O Brasil frente ao conflito regional na América Central: oposição ao
intervencionismo e apoio à solução negociada, justa, equilibrada e duradoura
(1979-1996)
"Quando os homens lutam, os deuses intervêm."
Homero
Introdução
Entre 1979 e 1996, teve lugar, na América Central, um conflito regional
violento e extremamente complexo. Esse conflito regional terminou provocando
expressivas reações entre diferentes atores ou agentes da sociedade
internacional. Mais ainda, tais reações não se limitaram aos meios estritamente
governamentais ' ou exclusivamente diplomáticos. Pelo contrário, um
considerável número de atores não-governamentais e da sociedade civil '
incluindo certas organizações de classe, o mundo acadêmico, as instituições
religiosas, parlamentares, entre outros ' não deixaram de exercer "pressão"
ante os respetivos governos para que esses formulassem e implementassem
políticas exteriores frente ao conflito regional em questão, congruentes com as
suas próprias percepções, interpretações e interesses. Nessa ordem de idéias, o
propósito deste artigo é explorar e compreender a lógica inerente à política
brasileira frente ao conflito regional na América Central.
Em termos gerais, as fontes documentais, sobretudo as fontes do Arquivo
Histórico do Ministério das Relações Exteriores (AHMRE), sugerem que a política
brasileira frente ao conflito regional imperante na América Central orientou-se
por um conjunto coerente, persistente e construtivo de ponderações. Tais
ponderações terminaram dando lugar ao que aqui se chamará de "tese brasileira"
sobre a origem, a evolução e os possíveis mecanismos de resolução para o
conflito regional.
Convém agregar, ainda, que a relativamente bem sucedida pacificação e a
democratização da América Central, em grande medida sob os auspícios dos
processos negociadores de Contadora, primeiro, e de Esquipulas, depois, também
terminaram confirmando a validez do pregado pela assim chamada "tese
brasileira".
1. Alguns antecedentes do relacionamento brasileiro-centro-americano durante o
século XX
As relações econômicas, políticas e culturais entre o Brasil e os cinco países
da América Central ' termo que se refere à Guatemala, El Salvador, Honduras,
Nicarágua e Costa Rica ', durante o século XX, demostram uma tendência
orientada para uma gradual convergência de interesses, cordialidade e
fortalecimento dos diferentes vínculos. De fato, trata-se de um relacionamento
quase-centenário, amistoso, construtivo e promissor; porém, que ainda na
atualidade continua sendo relativamente modesto. O professor José Carlos Brandi
Aleixo (1983: 22), que é um dos principais acadêmicos brasileiros que tem
estudado as tendências do relacionamento brasileiro-centro-americano, atribuiu
essa situação, entre outras causas, a:
as distâncias geográficas; a inexistência ou precariedade dos meios
de transporte e comunicação; a vinculação excessiva das colônias com
suas metrópoles; a escassez de informação mútua sobre a história, a
geografia, a economia, a política e a cultura de modo geral; a
ausência por muito tempo de Legações com Ministros residentes nos
respectivos países; a diferença de línguas; etc. Consequentemente a
presença do Brasil na América Central e da América Central no Brasil,
particularmente até a primeira metade deste século [XX], é muito
limitada.
Em sendo assim, parece pertinente agregar que entre 1906, quando o Brasil
estabeleceu relações diplomáticas com as nações da América Central, e o 25 de
junho de 1979, quando o governo do Presidente João Batista de Oliveira
Figueiredo decidiu suspender as relações diplomáticas com o desacreditado
regime nicaragüense comandado pelo general Anastasio Somoza Debayle, o
relacionamento brasileiro-centro-americano pode ser analisado em três
subperíodos, os quais, salvo melhor juízo, podem ser definidos como: (a) os
contatos iniciais (1906-1950); (b) o fortalecimento das relações diplomáticas
plenas (1950-1971); e c) a intensificação das relações econômicas e políticas
(1971-1979).
Durante o período dos contatos iniciais as partes começaram a interagir.
Particularmente expressiva terminou sendo, nesse sentido, a Terceira
Conferência Internacional Americana, celebrada na cidade do Rio de Janeiro,
entre os dias 23 de julho e 27 de agosto de 1906. De fato, Aleixo (1983, 1984)
sublinha que tal acontecimento impulsionou um relacionamento mais estreito e
duradouro, dado que até então os vínculos políticos, econômicos ou culturais
eram praticamente nulos. E, três meses após o conclave, o Presidente Augusto
Moreira Pena autorizou a abertura de uma Legação brasileira para os governos de
Cuba e das nações da América Central.
A partir de então, e durante a maior parte do século XX, a política brasileira
frente às nações do istmo centro-americano ' incluindo os outros dois
subperíodos supracitados ' caraterizou-se pelo surgimento de um conjunto de
regularidades, que não deixaram de repercutir na formulação e implementação da
política de Brasília frente ao conflito regional em questão.
No plano político-diplomático e estratégico, por exemplo, a política brasileira
aparentemente reconheceu certa preponderância dos interesses estratégicos dos
Estados Unidos na Bacia do Caribe, em geral, e na América Central, em
particular (Burns, 1966). Isso derivou em uma virtual relação triangular
brasileiro-centro-americana-estadunidense, na qual a política da potência média
(Brasil) frente às potências menores (países da América Central) terminou sendo
definida não somente por tópicos essencialmente bilaterais ou pressões
domésticas, mas também pela avaliação das visões, aspirações e prioridades da
potência hegemônica do continente (os Estados Unidos ). Convém agregar que essa
articulação entre a potência hegemônica do continente, a potência média e as
pequenas potências foi particularmente clara durante a primeira metade do
século XX, quando o governo brasileiro implementou uma política essencialmente
de baixo perfil e uma atitude relativamente discreta e complacente frente ao
intervencionismo ' inclusive frente ao intervencionismo militar ' do governo
estadunidense em várias das nações localizadas na Bacia do Caribe,
argumentando-se que o Brasil não tinha interesses nacionais vitais naquela
região (Burns, 1966; Cervo e Bueno, 2002; Camargo, 1985). Cabe registrar que a
cooperação brasileiro-estadunidense com relação à Bacia do Caribe alcançou o
zênite na controvertida intervenção conjunta na República Dominicana, em 1965
(Moniz Bandeira, 1998; Reiner, 1987; Moniz Bandeira, 1999; Aleixo, 1987).
Durante os decênios de 1960 e 1970, o relacionamento brasileiro-centro-
americano foi favorecido pelas convergências ideológicas ' anticomunistas '
preponderantes nos regimens autoritários imperantes nesses países (com a
notável exceção do caso da Costa Rica). Tais coincidências político-ideológicas
entre governos autoritários, junto à tradicional cordialidade e normalidade no
relacionamento entre as partes, traduziu-se no oferecimento de oportunidades de
estudo para oficiais centro-americanos em academias militares brasileiras, a
possibilidade de exportação de material de emprego militar de fabricação
brasileira para os países do istmo, o apoio mútuo de candidaturas em organismos
internacionais, a constante denúncia das alegadas tendências subversivas do
regime revolucionário cubano (e de outros países de orientação socialista),
etc. De fato, em 1973, o então embaixador brasileiro em Manágua, Milton Faria,
chegou a qualificar o ditador nicaragüense, Anastasio Somoza Debayle, como
"nosso amigo", dado que, argumentou-se, "representa no Continente uma enorme
barreira, o único obstáculo aos anseios da extrema esquerda [sic]."1 Em
contrapartida, os governos autoritários do istmo centro-americano expressaram
de forma reiterada, pública e definitiva a simpatia e identificação com o
projeto sócio-político-econômico dos herdeiros da assim chamada "revolução
brasileira" de 1964.
No plano econômico e comercial, o relacionamento brasileiro-centro-americano,
caraterizou-se por dois aspetos básicos ' vigentes ainda na atualidade. De um
lado, nas convergências de interesses no tocante à defesa dos preços do café '
e também do açúcar ' no mercado internacional, dado que os países em questão
são importantes fornecedores do produto. De fato, a coordenação das políticas
cafeeiras e a mútua verificação da adscrição e respeito pelas respectivas cotas
de exportação pactuadas foram (e continuam sendo) tópicos expressivos na agenda
econômica entre as partes.
Por outro lado, o outro motivo que estimulou a intensificação das relações
econômicas foi o persistente interesse dos exportadores brasileiros por
penetrar no mercado da América Central. Desse modo o comércio entre os países
começou a tomar certo vigor. Inicialmente, os produtos brasileiros com maior
demanda potencial no istmo foram têxteis finos, produtos farmacêuticos,
eletrodomésticos e produtos odontológicos.
