Segurança seletiva no pós-Guerra Fria: uma análise da política e dos
instrumentos de segurança das Nações Unidas para os países periféricos - o caso
africano
Introdução
Ao longo do século XX, e com clara continuidade no início do século XXI, a
humanidade vem se deparando com a temática permanente da busca pela paz e da
resolução dos conflitos que envolvem variados agrupamentos sociais. Com efeito,
o conceito de segurança vem sendo aperfeiçoado para se adequar às diversas
realidades observadas em distintos momentos históricos, uma vez que a
desigualdade e os conflitos permanecem sendo uma constante nas relações
humanas.
A importância e relevância do tema em apreciação, segundo nossa perspectiva,
são evidentes por si mesmos, afinal trata-se de tentar compreender a natureza
das situações de conflito internacional que se intensificaram dramaticamente
desde o fim da Guerra Fria e do acirramento do processo de globalização,
considerando-se todas as suas implicações que levam a dificuldades de variadas
ordens para a manutenção do status quo, seja em decorrência do crescimento da
desigualdade social em praticamente todos os países do globo ou do
enfraquecimento do Estado Nação e, conseqüentemente, de sua capacidade de fazer
frente a situações de crise e insatisfação social.
Muito embora não haja exatamente uma situação absolutamente "nova" na realidade
mundial, uma vez que os conflitos e guerras aparecem como uma constante nas
relações internacionais, houve sem sombra de dúvidas importantes mudanças no
sistema internacional que exigem uma reflexão apropriada sobre a nova realidade
e a forma como a comunidade internacional tem se comportado diante do novo
cenário.
Algumas perguntas básicas informam a presente reflexão de acordo com o objetivo
da pesquisa e o enfoque escolhido. O que vem a ser segurança seletiva? Qual é a
política de segurança internacional adotada pelas Nações Unidas? Quais suas
características básicas e resultados obtidos? Qual a natureza dos conflitos?
Étnicos, religiosos, ideológicos? Como eles têm sido solucionados? Quais
mecanismos têm se demonstrado mais eficazes?
Um dos objetivos do presente estudo é analisar quais respostas têm sido dadas
pela comunidade internacional frente à retomada dos conflitos, sobretudo com
relação às iniciativas assumidas pelas Nações Unidas e organizações regionais
que passaram a intensificar ou empregar políticas de intervenção em assuntos
antes considerados de exclusiva competência nacional.
A princípio, constata-se que há diversidade no que diz respeito às motivações
que deram ou vêm dando origem aos conflitos atuais, não se resumindo tais
causas a assuntos estritamente econômicos, apesar de esse ser um fator de
destacada importância para a compreensão das crises. Por outro lado, deve-se
também observar a existência de alguns elementos comuns presentes em boa parte
dos conflitos. Em sua grande maioria, por exemplo, localizam-se em áreas
periféricas, desprovidas de interesse estratégico após o fim da Guerra Fria e
marcadas por sérias contingências e deficiências estruturais, motivo de
instabilidade política e elemento que acentua a importância econômica para o
entendimento da crise em diversos países periféricos.
Outro aspecto observado é que a maior parte das guerras ocorridas durante a
última década do século XX e início do XXI foram concentradas em determinadas
regiões, e não totalmente dispersas, sendo as mais importantes pela escalada
dos conflitos as seguintes: a) o continente africano (que não por acaso recebeu
o maior número de intervenções promovidas pelas Nações Unidas e no qual houve a
efetiva decisão por parte de alguns dos seus organismos regionais de intervir
militarmente), b) o Oriente Próximo, c) os Bálcãs. Regiões situadas nas áreas
de fronteira da extinta União Soviética e na Ásia Central igualmente merecem
destaque, uma vez verificado o crescimento dos conflitos nessas regiões durante
a década de 1990.1
Há que se considerar, todavia, a persistência de alguns conflitos de tipo
"tradicional", muito embora não sejam eles privilegiados na análise proposta no
âmbito deste estudo. Assim, verifica-se que, concomitante ao considerável
crescimento dos conflitos intra-Estados, guerras envolvendo disputas
territoriais são uma realidade no mundo contemporâneo, como aquelas envolvendo
Índia e Paquistão, e Etiópia e Eritréia. Há, ainda, casos muito pontuais que
são remanescentes do contexto ideológico da Guerra Fria, como a permanência das
atividades das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), se bem que
nesse caso o apelo ideológico tenha perdido muito da sua força tradicional. De
toda forma, essas são manifestações até certo ponto estranhas à nova
configuração dos conflitos internacionais.
Nesse breve texto pretendemos, pois, elaborar algumas reflexões iniciais sobre
a temática da segurança internacional, mais especificamente de como a ONU vem
atuando para cumprir um de seus principais objetivos, qual seja: o de promover
a paz e a segurança internacionais.
Por último, é importante apontar que esse texto faz parte de um projeto maior,
ainda em fase de pesquisa e reflexão e que busca analisar as intervenções
internacionais nos países considerados "periféricos"2 e que não possuem
destacada importância estratégica no contexto das relações internacionais no
período pós-Guerra Fria. Assim, são feitas considerações sobre a questão da
segurança e das políticas de intervenção levadas a efeito pelas Nações Unidas e
por organismos regionais com ênfase no continente africano, tomado com exemplo
onde sucessivas experiências de resolução de conflitos foram adotadas, todas
não bastando para pôr fim à situação difícil em que se encontra esse vasto
continente.
I - As Nações Unidas e os conflitos internacionais
A Organização das Nações Unidas desempenha um papel de extrema importância no
que diz respeito à solução dos conflitos internacionais. Com o fim da Guerra
Fria e a súbita escalada das situações de guerra, houve um aumento considerável
na demanda para que a ONU interviesse em diversas regiões, mas, sobretudo, nas
áreas mais periféricas e pobres do planeta. Assim, a África e parte da Ásia
tornaram-se palco de uma ativa política de intervenção das Nações Unidas, nem
sempre atingindo os resultados esperados. Todavia, as diversas missões da ONU
não se restringiram somente a esses dois continentes. Igualmente importante foi
a sua presença na região dos Bálcãs e no Oriente Próximo, para citarmos os
casos mais graves de conflitos inter e intra-Estados.
