicar os órgãos competentes no Poder Legislativo para
debater o cumprimento da decisão:
"Promptly after the circulation of a report of a panel or of the
Apellate Body to WTO members in a proceeding described in subsection
(d) of this section, the Trade Representative shall (...) (3) if the
report is adverse to the United States, consult with the appropriate
congressional committees concerning whether to implement the report´s
recommendation and, if so, the manner of such implementation and the
period of time needed for such implementation."33
Além disso, as partes que possam ter interesse no desdobramento da controvérsia
tem a possibilidade de apresentar seus comentários antes que a decisão do USTR
sobre o cumprimento seja expedida:
"(...) (d) Opportunity for comment by interested parties: Prior to
issuing a determination under this section, the administering
authority or the Commission, as the case may be, shall provide
interested parties with an opportunity to submit written comments
and, in appropriate cases, may hold a hearing, with respect to the
determination."34
O Brasil, por sua vez, não possui uma regulamentação sobre o acesso dos setores
da economia doméstica que podem ser atingidos por sanções impostas por outros
Estados contra o país. Desse modo, o diálogo é feito de forma casuística e não
necessariamente conduzido pelo Ministério das Relações Exteriores.
Ausente ou não a regulamentação, certo é que mesmo nos casos em que os setores
domésticos têm acesso previsto às instâncias governamentais, a decisão final de
cumprimento (ou descumprimento) pode não satisfazer às expectativas de todos:
volta-se, também nesse ponto, ao filtro político exercido pelo Estado, na
medida em que a decisão sobre como reagir à determinação multilateral é, apesar
do diálogo, do governo35 .
A questão que necessariamente segue é: podem os setores atingidos por ricochete
pela suspensão de concessões exigir de seu governo reparação nas instâncias
judiciárias domésticas?
A atuação das instâncias judiciárias em questões que dizem respeito à condução
de política externa tem crescido em virtude do aumento de normas internacionais
que produzem efeitos domésticos36 .
Uma análise aprofundada desse particular não é aqui cabível, mas cumpre
assinalar que a simples possibilidade de decisões judiciais pronunciarem-se
sobre matérias relativas à política externa representa uma certa relativização
na concepção monopolística da condução dos negócios externos pelo Poder
Executivo; vale dizer, a possibilidade de submeter os atos praticados pelo
Executivo à análise judicial (nos mais variados graus de análise, bem
entendido) mostra que as "conseqüências judiciais" das decisões de política
externa passarão a ser consideradas pelo Executivo.
Assim, por um lado, reconhece-se que o Executivo é o Poder com maior aptidão
para representação externa do Estado e mantém-se em suas mãos a competência de
conduzir os assuntos estrangeiros37 ; por outro, entretanto, o aumento da
atuação judicial em casos referentes a temas internacionais mostra ao Executivo
que suas decisões têm um "custo", cobrado pelo Judiciário. Na medida em que a
tripartição de poderes é um dos pilares dos Estados modernos, é preciso
delimitar a área de atuação do Judiciário frente à do Poder Executivo nos
assuntos que digam respeito à política externa. Assentados os limites, poder-
se-á proceder ao exame da possibilidade de cobrar, através do Judiciário, o
ressarcimento que os atos do Executivo produziram aos nacionais.
O tratamento contemporâneo dispensado aos atos de política externa deve ser
inserido no contexto dos atos administrativos discricionários: aqueles em torno
de cuja adoção o Poder Judiciário não se manifesta acerca da oportunidade
tampouco da conveniência, decisões que soberanamente competem ao Poder
Executivo. A análise judicial, contudo, existe e aborda a legalidade do ato,
com a principal finalidade de apreciar o respeito aos poderes
constitucionalmente distribuídos ao Executivo38 .
Desse modo, fica afastada a tradicional doutrina que via nos atos de política
externa uma categoria sui generis, a dos atos políticos, os quais transitavam à
margem de qualquer controle judicial.
