Taiwan: um futuro formoso para a Ilha? Aspectos de segurança e política
Introdução
Sérias dúvidas prevalecem, desde o início de 2004, com respeito a um futuro
formoso para os 23 milhões de taiwaneses. As eleições, em 20 de março deste
ano, evidenciaram que existem, na ilha de Formosa, duas Taiwans, divididas em
torno de questões como soberania, identidade cultural e status quo. Problemas
de segurança e políticos, influenciados por poderosas forças externas,
contribuem para o clima de incerteza que se vive.
Narrativas sobre Taiwan, no entanto, devem iniciar-se no Brasil sempre com o
registro de que, no século XVI, os portugueses batizaram a ilha de "Formosa".
Mantendo essa tradição, inicio o artigo com breve relato histórico, que situa a
inserção internacional formosina no quadro da expansão marítima lusitana há
seiscentos anos.
Os primeiros europeus a chegarem a Taiwan, portanto, foram marinheiros
portugueses que, em 1582, a chamaram de "Formosa". A ilha tinha então uma
população rarefeita, composta por aborígines maláio-polinésios. Os poucos
contatos com a China eram feitos por intermédio de refugiados do continente. Em
1633, holandeses, da Companhia das Índias Orientais estabeleceram-se ao Sul.
Com a invasão da China pelos manchus e a derrubada da dinastia Ming, em 1644,
cerca de cem mil pessoas fugiram das províncias costeiras chinesas para a ilha.
Após curto período de convivência pacífica com os holandeses, aconteceram
sérios conflitos. Sob a liderança de Koxinga (Cheng Ch'eng-kung), chineses e
nativos expulsaram os ocidentais, em 1662.
Vinte anos mais tarde, no entanto, os manchus estenderam seu domínio a Taiwan,
incorporando-a ao Império chinês durante os dois séculos seguintes. Em meados
do século XIX, foi revivido o interesse do Ocidente, com tentativas norte-
americanas e britânicas para ocupar a ilha. Como resultado, os chineses
promoveram alguns esforços de modernização na margem formosina do estreito. Em
1895, após derrota humilhante para o Japão, a China cedeu a ilha aos
vencedores. Durante os cinquenta anos que se seguiram, os japoneses efetuaram
investimentos significativos na infra-estrutura e agricultura, transformando-
a em fornecedora de alimentos e base militar para o Império nipônico.
A fase moderna da história chinesa teve início com a queda da Dinastia Ching
(manchú), em 1911, e o estabelecimento da República da China, no ano seguinte.
Durante as duas primeiras décadas de sistema republicano, o país foi assolado
por turbulências internas, enquanto regimes militares competiam para assumir o
poder. Em 1927, conseguiu-se a unificação nacional, após a derrota de líderes
militares regionais pelo Generalíssimo Chiang Kai-shek. Logo em seguida, no
entanto, a invasão japonesa levou os chineses a uma guerra de resistência, que
durou oito anos, até a vitória sobre o Japão, em 1945, com o apoio das nações
aliadas.
Naquele ano, os vencedores da Segunda Grande Guerra entregaram Taiwan à
República da China. Em 1949, com a derrota militar do Kuomintang pelo Partido
Comunista Chinês, Mao Zedong assumiu o poder em Pequim e proclamou a República
Popular da China.
Como consequência, os seguidores de Chiang Kai-shek refugiaram-se em Taiwan,
onde, até o início da década de 1990, defenderam a existência de "uma China",
representada pela "República", instalada "temporariamente" na ilha, com o firme
propósito, ainda, de reconquistar o continente, pela força. As autoridades de
Taipé, então, decidiram, unilateralmente, em 1991, renunciar à "soberania"
sobre o outro lado do estreito, limitando sua jurisdição ao arquipélago formado
por Taiwan e as pequenas ilhas de Penghu, Kinmen e Matsu.
Taiwan, hoje, já não é uma ilha tão formosa, mas demonstra ainda
características admiráveis. Sua economia apresenta aspectos de modernidade que
causam inveja a países da Ásia-Pacífico. O sistema político local oferece
democracia eleitoral e imprensa livre. Chega-se a falar num bem sucedido modelo
taiwanês, que poderia ser imitado por países em desenvolvimento, tanto no que
diz respeito à organização do mercado, quanto à forma de governança.
Duas vantagens competitivas principais são, no entanto, responsáveis pelo
progresso alcançado: a prudente distância política do continente, que facilitou
a sucessivas gerações de chineses instalarem-se, durante séculos, em fuga da
instabilidade interna do outro lado do estreito; e a conveniente proximidade
geográfica do mercado chinês, que tem permitido aos formosinos agirem como
intermediários para o comércio e investidores na China.
Existem, contudo, condicionantes para qualquer cenário futuro que se pense para
seus 23 milhões de habitantes. Estas são: a condição insular do território que
ocupam, a 145 km. Do litoral de um país, com 1,3 bilhões de pessoas; o fato de
que este vizinho gigantesco considera Taiwan uma província chinesa; a
existência de cultura compartilhada que persiste em unir as sociedades civis
das duas margens, em função de valores, hábitos e até laços familiares; e a
crescente integração econômica, que fortalece a tendência no sentido da
formação de "uma grande China".
O exercício de reflexão, a seguir, pretende analisar a perspectiva da questão
através do estreito, em seus aspectos de segurança e política.
O tema do estudo, portanto, é a avaliação de um possível futuro favorável para
a questão de Taiwan, a partir da existência de variáveis fixas, como as que
dizem respeito à geografia e à história e tendo como foco as dimensões de
segurança e política.
A parte propositiva do estudo foi redigida com base em vivência pessoal do
autor, que tem servido, como diplomata, durante 17 anos e meio em postos
asiáticos, desde 1982, na China, Malásia, Cingapura, Filipinas, Indonésia e
Taiwan, com os intervelados exigidos pelo Ministério das Relações Exteriores,
em que exerceu funções em Brasília. Trata-se, portanto, de trabalho de pesquisa
efetuado, principalmente, em função da rotina da ação diplomática do autor.