A intensificação do processo de globalização, entendido o termo como uma fase
do processo de internacionalização da economia,3 levou a transformações
substanciais no cenário internacional ao promover mudanças estruturais na
organização econômica mundial, numa tendência que indica a superação do modelo
industrial pelo paradigma informacional.4 Essa nova fase do processo de
internacionalização promoveu uma reconfiguração mundial de largo escopo, não
tanto em termos de poder militar, mas principalmente de afirmação de uma ordem
econômica e política que já vinha se delineando desde pelo menos a década de
1970 e que se embasava fortemente em princípios liberais. O ápice dessas
transformações foi o súbito e, até certo ponto, inesperado colapso do bloco
soviético, o qual reforçou a tendência de mudança e teve, por sua vez,
consideráveis implicações políticas para todo o sistema internacional.
Não há dúvida de que com o fim da Guerra Fria houve mudanças nas relações
internacionais. Essas mudanças certamente afetaram e continuam afetando o
modelo de organização social e político inaugurado com a generalização da
configuração de Estados-nação verificados entre os séculos XVIII e XIX. Uma
dessas mudanças diz respeito à questão da segurança internacional, haja vista
que a tênue estabilidade proporcionada pelo sistema bipolar foi quebrada sem
que houvesse tempo e planejamento para a implementação de um modelo alternativo
para assumir o seu lugar, o que gerou uma sensação de anarquia nas relações
internacionais.
Desde a sua criação, em 1945, a Organização das Nações Unidas tem se preocupado
com a questão da segurança internacional. O histórico das relações
internacionais durante o século XX demonstrou a necessidade da existência de
uma entidade internacional que buscasse estabelecer parâmetros aceitáveis e
baseados em termos realistas para que a paz pudesse prevalecer entre as nações,
ou pelo menos para que os conflitos não atingissem níveis alarmantes e se
generalizassem contaminando amplas áreas até se tornarem mundiais. A
experiência traumática da Primeira Guerra Mundial e o perigo constante de que
um novo conflito ainda mais aterrorizante pudesse ocorrer, serviram como
elementos decisivos para a criação da Liga das Nações, predecessora da ONU.
Todavia, a natureza da Liga das Nações e o contexto internacional que emergiu
após 1918 praticamente impossibilitaram que aquela entidade obtivesse sucesso
em seu objetivo principal, que não era outro senão evitar a guerra. A Liga não
contava com mecanismos apropriados para a manutenção da paz e tampouco
representava de fato a distribuição do poder internacional, haja vista a
ausência em seu quadro de um destacado ator no cenário internacional: os
Estados Unidos da América, que haviam assumido uma postura mais isolacionista
na seqüência da Primeira Guerra. Ademais, a Liga apresentou um perfil
exageradamente eurocêntrico, dando pouca atenção a demandas dos países situados
fora do contexto europeu.5 Sem querer aprofundar no contexto histórico no qual
atuou a Liga das Nações, basta relembrarmos que foi naquele período que se deu
o crescimento do nazi-fascismo, a afirmação do regime stalinista na ex-União
Soviética e uma renovada disputa por áreas coloniais na África, liderada pela
Itália de Mussolini e acompanhada por exigências territoriais alemãs no
contexto europeu da busca pelo que seus formuladores de política chamavam de
espaço vital. Além do acentuado confronto ideológico entre liberalismo,
totalitarismo (nazi-fascismo) e socialismo "real", de cunho soviético, as
aspirações de cunho étnico e a retomada do racismo não favoreceram, de modo
algum, o desejo de paz e estabilidade internacional.6
Ao fracasso da Liga das Nações, já evidenciado desde o início da década de
1930, seguiu-se o agravamento da tensão internacional até a eclosão da Segunda
Guerra Mundial, em 1939. Na seqüência verifica-se, então, o surgimento da
Organização das Nações Unidas, com o objetivo precípuo de regular as relações
internacionais com a finalidade, dentre outras, da manutenção da paz. Por um
lado, a nova organização internacional certamente beneficiou-se da experiência
da Liga das Nações, tentando corrigir os equívocos mais elementares que
marcaram o funcionamento da Liga. Por outro, a ONU estabeleceu princípios
universais e soube conviver com a realidade da assimetria do poder
internacional, criando mecanismos que respeitassem, até certo ponto, a vontade
das superpotências, como é o caso do sistema erigido em torno do Conselho de
Segurança e do respectivo poder de veto desfrutado pelas cinco maiores
potências mundiais.
Numa análise crítica do papel das Nações Unidas no campo da segurança
internacional pode-se constatar, em primeiro lugar, a fragilidade e relativa
falta de preparo para enfrentar a nova realidade surgida com o fim do
bipolarismo. Como já observado, durante o período da Guerra Fria a ONU teve seu
campo de atuação na área de segurança internacional constrangido pela ação das
superpotências e mesmo da lógica do sistema bipolar, que reconhecia zonas de
influência e ainda se pautava, em larga escala, pelo aspecto jurídico da não-
intervenção e do respeito à soberania nacional, princípio considerado quase
sagrado pelas regras então vigentes.
Comparar a natureza e a quantidade das intervenções das Nações Unidas em
conflitos internacionais durante e após a Guerra Fria nos permite constatar, de
imediato, que há uma mudança qualitativa nesses dois distintos momentos
históricos. Senão vejamos: entre 1948, quando pela primeira vez a ONU enviou
uma missão de verificação para a região de conflito entre Israel e os países
árabes, e 1989, tem-se o número de apenas 16 missões de paz. Há, pois, um
contraste com as 38 missões desencadeadas a partir do início da década de
1990.7 Além disso, como observado por uma comissão das Nações Unidas,
De las cinco operaciones de mantenimiento de la paz que se llevaban
adelante a principios de 1988, cuatro correspondían a guerras entre
Estados y sólo una (el 20% del total) a un conflicto dentro de un
Estado. De las 21 operaciones que se establecieron a partir de ese
momento, sólo ocho se han debido a guerras entre Estados y 13 (el
62%) a conflictos dentro de Estados, aunque algunos de éstos,
especialmente en la ex Yugoslavia, también tienen ciertas dimensiones
interestatales. Nueve de las once operaciones establecidas a partir
de enero de 1992 (el 82%) han respondido a conflictos
intraestatales8.