A classificação dos atos de política externa como atos discricionários implica,
portanto, reconhecer que certos aspectos da decisão não são analisados pelo
Judiciário (e, portanto, são considerados non-justiciable questions), ao passo
que outros podem desafiar a judicial review.
Essa delimitação é visível na jurisprudência norte-americana das political
questions:
"War ' Constitutionality of war in Indochina ' President´s power to
continue hostilities ' whether formal declaration of war necessary '
political question (...) The court concluded that the question
whether the President had exceeded his constitutional authority in
continuing to prosecute the war was a political question which the
court could not decide."39
A jurisprudência brasileira sobre atos políticos parece correr em sentido
similar. Dada a falta de precedentes específicos para o controle judicial sobre
atos de política externa, é por analogia que se traça o argumento:
"Questão política . Quando não escapa ao conhecimento do Poder
Judiciário. As medidas políticas são discricionárias apenas no
sentido em que pertencem à discrição do Congresso ou do Governo os
aspectos de sua conveniência ou oportunidade a apreciação das
circunstâncias que possam autorizá-las. Mas a discrição legislativa
ou administrativa não pode exercitar-se fora dos limites
constitucionais ou legais. O antigo critério jurisprudencial norte-
americano (merely, purely, exclusively political questions) foi
superado."40
O pedido de indenização para particulares, decorrente de prejuízo advindo de
sanção imposta contra o Brasil pelo OSC é passível de ser feita pela via
judicial? Ou, ao contrário, a decisão do governo brasileiro ' entendida pelo
OSC como violatória ' deriva do âmbito de discricionariedade gozado pelo
governo brasileiro e, portanto, alheia ao controle judicial?
Na medida em que a jurisprudência nacional ainda não contempla precedentes
nessa área (na verdade, nem mesmo a jurisprudência internacional), segue uma
análise que especula tanto os fundamentos para deferir quanto para indeferir o
pedido indenizatório.
Uma especulação em torno do indeferimento do pedido de indenização
O Poder Judiciário não está dotado dos mesmos meios que o Poder Executivo para
lidar com problemas de política externa. Eis uma das razões que justifica não
apenas a pouca jurisprudência sobre assuntos internacionais mas também a
timidez41
dos juízes diante da necessidade de decidir tais matérias, quando inevitável:
"Perhaps it is because it is so difficult to reconcile the foregoing
definition of Art. III judicial power with the broad range of vitally
important day-to-day questions regularly decided by Congress or the
Executive, without either challenge or interference by the Judiciary,
that the decisions of the Court in this area have been rare,
episodic, and afford little precedential value for subsequent cases.
The tensions present in any exercise of executive power under the
tripartite system of Federal Government established by the
Constitution have been reflected in opinions by Members of this Court
more than once."42
Essa timidez traduz-se nas mais variadas regras adotadas pelos tribunais, que
culminam por restringir a margem de apreciação que os juízes gozam sobre os
atos ligados às relações internacionais; certamente a regra mais notória dessa
espécie é a da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros: através dela,
os Estados estrangeiros não podem ser réus perante os tribunais de outros
países, sob pena de violar a sua soberania43 . Em outras palavras, a regra
implica dizer que o tratamento de um Estado com os demais é feito pelo
Executivo, e não pelo Judiciário.
Projetando o argumento para a análise empreendida, temos que, se o ato de
política externa for considerado integralmentede competência do Executivo ' e
que, portanto, o Judiciário não apreciaria nem mesmo os pedidos de indenizações
deles decorrentes, estaríamos diante da versão judicial para o argumento
"realista" da
especificidade da política externa44
. Ou seja, o Executivo surgiria como árbitrodos interesses dos nacionais
eventualmente envolvidos na condução da política externa e o Judiciário, órgão
inapto para lidar com esses problemas, não analisaria nem mesmo os pedidos de
indenização decorrentes dos prejuízos advindos da condução da política externa.