A técnica de formulação de cenários,1 sabe-se, determina o estabelecimento de
uma cena de partida,2 entendida como a descrição do estado inicial do objeto
que está sendo cenarizado de modo tal, que já incorpora as hipóteses e
condições a partir das quais se dará o desdobramento esboçado na filosofia do
cenário.
Nessa perspectiva, entre diferentes momentos históricos recentes, que
determinaram "cortes" na evolução da questão através de Taiwan, escolheu-se
como nova cena de partida, para avaliar a possibilidade de futuro favorável à
ilha, a declaração de Lee Teng-Hui, em julho de 1999, no sentido de que, a
partir de então, as relações através do estreito deveriam ser definidas como de
"Estado a Estado". Na parte a seguir, sobre o passado recente da questão de
Taiwan, buscar-se-á analisar este momento de definição em maiores detalhes.
Ressalta-se que, no decorrer do artigo, a referência a "China" indicará a
República Popular da China, fundada em 1949. "Taiwan" é entendida como a ilha
para onde se deslocou o Partido Nacionalista, Kuomintang, com Chiang Kai-shek,
após sua derrota para Mao Zedong, naquele mesmo ano. "Taiwaneses" ou
"formosinos" são os habitantes da ilha.
O passado recente
Enquanto Chiang Kai-shek e Chiang Ching-kuo estiveram no poder em Taiwan, entre
1949 e 1987, Pequim nunca suspeitou que algum deles poderia reivindicar a
independência da ilha. Mao Zedong, por exemplo, considerava que a resistência
de Chiang Kai-shek à reunificação devia-se à hesitação de "confessar que havia
sido derrotado" ou uma questão de "face" (no sentido de manter as aparências).
Segundo consta, os Chiangs, pai e filho, reprimiam mais os formosinos
partidários da independência, do que os simpatizantes do Partido Comunista
Chinês (PCC). Com frequência, os ex-líderes do Kuomintang (KMT) resistiam com
vigor ao que percebiam como esforços de Washington, no sentido da separação dos
dois lados do estreito. Acadêmicos chineses teriam considerado, inclusive,
heróico o comportamento da referida dinastia, por manter unificado o território
nacional.3
Quanto à aliança com os Estados Unidos contra a RPC, poder-se-ía considerar
como compromisso de conveniência, em virtude de fronteira ideológica
determinada pelo período da Guerra Fria ' uma frente ampla circunstancial
contra o comunismo, mas, nunca, um movimento contra a reunificação.
Sabe-se, no entanto, que, durante a Era de Mao Zedong, a política chinesa com
respeito a Taiwan fora, em grande medida, baseada na determinação do Grande
Timoneiro de "libertar a ilha" pela força militar. Em meados da década de 1950,
no entanto, a China começou a endereçar iniciativas de conversações ao
Kuomintang, em Taipé. Em abril de 1955, portanto, o Premier Zhou Enlai propôs,
via delegação dos EUA, em Genebra, negociações com as "autoridades locais
responsáveis" em Taiwan. Em junho do ano seguinte, o primeiro-ministro reiterou
a oferta, ao expressar publicamente o desejo de discutir passos concretos, no
sentido da resolução pacífica do problema formosino com o KMT. Em abril de
1957, coube ao próprio Mao manifestar a vontade do PCC de cooperar com o
Partido Nacionalista. No ano seguinte, em pronunciamento do ministro da Defesa
Peng Dehuai, Pequim, mais uma vez, ofereceu a Taipé o início de negociações
para a resolução pacífica do problema através do estreito.
Taiwan dispensou, publicamente, todas estas iniciativas. Historiadores
taiwaneses registram, no entanto, que, nas décadas de 1950 e 1960, Chiang Kai-
shek teria mantido contatos secretos com Pequim, tendo, inclusive, enviado
emissários para discutir, em sigilo, a reunificação com os dirigentes chineses.
Entre os pontos então discutidos, especula-se que teria sido considerado, por
exemplo, o retorno de Chiang Kai-shek à China com seus seguidores, podendo
estabelecer-se, na condição de presidente do Kuomintang, em qualquer província
do continente, exceto a de Zheijiang. Chiang Ching-kuo seria o governador da
Província de Taiwan. A ilha conservaria as prerrogativas desfrutadas nos vinte
anos anteriores, à exceção da autonomia em política externa e assuntos
militares.
A Marinha e a Força Aérea taiwanesas seriam reorganizadas sob o controle
chinês. O Exército também seria reestrutrado, reduzindo-se a quatro divisões,
uma a ser baseada na região de Jinmen e Xiaman e outras três em Taiwan. Xiamen
e Jinmem seriam transformadas numa cidade livre, situada como entreposto entre
Pequim e Taipé. O comandante da divisão regional teria a patente de tenente-
general e seria, também, o prefeito da cidade. Sua nomeação deveria ser
aprovada por Pequim. Cargos e salários de todos os funcionários civis e
militares seriam preservados e as condições de vida da população da ilha
ficariam mantidas no mesmo nível.
Com base nessas condições, consta que Chiang Kai-shek teria concordado em
conduzir negociações secretas. Com o início da Revolução Cultural, na China
durante a década de 1960, contudo, contatos sigilosos ou ostensivos cessaram.
Com o início da Era Deng Xiaoping, no final da década de 1970, Pequim abandonou
sua política de libertação de Taiwan pela força, e formulou nova orientação de
"reunificação pacífica". Desencadeou, em seguida, uma série de iniciativas de
aproximação dos taiwaneses. Em janeiro de 1979, o Comitê Permanente do
Congresso Nacional do Povo enviou "uma mensagem aos compatriotas em Taiwan".