A forma abrupta como os conflitos se intensificaram num curto período de tempo
impõe algumas reflexões de cunho teórico que possam auxiliar na compreensão e
explicação da nova realidade e na forma como as Nações Unidas vem se
posicionando para enfrentar a situação. Existem várias correntes teóricas no
campo da análise das relações internacionais que abordam a questão da segurança
e da redefinição do sistema internacional no novo contexto surgido com o fim da
Guerra Fria. Segundo nossa perspectiva, uma das mais coerentes é a vertente
globalista, que amplia o campo da análise, extrapolando os limites da análise
realista, e que traz elementos novos para a compreensão de diversos conflitos
mundiais. A seção seguinte analisa a experiência de tentativa de resolução de
conflitos no continente africano e de como a comunidade internacional e as
lideranças africanas procederam diante de um dos quadros mais graves de
instabilidade política e econômica mundiais.
II - O exemplo africano - a crise africana e a insegurança coletiva
O exemplo que vem da África é sintomático para a compreensão da questão dos
conflitos contemporâneos e das tentativas de solução para os mesmos. A África
foi atingida como nenhuma outra região do mundo pelas recentes transformações
na economia e política mundial. Até o final da Guerra Fria havia interesse
político-estratégico envolvendo o continente, fato que direta ou indiretamente
mantinha vivo o interesse na região. Com o fim da Guerra Fria esse interesse
decaiu e o continente foi como que entregue à própria sorte, envolvido numa
situação quase generalizada de insolvência.
A questão da segurança é, pois, de primordial importância para o continente
africano.9 Marcado por profundo quadro de instabilidade política e econômica,
os Estados africanos não têm conseguido solucionar seus problemas e diferenças
através da negociação político-institucional. Assim, uma crise política
localizada possui consideráveis elementos desestabilizadores que geralmente
levam à tentativa da solução através de meios violentos, muitas vezes trazendo
instabilidade a toda uma região. As conseqüências imediatas são desastrosas,
via de regra resultando no envolvimento de países vizinhos em determinado
conflito interno e promovendo, dentre outros:
a) a destruição da precária e já enfraquecida estrutura econômica do
continente, carente de base para propiciar o desenvolvimento
econômico auto-sustentável;
b) devastação ambiental e mortes sempre em número elevado, atingindo
em determinados casos o patamar de genocídio;
c) deslocamentos populacionais de envergadura, tanto no plano interno
quanto no externo, o que faz do continente uma das regiões mais
afetadas pelo fenômeno dos refugiados;
d) perpetuação da pobreza e do baixo nível de desenvolvimento das
forças produtivas, haja vista que os escassos recursos disponíveis
geralmente são empregados para o "fazer" a guerra;
e) a manutenção e, pior, o aprofundamento da enorme distância que
separa o continente africano do mundo desenvolvido, ou mesmo dos
países chamados de "em desenvolvimento", caracterizando a existência
de algo que poderia ser classificado como "quarto mundo".10
O incremento dos conflitos africanos nos anos 1990 está claramente associado ao
fim da Guerra Fria. Com efeito, após o colapso do "socialismo real"11, da queda
do muro de Berlim e com o avanço do processo de globalização, cresceu o
desinteresse por tudo que diz respeito à África. O antigo envolvimento das
superpotências com os assuntos africanos, encarados como parte integrante da
balança de poder mundial, e que foi mantido praticamente desde a consolidação
das independências nacionais, igualmente sofreu substancial alteração.12
No que tange às ingerências externas no continente, o novo contexto
internacional apresentava, grosso modo, do ponto de vista político, as
seguintes características:
a) a incapacidade da Rússia em projetar-se na política mundial como
substituta da União Soviética, resultando em seu afastamento das
questões internacionais relativas à África (houve também uma clara
retração dos interesses chineses, assim como a retirada da presença
cubana do continente);
b) o negligenciamento, por parte dos Estados Unidos da América, com
os assuntos africanos, exceção ao tímido ensaio de aproximação
verificado durante o segundo mandato do presidente Bill Clinton;
c) a escolha feita pelas potências européias intermediárias (ex-
metrópoles), que optaram por um discreto distanciamento do continente
africano.13
Nesse último caso, tanto a França como a Inglaterra, preferiram praticar uma
política de distanciamento e optaram pela manutenção de um baixo perfil de
envolvimento em todo o continente, exceção identificada apenas e em parte ao
norte da África, por motivos que dizem respeito mais diretamente aos interesses
de segurança do continente europeu, relativos a processos migratórios e à
possibilidade de expansão de regimes fundamentalistas islâmicos na área,
notadamente na Argélia; e à África do Sul, principalmente por sua estreita
relação com os elevados investimentos internacionais praticados no país, a sua
já consolidada infra-estrutura, que está há muito conectada com o mundo
desenvolvido, e também pela sua posição estratégica. Ainda com relação à África
do Sul, vale destacar que a democratização do país e os compromissos assumidos
por diversos governos europeus com o processo de superação do apartheid
colaboraram por manter vivo o interesse dos europeus naquele país.
Todavia, o agravamento da crise econômica e a retirada do suporte internacional
a alguns regimes, como o de Mobutu Sese Seko (reconhecido aliado das potências
ocidentais nos anos da Guerra Fria) no ex-Zaire, atual República Democrática do
Congo, fizeram com que os conflitos tomassem novo impulso na África. Com a
escalada das guerras civis e a matança de cunho étnico e, mais ainda, com as
transmissões televisivas quase que em tempo real via CNN, tudo isso forçou uma
resposta da comunidade internacional.
A situação africana foi particularmente afetada pelo afastamento deliberado
tanto dos Estados Unidos quanto das antigas metrópoles coloniais, especialmente
da Inglaterra e da França. Como desdobramento dessa situação as Nações Unidas,
na verdade, se viram compelidas a assumir um papel mais ativo nos assuntos
referentes ao continente. Algo precisava ser feito e de maneira imediata.