De uma certa maneira, é isso que decorre da jurisprudência consolidada na Corte
de Justiça das Comunidades Européias (CJCE) quando se trata de atribuir
vigência comunitária às normas multilaterais e às decisões dos órgãos da OMC.
Com efeito, a jurisprudência comunitária assentou a ausência de efeito direto
às disposições multilaterais que, portanto, não podem servir de fundamento de
recursos de particulares e Estados membros contra os órgãos comunitários.
Em caso recente, na esteira da decisão do caso Bananas, um particular invocou
em um Recurso de Anulação contra a Comissão o disposto em um relatório da OMC.
A parte relevante da ementa dispõe que:
"Um operador econômico não pode invocar um relatório do Órgão de
Recurso Permanente da Organização Mundial do Comércio (OMC), nem a
decisão pela qual o Órgão de Resolução de Litígios da OMC aprovou
esse relatório, para sustentar que o sistema de organização comum dos
mercados no sector da banana, instituído pelo Regulamento nº 404/93,
já não existe. (...). Além disso, para que uma disposição de uma
decisão de que o interessado não seja destinatário possa ter efeito
directo em relação a ele tal disposição deverá impor ao destinatário
uma obrigação incondicional e suficientemente clara e precisa a favor
do interessado."45
A argumentação da CJCE alinha-se ao raciocínio, aventado acima, de que as
normas multilaterais não criam direitos para os particulares; a peculiaridade
do raciocínio da Corte, não obstante, está em considerar que os particulares
estão despidos de direito subjetivo porque as disposições das normas
multilaterais são "amplas" ' de modo a não deixar claro qualo direito
decorrente da norma ' e também porque o regime multilateral prevê a
possibilidade de que os Estados resolvam negociadamente as controvérsias. A
falta de locus standi aos órgãos da OMC não é discutida:
"O Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio [GATT] não contém
disposições susceptíveis de conferir aos particulares direitos que
estes possam invocar perante os órgãos jurisdicionais nacionais para
se opor à aplicação de disposições nacionais contrárias. Com efeito,
as particularidades do referido acordo, que se caracteriza por uma
grande flexibilidade das suas disposições, designadamente das que
dizem respeito às possibilidades de derrogação, às medidas que podem
ser tomadas perante dificuldades excepcionais e à composição dos
diferendos entre as partes contratantes, opõe-se à criação desses
direitos."46
Uma especulação em torno da possibilidade de exigir a reparação
Melhor argumento parece repousar sobre o deferimento do pedido de reparação. A
idéia de que os benefícios concedidos pelas normas internacionais aos
indivíduos são de disposição exclusiva dos Estados dos quais são nacionais
desafia a lógica subjacente aos Estados democráticos.
Certo, o indivíduo não possui direito subjetivo decorrente das normas
internacionais; não obstante, isso não implica dizer que a expectativa criada
pela norma internacional não possa ser protegida e assegurada nos casos de
frustração.
A própria jurisprudência norte-americana considera que os prejuízos decorrentes
de atos de política externa são passíveis de "cobrança" pelo Judiciário. No
caso Dames & Moore v. Regan, a Suprema Corte entendeu que era passível de
controle judicial a apreciação dos prejuízos decorrentes de decisão
presidencial que sustava a constrição sobre bens iranianos sob jurisdição
norte-americana47 .
"The possibility that the President's actions with respect to the
suspension of the claims may effect a taking of petitioner's property
in violation of the Fifth Amendment in the absence of just
compensation makes ripe for adjudication the question whether
petitioner will have a remedy at law in the Court of Claims."
(ementa)
O direito brasileiro possui, na Constituição, regra clara que serve de
argumento para sustentar o pedido de reparação pelos prejuízos decorrentes de
atos de política externa. Assim, o art. 5º, § XXXV estabelece que toda a lesão
ao direito pode ser objeto de pedido de reparação ao Judiciário: "a lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito."