Em 30 de setembro de 1981, Ye Jianying, presidente do Comitê Permanente do CNP,
anunciou proposta de nove pontos para resolver o problema de Taiwan, a incluir:
livre comércio e comunicações entre Taiwan e a RPC; autonomia para Taiwan e
manutenção das forças armadas taiwanesas; participação de representantes
formosinos no sistema político da RPC; preservação da economia capitalista
taiwanesa; ajuda financeira do Governo central a Taiwan, caso necessário;
liberdade para que residentes da ilha se estabeleçam no continente chinês;
participação lucrativa para capitalistas taiwaneses no programa de modernização
da RPC; conversações entre o Kuomintang e o Partido Comunista Chinês com vistas
à reunificação; e aceitação de propostas das "massas" sobre como a reunificação
deveria ser realizada.
Dois anos depois, Deng Xiaoping reiterou a possibilidade de conversações
diretas entre o PCC e o KMT, desde que não se configurassem como diálogo entre
o Governo Central, Pequim, e o provincial, Taipé. Em 22 de fevereiro de 1984,
Deng apresentou a proposta de "um país, dois sistemas", que veio a ser aplicada
à reunificação de Hong Kong, em 1997, mas que se destinava, originalmente, a
Taiwan.
Verifica-se, portanto, que, a partir do final da década de 1970, os chineses
apostaram que, com o estabelecimento de relações diplomáticas entre Pequim e
Washington, os taiwaneses passariam por crise de confiança que os levaria,
facilmente, a ceder aos desígnios de reunifacação da RPC. Ademais, com o início
de seu processo de modernização, haveria incentivos novos para que os
formosinos se interessassem quanto à participação de uma China com economia
vigorosa, comércio em expansão e vantajosas oportunidades para investimentos.4
Os EUA, no mesmo ano em que transferiram o reconhecimento diplomático para
Pequim, no entanto, promulgaram o Taiwan Relations Act, mantendo a ilha
fortemente inserida em estrutura de confrontação da Guerra Fria. Durante a
década de 1980, pouca evolução ocorreu, através do estreito, enquanto
permanecia em vigor a proposta de one country, two systems, já mencionada.
Depois da morte de Chiang Ching-kuo, em janeiro de 1988, Pequim considerou,
inicialmente, que poderia esperar que Lee Teng-hui continuaria o processo de
negociações estabelecido com os Chiangs. Recorda-se, a propósito, que pai e
filho, ao governarem a ilha, entre 1949 e 1988, mantiveram a postura de que
Taiwan era parte do território chinês, da mesma forma que o continente.
Consideravam, ademais, a existência de apenas "uma China" representada pela
"República da China" ' e não pela "República Popular da China".
Lee, contudo, deu pronto início a mudança de orientação. No final da década de
1980, o novo líder ainda declarava que: "uma China é o princípio supremo". Já
no começo da seguinte, incorporou o discurso inovoador de que, através do
estreito, existia, na verdade, "uma China, dois governos". A partir de setembro
de 1990, os taiwaneses passaram à iniciativa e estabeleceram um Conselho
Nacional para Unificação. Ao lançar as Guidelines for National Unification, em
fevereiro de 1991, os taiwaneses mantinham que havia "apenas uma China", mas
apresentavam a inovação do conceito de "uma China, duas entidades políticas
iguais".
Nesse momento, os chineses já dispunham de elementos suficientes para
desconfiar do compromisso de Lee Teng-hui com o projeto de reunificação. Quatro
questões principais eram colocadas. Em primeiro lugar, não havia relações
pessoais entre o novo líder formosino e dirigentes da RPC, ao contrário do que
prevalecera, durante e era dos Chiangs. O segundo problema decorria do fato de
Lee ser nativo de Taiwan, nunca ter ido ao continente e não dedicar, portanto,
qualquer afeto especial com respeito à "mãe pátria", na forma que demonstravam
seus antecessores no governo de Taipé. Em terceiro, seu forte anticomunismo
dificultava o diálogo com o PCC. Finalmente, sua então frágil posição na
liderança do Kuomintang exigia que mantivesse equilíbrio entre facções pró e
contra a reunificação.
No dia 30 de abril de 1991, Taiwan anunciou o término do "Período de
Mobilização para a Supressão da Rebelião Comunista". De forma resumida,
tratava-se, para o Kuomintang, de deixar de considerar o Partido Comunista
Chinês como uma "organização rebelde". Na prática, significou a renúncia ao
delírio de que, um dia, o KMT viria a reconquistar a China e retornar ao poder,
pela força.
No mesmo ano, os formosinos criaram a organização não-governamental, Strait
Exchange Foundation (SEF). Em contrapartida, os chineses fundaram a Association
for Relations across the Taiwan Strait (ARATS). Da parte taiwanesa, esperava-se
que as duas instituições poderiam estabelecer um "regulamento para as relações
entre a população da área de Taiwan e a do continente".
A SEF e a ARATS realizaram uma série de conversações, em 1992. Em outubro
daquele ano, Jiang Zemin, na capacidade de Secretário-Geral do PCC, afirmou que
"sob a égide do princípio de "uma China", seria possível às duas partes
discutir qualquer tema". No ano seguinte, em abril, aconteceu, em Cingapura, o
encontro da maior relevância, entre os presidentes da fundação taiwanesa, Koo
Chen-fu, e o da chinesa, Wang Daohan. Na ocasião, foram assinados:
o Cross-Strait Agreement on the Inspection of Affidavits; o Cross-
Strait Agreement on Matters Related to Inquiry by Registered Letters
and Relevant Compensation, o Agreement on the System for Connection
and Talks between the Two Sides e o Joint Agreement of the Wang-Koo
Meeting.
Quinze rodadas de negociações para aprofundar o debate sobre os temas acordados
foram realizadas, com vistas a permitir nova reunião entre os dirigentes da SEF
e ARATS, que havia sido prevista para 20 de julho de 1995. Tal previsão, no
entanto, foi atropelada, na medida em que Lee Teng-Hui deu início a sua
"diplomacia pragmática", efetuando viagens a países que mantinham vínculos
diplomáticos com Taipé, dava entrada ao pedido de ingresso formosino na
Organização das Nações Unidas e, principalmente, efetuava sua controvertida
visita aos EUA, em junho daquele ano, com seu bombástico discurso na
Universidade de Cornnel e o consequente teste de mísseis chineses, nas
proximidades de Taiwan.