Em contraste, as exportações centro-americanas para o Brasil continuaram sendo
virtualmente nulas. Isso, devido, entre outras razões, a que todos os produtos
que os países centro-americanos exportavam ao mercado internacional (café,
banana, carne, algodão, açúcar, etc.) eram essencialmente agrícolas e, também,
eram praticamente os mesmos que o Brasil produzia com a mesma finalidade. De
fato, as agroexportações brasileiras e centro-americanas normalmente terminavam
competindo entre si no mercado internacional. Daí os elementos mais
característicos e duradouros do relacionamento econômico brasileiro-centro-
americano, entre outros: (i) a considerável assimetria na pauta comercial; (ii)
a ausência de complementaridade no intercâmbio; (iii) os problemas logísticos;
(iv) o caráter relativamente modesto do montante e volume do intercâmbio; e (v)
o perturbador e persistente superávit na balança comercial em favor do Brasil.
Antes de concluir a presente epígrafe é pertinente agregar dois acontecimentos
no relacionamento brasileiro-centro-americano recente: a visita do chanceler
Mário Gibson Barbosa às nações do istmo (em 1971) e a suspensão das relações
diplomáticas entre o Brasil e a Nicarágua (em 1979).
A visita do Chanceler Gibson Barbosa foi um acontecimento sumamente importante
nas relações bilaterais do Brasil com cada um dos países do istmo centro-
americano. Note-se que era a primeira vez, na história das relações
internacionais contemporâneas da América Latina e do Caribe, que um
representante diplomático brasileiro de tão alto nível recorria às nações
centro-americanas. Em cada um dos cinco países, o Chanceler Gibson Barbosa foi
recebido pelas máximas autoridades. Assinaram-se cinco Declarações Conjuntas,
ademais dos respectivos discursos (Aleixo, 1983a).
As Declarações Conjuntas foram muito parecidas. No âmbito político, as partes
destacaram: a "tradicional e estreita amizade" entre o Brasil e cada um dos
países da América Central; o compartilhado respeito pelos princípios do Direito
Internacional que regem (ou deveriam reger) nas relações internacionais; o
respaldo à participação ativa das partes nos foros multilaterais (ONU, OEA,
Cecla, Unctad, etc.); a condenação ao terrorismo; o estímulo à cooperação e
solidariedade interamericana; a criação de Comissões Mistas; etc.
No âmbito econômico, as Declarações Conjuntas abordaram a necessidade de
insistir ante os países industrializados em prol da implementação de sistemas
de preferências generalizados não recíprocos nem discriminatórios em favor dos
países em desenvolvimento; o reconhecimento dos direitos do mar (200 milhas de
uso exclusivo, etc.); a proteção dos preços de produtos básicos (café, etc.); a
intensificação das relações comerciais entre os países membros do Mercado Comum
Centro-Americano (MCCA) e da Associação Latino-Americana de Livre Comércio
(Alalc); o apoio financeiro para a importação de produtos brasileiros '
mediante a abertura de linhas de crédito por um valor de US$1 milhão para cada
um dos países da América Central; a inauguração de linhas de transporte
marítimo; etc.
Ademais, no âmbito cultural, colocou-se a necessidade de ampliar e aprofundar
os intercâmbios científicos e artísticos, assim como a implementação de
programas de assistência técnica mediante o oferecimento de bolsas para que
estudantes da América Central pudessem ingressar nas universidades brasileiras.
Em termos mais amplos e de longo prazo, a visita do Chanceler Gibson Barbosa à
América Central pode ser interpretada como outra das conseqüências das
significativas transformações econômicas e sócio-políticas que o capitalismo
brasileiro estava experimentando no contexto do chamado "milagre econômico"
(1969-1973). Sob essa perspectiva, não parece incorreto sugerir que o Brasil
estava procurando consolidar a sua presença comercial em mercados pouco
explorados, principalmente o africano, mas também o da América Latina e do
Caribe, entre outros, levando em conta as facilidades tecnológicas
"tropicalizadas" oferecidas pelos exportadores brasileiros. Também, procurava
estabelecer relações internacionais com base em objetivos próprios, com ênfases
na necessidade de promover o crescimento econômico e insistindo na
possibilidade de impulsionar relações mais equilibradas e justas entre os
países industrializados do Norte e as nações em desenvolvimento do Sul (Cervo e
Bueno, 1992: Capítulo 15; Vizentini, 1998; Moniz Bandeira, 1999: Capítulos VII
e VIII; Lima, 1990).
Ao mesmo tempo, a visita do Chanceler Gibson Barbosa à América Central pode ser
interpretada como conseqüência do alegado declínio do poder hegemônico dos
Estados Unidos na região e, portanto, como uma oportunidade para redefinir os
acordos tácitos entre brasileiros e estadunidenses surgidos no primeiro terço
do século XX sobre as respectivas políticas frente à Bacia do Caribe, com maior
benefício comercial e político para os primeiros. A partir dessa perspectiva, a
Bacia do Caribe deixaria de ser uma região de hegemonia exclusiva dos Estados
Unidos, afirmação duvidosa desde o triunfo e consolidação da elite
revolucionária cubana, abrindo as condições e possibilidades para que
"potências industriais emergentes", como o Brasil, conseguissem construir um
espaço para alcançar objetivos próprios ' de natureza econômica, política e
estratégica ' nessa e em outras regiões do mundo (Moniz Bandeira, 1999).
Paralelamente, a suspensão das relações diplomáticas brasileiro-nicaragüenses,
por iniciativa do governo do Presidente Figueiredo, foi um acontecimento
extremamente significativo e um antecedente direto da política brasileira
frente ao conflito regional na América Central.
Efetivamente, em 25 de junho de 1979, o governo brasileiro anunciou a suspensão
das relações diplomáticas com o governo da Nicarágua. Lamentavelmente, os
documentos consultados no Arquivo Histórico do Ministério das Relações
Exteriores (AHMRE) não explicam a lógica burocrática que determinou a tomada de
uma decisão tão grave e pouco usual. Contudo, tal documentação oferece pistas
que permitem fazer uma reconstrução dos acontecimentos. Nesse sentido, a
decisão de romper com o agonizante regime do general Somoza Debayle pode ter
sido tomada ' salvo melhor juízo ' com base em quatro ponderações básicas: (a)
o acelerado processo de desgaste internacional do regime somozista; (b) a
continuidade (e algumas sutis mudanças) implementadas na política exterior pelo
novo governo brasileiro, encabeçado pelo general João Batista de Oliveira
Figueiredo (1979-1985); (c) as pressões do Parlamento brasileiro; e (d) o
exemplo costarriquenho, mexicano e de outros países latino-americanos e
caribenhos.
Em termos gerais, não parece incorreto ponderar que Brasília teria suspendido
as relações diplomáticas com o desacreditado governo do general Somoza Debayle
devido ao acelerado processo de deterioração da situação interna e
internacional da Nicarágua somozista. As grosseiras e sistemáticas violações
aos direitos humanos do povo da Nicarágua foi a razão central que justificou a
convocatória da XVII Reunião de Consulta da OEA (entre 1978 e 1979). As
resoluções dessa reunião terminaram colocando o regime de Manágua,
virtualmente, na ilegalidade. Nesse contexto, o governo brasileiro teria
interrompido as suas relações com a Nicarágua para acelerar a queda do regime e
agradar às futuras autoridades do país. Adicionalmente, vale realçar que tanto
a mentalidade "pragmática" herdada pela diplomacia brasileira como as
"pressões" procedentes do Parlamento e o exemplo de outros países latino-
americanos e caribenhos foram fatores importantes na resposta de Brasília
frente à crise terminal do governo somozista. Obviamente, tais ponderações são
antecedentes importantes para compreender e interpretar as reações iniciais do
Brasil frente ao emergente conflito regional na América Central, que é o que
mais interessa para os fins do presente artigo.
Em suma, a partir de uma perspectiva temporal mais abrangente, parece adequado
reiterar que, durante o século XX, as relações Brasil-América Central foram
essencialmente corretas, porém modestas. Essa situação é possível atribuir-se
tanto à ausência de interesses nacionais vitais do Brasil no istmo (e vice-
versa), como a um fator estratégico sumamente importante que é a presunção
hegemônica dos Estados Unidos entre os países da Bacia do Caribe (incluindo a
América Central). Por essas e outras razões, a política centro-americana do
Brasil, a partir da "era Rio Branco" (1902-1912), teria evitado se imiscuir nos
assuntos da Bacia do Caribe, em geral, e da América Central, em particular.
Tratar-se-ia, então, de uma virtual relação triangular entre brasileiros,
centro-americanos e estadunidenses. Isso é parte do fundamento do que Bradford
Burns (1966) chamou de a "aliança não escrita" entre os Estados Unidos e o
Brasil. Também, uma interpretação especulativa e indireta sobre a natureza, a
lógica e as políticas que têm orientado as relações Brasil-América Central
durante a maior parte do século XX. Ao mesmo tempo, parece importante sublinhar
que com base em tais considerações é possível compreender e interpretar a
evolução do relacionamento brasileiro-centro-americano a partir de 1979.