Ainda, se for considerado que, pela Constituição brasileira, a responsabilidade
do Estado é objetiva, pode-se afirmar que as expectativas derivadas dos
compromissos internacionais assumidos pelo país não devem ser frustradas, sob
pena de reparação. Isso porque, não se perquirindo das razões motivadoras da
decisão tomada pelo governo, basta a demonstração do nexo causal entre a
decisão e o dano provocado ao particular.
Nesse sentido, o art. 37, §6º, dispõe que: "As pessoas jurídicas de direito
público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão
pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros (...)".
Que conseqüências produz a aceitação pelo Judiciário de pedidos de indenização
frente aos atos lesivos praticados pelo Executivo, no âmbito da condução da
política externa?
A conseqüência mais imediata é mostrar que o Judiciário surge como espaço no
qual, domestica e institucionalizadamente, a política externa é discutida. Com
efeito, apesar de tratar-se de análise posterior, a formação de jurisprudência
consagrando a responsabilidade do Executivo nesses casos cria, inegavelmente, a
"sombra" que se projeta para os casos futuros, para fazer com que os "custos
judiciais" das decisões governamentais sejam tomados em conta.
Sob uma perspectiva mediata e teórica, a participação indireta do Judiciário
demanda uma releitura da teoria liberal das relações internacionais: se a
política externa de um Estado não é senão a projeção internacional dos
interesses das elites que têm acesso ao governo48 , o acesso ao Judiciário
permite que os setores preteridos na decisão governamental possam ter voz,
ainda que isso requeira a produção de danos a esses setores. Em outros termos,
a teoria liberal considera que a participação na política externa é apenas
aquela que tem lugar nas esferas decisórias do governo, quando o papel que o
Judiciário pode ocupar nesse cenário, ainda que em condições particulares, não
deve ser desprezado.
Notas
1 Apud "Mr. Diplomat", in Foreign Policy, July/August 2001, p.40
2 O que decorre da perspectiva da atividade diplomática como um jogo de dois
níveis, no sentido de Putnam: "The politics of many international negotiations
can usefully be conceived as a two-level game. At the national level, domestic
groups pursue their interests by pressuring the government to adopt favorable
policies, and politicians seek power by constructing coalitions among those
groups. At the international level, national governments seek to maximize their
own ability to satisfy domestic pressures, while minimizing the adverse
consequences of foreign developments." (PUTNAM, Robert. Diplomacy and domestic
politics: the logic of two-level games. International Organization, v. 42, n.
3, 1988, p. 434)
3 "[i]n the liberal conception of domestic politics, the state is not an actor
but a representative institution constantly subject to capture and recapture,
construction and reconstruction by coalitions of social actors. Representative
institutions and practices constitute the critical 'transmission belt' by which
the preferences and social power of individuals and groups are translated into
state policy. Individuals turn to the state to achieve goals that private
behavior is unable to achieve efficiently. Government policy is therefore
constrained by the underlying identities, interests, and power of individuals
and groups (inside and outside the state apparatus) who constantly pressure the
central decision makers to pursue policies consistent with their preferences"
(MORAVCSIK, Andrew, Taking preferences seriously: a liberal theory of
international politics, International Organization, v. 51 (4), 1997, p. 518).
Nesse particular, o postulado liberal identifica-se com a visão marxista sobre
a formulação da política externa. A respeito, KRASNER, Stephen. Defending the
national interest. Princeton: Princeton University Press, 1978, p.5.
4 Op cit., p. 28
5 "Quanto mais numerosos forem os elementos de pluralidade, comunicação e
participação em um sistema, mais difícil será para suas elites e seus grupos de
interesse permanecerem hegemônicos, e o fator mais sujeito a alterações é o
equilíbrio entre seus diversos níveis e fluxos de comunicações e decisões
políticas internas e externas." (DEUTSCH, Karl. Análise das relações
internacionais. 2ª. ed. Brasília: Editora UnB, 1982, p.151)
6 Que é um capítulo da legalização das relações internacionais, nos termos
propostos por GOLDSTEIN, KAHLER, KEOHANE e SLAUGHTER (International
Organization, v. 54, n. 3, 2000).