O encaminhamento dado à questão, mesmo que de forma tímida e até certo ponto
paliativa, se deu no âmbito das Nações Unidas, com a criação de várias missões
de paz enviadas ao continente desde o final dos anos 1980, com crescente
importância ao longo dos anos 1990, e com o incremento de ações nitidamente de
ajuda humanitária, desenvolvidas por agências da ONU e por Organizações Não-
Governamentais (ONGs). Para se ter uma idéia do crescimento das missões de
peacekeeping (com envolvimento de tropas) na África, observe-se que em 1988 a
ONU estava envolvida em cinco casos, número triplicado em 1994. Os dispêndios
econômicos com as missões também são reveladores: os valores se elevaram de
US$230 milhões em 1988 para US$3,6 bilhões em 1994. Entretanto, apesar do papel
cada vez mais crucial desempenhado pela ONU no continente, os resultados não
foram muito animadores.
Na verdade, a complexidade das situações de conflito, que, via de regra,
possuem causas múltiplas ou associadas, e a maneira como as operações de paz
são conduzidas pelas Nações Unidas não possibilitam resultados mais positivos.
As operações de paz promovidas pela ONU estão tipificadas em cinco categorias,
a saber:
1) Peacemaking geralmente utilizando-se da mediação, conciliação,
arbitramento ou iniciativas diplomáticas para resolução de conflitos;
2) Peacekeeping tradicionalmente envolvendo uso de pessoal militar,
porém com escopo de ação limitado a atividades reativas e mais
voltado para monitoramento de acordos de cessar-fogo;
3) Peace-enforcing com uso de força militar para cessar hostilidades
ou reprimir atos de agressão;
4) Peace-building envolvendo a reconstrução de infra-estrutura e a
reabilitação de instituições políticas de cunho democrático e;
5) Protective engagement utilizando-se essencialmente de meios
militares defensivos para o estabelecimento de ambientes seguros para
operações humanitárias.
Contudo, praticamente apenas as operações de peacemakingepeacekeeping são, na
prática, levadas a efeito, o que explica, em parte, o relativo fracasso do
envolvimento das Nações Unidas nos conflitos africanos, como por exemplo, das
missões enviadas à Libéria (Unomil), Serra Leoa (Unomsil e Unamsil), Angola
(Unavem I, II e III), Ruanda (Unamir) e Somália (Unosom I e II), a maior parte
das quais não logrou solucionar o problema da guerra.
Os fatos ocorridos em Serra Leoa em maio de 2000 bem demonstram os limites e a
fragilidade das missões de paz quando confrontadas com situações de
beligerância em que uma das partes mostra-se relutante em aceitar intermediação
externa. Nesse caso específico, cerca de quinhentos soldados que compunham as
tropas da ONU (Unamsil), provenientes de vários países, foram feitos
prisioneiros pelo movimento rebelde "Frente Revolucionária Unida" (RUF),
liderada por Foday Sankoh. Naquela ocasião, equipamento militar das Nações
Unidas caiu em mãos dos rebeldes e as forças internacionais, mal preparadas e
condicionadas por rígidas regras que limitam o escopo de atuação dos "capacetes
azuis", pouco puderam fazer para responder aos ataques sofridos.14
Talvez a grande diferença entre as missões de paz da ONU e a ação de tropas
mercenárias, quase sempre bem sucedidas nos conflitos em que se envolveram no
continente africano (no sentido de impor a paz, mesmo que temporariamente),
resida justamente no preparo dos soldados e na capacidade de reação militar
imediata frente aos movimentos revoltosos.15
Apesar do envolvimento internacional, mesmo que muito aquém das reais
necessidades, a questão da segurança continua aparentemente sem solução para a
maior parte dos conflitos africanos. Muito embora a ONU esteja participando na
tentativa de solucionar as guerras civis e servir de mediadora na disputa
violenta pelo poder, a solução para a questão da violência inevitavelmente
passa pelo compromisso das próprias lideranças africanas e das sociedades
envolvidas em conflitos, que não podem ser alijadas do processo de construção
da paz, mas também pela reformulação da política de prevenção de conflitos e de
operações de paz estabelecidas no âmbito das Nações Unidas e pelas organizações
regionais.
III - Lições da África: o papel das organizações regionais na resolução dos
conflitos - o regionalismo como alternativa?
Além da atuação das Nações Unidas e de grupos de mercenários contratados por
alguns governos africanos, um outro tipo de tentativa de resolução de conflitos
vem sendo experimentado por algumas lideranças africanas. Nesse sentido, a
análise se centrará nas medidas de segurança coletiva implementadas pelas
organizações regionais africanas, especialmente as propostas pela Comunidade
Econômica dos Países da África Ocidental (Ecowas) e pela Comunidade para
Desenvolvimento da África Austral (SADC).
Desde o final dos anos 1980 a África Ocidental vem sendo fortemente abalada por
conflitos no interior de alguns Estados da região que tiveram grande êxito em
atrair e envolver terceiros países, dando a eles uma complexidade muito maior.
A guerra civil na Libéria (país de pequenas proporções 111.369 km2 e 2,7
milhões de habitantes e singular na história do continente africano por ter
sido um pólo de atração de ex-escravos norte-americanos) inaugurou também uma
outra modalidade de intervenção para solução de conflitos, que até então
somente tinha sido utilizada por patrocínio do governo norte-americano, e sob
os auspícios da Organização dos Estados Americanos (OEA), para a intervenção na
República Dominicana, em 1965, se bem que naquela ocasião em contexto
totalmente diverso do caso africano.
O fato é que, com o desinteresse dos Estados mais desenvolvidos pelos assuntos
africanos depois que o continente perdeu significado estratégico e político -
uma vez que os acontecimentos na África pouco afetam a vida na Europa ou nos
Estados Unidos, a não ser com incômodas e nem tão freqüentes cenas propagadas
pela mídia -, os líderes africanos foram impelidos, tanto por necessidades
internas ao continente como por discreta ação diplomática dos países
desenvolvidos, a se envolver em guerras civis e disputas internas em Estados
mais frágeis e que tivessem alguma capacidade de promover instabilidade
regional, que poderiam resultar, por exemplo, na transposição de seus conflitos
para países vizinhos, num tipo de efeito dominó de graves dimensões.