2. O conflito regional na América Central, no contexto global da Segunda Guerra
Fria: brevíssima análise
Como dito, entre 1979 e 1996, teve lugar na América Central um conflito
regional, que pode ' ou deve ' ser estudado sob a perspetiva da história da
Segunda Guerra Fria (1979-1989). Convém ressaltar que a noção de Segunda Guerra
Fria ' termo acunhado pelo historiador britânico Fred Halliday (1986) ' alude à
complexa articulação de ambientes, interpretações teóricas e políticas de
Estado que provocaram ou foram conseqüência da notória intensificação de
tensões, competição e conflito globalizado imperante nas relações
internacionais entre dezembro de 1979 ' quando os países membros da Otan
determinaram o incremento dos orçamentos de defesa e a instalação de mísseis de
alcance intermediário, por um lado, e ocorreu a intervenção militar direta dos
soviéticos no Afeganistão, por outro lado ' e novembro de 1989 ' queda do muro
de Berlim. A periodização da história da Segunda Guerra Fria inclui uma fase de
bipolaridade rígida (1979-1985) e outra fase de bipolaridade flexível (1985-
1979).
Entretanto, o termo conflito regional, que é sumamente importante para os fins
deste artigo, alude a uma situação de aguda tensão e conflito armado gerado
pela interação complexa entre fatores locais (e sub-regionais), por um lado, e
influências, aspirações e pressões hegemônicas extra-regionais, por outro.
Sendo que a interação entre pressões endógenas e exógenas ameaçou comprometer o
envolvimento das duas superpotências da época, os Estados Unidos e a União
Soviética, seja direta ou indiretamente (por meio dos seus respectivos
aliados). Note-se, assim, a expressiva importância da lógica e das políticas
inspiradas na confrontação, competição e tensão próprias da bipolaridade
estratégica, política, econômica e ideológica, isto é, a lógica da Segunda
Guerra Fria, que dominou a evolução da sociedade internacional entre 1979 e
1989. Portanto, um conflito regional supõe (ou supôs durante o decênio de 1980)
a "internacionalização" ou "globalização" de uma crise local ou sub-regional,
pela articulação de fatores essencialmente endógenos com pressões e aspirações
hegemônicas de potências continentais e globais.2
Com tais antecedentes conceituais em mente, vale notar que as origens e a
evolução do conflito regional imperante na América Central a partir da segunda
metade do decênio de 1970 apresentaram conotações endógenas e exógenas.
Sob o ponto de vista endógeno, parece evidente que houve na América Central dos
anos setenta a gradual passagem do "inaceitável" para o "insuportável" ' isto
é, "o que viola a dignidade humana" (Duroselle, 2000: 194ss). A ordem econômica
e sócio-política imperante nas nações do istmo a partir da implantação das
assim chamadas reformas liberais de fins do século XIX começou a ser nova e
vigorosamente questionada por diferentes atores ou agentes ' inclusive por
"novos" movimentos de libertação nacional. Vale recalcar que tal questionamento
do essencialmente injusto, desequilibrado e autoritário estilo de
(sub)desenvolvimento econômico e sócio-político ' imperante durante demasiado
tempo e em benefício de uns poucos privilegiados ' originou-se,
fundamentalmente, por pressões endógenas.
Em outras palavras, a dimensão endógena do conflito regional na América Central
sugere que se tratou da relação dialética entre o desejo dos povos de superar a
injustiça social, o autoritarismo político e a notória iniqüidade na
distribuição da renda, por um lado, e a natural resistência do assim chamado
"bloco histórico no poder" dominante nos países do istmo ' particularmente na
Guatemala, El Salvador e Nicarágua ', por outro lado (Rouquié, 1994). Ou, como
afirmou categoricamente o Deputado Federal Aluízio Bezerra (PMDB-AC), na Câmara
dos Deputados do Brasil, no dia 11 de março de 1982, tratava-se da contradição
entre "as forças que querem a liberdade, a independência, o desenvolvimento
objetivo e emancipador, contra os que querem a continuação da miséria, da
opressão e do retrocesso social."3
Assim, uma série de transformações econômicas e sócio-políticas ' incluindo o
surgimento de movimentos de libertação nacional, como a Frente Sandinista de
Libertação Nacional (FSLN), a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional
(FMLN) e a Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG) ' terminaram
fazendo do istmo uma das regiões mais conflituosas do mundo. O triunfo da
revolução popular sandinista na Nicarágua (em julho de 1979) e a reativação das
forças insurgentes em El Salvador e na Guatemala marcaram o estopim de um
conjunto de tensões e conflitos armados, que somente se concluiriam depois da
(surpreendente) derrota eleitoral dos sandinistas (em fevereiro de 1990) e da
assinatura e aplicação dos compromissos de paz firme e duradoura pactuados '
sob os auspícios dos processos negociadores de Contadora, primeiro, e
Esquipulas, depois ' em El Salvador (1992) e na Guatemala (1996). Sendo,
ademais, que a Costa Rica e Honduras, apesar de não experimentarem diretamente
o drama da guerra civil, também sofreram os rigores emanados da lógica e das
políticas próprias do conflito regional.4
Em suma, a dimensão regional do conflito regional na América Central alude
fundamentalmente à complexa articulação dos seguintes tópicos específicos: (a)
conflitos armados internos em El Salvador, na Guatemala e na Nicarágua
sandinista (guerra dos "contras", anti-sandinistas financiados pelo governo dos
Estados Unidos ); (b) grave crise econômica e social nos cinco países, reflexo
da chamada "década perdida" no desenvolvimento latino-americano e caribenho; e
(c) complexos processos de transição do autoritarismo para a democracia em
quatro dos cinco países do istmo.
Por sua vez, a dimensão exógena do conflito regional demanda uma análise nas
suas especificidades centro-americana, continental e global ' cada uma delas
"encadeadas" ou articuladas entre si e com a dimensão endógena.
A dimensão especificamente centro-americana do conflito regional refere-se às
tensões e divergências provocadas pelas mútuas acusações de intervenção nos
assuntos internos dos Estados vizinhos, pelo apoio ' legal ou ilegal '
oferecido a atores ou agentes afins (governos internacionalmente reconhecidos,
forças irregulares, etc.) nos outros países. Tal apoio incluiu respaldo
político-diplomático, militar, financeiro, de propaganda, ideológico, entre
outros.
Particularmente complexa terminou sendo a convivência entre o governo da
Nicarágua sandinista, por um lado, e os ideologicamente conservadores governos
imperantes nos países vizinhos, por outro. De fato, Manágua acusou seus
vizinhos, particularmente Costa Rica, Honduras e El Salvador, de apoiarem a
controversa luta dos assim chamados "contras" (também respaldados pelos
governos dos Presidentes Ronald Reagan e George Bush). Entretanto, os vizinhos
da Nicarágua denunciavam os possíveis vínculos do governo sandinista com forças
insurgentes que operavam na região ' sobretudo com as guerrilhas da FMLN, em El
Salvador ', configurando um aparente intento de "exportação da revolução".
Convém agregar que a dimensão especificamente centro-americana do conflito
regional, ainda que com dificuldade, conseguiu manter-se no caus das
divergências políticas e diplomáticas ' evitando-se, assim, a escalada de um
aberto e dramático conflito armado regional.
A dimensão continental do conflito regional refere-se à participação de atores
de outros países americanos (sobretudo latino-americanos) e seu impacto no
conflito em questão. De fato, desde muito cedo, os governos ' bem como atores
não-governamentais e da sociedade civil ' de diferentes Estados latino-
americanos e caribenhos identificaram-se e apoiaram, com diferentes meios
(políticos, diplomáticos, financeiros, ideológicos e inclusive militares), a
diferentes agentes que operavam no istmo. Nesse sentido, particularmente
relevantes foram os casos do México, da Venezuela, de Cuba, da Argentina, do
Panamá, da Colômbia e do Chile, além do caso brasileiro.
Vale ressaltar que, a partir da criação do chamado Grupo de Contadora (em
janeiro de 1983),5 a grande maioria dos governos da região e do mundo optaram
por respaldar a capacidade negociadora desse grupo, orientada para a busca de
uma solução negociada, justa, equilibrada e duradoura para o conflito. E, em
1985, integrou-se o chamado Grupo de Apoio ao processo negociador de Contadora,
com a participação dos governos da Argentina, do Brasil, do Peru e do Uruguai.