7 Com a globalização, "a diplomacia amplia o seu alcance. Deixa de ser um modo
privilegiado de diálogo entre Estados e passa a tecer uma complexa teia de
atores, de lealdades variadas. Neste sentido, estamos diante de uma nova
diplomacia, que se orientaria por três linhas básicas de preocupação: i. o
cuidado com a construção de regras de convivência internacional: classicamente,
as regras tinham escopo limitado (alianças com vistas a segurança, tarifas
comerciais, etc.) e eram redigidas em negociações diplomáticas em que
prevalecia o interesse estratégico. Hoje, o processo é sensivelmente mais
complexo, porque os temas são extremamente variados, alguns de alta
complexidade técnica, e, muitas vezes, o processo de discernir o melhor
interesse nacional não é evidente.; ii. a necessidade de lidar com os impulsos
internos: exatamente em função da variedade de seus temas e do fato de que
trazem repercussões diretas sobre interesses de setores nacionais, o processo
de formulação de posições diplomáticas, no quadro democrático, passa a integrar
a lógica do cálculo realista das possibilidades de agir e a lógica dos ganhos e
custos dos grupos sociais, afetados pelas opções diplomáticas concretas (...).;
iii. a variedade de interlocutores (...)" (LAFER, Celso & FONSECA JR.,
Gelson. Questões para a diplomacia no contexto internacional das polaridades
indefinidas (notas analíticas e algumas sugestões), in FONSECA JR., Gelson
& NABUCO DE CASTRO, Sérgio Henrique (orgs.). Temas de Política Externa
Brasileira II. Vol. 1, FUNAG-Paz e Terra: Brasília-São Paulo, 1997, p. 73,
grifado); ver também HIRST, Mônica & SOARES DE LIMA, Maria Regina. Contexto
internacional, democracia e política externa.Política Externa, v. 11, n. 2,
2002, p. 88.
8 O que dota o diálogo diplomático de "dialetos" aos quais os agentes políticos
externos não estavam acostumados: o das normas jurídicas (quando as discussões
internacionais são travadas perante órgãos judiciais, como é o Órgão de
Apelação da OMC) e o da lógica econômica. Aliás, o aumento da legalização dos
regimes internacionais destaca a necessidade da formação de uma "diplomacia
jurídica", i.e., a formação de diplomatas que transitem com desenvoltura dentro
do ambiente do Direito Internacional e dos regimes, cada vez mais específicos,
que existem ("Legal commitments mobilize legally oriented interest and advocacy
groups, such as the organized bar, and legitimize their participation in
domestic decision making. They also expand the role of legal bureaucracies
within foreign offices and other government agencies." (ABBOTT, Kenneth W.
& SNIDAL, Duncan. Hard and soft law in international governance.
International Organization¸ v. 54, n. 3, 2000, p.44)). Nesse sentido, a criação
da Cordenação-Geral de Contenciosos, na gestão Lafer, é um sinal da atualização
institucional do Itamaraty nesse sentido. Da mesma forma, no campo econômico, a
reestruturação operada na área econômica do Ministério: "A crescente
complexidade técnica e a semelhança das pautas negociadoras levou-me a
determinar a reestruturação da área econômica do Itamaraty. Com unidades
administrativas organizadas em função de temas, e não mais com base nos foros
negociadores, será possível operar com maior eficiência e coerência." (Balanço
das atividades do Itamaraty ao longo do último ano ' Intervenção CEP. Curitiba,
19 de abril de 2002, MRE: Informações à imprensa, n. 179, 19/04/2002).