A lógica política de tais intervenções está, pois, estreitamente associada à
busca de estabilidade política regional, num contexto em que os regimes de uma
determinada região podem sofrer as conseqüências das ações verificadas num
único país. Tais desdobramentos são potencialmente agravados no continente
africano pela fluidez das fronteiras artificiais traçadas entre a maior parte
dos Estados do continente, e nas quais há intenso intercâmbio humano, com
grupos étnicos afins vivendo, ao mesmo tempo, em dois ou mais Estados.
O regionalismo, em sua vertente da segurança, pode vir a ser uma solução viável
para todo o continente africano e para a maior parte das regiões periféricas do
mundo que experimentam situações de conflito, uma vez que a constituição de
forças regionais poderia se transformar num fator extremamente útil para a
estabilidade política e a paz regional. Uma vez criados, os esquemas regionais
de segurança aliviariam o peso econômico relacionado a gastos militares que
geralmente recaem sobre poucos países, diminuiriam a possibilidade de golpes de
Estado, e rapidamente teriam um significado especial como inibidor de aventuras
violentas de tomada do poder por grupos políticos ou étnicos rebeldes. Isso sem
contar as vantagens operacionais para entrada em vigor de uma força
internacional a qual teria, por exemplo, maior conhecimento da realidade local
e maior rapidez para entrar em ação, um dos quesitos freqüentemente
relacionados como um dos maiores entraves para que as missões de paz das Nações
Unidas tenham sucesso, uma vez que o processo de constituição de uma missão
desse tipo demanda, pela natureza e funcionamento da estrutura da ONU, um tempo
relativamente longo para entrada em operação.
Contudo, há naturalmente uma série de questões extremamente sensíveis, quando
se considera a criação de forças regionais para intervenções de qualquer tipo.
Tal medida pode, eventualmente, ter um efeito contrário ao desejado, uma vez
que pode suscitar suspeitas contra a ação de potências regionais, alimentando
diferenças e criando um clima propício para instabilidade regional. Ademais, há
uma série de outros aspectos pertinentes ao tema, que geralmente não foram
ponderados quando as ações de intervenção tiveram lugar. Um deles é a questão
da legitimidade da intervenção: sob que condições pode uma organização regional
intervir em determinado país? E o que torna legítima essa intervenção?
A primeira intervenção patrocinada por um agrupamento regional africano ocorreu
em 24 de agosto de 1990, com o envio de tropas do Grupo de Monitoramento da
Comunidade dos Estados da África Ocidental (Ecomog) para tentar conter a crise
na Libéria. A Ecomog, uma espécie de braço armado da Comunidade Econômica dos
Estados da África Ocidental (Ecowas), foi empregada também em mais duas
ocasiões: na tentativa de solucionar conflitos em Serra Leoa (1997) e na Guiné-
Bissau (1998).
Embora tenham sido, pelo menos do ponto de vista formal, intervenções levadas a
efeito sob os auspícios da Ecowas, é inegável o papel de vanguarda exercido
pelo ator regional mais proeminente: a Nigéria. Com efeito, cerca de 70% das
tropas da Ecomog foram formadas por efetivos nigerianos, que desde o início
assumiram o comando de fato da força interventora. Embora a Nigéria tenha
conseguido efetivar a existência da Ecomog, tal atitude não foi alcançada por
consenso entre os membros da Comunidade, ficando bastante evidente que muitos
dos países que formam a Ecowas não concordavam com a criação de uma força
militar de intervenção. Não foi por acaso que as intervenções praticadas pela
Ecomog não tiveram sucesso e não conseguiram levar estabilidade aos países que
atravessavam conflitos, como fica evidente quando se analisa a conjuntura na
Libéria, na Guiné-Bissau e em Serra Leoa. Serra Leoa é, inclusive, um exemplo
claro do fracasso da intervenção regional.
No caso de Serra Leoa ficou evidente que, sem a intervenção estrangeira-
regional, os rebeldes da Frente Unida Revolucionária (RUF) teriam dominado todo
o país e instaurado um novo regime, a exemplo do ocorrido na Libéria. Nesse
sentido, são até oportunas, a reflexão e a discussão da validade de tais
intervenções nos conflitos internos, uma vez que alguns casos concretos indicam
que a presença de forças externas só fez prolongar os conflitos internos,
aumentando consideravelmente o número de vítimas e o sofrimento das populações
dos países em conflito, sem trazer a reconciliação nacional.16
Um aspecto importante a ser abordado no caso de intervenções promovidas por
organizações regionais diz respeito à legitimidade do processo de intervenção e
ao grau de consenso necessário para que tal ocorra. Ainda para ficarmos no
exemplo africano, há que se destacar que, no caso da África Ocidental, as
divergências mais profundas se deram entre Nigéria, Burkina Faso e Costa do
Marfim. Os dois últimos países, contrários desde o início ao estabelecimento da
Ecomog ambos não participaram da reunião da Ecowas que decidiu pela criação da
força de intervenção tiveram uma participação importante para o fracasso das
operações da Ecomog na Líbéria, que afinal comprometeria a sua ação futura em
Serra Leoa. Assim, sobre Burkina Faso e Costa do Marfim recaíram fortes
suspeitas de ajuda aos rebeldes da Libéria, como provedores de armas e outros
suprimentos, bem como de refúgio seguro para as guerrilhas rebeldes. Esse mesmo
quadro se reproduziu quando a Ecomog entrou em ação em Serra Leoa, tendo seus
esforços de conter os rebeldes da RUF sido minados pelo declarado apoio que
este movimento recebeu do governo da Libéria, secundado por suspeitas de que
outros países da região também ajudaram os rebeldes.
Outro agrupamento regional importante no contexto africano é a Comunidade para
o Desenvolvimento da África Austral (SADC). Composto de países tão diversos
quanto os membros da Ecowas, a SADC também possui múltiplos problemas
vinculados à segurança regional. E da mesma maneira que ocorre na África
Ocidental, existem muitas divergências políticas entre os membros do bloco da
África Austral, com propostas que variam de uma política mais ativa e engajada
de intervenção, com a utilização de forças armadas para missões específicas, a
propostas de resolução negociada para os conflitos.