Sob a perspetiva da história das relações internacionais contemporâneas da
América Latina e do Caribe, o processo negociador de Contadora (vigente
sobretudo entre 1983 e 1986) erigiu-se em uma extraordinária experiência de
concertação e coordenação política entre Estados (Frohmann, 1990). Note-se que
a iniciativa multilateral de mediação em questão caraterizou-se pelo seu
estrito apego ao direito internacional, o seu convincente diagnóstico das
causas e da evolução do conflito regional, uma nova "praxis" na metodologia de
resolução de conflitos, entre outras ponderações. Os esforços político-
diplomáticos dos países latino-americanos enquadrados no processo negociador de
Contadora, ainda que não foram coroados com a assinatura da "Ata de Contadora
para a paz e cooperação na América Central" ' devido à feroz e persistente
oposição da potência hegemônica do continente ', conseguiram conter a lógica do
conflito, abrir canais de comunicação e negociação, influir no processo
negociador de Esquipulas ' dirigido pelos próprios governos da América Central
' e preparar as condições que permitiram a criação do Mecanismo Permanente de
Consulta e Concertação Política ou Grupo do Rio (Grio).
Entretanto, a dimensão global do conflito regional refere-se à intervenção de
potências e atores extra-regionais, entre outros: as superpotências da época, a
ONU, certos países europeus. O controvertido intervencionismo das
superpotências, especialmente dos Estados Unidos durante as duas administrações
do Presidente Ronald Reagan (1981-1989), terminou agudizando os conflitos
latentes (Carpenter, 1986; Rouquié, 1994; Gleijeses,1986; Aleixo, 1987). Sem
esquecer que o caso da estratégia de conflito de baixa intensidade implementada
pelo governo dos Estados Unidos contra a revolução sandinista e contra forças
insurgentes em El Salvador, Guatemala e Honduras foi motivo de muito debate,
inclusive na Corte Internacional de Justiça.
Contudo, acontecimentos tais como o escândalo Irã-"contras", o "novo
pensamento" de política exterior soviética da "era Gorbachëv", a queda do muro
de Berlim, entre outros importantes fatos mundiais, terminaram não só com a
lógica e com as políticas inerentes da Segunda Guerra Fria, como também
ofereceram mais favoráveis condições e possibilidades para que os atores
envolvidos diretamente nos conflitos conseguissem resolvê-los pacificamente.
Nesse sentido, é compreensível que, a partir de 1986, os próprios governos,
movimentos insurgentes e outros atores do istmo conseguissem, no marco do assim
chamado processo negociador de Esquipulas, autonomamente, chegar a acordos
relevantes. Tais acordos, cujo eixo orientava-se para a simultânea pacificação
e democratização das diferentes sociedades da região, permitiram colocar fim a
uma situação de conflito, destruição e morte.
A relativamente bem sucedida pacificação e democratização das nações da América
Central ' ainda que padecendo de certos percalços, contradições e limitações '
é uma conquista extremamente relevante sob a perspectiva da história das
relações internacionais contemporâneas da América Latina e do Caribe. Sem
esquecer que o Brasil, junto a outros países do subcontinente, persistentemente
demandou tanto a restrição das ' antijurídicas e imorais ' aspirações e
pressões hegemônicas e intervencionistas das superpotências, como uma saída
negociada, justa, equilibrada e duradoura para o conflito regional em questão.
3. A "tese brasileira" sobre a origem, a evolução e os possíveis mecanismos de
resolução para o conflito regional imperante na América Central: em busca de
uma caraterização da lógica da política centro-americana do Brasil durante os
perturbadores anos da Segunda Guerra Fria
Em termos gerais, as fontes, sobretudo as fontes primárias resgatadas no
Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores (AHMRE), sugerem que a
política externa brasileira frente ao conflito regional imperante na América
Central, entre 1979 e 1996, formulou-se e implementou-se através de um conjunto
relativamente permanente de critérios que, coletivamente, deram lugar ao que
aqui se tem chamado de "tese brasileira" sobre a origem, a evolução e os
possíveis mecanismos de resolução para o conflito regional no istmo.
A "tese brasileira" sobre o conflito regional na América Central terminou
erigindo-se em uma espécie de marco conceitual da política centro-americana de
Brasília. A mesma surgiu e evoluiu mediante a tensão entre seis ponderações
básicas (documentalmente verificáveis):
a) A constatação do caráter estrutural e sistêmico do conflito
Assim, por exemplo, em 1983, entre as instruções à delegação brasileira que
iria participar da XXXVIII Sessão da Assembléia Geral da ONU, expressou-se,
entre outras considerações, que "os problemas da América Central derivam de
causas históricas, relacionadas com a manutenção de estruturas econômicas
desequilibradas e socialmente injustas, e se vinculam à crise econômica
mundial". Ressaltando, em seguida, que tais problemas no istmo "não podem,
portanto, ser considerad[o]s apenas do ângulo da confrontação ideológica ou do
recurso a soluções de força" 6. Em um outro documento confidencial interno do
Itamaraty, de 1989, afirma-se, categoricamente, que "a avaliação básica [do
Governo brasileiro] é a de que a crise centro-americana tem raízes estruturais,
históricas, sócio-econômicas e culturais" 7. Sem esquecer que o chanceler
Ramiro Saraiva Guerreiro, em conferência sobre política externa global
brasileira na Escola Superior de Guerra, em agosto de 1984, afirmou que:
Com relação à América Central, a política brasileira ao longo dos
últimos cinco anos esteve sempre balizada pela diretriz central de
buscar uma solução negociada para os problemas regionais.
Na avaliação brasileira, a crise regional tem raízes estruturais,
inscritas no processo de evolução política e econômica da América
Central, e sua superação estaria condicionada à adoção de medidas
destinadas a promover o desenvolvimento econômico, a justiça social e
o pluralismo político na região. De outro lado, é fundamental que
sejam afastadas todas as formas de interferência externa no
encaminhamento das questões regionais. A interferência externa agrava
as dificuldades locais, estimula soluções de força e a transferência
de tensões globais bloqueia a ação da diplomacia.8
Em conseqüência, parece claro que, para Brasília, a origem, a natureza e a
evolução do conflito regional na América Central ' ao fundamentar-se no
ineqüitativo, desequilibrado e excludente estilo de desenvolvimento econômico e
sócio-político imperante durante demasiado tempo ' deveria ser resolvido, não
através de medidas de força, mas, sim, assumindo os agudos problemas
econômicos, políticos e sociais que têm levado a região a uma situação de
desenvolvimento humano bastante precária (com a possível exceção do caso
costarriquenho).
b) A necessidade de procurar uma saída negociada e congruente com os
princípios do Direito Internacional
Durante todo o decênio de 1980 ' assim como na ordem internacional pós-Segunda
Guerra Fria ', Brasília considerou que "a base para o entendimento está, de um
lado, na busca do diálogo construtivo e da solução pacífica de controvérsias e,
de outro, no respeito aos princípios e propósitos da Carta da ONU (não-uso da
força, direito à independência, integridade territorial e soberania dos
Estados, e a não-ingerência em seus assuntos internos)".9 O governo brasileiro
insistiu, paralelamente, em que a busca das soluções, que por certo deveriam
ser negociadas e pacíficas, correspondia basicamente aos próprios governos (e
outros atores) do istmo.
"A posição do Governo brasileiro, no tocante à crise centro-americana, obedece
às linhas gerais de nossa política externa: estrita observância dos princípios
fundamentais expressos na Carta das Nações Unidas, em particular os relativos à
autodeterminação dos povos e à não-ingerência nos assuntos internos de outros
países. Dessa forma, a solução pacífica das controvérsias representa, segundo a
ótica brasileira, a única solução viável para os conflitos regionais",
informou-se confidencialmente, em 1984, à delegação brasileira que participaria
da correspondente Assembléia Geral da ONU.10
Mais ainda, as autoridades brasileiras persistentemente demandaram de todos os
atores internacionais com vínculos e interesses no conflito regional na América
Central um estrito apego aos princípios fundamentais do Direito Internacional '
especialmente no que corresponde ao devido respeito ao princípio da não-
intervenção nos assuntos internos de outros Estados (Aleixo, 1987). Na prática,
isso se traduziu na rejeição e na oposição frente à transferência para a
América Central da lógica e das políticas inspiradas na competição, tensão e
confrontação Leste-Oeste que caracterizou a Segunda Guerra Fria e o
questionamento das aspirações e pressões hegemônicas das superpotências.
c) A favorável predisposição para participar ' ativa e solidariamente
' de iniciativas multilaterais sérias e construtivas em favor da
pacificação do istmo
De fato isto se traduziu no persistente, significativo e solidário respaldo
político-diplomático do Brasil aos processos negociadores de Contadora,
primeiro, e de Esquipulas, depois. Convém ressaltar que a partir dos albores do
decênio de 1980, as autoridades brasileiras, segundo documentação disponível no
Itamaraty, consideraram importante colaborar com aqueles países mais
diretamente envolvidos nos labores mediadores em busca de uma eventual saída
negociada para o conflito regional, especialmente quando se tratava de
iniciativas diplomáticas mexicanas e venezuelanas. Nesse sentido, não parece
estranho que o Brasil também terminasse oferecendo seu respaldo político-
diplomático aos atores mais diretamente envolvidos na busca da paz, da
cooperação e da segurança no istmo, tanto no marco do processo negociador de
Contadora como de Esquipulas.