Assim, durante seus périplos "turísticos", as Filipinas, Indonésia e Tailândia,
em 1993, bem como por ocasião de suas "visitas de Estado" a aliados na África e
América Latina, no ano seguinte, e viagens aos Emirados Árabes Unidos e
Jordânia, em 1995, Lee exibia, com crescente desenvoltura, seu discurso
independentista.
Junto com os acenos de mudança a respeito das questões de soberania e
reunificação, Taiwan também alterou sua posição quanto à participação da ONU.
Sua postura anterior era a de que "a República da China ou a República Popular
da China" deveria participar da organização reservadas a Estados independentes.
A partir de 1993, Lee passou a advogar a "participação simultânea" da "R.C." e
da "R.P.C.". Argumentava, nesse sentido, que um "país" de 23 milhões de
habitantes, a décima-quarta maior economia no comércio internacional e o sexto
maior parceiro comercial dos EUA, deveria ser membro pleno da Organização das
Nações Unidas.
No esforço de mascarar suas verdadeiras intenções independentistas ' uma vez
que seu ingresso na ONU significaria o reconhecimento de Taiwan como um país e,
não, uma província chinesa ' o líder formosino alegava que "representações
paralelas", como as das Alemanhas Ocidental e Oriental e a das Coréias do Sul e
do Norte, a convivência entre Taiwan e a China contribuiria para melhor
diálogo, conducente à unificação chinesa.
Em 1993, portanto, Taipé teve seu pleito apresentado, pela primeira vez, por
meio de aliados diplomáticos, como Burkina Faso, Nicarágua, República Centro
Africana, Dominica, República Dominicana, El Salvador, Gambia, Granada,
Guatemala, Guiné Bissau, Honduras, Santa Lúcia, Senegal, Ilhas Salomão e
Suazilândia. A cada ano, nova proposta tem sido apresentada à Assembléia Geral
da ONU.
De qualquer forma, os chineses decidiram manter a iniciativa no desejado
processo de negociações com os taiwaneses e, em 30 de janeiro de 1995, às
vésperas do Ano Lunar Chinês, o presidente Jiang Zemin apresentou nova proposta
aos taiwaneses. Segundo o líder da RPC, "reunificação" não significaria que o
continente "engoliria" Taiwan, nem vice-versa. Uma vez reunificada, a ilha
manteria inalterados seus sistemas econômico e social. Continuariam a existir,
também, seu estilo de vida e vínculos não-governamentais com outros países. Na
condição de Região Administrativa Especial, Taiwan desfrutaria de alto grau de
autonomia, inclusive de um poder judiciário independente. Poderia manter suas
forças armadas e administratar seu próprio sistema partidário e governamental.
O Governo central não estacionaria tropas, nem pessoal administrativo neste
lado do estreito. Alguns postos no Governo central seriam reservados aos
taiwaneses.
Em seguida, foram enumerados seus oito princípios para reunificação, que podem
ser resumidos na forma seguinte: Adesão ao princípio de "uma China"; oposição a
"duas Chinas" ou a "uma China, uma Taiwan"; negociações, em condições de
igualdade, para obter acordo para o término oficial das hostilidades através do
estreito; chineses não deveriam lutar contra compatriotas chineses; promoção do
intercâmbio econômico e cooperação através do estreito e cancelamento da
proibição, em vigor, de comércio, transporte e correio entre o continente e a
ilha; preservação das tradições culturais chinesas; todos os partidos e
personagens de todos os círculos taiwaneses são bem-vindos para troca de
pontos-de-vista com o continente, sobre relações através do estreito; e deveria
ocorrer o intercâmbio de visitas entre as duas partes. Assuntos relativos ao
povo chinês deveriam ser tratados pelos próprios chineses.
Nessa perspectiva, enquanto a proposta de Deng Xiaoping, na década de 1980,
para que Taiwan se reunificasse na moldura de "um país, dois sistemas",
representava o objetivo a ser atingido, os "oito pontos" de Jiang, indicariam o
processo a ser seguido, nesse sentido. Realisticamente, em 1995, os chineses
sugeriam o término oficial das hostilidades e contemplavam o encontro entre
autoridades das duas margens do estreito.
Os formosinos responderam, então, aos acenos da RPC, pelo líder Lee Teng-Hui
que, em 8 de abril de 1995, formulou exercício próprio de numerologia, com seus
"seis pontos": os dois lados deveriam buscar a unificação com base na realidade
de que cada margem do estreito "é governada por seu respectivo Governo"; o
intercâmbio bilateral deveria ser fortalecido, com base na cultura chinesa;
relações econômicas e comerciais deveriam ser desenvolvidas com fundamentos de
interesse mútuo e de complementaridade; as duas partes deveriam ingressar em
organizações internacionais, em condições de igualdade e seus líderes deveriam
encontrar-se; o principio de resolução de conflitos por meios pacíficos deveria
ser respeitado; e ambas as partes deveriam, em conjunto, preservar a
prosperidade e promover a democracia em Hong Kong e Macau.
Como não poderia deixar de ser, os chineses ficaram desapontados com a resposta
formosina a seus "oito pontos". Entre outros aspectos, cabe ressaltar "quatro
pontos" principais em que houve divergências. Em primeiro lugar, Jiang
concedera que, antes de discutir a reunificação, Taipé poderia concordar com o
término oficial das hostilidades. Isso não parecia difícil, pois Taiwan havia
anunciado, em 1991, o fim do período de confrontação contra a RPC, quando
decretou extinto o "Período de Mobilização Nacional para a Supressão da
Rebelião Comunista". Isto é, já não considerava mais, quarenta anos depois, a
possibilidade de reconquistar o continente pela força militar.
Tal negociação, no entanto, para Pequim, deveria ser feita em situação de
igualdade "política" mas, não de "soberania". Lee, contudo, respondia com a
exigência de que as duas partes ingressassem em organizações reservadas a
Estados, com implicações de igualdade de soberania.