Tais divergências ficaram mais expostas quando irrompeu a crise no ex-Zaire,
atual República Democrática do Congo, e duas tendências divergentes se
evidenciaram. Por um lado, Angola, Zimbabwe e Namíbia assumiram postura ativa e
engajaram suas tropas ao lado das de Laurent Desiré Kabila, substituto de
Mobuto Sese Seko. Por outro lado, a África do Sul, incontestavelmente o país
mais importante do bloco, assumiu uma postura diferente, numa perspectiva de
que buscava o diálogo e a solução negociada para a complexa questão da guerra
civil na República Democrática do Congo. Enfim, no caso da guerra na região dos
Grandes Lagos, que acabou por envolver aberta e intensamente pelo menos cinco
diferentes países, não houve a possibilidade da formação de uma força militar
que agisse sob os auspícios da SADC, a qual poderia legitimar a intervenção.17
Entrementes, ainda no âmbito da SADC, a organização chegou a um meio-termo no
que diz respeito à política de intervenção militar regional. Sob pressão da
mesma África do Sul, que pouco antes se recusara a enviar tropas e a se
envolver militarmente na guerra na República Democrática do Congo. Assim, a
SADC formalizou, pela primeira vez, uma intervenção militar sob seus auspícios
no contexto da África Austral. Tal fato ocorreu durante o segundo semestre de
1998, quando militares provenientes da África do Sul e de Botswana entraram no
território do Lesoto para impedir o sucesso de um golpe militar contra o
governo, intentado por setores militares.18
Mas mesmo tal ação, muito mais limitada que as intervenções anteriormente
citadas (da Ecomog na Libéria e em Serra Leoa; e do envolvimento de terceiros
países na guerra do Congo), não foi consensual no âmbito da SADC. Com efeito, a
maior parte dos países da região são contrários a que se constitua uma força
permanente para intervenções que tenham por objetivo conter guerras civis ou
golpes militares, residindo nesse aspecto o maior entrave para a concretização
de esquemas regionais de segurança, no continente africano e alhures. A cautela
assumida pelos Estados que não concordam com esquemas de intervenção externa
para resolução de conflitos internos está vinculada com a idéia de soberania
nacional e de não-intervenção nos assuntos ditos domésticos. Entretanto, como
observado anteriormente, tais conceitos já não possuem a vitalidade e o caráter
"sacro" de antes.
Num balanço geral da questão do papel das organizações regionais na busca pela
estabilidade política, tema vital para o futuro do continente - mas também e
principalmente para o presente - pode-se argumentar que, sem dúvida alguma,
essas organizações têm um relevante papel a cumprir, muito embora sua atuação
até o presente não tenha sido um sucesso, em termos militares ou políticos.
Talvez o principal argumento favorável à sua atuação seja o fato de que os
africanos estão tentando solucionar os problemas do seu continente utilizando-
se dos seus próprios meios. Assim, o aspecto do "olhar para dentro" assume
dimensões realmente significativas e que podem trazer valiosas lições e indicar
novos caminhos para o futuro próximo. Noutro sentido, um dos aspectos mais
negativos que têm se destacado da participação das organizações regionais nos
conflitos está ligado à falta de isenção, de preparo e de entendimento político
entre os países membros de tais organizações, o que tem suscitado ainda mais
desunião e desconfiança entre os Estados africanos.
Considerações finais
Objetivamente pode-se concluir observando que houve mudanças quantitativas e
qualitativas no que diz respeito à natureza dos conflitos, seja em sua vertente
internacional ou nacional, durante o final do século XX e o início do XXI. De
um perfil geral caracterizado por conflitos entre unidades estatais, observou-
se ao longo do período analisado o deslocamento do foco central que era
inicialmente voltado para disputas entre Estados-nação, para um modelo de
disputa no interior dos Estados-nação. Com efeito, são relativamente poucos os
exemplos mais recentes das guerras convencionais de disputas interestatais que
caracterizaram a história contemporânea, pelo menos de 1789 a 1945. Todavia,
urge observar que os conflitos intra-estatais jamais repercutiram tanto além
das fronteiras dos Estados nacionais como no presente.
Se antes os fatores ideológicos e geo-estratégicos prevaleciam, a partir do
final da Guerra Fria houve um redimensionamento no que diz respeito às
motivações principais dos conflitos: passaram a predominar aspectos de cunho
étnico e de fundamento religioso, alimentados pela intensificação do
empobrecimento geral de Estados comumente localizados na periferia da economia
capitalista e do gravíssimo quadro de exclusão social decorrente da nova fase
do liberalismo econômico, vagamente denominado de neoliberalismo, um conceito
amplo e imbuído de forte conteúdo ideológico.
A intensificação e o redimensionamento dos conflitos ao redor do mundo se deram
justamente com o fim da era bipolar, a partir de 1989. Com efeito, a queda do
Muro de Berlim e o fim da União Soviética produziram uma espécie de vazio
ideológico que promoveu, em setores influentes da intelectualidade e da
política mundiais, uma sensação de "via única", de supremacia incontestável dos
princípios liberais, os quais acentuaram a tendência verificada já entre meados
da década de 1960 e 1970 de abertura das economias nacionais e da significativa
redução do papel do Estado como agente regulador de conflitos e demandas
sociais. Esse efeito invariavelmente atingiu praticamente todos os países do
mundo. Todavia, o seu impacto foi muito maior entre os países subdesenvolvidos
ou em desenvolvimento, que pouco puderam fazer para conter a agressividade do
liberalismo comercial e econômico emanado do centro do sistema capitalista. O
resultado aproximou-se muito do esperado: Estados economicamente fracos e
politicamente instáveis passaram a conviver com o aumento substancial da
violência como forma de protesto e demonstração de insatisfação por parte dos
excluídos, sendo que em vários casos essa violência atingiu um grau maior e
direcionado diretamente contra o aparelho estatal ou contra grupos sociais
identificados com o próprio Estado, gerando potencial ou real clima de
conflito.