Em relação a Contadora, parece conveniente ressaltar que, segundo uma
declaração conjunta brasileiro-mexicana, assinada em março de 1984, pelos
Presidentes João Figueiredo e Miguel de la Madrid Hurtado, "O Presidente do
Brasil reiterou o apoio decidido e solidário de seu Governo a esses esforços e
assinalou que o Grupo de Contadora constitui a única alternativa política e
ética para a solução dos problemas centro-americanos"11.
Mais ainda, em um documento confidencial de agosto de 1984, reconheceu-se que
"A Iniciativa de Contadora, ainda que padecendo de limitações práticas para a
consecução da paz, é vista pelo Brasil, como a única alternativa inter-regional
a uma solução de força. É exatamente nesse sentido que temos expressado com
clareza nossa posição solidária à capacidade negociadora do grupo"12.
Sob esse ponto de vista, parece "natural" que, depois do retorno à ordem
constitucional (em 1985), as autoridades brasileiras aceitassem participar de
maneira direta ' como parte do Grupo de Apoio, do Mecanismo Permanente de
Consulta e Concertação Política ou Grupo do Rio (Grio), da OEA, da ONU, etc. '
nos processos negociadores de Contadora e Esquipulas, procurando, vale
insistir, uma saída política, justa, equilibrada, honrosa e duradoura para o
conflito regional na América Central.
Note-se que "pressões" internas, que se bem não parece prudente exagerar mas
tampouco desdenhar ou desconhecer, também puderam ter exercido certa influência
na (re)formulação da "tese brasileira". Efetivamente, organizações sindicais,
instituições religiosas, movimentos populares, partidos políticos, o mundo
acadêmico, etc., não deixaram de demandar de governos e da diplomacia do
Itamaraty uma política congruente com a lógica dos processos negociadores de
Contadora, primeiro, e de Esquipulas, depois. Isso foi bastante claro no debate
parlamentar.
d) A oposição frente às aspirações hegemônicas e ao intervencionismo
de potências extra-regionais, assim como à transferência das tensões,
competição e confrontação entre as superpotências à América Central
Aqui parece importante ressaltar que as autoridades brasileiras ' especialmente
durante os mandatos dos Presidentes João Figueiredo (cujo governo, entre 1979 e
1985, coincidiu com a fase de bipolaridade rígida da Segunda Guerra Fria) e
José Sarney (cujo governo, entre 1985 e 1990, coincidiu com a fase de
bipolaridade flexível da Segunda Guerra Fria) ' expressaram uma persistente,
sistemática e categórica oposição frente às aspirações e pressões hegemônicas
de ambas as superpotências na América Central e em outros conflitos regionais
no Terceiro Mundo.
Ao mesmo tempo, e sob uma perspectiva de longo prazo, a oposição e o
questionamento das autoridades brasileiras frente às (espúrias) aspirações e
pressões hegemônicas das superpotências na América Central, em particular, e na
América Latina (e no Terceiro Mundo), em geral, formou parte não só da "tese
brasileira", mas também de uma decisão estratégica coletiva que culminou com a
revitalização da solidariedade intralatino-americana e caribenha e a criação do
Mecanismo Permanente de Consulta e Concertação Política ou Grupo do Rio (Grio),
que surgiu como um derivado do processo negociador de Contadora.
e) O reconhecimento da limitada influência do Brasil nos
acontecimentos sócio-políticos, econômicos e estratégicos imperantes
na América Central
Uma análise equilibrada, serena, objetiva e realista da evolução do
relacionamento brasileiro-centro-americano não deve ignorar o fato de que
durante a maior parte do século XX e, particularmente, no contexto da Segunda
Guerra Fria, o Brasil, ao contrário de outras nações latino-americanas e
caribenhas ' como o México, a Venezuela, Cuba, a Argentina, a Colômbia, o
Panamá, o Chile, etc. ' com mais intensos e expressivos vínculos e interesses
econômicos, políticos e estratégicos na América Central, nunca estiveram em
jogo ou em risco interesses nacionais vitais no istmo.
Certamente isso terminou influenciando no "cálculo estratégico" das autoridades
brasileiras frente ao conflito regional, criando, por momentos, certas
ambigüidades, dúvidas e tensões sobre a verdadeira tendência e natureza da
política centro-americana de Brasília. Um bom exemplo disso foram as
(polêmicas) transferências de material de emprego militar de fabricação
brasileira ' dotado de "responsabilidade política irrecusável do Governo do
país exportador, em virtude de suas conseqüências no relacionamento entre as
nações adversárias"13 ' para Honduras (aviões EMB-312 Tucano) e para os
"contras" nicaragüenses (fuzis, munições, etc.).
f) O reconhecimento das graves conseqüências internas e externas em
todos os países do hemisfério ' inclusive no próprio Brasil ' que
poderiam ser desencadeadas pelo agravamento das tensões no istmo
A documentação resgatada no Arquivo Histórico do Ministério das Relações
Exteriores (AHMRE) também sugere que os "homens de Estado" encarregados da
política centro-americana de Brasília expressaram, durante todo o decênio de
1980, preocupação pelas "incalculáveis" e "imprevisíveis" conseqüências
domésticas e globais que poderiam ser desatadas na hipótese de uma
"vietnamização" da América Central, causada pela intervenção militar direta de
alguma potência extra-regional ' leia-se estadunidense e, em muito menor
medida, cubano-soviética.
Efetivamente, as fontes sugerem que, para as autoridades políticas e
diplomáticas brasileiras, a evolução do conflito regional na América Central
era motivo de intranqüilidade e temor dado que um "cenário vietnamita" no istmo
' para não considerar as (apocalípticas) conseqüências globais de uma escalada
que desembocasse em uma guerra nuclear total, o que não podia ser descartado
especialmente durante a fase de bipolaridade rígida da Segunda Guerra Fria '
poderia provocar ou agudizar a polarização ideológica das forças políticas
locais e repercutir negativamente no sensível e delicado processo de transição
à democracia no próprio Brasil e em outras nações do subcontinente.
Essas ponderações, que parecem ser demasiado utópicas, foram efetivamente
consideradas por não poucos atores brasileiros e estrangeiros. Nesse sentido, o
apoio político-diplomático do Brasil a Contadora e Esquipulas também poderia
ser interpretado sob a perspectiva da incipiente governabilidade democrática do
país. Em outras palavras, não parece exagerado sugerir que o respaldo político-
diplomático de Brasília a Contadora e Esquipulas poderia ser entendido como uma
espécie de "diplomacia preventiva", que respondeu, de certo modo e a longo
prazo, aos interesses nacionais do país. Talvez por isso o Chanceler Roberto de
Abreu Sodré, ao analisar a evolução do processo negociador de Contadora em
conferência ditada na Escola Superior de Guerra, no dia 27 de junho de 1986,
afirmasse que:
Se, por um lado, é forçoso reconhecer que não houve avanços decisivos
e definitivos no processo [negociador] de Contadora, não há como
negar a extrema importância da iniciativa ao impedir que se crie um
vazio diplomático na crise e que o conflito [regional na América
Central] possa agravar-se ainda mais, transformando-se em
conflagração de repercussões imprevisíveis para todo o Continente
americano. Contadora deve ser avaliada não apenas pelo que de bom
fez, ou deixou de fazer, mas também pelo que de mal e desastroso tem
evitado que aconteça.14
Então, levando em conta a lógica da "tese brasileira" sobre a origem, a
evolução e os possíveis mecanismos de resolução para o conflito regional na
América Central, parece possível compreender e interpretar, de maneira global e
integral a "leitura", os fundamentos e as tendências que caracterizaram a
evolução da política centro-americana de Brasília.
Sob a óptica da "tese brasileira", parece congruente, construtivo, lógico e
coerente o apoio político-diplomático de Brasília aos processos negociadores de
Contadora e Esquipulas. De fato, é possível identificar certas afinidades entre
a "tese brasileira", por um lado, e a lógica e as políticas inerentes a
Contadora e Esquipulas, por outro, devido a: (i) o caráter genuinamente latino-
americano e caribenho de Contadora e especificamente centro-americano de
Esquipulas, sem esquecer a continuidade entre ambos os processos de negociação;
(ii) o apego de ambos os processos de negociação aos princípios básicos do
Direito Internacional; (iii) a utilização de uma filosofia de trabalho '
incluindo os correspondentes métodos e técnicas de resolução de conflitos '
que, estimou-se no Itamaraty, eram essencialmente corretos, coerentes e
apropriados para encarar, de maneira global, os complexos problemas econômicos,
sócio-políticos e estratégicos da América Central; e,(iv) o reconhecido
prestígio e a considerável legitimidade internacional de ambos os processos de
negociação ' o que foi simbolicamente expresso, entre outras coisas, na
adjudicação do muito significativo Prêmio Nobel da Paz ao Presidente
costarriquenho Oscar Arias Sánchez (em 1987) e à cidadã guatemalteca Rigoberta
Menchú Tum (em 1992).