9 US ' Sections 301-310 of the Trade Act of 1974(OMC, Relatório do Painel, WT/
DS152/R), §7.76: "The security and predictability in question are of the
'multilateral trading system'. The multilateral trading system is, per force,
composed not only of States, but also, indeed mostly, of individual economic
operators. The lack of security and predictability affects mostly these
individual operators.";no mesmo sentido KESSIE, Edwini. Enhancing security and
predictability for private business operators under the Dispute Settlement
System of the WTO. Journal of World Trade, v. 34, n. 6, 2000, p. 2; também
KEOHANE, Robert O. Problematic lucidity. Stephen Krasner´s "State power and the
structure of international trade". World Politics, v. 50, n. 1, 1997, p.150
10 Daí traduzir International Trade Law como Direito Internacional do Comércio,
ramo do Direito Internacional Público, em oposição ao Direito do Comércio
Internacional, que se ocupa das relações privadas travadas entre os agentes do
comércio internacional.
11 Que compreende a estrutura institucional ' o Órgão de Solução de
Controvérsias, painéis ad hoc e o Órgão de Apelação ' e também as normas e
jurisprudência que regulam o procedimento de litígios envolvendo membros da OMC
em decorrência da violação de um dos acordos fiscalizados pela Organização.
12 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3ª ed., 2ª. tiragem. São
Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 494.
13 Não entrarei na discussão da aceitação, na jurisprudência da OMC, dos amicus
curiae briefs tampouco da utilização de advogados trazidos pelos particulares
envolvidos no litígio, na medida em que não falseiam o ponto principal, que é a
dependência do particular ao Estado. A respeito dessa forma de participação dos
non-state actors no procedimento de solução de controvérsias na OMC, ver
HERNÁNDEZ-LÓPEZ, Ernesto. Recent trends and perspectives for non-state actor
participation in World Trade Organization disputes. Journal of World Trade, v.
35, n. 3, 2001, p. 469-498.
14 "Private parties who have experienced market access problems would first
have to petition their governments which may then decide whether or not to
lodge a formal complaint at the WTO." (KESSIE, op. cit., p.4), também MAVROIDIS
et allii. Is the WTO Dispute Settlement Mechanism responsive to the needs of
the traders? Would a system of direct action by private parties yield better
results?. Journal of World Trade, v. 32, n. 2, 1998, p. 147;. a regulamentação
norte-americana sinaliza claramente para a existência da proteção diplomática,
ao permitir a discricionariedade do USTR em conduzir uma queixa adiante: "The
Trade Representative is not required under subparagraph (A) to initiate an
investigation under this subchapter with respect to any act, policy, or
practice of a foreign country if the Trade Representative determines that the
initiation of the investigation would be detrimental to United States economic
interests." (19 U.S.C., § 2412, (b), (2), (B), grifado); "(...) a Embraer é uma
companhia competitiva, responsável por um desempenho exportador importante de
produtos de alta tecnologia. Enquanto tal ela é já por si só merecedora do
respaldo do governo brasileiro. Aliás esse é um caso típico do que se chama de
proteção diplomática porque só se chega ao sistema de solução de controvérsias
da OMC se um país membro entende que o interesse da empresa corresponde ao
interesse nacional." (Briefing concedido pelo Sr. Ministro das Relações
Exteriores, Prof. Celso Lafer. MRE: Informação à Imprensa, n. 33, 28/01/2002,
grifado)
15 Draft article 1, International Law Commission, First report on diplomatic
protection, 52ª Sessão, 2000, A/CN.4/506, p. 11.
16 "Le préjudice subi par une personne privée et résultant d´une violation du
droit international ne donne pas en soi un droit à la victime d´obtenir
réparation. En revanche, 'son' Etat national peut prendre 'fait et cause' pour
elle et 'endosser' sa réclamation. Ce faisant, le conflit appartient alors à
l´ordre international et il devra être tranché sur la base du droit
international, dans la mesure où, désormais, il va opposer deux Etats."