A escalada da violência no interior dos Estados-nação apresenta um problema de
ordem moral - e em alguns casos também de ordem econômica e política - que
chama a atenção da comunidade internacional e da opinião pública mundial. O
ressurgimento de ondas de violência que atingiram o grau de genocídio (Ruanda)
e de limpeza étnica (Iugoslávia) colocou como imperativo para as Nações Unidas
o revigoramento da questão da intervenção para o estabelecimento e manutenção
da paz. A situação atingiu um nível tal de gravidade que consolidou a idéia de
intervenção humanitária, classificada como legítima no contexto pós-Guerra
Fria.
Uma das conseqüências do crescimento e gravidade do número de conflitos foi a
tentativa de resposta dada pela ONU para solucionar as crises. Assim, houve um
incremento vultoso no número de missões de paz promovidas pelo Conselho de
Segurança, visando controlar a explosão da violência e permitir a permanência
da governabilidade no interior de vários Estados que estavam se desintegrando
numa velocidade espetacular.
Porém, a ONU atuou - e tem atuado - muito mais no sentido de administrar a
crise e solucionar problemas específicos e adstritos a determinados países, ao
invés de promover tentativas de solução das causas que vêm enfraquecendo a
capacidade de governabilidade básica de diversos Estados. Assim, uma das
conclusões mais importantes que podemos extrair dessa análise é que tanto a
estrutura de poder mundial vem se mantendo praticamente intocável, no sentido
de que a vontade das grandes potências econômicas e militares (G-7) tendem a
prevalecer incontestavelmente, assim como a estrutura do sistema econômico
predominante permanece inalterado em seu fundamento básico, muito embora esse
mesmo sistema venha sendo associado e denunciado como um dos mais importantes
motivadores da maior parte dos conflitos em andamento.
Da mesma forma, os mecanismos de prevenção e resolução de conflitos passaram
por mudanças que visaram sua adaptação a cada nova realidade surgida nos dois
momentos históricos estabelecidos como marcos no período abordado por este
estudo, ou seja, durante e após o período da Guerra Fria. De uma postura
tradicional baseada no conceito de segurança estatal, que encarava o Estado
como basicamente o ator mais relevante no sistema internacional, evoluiu-se
para uma percepção ancorada em princípios avalizados pelo modelo de democracia
ocidental e pelo respeito aos direitos humanos, elementos que passaram a ter
importância maior que a questão da segurança do Estado. Foi colocado em xeque,
pois, o próprio sistema de Westfália, que teve a capacidade de instruir as
relações entre os Estados por mais de dois séculos. Nesse sentido, a quebra do
sacralizado princípio da soberania nacional constituiu-se, de fato, num novo
paradigma.
Contudo, uma das principais características do sistema internacional, que é a
assimetria do poder, tem a capacidade de afetar também essa mudança
paradigmática, uma vez que a quebra do princípio da soberania nacional, assim
como os demais fenômenos da vida internacional, atinge em grau bastante
distinto as diversas unidades nacionais. No caso mais específico do tema aqui
abordado, fica patente que as intervenções das Nações Unidas, além de suas
limitações intrínsecas, ainda têm de enfrentar a realidade que consiste na
existência de Estados soberanos, mesmo considerando a redefinição da noção de
soberania, e que possuem capacidade reativa para qualquer tipo de intervenção
estrangeira, seja ela promovida por meio de mecanismos multilaterais ou por
pressão de Estados-potência, aspecto que vem reforçar o caráter assimétrico do
poder mundial. É o caso, por exemplo, da Rússia e da China, ambos os países
acusados de desrespeito aos direitos humanos e de uso exagerado da violência
como meio para atingir objetivos específicos. Contudo, por possuírem potencial
nuclear, estão de certa maneira infensos a medidas de intervenção estrangeira,
seja por parte de organismos multilaterais ou de coalizões específicas. A mesma
sorte, contudo, não têm países como Iraque, Iugoslávia, Serra Leoa ou
Afeganistão, haja vista que o poder nacional, nos quatro casos, não é
suficiente para dissuadir ingerências externas. Na verdade, um clube muito
restrito de países possui hoje uma espécie de imunidade contra intervenções
estrangeiras promovidas por atores estatais ou multinacionais levadas a efeito
sob qualquer justificativa. Possuem eles, todos, como característica comum, o
fato de terem meios para dissuadir ações externas contra seu território.
Com relação ao tema da segurança internacional conclui-se que, muito embora as
Nações Unidas tenham um papel essencial a desempenhar, sobretudo como
coordenadora de ações de caráter geral, ainda falta muito para que os
instrumentos de prevenção e manutenção da paz se tornem de fato eficazes.
Enquanto não houver um envolvimento mais amplo da comunidade internacional com
a temática da segurança, inclusive envolvendo as instituições de Bretton Woods,
necessariamente entendida de maneira também ampla, ou seja, envolvendo a
discussão da superação do subdesenvolvimento e dos níveis absurdos de pobreza e
desigualdade verificados na realidade contemporânea, assim como uma mínima
distribuição de poder no plano mundial, dificilmente haverá possibilidade de
harmonia e equilíbrio internacionais.
Maio de 2004
1 Muito embora alguns conflitos localizados em países do sudeste asiático não
tenham assumido a forma plena de guerras civis, há que se considerar o aumento
da demonstração de insatisfação de setores específicos das sociedades
localizadas naquela região, sobretudo as motivadas por fatores étnicos ou
religiosos como preocupantes e inseridas num quadro maior, que podem ter
desdobramentos importantes.
2 No caso deste estudo, entende-se por países periféricos aqueles situados fora
do mundo desenvolvido, ou seja, são aqueles países ditos subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento e que não possuem uma condição estratégica de destaque. Assim,
deve-se excluir do conceito, neste caso, países não plenamente desenvolvidos,
mas que por algum motivo possuam importância estratégica, como a Rússia, a
China, a Índia, o Paquistão, a Coréia do Norte e o Oriente Próximo.