Em termos operacionais, o respaldo brasileiro a Contadora e Esquipulas se
traduziu em uma série de gestos, declarações e ações diplomáticas concretas,
seja unilateral ou multilateralmente ' neste caso, principalmente, por meio da
incorporação ao Grupo de Apoio a Contadora ou da ativa participação em foros
diplomáticos tais como o Mecanismo Permanente de Consulta e Concertação
Política ou Grupo do Rio (Grio), a ONU, a OEA, etc. Esses atos se cristalizaram
em significativas determinações de cunho político-diplomático, tais como: (a) o
Brasil foi o segundo país do mundo a expressar oficialmente apoio diplomático
ao recém-criado Grupo de Contadora (em 1983); (b) participou do Grupo de Apoio
a Contadora; (c) integrou o Grupo do Rio (Grio); (d) formou parte do mecanismo
de verificação e seguimento emanado do "Acordo de Esquipulas II"; (e) emitiu
uma série de documentos oficiais ' unilaterais, bilaterais e multilaterais '
nos quais se expressou firme apoio para Contadora e Esquipulas e vigoroso
questionamento frente às (espúrias) aspirações e pressões hegemônicas das
superpotências; (f) ofereceu significativa assistência técnica, científica,
cultural e econômica, apesar da complexa conjuntura econômica e social do país,
agravada pelos perversos efeitos da assim chamada "década perdida"; e, (g) no
marco do processo de Esquipulas, o Brasil participou de todas as operações de
manutenção da paz da ONU na América Central (Onuven, Onuca, Onusal, Minugua,
etc.), e de iniciativas comparáveis da OEA (Marminca, etc.), fosse com peritos
civis ou militares.
Naturalmente, esses e outros exemplos são extremamente significativos sob a
perspectiva da "tese brasileira", em particular, e da história das relações
internacionais contemporâneas da América Latina e Caribe, em geral. Parece
evidente que tais gestos, iniciativas, declarações e ações concretas
caracterizam um compromisso sincero, construtivo, exemplar, digno, honroso,
solidário e imperecível, cujo impacto no relacionamento brasileiro-centro-
americano é (e continuará sendo) extremamente significativo. Isso é ainda mais
relevante ao constatar-se que, até 1979, o relacionamento brasileiro-centro-
americano era bastante limitado.
Portanto, parece lícito concluir que a relativamente bem sucedida pacificação e
democratização da América Central, apesar de certas ambigüidades, dificuldades,
percalços e imprevistos no cumprimento de alguns compromissos pactuados, muito
particularmente no que se refere à completa "desmilitarização das sociedades",
também significou a plena confirmação da "tese brasileira".
4. O futuro do relacionamento brasileiro-centro-americano: procurando uma
relação mais estreita, equilibrada e construtiva
A relativamente bem sucedida pacificação e democratização da América Central no
marco dos processos negociadores de Contadora e Esquipulas, junto à positiva,
solidária e construtiva conduta da política exterior brasileira frente ao
conflito regional, deixou entrever uma ampla margem para aprofundar,
intensificar e expandir os diferentes vínculos, sejam esses econômicos,
político-diplomáticos ou culturais.
No plano econômico e comercial, o relacionamento brasileiro-centro-americano,
que nunca foi muito intenso, não deixou de ser afetado negativamente pela
"década perdida" e especialmente pelos efeitos dissociadores da lógica e das
políticas que caraterizaram a história da Segunda Guerra Fria.
Paralelamente, no campo comercial, o mais notório e persistente no
relacionamento Brasil-América Central, desde antes do decênio de 1980, tem
sido, vale insistir: a grande assimetria na pauta comercial, a ausência de
complementaridade nas trocas, os problemas logísticos, o caráter modesto do
valor e volume do intercâmbio, e o constante e perturbador superávit na balança
comercial em favor do Brasil (e, conseqüentemente, dado o caráter estrutural do
desequilíbrio no balanço de pagamentos, em prejuízo das economias centro-
americanas). Por essas e outras razões, entre 1979 e 1994, o intercâmbio
comercial brasileiro-centro-americano tem sido claramente favorável para o lado
brasileiro (veja-se Quadro_1 da pág. seguinte).
Vale agregar que, de acordo com os periódicos relatórios para o Itamaraty
procedentes das Embaixadas brasileiras acreditadas ante os governos dos cinco
países do istmo, os principais produtos exportados pelo Brasil com destino aos
países da América Central, durante os decênios de 1980 e 1990, incluíam: (a)
maquinaria e equipamento de construção; (b) meios de transporte (veículos,
ônibus, barcos, etc.); (c) maquinaria agrícola; (d) produtos químicos
(fertilizantes, etc.); (e) papel; (f) artigos elétricos e eletrônicos; (g)
material médico-hospitalar; (h) equipamento de oficina; (i) brinquedos; entre
outros. Nesse sentido, tratava-se essencialmente de bens de capital e bens de
consumo duráveis. Tais produtos eram importados por governos e empresas
privadas do istmo diretamente junto a exportadores brasileiros (sendo que em
alguns casos foram abertas representações comerciais de empresas brasileiras em
alguns países do istmo).
Em contrapartida, as importações brasileiras de produtos centro-americanos
continuaram sendo extremamente limitadas, e mesmo insignificantes. Isso devido,
entre outras razões, a que a maior parte dos produtos exportados pela América
Central ' que são principalmente produtos agroindustriais ', não só também são
produzidos no Brasil, como em vários casos terminam competindo entre si no
mercado internacional.15 Em todo caso, durante o decênio de 1980, sobressaiu-se
a exportação para o mercado brasileiro de sementes oleaginosas da Costa Rica e
sementes de árvores florestais e frutíferas de Honduras.
Sob o ponto de vista do financiamento, o relacionamento brasileiro-centro-
americano durante o decênio de 1980 beneficiou-se com a abertura de linhas de
crédito do Banco do Brasil para os cinco países do istmo, ressaltando que a
Nicarágua terminou sendo o país mais favorecido, já que a sua linha de crédito
alcançou um valor total de US$50 milhões.
Ademais, um dos compromissos emanados da primeira reunião cimeira de
presidentes do Mecanismo Permanente de Consulta e Concertação Política ou Grupo
do Rio (Grio), na cidade mexicana de Acapulco (em novembro de 1987), foi o
incentivo para que os países membros, no marco da Aladi, oferecessem às nações
do istmo a oportunidade de negociar Acordos de Alcance Parcial (AAP). Isso com
a finalidade de facilitar o aceso dos produtos centro-americanos aos mercados
do Brasil e dos outros países membros do Grio, e, ao mesmo tempo, com propósito
de criar estímulos para as economias do istmo ' limitando, assim, as tensões
econômicas e sócio-políticas imperantes em cada um deles no contexto do
conflito regional.
Contudo, em termos mais abrangentes, parece evidente que o relativo sucesso da
pacificação e democratização da América Central no marco do processo negociador
de Esquipulas e a participação brasileira no mesmo foram fatores importantes
para explicar, ao menos parcialmente, o notório incremento das relações
econômicas entre as partes durante a primeira metade do decênio de 1990.
Segundo estatísticas sobre tendências de comércio internacional do Fundo
Monetário Internacional (IMF, 1996), entre 1990 e 1994, o valor das exportações
brasileiras para o istmo cresceu consideravelmente nos casos da Costa Rica (de
US$52 milhões a US$111 milhões), da Guatemala (de US$25 milhões a US$59
milhões) e de El Salvador (de US$15 milhões a US$41 milhões). Também
incrementou-se, embora de maneira menos expressiva, o valor das exportações
brasileiras com destino a Honduras (de US$20 milhões a US$27 milhões) e
Nicarágua (de US$4 milhões a US$5 milhões). No entanto, o valor das importações
brasileiras de produtos centro-americanos continuou sendo notoriamente limitado
(veja-se Quadro_1).
Um importante desafio, portanto, para o presente e para o futuro das relações
econômicas brasileiro-centro-americanas é procurar reduzir essa relação
assimétrica e estruturalmente deficitária para as economias do istmo.