(CARREAU, Dominique. Droit International.4ª ed., Paris: Pedone, 1994, p.432)
17 "Ce mécanisme classique d''endossement' par l´Etat national est
potentiellement injuste pour l´individu. En effet, l´Etat national peut
s´abstenir de le protéger ou peut aboutir, pour des raisons d´Etat, à un accord
partiel qui ne satisfasse pas l´individu lesé." (CARREAU, op. cit., p.434,
grifado no original)
18 "Cette construction n´est évidemment pas satisfaisante du point de vue de la
technique juridique, ni même de la simple logique, car elle repose sur une
fiction juridique évidente: l´indentification de l´individu intéressé et de
l´Etat dont il est le national." (SCELLE, Georges. Droit International. Paris:
Domat-Montchrestien, 1944, p.417)
19 "(...) export interests must operate through a government filter. If there
is a high probability that the government will not be willing to bring the
dispute to the WTO, cases may not be brought. Governments may not want to bring
cases to the WTO for fear of stimulating counter claims (the 'glass house'
syndrome)" (HOEKMAN, Bernard & KOSTECKI, Michel. The political economy of
the World Trading System. 2ª ed., Oxford: Oxford University Press, 2001, p.87)
20 A minuta de acordo sobre solução de controvérsias na ALCA é, no Direito
Internacional do Comércio, um caso quase excepcional; o número 20 da minuta
estabelece: "Nos casos em que o direito internacional exigir a exaustão dos
recursos locais, nenhuma controvérsia existente entre as Partes deverá ser
submetida aos procedimentos estipulados no presente capítulo, salvo e até que
tal requisito tenha sido satisfeito atendido."
21 Nas controvérsias entre os membros do Mercosul, o Protocolo de Brasília
(art. 26, §1º) faz a exigência da nacionalidade da queixaquando se tratar de
reclamações de particulares, ao estabelecer que: "Os particulares afetados
formalizarão as reclamações ante a Seção Nacional do Grupo Mercado Comum do
Estado Parte onde tenham sua residência habitual ou a sede de seus negócios."
(grifado). O Protocolo de Olivos, que substitui o de Brasília, mantém a regra
em seu artigo 40, §1º.
22 Por exemplo, o art. 3º, §2º estabelece que "Members recognize that it serves
to preserve the rights and obligations of Members under the covered agreements
(...)"
23 O conceito deindústria doméstica, encontrado tanto no art. 16 do ASMC quanto
no art.4º do AAD, é similar nos dois acordos: "(...) the term "domestic
industry" shall be interpreted as referring to the domestic producers as a
whole of the like products or to those of them whose collective output of the
products constitutes a major proportion of the total domestic production of
those products (...)"
24 "(...) de forma geral, é ainda hoje possível ao USTR iniciar ou não um
processo de inquérito face a um caso concreto (...) e, portanto, é exacto que a
sua competência não é susceptível de fiscalização jurisdicional." (Conclusões
do Advogado-Geral Van Gerven no caso Fediol ' Federação da Indústria Oleícola
da CEE contra Comissão das Comunidades Européias, Processo 70/87, Coletânea da
Jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, 1989-6, p.
1811).
25 19 U.S.C., § 2412, (b), (2), (C).
26 Regulamento 3286/94.
27 RYDELSKI, Michael Sánchez & ZONNEKEYN, G.A.V.R. The EC Trade Barriers
Regulation. Journal of World Trade, v. 31, n. 5, 1997, p. 159.
28 Op. cit., p. 1782.
29 A solução seria atribuir acesso direto à OMC aos particulares? A questão é
controvertida porque opõe a necessidade de satisfazer os beneficiários das
normas multilaterais às restrições orçamentárias da Organização, que teria o
volume de trabalho aumentado exponencialmente. Bronckers opta pelo acesso
direto: "As long as non-judicial remedies result in government-to-government
disputes, there will be political inhibitions to using them. The only way to
change this and remove these inhibitors is to give private parties direct
access to international non-judicial remedies." (BRONCKERS, Marco C.E.J., Non-
judicial and judicial remedies in international trade disputes: some
reflections at the close of the Uruguay Round. Journal of World Trade, v. 24,
n. 6, 1990, p. 122)
30 E é por tal razão que alguns regimes internacionais (sobretudo os regimes
europeu e interamericano de proteção aos direitos humanos) atribuem aos
particulares lesados acesso direto às instâncias internacionais, dispensando a
"tutela" de seu Estado; aliás, os particulares são autorizados inclusive a
provocar os órgãos internacionais contra seus Estados nacionais. Nesse cenário,
em que a proteção diplomática é deixada de lado, a teoria liberal perde
confirmação.