Enquanto Jiang propunha as "três ligações diretas", Lee ressaltava a
necessidade de estudo cauteloso das vantagens para os dois lados. O "traidor do
milênio" (epíteto que os chineses atribuíram a Lee Teng-Hui), ademais, deixou
de fazer referência ao conceito de "uma China".
Qualquer reflexão ou intercâmbio sobre os pontos relacionados por Pequim ou
Taipé, em 1995, seria interrompido, naquele ano, pelos efeitos devastadores da
visita de Lee Teng-Hui aos Estados Unidos, que vieram, pouco depois, a causar o
exercício de lançamento de mísseis chineses às proximidades da ilha.
Nessa perspectiva, em 22 de maio de 1995, Washington cancelou proibição de 16
anos, que impossibilitava a viagem das principais autoridades taiwanesas aos
EUA, e autorizou visto, para que Lee Teng-hui visitasse, particularmente, a
Universidade de Cornell, sua "alma mater", em Ithaca, Nova York.
Segundo divulgado, as origens da mudança de postura norte-americana pode ser
encontrada, inicialmente, em doação de US 1 milhão, em 1991, efetuada por
Taiwan à referida Universidade. Em 1994, houve nova contribuição de US 4,5
milhões, por "amigos de Lee". No ano seguinte, o líder formosino foi convidado
para pronunciar conferência, naquele estabelecimento de ensino. Em abril do
mesmo ano, dois mil estudantes asiáticos em Cornell assinaram petição para que
visto fosse emitido, para que o convite pudesse ser aceito. Ademais, US 4,5
milhões foram investidos, por fontes taiwanesas, na empresa de lobistas Cassidy
& Associates.
Detalhes sobre as provocações feitas por Lee Teng-hui, em seus discursos nos
Estados Unidos, serão analisados quando tratar sobre a Dimensão Política.
Comentários sobre a reação bélica chinesa constarão da Dimensão de Segurança.
Desnecessário dizer que, após tais desenvolvimentos, fortaleceu-se a
desconfiança, entre os dois lados do estreito. De qualquer forma, as
autoridades taiwanesas sempre estiveram perfeitamente cientes de que os
dirigentes da RPC nunca aceitariam qualquer tese sobre a existência de "dois
países".
Nesse sentido, a "grande concessão" que Taipé faria a Pequim seria o retorno ao
"consenso" de 1992, entre a ARATS e a SEF. Naquele momento, os formosinos
alegavam ter-se-ia chegado ao entendimento de que haveria "uma China", sujeita
a diferentes interpretações. Taiwan poderia, por exemplo, considerar que "uma
China" significaria situação a ser perseguida no futuro. No momento, tal
situação não prevaleceria, na medida em que existiriam, na verdade, "dois
Estados".
Sempre seguindo a linha de raciocínio de que Taipé tem procurado, sem êxito,
flexibilizar a rígida posição chinesa, quanto à existência de apenas "uma
China", cita-se, ainda, o fato de que ainda com respeito aos "oito pontos" de
Jiang Zemin, mencionados acima, o presidente chinês, segundo os formosinos, ao
afirmar que "ambos os lados poderiam discutir qualquer assunto", teria
incluído, neste contexto, a possibilidade de que cada parte tivesse
interpretação própria sobre o conceito de "uma China".
Diante de toda esta resistência taiwanesa, evidentemente, Pequim demonstrou seu
descontentamento. Principalmente, quanto ao que é visto pelos chineses como
distorção do sentido dos "oito pontos" de Jiang. Isto porque a idéia do líder
do PCC era a de que "qualquer assunto poderia ser discutido, no âmbito da
moldura de 'uma China'", o que havia sido claramente estabelecido entre os
pontos iniciais da proposta. Os chineses têm reiterado, também, que nunca
teriam concordado com a "livre interpretação", ou "concordado em discordar"
sobre "uma China". O único entendimento, da parte chinesa, era o de que não
seria discutido o conteúdo político do conceito de "uma China" durante as
conversações sobre temas técnicos.
Apenas em outubro de 1998, cinco anos após o primeiro encontro, Koo Chen-fu e
Wang Daohan voltaram a reunir-se, desta feita na China. "Quando as pessoas
sentem que a primavera está chegando, esquecem os rigores do inverno", declarou
poeticamente o representante formosino ao chegar, na medida em que sua visita
representava um ice breaking, mesmo sem ser uma ruptura completa com cinqüenta
anos de hostilidades gélidas.
O dirigente da SEF manteve, então, encontros de alto nível, em Xangai e Pequim,
inclusive com Jiang Zemin, na capacidade de Secretário-Geral do PCC. Durante
sua permanência de seis dias, no entanto, foram mantidas as posições conhecidas
das duas margens do estreito. Os chineses continuaram a insistir que
conversações, com vistas à reunificação, deveriam ser conduzidas sob a égide de
"uma China". Questões políticas deveriam ser, portanto, tratadas, antes de
temas econômicos e técnicos.
De sua parte, o enviado taiwanês reiterou a posição de que, para melhorar as
relações entre a ilha e o continente, caberia, inicialmente, fortalecer os
vínculos entre as duas associações semi-oficiais. Este passo seria fundamental,
divulgava-se em Taipé, para a consolidação da confiança necessária a discussões
posteriores sobre temas políticos.
Como de forma a ressaltar este ponto, Koo escolhera, para seu programa noturno
em Xangai, assistir a ópera "Fortaleza Vazia", que narra disputa ' durante o
período dos "Três Reinos" (220-280) ' entre dois adversários, que
compartilhavam de desconfianças mútuas.
Tais suspeitas foram confirmadas ' junto aos chineses ' em 9 de julho de 1999,
quando Lee Teng-hui, então presidente, fez seu pronunciamento em que definiu as
relações através do estreito como "entre dois países". Afirmou, também, que não
havia necessidade de Taiwan declarar independência, uma vez que a "República da
China" já era um país independente, desde 1912. Sua postura valeu-lhe um
upgrading, no epíteto que o PCC lhe consagrara, como o "traidor do milênio". A
partir de então, passou a ser conhecido, na RPC, como "um bebê de proveta
defeituoso, gerado nos laboratórios dos inimigos da China".