Dentre as alternativas para conseguir alcançar, gradualmente, um comércio
reciprocamente mais vantajoso podem incluir-se as seguintes: (a) a promoção de
inversões conjuntas que permitam a capitais brasileiros satisfazer demandas
reprimidas das economias da região como também aproveitar as vantagens
comparativas da América Central com relação a terceiros mercados (levando em
consideração as facilidades fiscais concedidas pelos governos centro-americanos
e as condições e possibilidades oferecidas pelos acordos de livre comércio e
outros tratamentos preferenciais concedidos aos países do istmo centro-
americano por economias com mercados mais expressivos, principalmente nos
Estados Unidos, no México, no Canadá, na União Européia, etc.); (b) o
financiamento e participação de empresas construtoras do Brasil em projetos de
infra-estrutura econômica e social na América Central; (c) uma maior abertura
do mercado brasileiro para os produtos centro-americanos; (d) a organização de
eventos de promoção comercial que permitam a aproximação de produtores e
consumidores de ambos os lados; entre outros.
Nesse sentido, possivelmente a firma do Acordo Marco de Comércio e Inversão, de
abril de 1998, entre autoridades do Mercosul e do Sistema de Integração Centro-
Americano (Sica), contribua com aquela finalidade. Note-se que dito acordo
Mercosul-Sica prevê, entre outras coisas, a criação de uma Comissão de Comércio
e Inversões, cujo propósito básico é, justamente, explorar as condições e
possibilidades para uma dinamização das relações econômicas entre ambos os
processos de integração. Convém agregar que tais acordos procuram promover um
relacionamento comercial mais equilibrado e mutuamente vantajoso entre o Brasil
e os países da América Central.
Finalmente, ainda no terreno das relações econômicas brasileiro-centro-
americanas, parece importante destacar as convergências (e também as
divergências) de interesses em torno do gerenciamento e da participação
concertada das partes no mercado internacional do açúcar e, particularmente, do
café. Isso, porque o Brasil e as nações centro-americanas continuam sendo
alguns dos mais importantes exportadores mundiais do café e do açúcar, e que
tais produtos continuam sendo fontes significativas de divisas para cada uma
das partes.
No plano político (e cultural), o relacionamento entre as partes adquiriu uma
dinâmica mais ativa a partir dos encontros entre autoridades políticas e
diplomáticas do Brasil e da América Central, motivados pelo desejo comum de
encontrar possíveis soluções negociadas para o conflito regional. Isso
expressou-se em uma série de visitas recíprocas de altas autoridades
governamentais, em declarações, no apoio recíproco de iniciativas e
candidaturas, e outras ações diplomáticas concretas.
Na atualidade a agenda política Brasil-América Central carateriza-se por uma
alta e crescente convergência. Assim, por exemplo, a visita do ex-Presidente
Fernando Henrique Cardoso à Costa Rica ' e à América Central, em geral ', em
abril de 2000, marcou um ponto de inflexão no relacionamento entre as partes.
Em tal oportunidade, além do tratamento das questões estritamente bilaterais
brasileiro-costariquenhas realizou-se a primeira reunião cimeira de Presidentes
do Brasil e da América Central (que contou, ademais, com a presença de
representantes dos governos da República Dominicana, do Panamá e de Belize)16.
Da reunião cimeira de Presidentes, que de fato pode ser considerada como o
acontecimento que abriu uma nova etapa no centenário relacionamento brasileiro-
centro-americano, surgiu a muito importante Declaração de São José. Nesse
documento, os Chefes de Estado e de Governo identificam, em linhas gerais,
alguns dos critérios e prioridades econômicas, políticas e estratégicas que
pautarão o relacionamento entre as partes nos alvores do século XXI. Dada a
considerável relevância intrínseca do documento em apreço e a sua estreita
relação com os fins do presente estudo, parece adequado introduzir uma breve
análise do mesmo.
Na Declaração de São José, os mandatários do Brasil e da América Central pós-
revolucionária reafirmaram "el compromiso de nuestros Gobiernos de estrechar
los tradicionales lazos de amistad y cooperación existentes entre nuestros
países y nuestro renovado empeño en intensificar los mecanismos de integración
económica en América Latina y el Caribe". Em seguida são enumerados onze
tópicos ou pontos particularmente significativos na agenda brasileiro-centro-
americana para o futuro próximo, que são: (a) a preservação e fortalecimento da
Democracia; (b) a superação da pobreza e promoção do desenvolvimento
sustentável; (c) a proteção do meio ambiente; (d) a promoção e proteção dos
Direitos Humanos; (e) a manutenção da paz e da segurança internacionais; (f) a
luta contra a corrupção, a narcoatividade, o terrorismo e os seus delitos
conexos; (g) a inserção mais competitiva na economia internacional; (h) a crise
financeira internacional; (i) o aperfeiçoamento dos mecanismos de integração e
coordenação regional; (j) o fortalecimento do multilateralismo; e (k) o
fortalecimento da cooperação. Finalmente, no documento em apreço, as mais altas
autoridades do Brasil e da América Central pós-revolucionária reafirmaram a
"disposición de mantener consultas políticas en el nivel apropiado en todas las
ocasiones en que sea posible, inclusive al margen de reuniones multilaterales o
regionales".
Com base nessas ponderações, parece lícito concluir que a agenda brasileiro-
centro-americana vigente é abrangente, multifacetada e relativamente
sofisticada ' especialmente se comparada com o limitado relacionamento político
anterior a 1979. Mais ainda, na opinião do autor deste artigo, o novo governo
brasileiro, dirigido pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, manterá as
tendências de crescente e mais construtivo relacionamento político (e cultural)
com as nações centro-americanas. Essa apreciação fundamenta-se não só no atual
processo de globalização das economias (Cepal, 2002), na solvência moral e
liderança do Presidente e do País no contexto latino-americano e caribenho, no
constante contato pessoal entre os líderes políticos dos países ou pelo
expressivo impacto e entusiasmo que despertou nos povos do istmo a categórica
vitória eleitoral do Partido dos Trabalhadores nas eleições presidenciais do
ano 2002, senão, também, pelo fato de que tanto o novo Presidente quanto vários
dos seus mais próximos colaboradores ' dentre esses, o atual Ministro da
Educação, Cristovam Buarque ' têm visitado pessoalmente a região centro-
americana, em diferentes oportunidades.
Por estas e outras ponderações, não parece totalmente incorreto afirmar que as
condições e possibilidades para um relacionamento mais estreito, equilibrado,
construtivo e duradouro são extremamente favoráveis. Nesse sentido, corresponde
às partes ' especialmente aos governos dos países da América Central '
aproveitar a atual conjuntura das relações Brasil-América Central. Sem esquecer
que, no ano 2006, poder-se-á comemorar de forma apropriada ' talvez com uma
nova reunião cimeira de Presidentes do Brasil e da América Central ' o primeiro
centenário de um relacionamento que, retomando as palavras do ex-chanceler
Gibson Barbosa, "embora constante, ainda não ultrapassou os limites da eleição
afetiva para fundamentar-se na solidariedade dos interesses, na coincidência do
trabalho, no encontro dos esforços para um fim comum"17.
Conclusão
Entre 1979 e 1996, teve lugar na América Central um conflito regional complexo
e violento. Esse conflito regional surgiu da articulação de fatores endógenos '
entre outros: o ineqüitativo, excludente e autoritário estilo de
desenvolvimento econômico e sócio-político imperante durante prolongado tempo
no istmo (com exceção parcial do caso costarriquenho) ' e exógenos ' com
destaque para o "encadeamento" de pressões globais, continentais e centro-
americanas no contexto do que um conhecido historiador britânico chamou de
Segunda Guerra Fria (1979-1989). Nessa ordem de idéias, o passo do
"inaceitável" para o "insuportável" ' quer dizer, "o que viola a dignidade
humana" ' transformou a América Central em uma das regiões mais conflituosas do
planeta. Por essa e outras razões, os acontecimentos no istmo centro-americano
passaram a ser objeto de intenso debate entre os mais diversos países (e no
interior de cada um deles).
Entretanto, no Brasil, um país que então experimentava importantes
transformações econômicas, sócio-políticas e de política internacional, o
conflito regional na América Central não deixou de provocar expressivas
repercussões. Mais ainda, tais repercussões não se limitaram aos meios
governamentais (ou, especificamente, à burocracia diplomática). Pelo contrário,
um considerável número de atores não-governamentais ' que incluía o mundo
acadêmico, o sindicalismo, certas instituições religiosas, alguns partidos
políticos, etc. ' também terminou expressando opiniões sobre o tema e
"pressionando" governos e ao Itamaraty em favor de determinadas opções de
política exterior. Isso ficou bastante claro no caso do debate parlamentar.
Com base em tais considerações e, muito especialmente, a partir da
correspondente investigação básica no Arquivo Histórico do Ministério das
Relações Exteriores (AHMRE), chega-se à conclusão geral de que a política
brasileira, frente ao conflito regional na América Central, terminou dando
lugar ao que aqui se chama de "tese brasileira" sobre a origem, a evolução e os
possíveis mecanismos de resolução para o conflito regional imperante no istmo.