31 Os acordos multilaterais, administrados pela OMC, que compõem o single
undertaking, i.e., obrigam todos os membros da Organização, são o GATT, o GATS
e o TRIPS.
32 KELSEN, Hans. Derecho y paz en las relaciones internacionales. Cidade do
México: Fondo de Cultura Económica, 2ª. ed, 1ª. reimpressão, 1996, p. 124-8.
33 19 U.S.C., § 3533, (f), grifado.
34 19 U.S.C., § 3538.
35 "Member States may have mechanisms to incorporate non-State actors. These
mechanisms do not require Members to listen or incorporate non-State views."
(HERNÁNDEZ-LÓPEZ, op. cit., p.476)
36 Slaughter e Bosco cunharam o termo plaintiff´s diplomacy para designar a
litigância em torno de questões de política externa: "(...) new forms of
litigation can have powerful and wide-ranging consequences, both intended and
unforeseen. This is specially obvious in one area long thought outside the
power of domestic courts: foreign policy. Increasing numbers of individuals,
including torture and terrorrism victims, Holocaust survivors, and denizens of
dwindling Amazon rain forest, are now using lawsuits to defend their rights
under international law." (SLAUGHTER, Anne-Marie & BOSCO, David.
Plaintiff´s diplomacy. Foreign affairs,v. 79, n. 5, 2000, p. 102)
37 Nos termos assentados, de forma que se tornou clássica, por Hamilton nos
Federalist Papers, n. 75 (edição da Encyclopaedia Britannica, 19a.reimpressão,
1971, p. 222-225).
38 A respeito GORDILLO, Agustín. Tratado de Derecho Administrativo. Tomo 2, 3ª
ed.. Buenos Aires: Fundación de Derecho Administrativo, 1998, p. 40-52.
39 Mitchell v. Laird, 476 F. 2nd. 533, US Court of Appeals, District of
Columbia Circuit, 20/03/1973.
40 STF, Mandado de Segurança 1423/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Galotti,
julgado em 22/01/1951.
41 A expressão é empregada em DINH, Nguyen Quoc; PELLET, Alain e DAILLIER,
Patrick. La timidité du juge dans l´exercice de ses compétences.Droit
Internacional Public. 6ª. ed, Paris: LGDJ, 1999, p. 235.
42 Dames & Moore v. Regan, 453 U.S. 654 (1981), Opinião da Corte, pelo
Justice Rehnquist.
43 Mesmo que se considere a regra na forma relativa, como vige atualmente.
44 Desenvolvido de forma excelente por SOARES DE LIMA, Maria Regina.
Instituições democráticas e política exterior. Contexto internacional, v. 22,
n. 2, 2000.
45 Fruchthandelsgesellschaft mbH Chemnitz contra Comissão das Comunidades
Européias, Processo T-254/97, Colectânea da Jurisprudência do Tribunal de
Justiça e do Tribunal de Primeira Instância, Parte II, 1999 ' 9/10, p. 2744.
46 Amministrazione delle finanze dello Stato contra Chiquita Italia SpA
(decisão prejudicial), Processo C-469/93, Colectânea, Parte I, 1995-12, p.
4534.
47 Mesmo que no caso se tratasse de determinar se o recorrente teria acesso à
Claims Commission criada pelo Acordo de Alger para que norte-americanos
pudessem ressarcir-se contra o Irã dos prejuízos sofridos.
48 "States do not act; the decision-making elites in states act on behalf of
the state." (AREND, Anthony Clark, Toward an understanding of international
legal rules, inBECK, Robert et alii, International Rules ' Approaches from
international law and international relations. Oxford: Oxford University Press,
1996, p.294, grifado no original).