A nova cena de partida
Para a surpresa de assessores, seguidores e observadores em Taipé, Lee Teng-
hui, em 9 de setembro de 1999, durante entrevista a radio alemã Deutche Welle,
pela primeira vez definiu, abertamente, as relações entre a China e Taiwan como
"entre dois Estados, pelo menos uma relação especial entre dois Estados". Tal
afirmação colocava em patamar mais avançado sua definição anterior, de que,
através do estreito, havia "duas entidades políticas iguais". Agregou que
Taiwan não necessitava declarar independência, pois a "República da China" já
era "um país independente" desde sua fundação, em 1912.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros de Taiwan, a Strait Exchange Foundation
de Koo Chen-fu e outras autoridades locais confirmaram, imediatamente, esta
nova política taiwanesa para as relações com a RPC. Doravante, não haveria mais
referências a "um país". O diálogo entre Pequim e Taipé, portanto, deveria ser,
a partir de então, conduzido entre entidades políticas soberanas e, não entre
um Governo legítimo e uma província rebelde, conforme continuava a insistir a
China.
Segundo era possível antecipar, os chineses reagiram de forma categórica. Wang
Daohan, presidente da ARATS, afirmou que a teoria de "dois Estados" tornaria
inútil qualquer possibilidade de continuação de diálogo com a SEF. Ao exigir o
retorno à política de "uma China", Pequim declarava que Lee tinha dado "um
passo extremamente perigoso" em direção à divisão da China e o avisou de que
"estava brincando com fogo". Os chineses reiteraram, também, que não haviam
renunciado ao emprego da força militar, caso a ilha seguisse o caminho
independentista. Segundo o jornal South China Morning Post, de Hong Kong, de 14
de julho daquele ano, citando autoridades chinesas, "Lee tinha levado a
população de Taiwan e seus patrocinadores estrangeiros em direção da própria
destruição com sua aventura separatista e suicida".
Houve amplas especulações sobre a possibilidade de uma pronta reação armada.
Exercícios militares chineses ' aparentemente já programados ' foram noticiados
como preparativos para uma invasão. Editorias de jornais na RPC criticavam a
teoria dos "dois Estados". Afirmava-se que a China não hesitaria em atacar,
mesmo diante da resistência dos EUA.
Digna de registro, também, foi a reação norte-americana que, por meio do porta-
voz do Departamento de Estado, apenas reiterou a conhecida posição de
Washington, com respeito aos "três nãos" ' à independência de Taiwan; a "duas
Chinas"; e à participação formosina de organizações internacionais reservadas a
Estados. Nessa perspectiva, os EUA e a RPC pareciam, naquele momento, ter
posições idênticas quanto à provocação de Lee.
Da mesma forma, o Japão comprometeu-se a manter a mesma política de adesão ao
princípio de "uma China". Outros países asiáticos manifestaram-se contrários à
iniciativa de Lee, de proclamar a existência de "duas Chinas".
Em certa medida, a nova moldura apresentada pelo líder formosino traduzia,
apenas, as ações desencadeadas pela diplomacia da ilha, desde 1993, quando
foram iniciados os esforços no sentido do ingresso na ONU. Isto é, a Carta da
Organização das Nações Unidas exige a condição de Estado a seus participantes.
Os taiwaneses, portanto, ao pleitearem seu acesso, vinham defendendo a tese de
que preenchiam as exigências requeridas, pois ocupavam um território claramente
definido, com uma população identificada de 23 milhões de pessoas, com um
governo capaz de executar políticas domésticas e assumir e cumprir compromissos
internacionais. Dessa forma ' segundo Taipé ' haveria apenas argumentos
políticos e, não "legais", para que os chineses se opusessem à admissão de
Taiwan na Organização das Nações Unidas.
A respeito, os defensores da iniciativa de Lee continuam a lembrar que houve
maior flexibilidade enquanto, por exemplo, as duas Alemanhas ou os dois Yemens
foram membros da ONU. Duas Coréias continuam a integrá-la.
Opositores da idéia persistem na interpretação de que, nos casos alemão e
coreano, as diferenças, em termos de população e território, são muito menores
do que entre as "entidades políticas", em cada margem do estreito. Além disso,
apesar de não se reconhecerem mutuamente, Seul e Pyongyang não se opõem que
outros países ' inclusive a China ' reconheçam dois Estados soberanos, um ao
Norte e outro ao Sul.
Nessa perspectiva, em 9 de julho de 1999, o líder formosino, durante entrevista
ao Deutsche Welle, em resposta a questão sobre o fato de que "Pequim considera
Taiwan como uma província rebelde, afirmou que as relações através do estreito
são especiais, entre Estados".
"O fato", conforme ressaltado na introdução deste trabalho, "representou, sem
dúvida, nova cena de partida para a evolução de cenários futuros da questão
taiwanesa". Mesmo que Lee tenha, poucos dias depois, recuado da convicção com
que formulara a afirmação citada no parágrafo anterior ' alegando ter sido "mal
interpretado" pela imprensa ' as relações entre o continente e a ilha
encontravam-se, doravante, em patamar distinto. No dia 26 daquele mês e ano, "o
traidor do milênio" alegava que, em sua entrevista, havia colocado ênfase no
fato da especificidade das relações através do estreito, que seriam "entre
Estados". Não havia, no entanto, formulado teoria alguma de "dois Estados".
Em comunicado de imprensa, divulgado em 30 de julho de1999, o presidente da
Straits Exchange Foundation, Koo Chen-fu, elaborou, com detalhes, sobre as
idéias principais expressas por Lee Teng-hui, na entrevista ao jornal alemão.
Segundo então explicado, o líder formosino esclarecera a realidade de que a
"República da China" é um Estado soberano e que as duas margens do Estreito de
Taiwan estão sendo governadas, separadamente, e deveriam tratar-se em bases
recíprocas de igualdade.