Note-se que essa "tese brasileira" sobre o conflito regional na América Central
fundamenta-se com base em seis ponderações (documentalmente verificáveis): (a)
a constatação do caráter estrutural e sistêmico do conflito; (b) a necessidade
de procurar uma saída negociada e congruente com os princípios do Direito
Internacional; (c) a favorável predisposição para participar mais ativamente de
iniciativas multilaterais em favor da pacificação do istmo, de fato isso se
traduziu no persistente, significativo e solidário respaldo político-
diplomático do Brasil aos processos negociadores de Contadora, primeiro, e de
Esquipulas, depois; (d) a oposição frente às aspirações hegemônicas e ao
intervencionismo de potências extra-regionais, bem como à transferência das
tensões, competição e confrontação entre as superpotências à América Central;
(e) o reconhecimento da limitada influência do Brasil nos acontecimentos sócio-
políticos, econômicos e estratégicos imperantes na América Central; e (f) o
reconhecimento das graves conseqüências internas e externas em todos os países
do hemisfério ' inclusive no próprio Brasil ' que poderiam ser desencadeadas
pelo agravamento das tensões no istmo.
Adicionalmente, parece pertinente ressaltar que a dinâmica dos acontecimentos e
a bem sucedida pacificação e democratização da América Central ' em grande
medida, sob os lineamentos dos processos negociadores de Contadora e Esquipulas
', de fato, terminaram convalidando, também, o pregado pela "tese brasileira".
Notas
1 Milton Faria a Ministério das Relações Exteriores, Ofício confidencial-
urgente, Manágua, 16.8.1973, AHMRE: Cx 20. Em janeiro de 1973, o Embaixador
Faria informou aos seus superiores no Itamaraty que o terremoto que destruiu
Manágua (em dezembro de 1972), traria graves conseqüências ideológicas e
políticas ' no caso de o presidente Anastasio Somoza Debayle ser derrocado.
Segundo o representante diplomático brasileiro: "É evidente que ele [o general
Somoza Debayle] cometeu erros, equívocos, mas sem ele muito difícil será a
manutenção da ordem em toda a América Central, pois Nicarágua é o único
obstáculo que impede a violenta propagação e penetração cubana [sic]", Milton
Faria a MRE, Ofício confidencial (SG/AAA/DA), Manágua, 12.1.1973, AHMRE: Cx 20.
Parecem óbvias as afinidades ideológicas e políticas do Embaixador brasileiro
com o governo comandado pelo general Somoza. Vale inquirir se tais afinidades
refletiam a posição oficial do Brasil frente ao governo da Nicarágua ou
tratava-se de uma visão própria do pessoal diplomático brasileiro acreditado em
Manágua. Para o autor deste estudo, a expressiva simpatia pelo governo do
general Somoza Debayle do Embaixador Faria se refletia tanto no autoritarismo e
conservadorismo do governo do general Emílio Garrastazu Médici, como nas
convicções pessoais do diplomático em questão.
2 Dentre os conflitos regionais no Terceiro Mundo mais importantes, no contexto
global da Segunda Guerra Fria, vale ressaltar os seguintes: (a) América Central
(Nicarágua, El Salvador, Guatemala, e com repercussões mais ou menos
significativas em Granada, Cuba, Suriname, Colômbia, etc.); (b) África
Meridional (Angola, Moçambique, Namíbia, África do Sul, Zaire, etc.); (c)
noroeste da África (Saara Ocidental, Marrocos, Argélia, etc.); (d) o chifre da
África (Etiópia, Somália, etc.); (e) Indochina (Camboja, Vietnã, China
Tailândia, etc., também conhecida como a "Terceira Guerra da Indochina"); (f)
Ásia Central (Afeganistão, URSS, Irã, Paquistão, China, etc.); até certo ponto,
(g) nordeste da Ásia (península coreana), e (h) Oriente Médio (conflito
palestino-israelita, Líbano, Líbia, guerra Irã-Iraque, etc.).
3 Aluízio BEZERRA, "Discurso do Sr. Deputado Aluízio Bezerra, proferido na
sessão vespertina de 11-3-82", Diário do Congresso Nacional, 13.3.1982, p. 876-
879.
4 Note-se que, no início do decênio de 1980, coexistiam em tensão três modelos
diferentes de desenvolvimento econômico e sócio-político relativamente claros:
(a) a democracia liberal na Costa Rica, (b) um regime revolucionário de
"orientação socialista" na Nicarágua ' que, ademais, impulsionava um poderoso
"efeito demonstração" junto a outras forças revolucionárias no istmo,
particularmente em El Salvador e na Guatemala ', e (c) o tradicional Estado
autoritário na Guatemala, El Salvador e Honduras (ainda que neste último país
acontecesse um acelerado processo de retorno à ordem constitucional). Duas
décadas depois, no entanto, os países da região conseguiram erigir processo de
democratização e pacificação relativamente bem sucedidos, porém que ainda
precisam de maior coerência, solidez, efetividade e governabilidade
democrática.
5 Originalmente, o Grupo de Contadora foi integrado pelos governos da Colômbia,
Panamá, México e Venezuela. O nome do grupo provém da ilha panamenha de
Contadora, onde se realizou a primeira reunião dos chanceleres dos países
membros do grupo. Em 1985, surgiu o Grupo de Apoio ao processo negociador de
Contadora, integrado pelos governos da Argentina, Brasil, Peru e Uruguai.
6 "XXXVIIII Sessão da Assembléia-Geral das Nações Unidas/ Instruções_Gerais",
Confidencial, Brasília, s.d. [circa, 1.9.1983], AHMRE: Cx 275.
7 José Vicente de Sá Pimentel a Chefe do DAA, Despacho ao Memorando DNU/60,
Confidencial-urgentíssimo, Brasília, 28.7.1989, AHMRE: Cx R-2.
8 Ramiro Saraiva GUERREIRO, "Conferência do Ministro de Estado das Relações
Exteriores, Ramiro Saraiva Guerreiro, na Escola Superior de Guerra, no Rio de
Janeiro, em 31 de agosto de 1984", Resenha de Política Externa do Brasil, n.
42, p. 75-128.
9 "XXXVIIII Sessão da Assembléia-Geral das Nações Unidas/ Instruções_Gerais",
Confidencial, Brasília, s.d. [circa, 1.9.1983], AHMRE: Cx 275.
10 Marco Antônio Diniz Brandão a Chefe, substituto, da DNU, Memorando
confidencial-urgente (DNU/85), Brasília, 10.8.1984, AHMRE: Cx M 2 (4).
11 "Declaração Conjunta Brasil-México, assinada, no Palácio do Planalto, em
Brasília, em 30 de março de 1984, pelos Presidentes João Figueiredo e Miguel de
la Madrid Hurtado", Resenha de Política Externa do Brasil, n. 40; p. 44-52.
12 Marco Antônio Diniz Brandão a Chefe, substituto, da DNU, Memorando
confidencial-urgente (DNU/85), Brasília, 10.8.1984, AHMRE: Cx M 2 (4).
13 Antônio F. Azeredo da Silveira a Hugo de Andrade Abreu, Memorando secreto
(DPG/DCS/DSI), Brasília, s.d. [circa12.5.1977], AHMRE: Pasta Especial PNEMEM-El
Salvador.
14 "Palestra do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Roberto de Abreu
Sodré, na Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, em 27 de junho de
1986", Resenha de Política Externa do Brasil, n. 49; p. 123-140.
15 A competição entre produtos brasileiros e centro-americanos no mercado
internacional tem sido particularmente aguda no que diz respeito ao café,
açúcar, frutas tropicais, têxteis, calçado, entre outros.
16 "Declaración de San José", São José, 5.4.2000, Ministerio de Relaciones
Exteriores y Culto, na Internet: [www.rree.go.cr/Brasil_2000_Decl.html]. A
"Declaração de São José", foi assinada pelos Presidentes Fernando Henrique
Cardoso, do Brasil; Mireya Moscoso, do Panamá; Miguel Angel Rodríguez
Echeverría, da Costa Rica; Francisco Flores Pérez, de El Salvador; Carlos
Roberto Flores Facusse, de Honduras; Arnoldo Alemán Lacayo, da Nicarágua; pelo
Vice-Presidente Juan Francisco Reyes López, da Guatemala; pelo Primeiro
Ministro Said Musa, de Belize; e pelo Chanceler Eduardo Latorre, da República
Dominicana.
17 "Discurso do Ministro Mário Gibson Barbosa, ao fazer entrega, ao Ministro
das Relações Exteriores da Guatemala, da Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro
do Sul. Guatemala, em 13 de Julho", Documentos de Política Externa V 1971,
Brasília, Ministério das Relações Exteriores, 1973, p. 163-165.