3 A idéia de globalização sugere a aproximação entre as várias partes da
economia mundial, com o encurtamento da distância física e a intensificação dos
contatos entre os povos. O termo globalização tem tido a capacidade de gerar
certa polêmica, sobretudo porque, no senso comum, subjaz a idéia de que se
trata de um fenômeno novo. Não partilhamos de tal perspectiva. Em nosso
entendimento, a globalização nada mais é do que uma fase de um processo
iniciado séculos atrás e que ainda haverá de continuar. Nesse caso,
compartilhamos das idéias expostas, dentre outros, por Paul Singer. Ver:
SINGER, Paul. Globalização: afinal do que se trata? In: GUIMARÃES, Samuel
Pinheiro (org.). Brasil e África do Sul - Riscos e oportunidades no tumulto da
globalização. Brasília: CNPq/IPRI, 2000, p. 467-499.
4 Ver: CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era da informação; economia,
sociedade e cultura.Vols. 1, 2 e 3. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
5 Sobre a Liga das Nações, especialmente sobre o papel do Brasil ver: VARGAS,
Eugênio Garcia. O Brasil e a Liga das Nações. Brasília: Universidade de
Brasília, 1994. Dissertação de Mestrado.
6 O contexto internacional entre 1919 e 1939 foi caracterizado por alguns
autores como de crise contínua, destacando elementos de continuidade entre a
Primeira e a Segunda Guerra mundial. Veja a respeito, por exemplo, o já
clássico livro do historiador inglês: CARR, E. H. Vinte anos de crise: 1919-
1939. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981.
7 Ver Anexo_I contendo as Missões de Manutenção de Paz (Peacekeeping)
promovidas pelas Nações Unidas de 1948 até os dias atuais.
8 Cf. Suplemento de "Un Programa de Paz": Documento de Posición del Secretario
General Presentado con Ocasión del Cincuentenario de las Naciones Unidas. A/50/
60 S/1995/1, 25 de enero de 1995. Disponível em: <http://www.un.org>.
9 Desenvolvi a temática da segurança no continente africano no seguinte estudo,
de onde retirei uma parte da argumentação aqui desenvolvida. Ver: PENNA FILHO,
Pio. Conflito e busca pela estabilidade no continente africano da década de
1990. In: PANTOJA, Selma (org.). Entre Áfricas e Brasis. Brasília: Paralelo 15;
São Paulo: Marco Zero, 2001, p. 99-115.
10 Alguns autores já descrevem os países do continente africano como
pertencentes ao "quarto mundo", tal o diapasão que os separa da maior parte dos
países dos outros continentes. Veja, por exemplo: CASTELLS, Manuel. Fim de
milênio. A era da informação; economia, sociedade e cultura. Vol. 3. São Paulo:
Paz e Terra, 1999, p. 95-155.
11 Termo utilizado para designar os países socialistas que tinham como
embasamento o "marxismo-leninismo" em sua vertente stalinista, isto é, de todos
os países que adotaram o sistema socialista liderados pela ex-União Soviética,
mais a Albânia e a China, que se distinguiam do modelo soviético, mas que
possuíam - no caso da China, ainda possui - sistemas altamente centralizados e
autoritários, em certa medida destoantes dos princípios puramente marxistas,
haja vista a desvinculação de sua base econômica dos princípios político-
ideológicos pregados por seus governos.
12 Richard Cornwell discute, embora brevemente, as implicações do fim da Guerra
Fria sobre a estrutura estatal africana. Cf. CORNWELL, Richard. The collapse of
the African State. In: CILLIERS, Jakkie, MASON, Peggy (orgs.). Peace, profit or
plunder? The privatisation of security in war-torn African societies. Halfway
House (South Africa): Institute for Security Studies (ISS), 1999, p. 61-80.
13 Sobre o contexto internacional nos anos 1990 e suas implicações nas relações
internacionais do continente africano ver: WRIGHT, Stephen. The changing
context of African foreign policies. In: WRIGHT, Stephen (ed.). African Foreign
Policies. Westview Press: Boulder, 1999, p. 1-24.
14 Os rebeldes capturaram e usaram o equipamento das Nações Unidas contra
tropas governamentais ou a serviço do "governo" de Serra Leoa, e assumiram o
controle da estratégica cidade de Lunsar. Segundo o depoimento de um militante
pró-governo, os rebeldes só conseguiram a captura de Lunsar por causa da
superioridade bélica conquistada pelo confisco do armamento das Nações Unidas.
Sobre o episódio em questão e sobre o "seqüestro" dos aproximadamente
quinhentos soldados da missão de paz das Nações Unidas, ver: Sierra Leone
rebels retake key town, 31 de maio de 2000, disponível em <http://www.slis.cx/
archive/arc4-2000.html > e Sierra Leone Rebels Release Last
of UN Hostages, 29 de maio de 2000, disponível em <http://www.slis.cx/archive/
arc4-2000.html > .
15 As atividades mercenárias renasceram na África com a escalada dos conflitos
internos verificados desde o final da década de 1980 em contexto muito claro do
pós-Guerra Fria e do enfraquecimento dos Estados africanos. Várias companhias
foram criadas e seus "serviços" variavam desde o treinamento de tropas
governamentais até a intervenção direta em alguns conflitos, quase sempre a
contrato oficial. O envolvimento de maior alcance de mercenários se deu na
guerra civil de Serra Leoa, sendo que a companhia Executive Outcomes, de origem
sul-africana,foi quem evitou a vitória dos rebeldes em meados da década de
1990.
16 Por outro lado, há casos em que a intervenção de agentes externos em socorro
a minorias étnicas no interior de alguns Estados-nação foi suficiente para
conter políticas de limpeza étnica promovidas por governos centrais que
nitidamente representavam grupos majoritários específicos. Nesse caso, o melhor
exemplo foi a intervenção na ex-Iugoslávia, particularmente na província de
Kosovo, que barrou a ação ofensiva militar sérvia naquela província.
17 Os cinco países que se envolveram no conflito foram os seguintes: Zimbabwe,
Angola, Uganda, Namíbia e Ruanda.
18 A intervenção de 1998 no Lesoto foi analisada por Theo Neethling. Ver:
Military Intervention in Lesotho: Perspectives on Operation Bolea and Beyond.
Disponível em: <http://www.trinstitute.org/ojpcr/2_2neethling.htm > .