As observações de Lee, quanto à existência de um "relacionamento especial",
neste momento, dever-me-iam à necessidade de "estabelecer a fundação de uma
paridade entre os dois lados do estreito, com vistas a elevar o nível do
diálogo e ajudar a construção de um mecanismo de cooperação conduzente à
democracia e à paz". Dessa forma, várias autoridades locais haviam reiterado
que "não existe alteração na política de governo quanto à promoção do diálogo
através do estreito, na implementação de acordos bilaterais (inclusive aqueles
obtidos nas conversações entre Koo e Wang) e na busca de uma nova China,
unificada sob a democracia, a liberdade e a prosperidade, no futuro".
As explicações de Koo continuavam esclarecendo que "nas cinco décadas, desde o
estabelecimento da República Popular da China, em 1949, a China tem permanecido
dividida pelo Estreito de Taiwan e governada por dois Estados soberanos". As
observações de Lee, quanto à existência de um relacionamento especial entre
Estados, portanto, tinham ' sempre de acordo com o dirigente da SEF ' os
significados seguintes:
origens culturais e étnicas comuns garantem afinidade única entre os
dois lados; as intensas trocas comerciais e entre as sociedades civis
e diferentes setores não podem ser comparadas com o intercâmbio entre
quaisquer outros países divididos; e, o mais importante, as duas
partes perseguem o objetivo de uma China unida no futuro, através de
negociações em bases iguais.
O principal negociador taiwanês seguia explicando que ' segundo seu ponto-de-
vista ' "em 1992, a SEF obtivera acordo verbal com a ARATS no sentido da
existência de uma China, cabendo a cada parte interpretar seu significado de
maneira própria". Esclarecia, ademais, que, na segunda rodada de conversações
que realizara com Wang Daohan, no ano anterior, cada lado havia expressado suas
divergências, que continuavam a existir.
O importante, no entanto, era que as duas partes ainda buscavam o consenso por
meio do diálogo e da comunicação. "Infelizmente", agregava, "a RPC continuou a
conceder ênfase a sua fórmula de uma China e a negar nossa existência,
sugerindo que a China já se encontra unificada e implicando que a República da
China é apenas um governo local".
Para o Sr. Koo, portanto, "uma China" seria condição futura. No momento,
paridade nas conversações ' conforme as duas partes teriam exposto seu desejo,
ter como formato o diálogo através do estreito ' não significaria que apenas um
dos lado deve ter o privilégio de expressar-se, enquanto o outro não poderia
manifestar sua posição.
Tais desenvolvimentos e explicações, como não poderia deixar de ser,
aumentaram, cada vez mais, as desconfianças chinesas com respeito a Lee Teng-
hui. Nesse sentido, reformas constitucionais feitas, havia pouco tempo, e
propostas para a ilha eram vistas, crescentemente, sob a perspectiva de que
conduziriam à independência formosina.
Assim, verificava-se que, a partir do início da década de 1990, Lee vinha
promovendo reformas à constituição de primeiro de janeiro de 1947, promulgada
pelo Kuomintang, quando a República da China existia em Pequim. Em 91, foram
efetuadas revisions of the constitution in procedures, em 92, revisions of the
constitution in substance, em 94, foi estabelecida a eleição direta
presidencial, em 97, foram adotados novos processos legislativos, em 99 e
2.000, regulamentava-se a Assembléia Nacional. Todas essas iniciativas foram
realizadas sob o pretexto de introduzir medidas que proporcionassem a
"democracia".5
Ficava cada vez mais claro, no entanto, que o real propósito de Lee Teng-hui
era o de alterar dispositivo que proíbe seja submetido à consulta popular a
questão da soberania. Isto é, a constituição revista viria a permitir fosse
previsto, que a população da ilha pudesse decidir sobre a independência. Nesse
caso, Taiwan poderia buscar a proteção externa de sua independência por meio da
assinatura de tratados militares com potências estrangeiras. Assim, poderia
ressurgir o Tratado de Defesa entre Taiwan e os Estados Unidos.
A reação internacional fria ' gélida, no caso dos países mais próximos, que
poderiam ser atingidos por eventual retaliação militar chinesa ' contribuiu
para que a crise fosse superada, em seus efeitos imediatos.
Nova cena de partida fora criada, no entanto, para a questão taiwanesa, uma vez
que a moldura de "ambigüidade criativa", que permitira as duas partes do
estreito conviver pacificamente, durante os cinqüenta anos anteriores fora
abalada.
O debate sobre qual seria, doravante, o status quo aceitável para a questão
através do estreito passou a ser o principal ponto de divergência, entre as
partes envolvidas.
Conforme antecipado na introdução, a possibilidade de que exista um cenário
formoso para a Ilha de Taiwan, dependerá, entre outros fatores, da evolução do
quadro vigente nas dimensões de segurança e política.
A dimensão de segurança
Em 20 de maio de 2004, verificava-se que, no momento da segunda posse Chen
Shui-Bian, havia grave divergências entre a visão que Pequim, Taipé e
Washington tinham sobre o significado da preservação do quadro vigente (status
quo). Existia, então, enorme pressão para que o discurso de posse do líder
reeleito refletisse a opinião prevalecente entre os dirigentes de cada uma
daquelas cidades.
Para a RPC, sem dúvida, cabia a Chen reconhecer a existência de "uma China".
Para os eleitores de Chen, na ilha, a maior autoridade local não poderia
renunciar ao discurso de que "Taiwan já é um país independente", adotado na
campanha que o reelegeu.
Condicionante desta equação política, contudo, era a avaliação a ser feita
pelos EUA, que desempenham, como se sabe, papel decisivo na dimensão de
segurança do problema taiwanês.
Cabe, inicialmente, recordar que o relacionamento não-oficial entre Taiwan e os
Estados Unidos é regido pelo: Taiwan Relations Act (TRA), que completou 25 anos
em abril de 2004; e os três "Comunicados Conjuntos": o de Xangai (28 de
fevereiro de 1972); o que estabeleceu relações diplomáticas entre Washington e
Pequim (1 de janeiro de 1979) e o sobre as vendas de armas para Taiwan (17 de
agosto de 1982).
Antes da transferência do reconhecimento diplomático para Pequim os Estados
Unidos mantinham com a "República da China" um Tratado de Defesa Mútua contra
eventual ataque da República Popular da China. O Congresso dos EUA, portanto,
decidiu apresentar a legislação consolidada no Taiwan Relations Act, contendo
artigos defensivos. A proposta da legislação foi, portanto, a de deter e
prevenir a anexação de Taiwan pela China por meios que não fossem pacíficos.
Ficariam, assim, preservados os interesses estratégicos norte-americanos nesta
região.
Chen Shui-Bian e seus seguidores, no entanto, desde que assumiram o poder em
maio de 2000, procuram interpretar a moldura contratual proporcionada por
aquele ato legislativo como um verdadeiro cheque em branco para exercício
permanente de redefinição de discursos e avanços conceituais, sempre no sentido
da independência da ilha.
Assim, para Taipé, o TRA serviria tanto ao objetivo de proteger a estabilidade
e a segurança de Taiwan, quanto para facilitar o intercâmbio econômico,
cultural e social entre a ilha e aquele país, articulando, nesse processo, a
atuação dos poderes executivo e legislativo dos EUA na condução dos assuntos
taiwaneses.
De acordo com o ponto-de-vista taiwanês, o TRA incluiria cinco aspectos
principais. O primeiro diria respeito ao fato de que, no ato em questão, Taiwan
seria tratada, praticamente, como um Estado. Nesse sentido, é oficialmente
chamada de "Taiwan", ao invés de "República da China".
Em segundo lugar, o ato vincularia a segurança da ilha fortemente ao mecanismos
de defesa dos EUA na Ásia-Pacífico. Uma vez que Taiwan corresse perigo, caberia
a Washington prestar atenção. Todas as questões referentes ao futuro taiwanês
deveriam ser resolvidas pacificamente.
O terceiro aspecto referir-se-ia ao fato de que, para ajudar na manutenção da
paz, segurança e estabilidade na região, os EUA ofereceriam vendas de armas na
quantidade necessária para equipar a ilha com capacidade de autodefesa
adequada.
Em quarto, para promover a democracia e proteger direitos humanos dos
taiwaneses, os EUA ajudariam a manter e expandir o espaço diplomático da ilha
em organizações internacionais.
Finalmente, em quinto, o TRA e os três comunicados estabeleceriam as bases para
a política de Washington de "uma China". Nesse sentido, os taiwaneses procuram
fazer ver que, de acordo com o sistema constitucional norte-americano, o "ato"
teria precedência sobre os três outros documentos. Isto porque, enquanto o TRA
foi tramitado no Congresso norte-americano e entrou em vigor como legislação
"interna" norte-americana, os três comunicados são apenas "acordos
administrativos" entre os presidentes da China e dos EUA.
Verifica-se, a propósito, que a RPC não cessa de reiterar a promessa de
utilização da força, caso Taiwan declare independência. Segundo a percepção dos
dirigentes chineses, Chen Shui-Bian teria o real propósito de provocar tal
separação e, portanto, a ameaça do emprego de meios militares seria o último
obstáculo a ser oposto a seus propósitos.
Em contrapartida, os constantes acenos bélicos de Pequim levam a ilha a buscar
o fortalecimento permanente de suas defesas. Chega-se a especular, em Taipé,
que, mesmo sem declarar independência, Taiwan acabará sendo vítima de agressão
do outro lado do estreito. Exemplo disto seriam os testes de mísseis lançados
pela China, entre 1995-1996. Para autoridades locais, portanto, trata-se de
buscar apoio cada vez maior e mais garantido dos EUA.
Segundo especialistas, caso Pequim optasse pelo emprego da força contra
iniciativa independentista de Taipé, entre os principais cenários poder-se-ía
mencionar os seguintes: A) a invasão militar em larga escala, com a consequente
enorme baixa de seus soldados, já mencionada acima; B) ataques com mísseis,
bombardeios aéreos e navais, sem invasão; C) o bloqueio naval completo ou
parcial, com o apoio de mísseis; D) a ocupação temporária ou permanente de
algumas pequenas ilhas, ora administradas por Taiwan, como Jinmen, Mazu, Tatan,
Erhatan, Wuchiu e Tungyin, que seriam presas mais fáceis a ataques anfíbeos e
aéreos; e E) guerra psicológica que incluísse ameaças de ataques contra alvos
estratégicos, avisos para que terceiros países se mantenham afastados do espaço
aéreo e marítimo taiwanês, indicação de iminentes bloqueios contra portos da
ilha.
Cabe lembrar, a propósito, que são grandes as vulnerabilidades formosinas. Nos
setores econômico e social, por exemplo, é grande a dependência local de
variáveis externas. Sua economia apresenta enorme grau de abertura ao exterior,
contando, para tanto, em 99,5%, com o transporte marítimo. Sem o apoio da
Marinha dos EUA à defesa das rotas marítimas da ilha, os navios chineses
poderiam, facilmente, realizar bloqueio naval dos principais portos. O fato de
que Taiwan conta com poucas cidades de expressão tornaria esta tarefa ainda
mais fácil. Ademais, a volatilidade dos capitais indicaria que haveria forte
evasão de recursos financeiros, logo que houvesse suspeita de início de
hostilidades. Da mesma forma, antecipa-se, haveria forte emigração, com
conseqüente ruptura na sociedade.
Sabe-se, também, que Taiwan teria renunciado a programa nuclear, na década de
1980, sob pressão dos Estados Unidos, tendo, em princípio, desistido de projeto
de criação de armamento atômico próprio. Sempre por iniciativa de Washington, a
ilha teria abdicado do desenvolvimento de mísseis de médio alcance, denominado
"Projeto Pegasus". Preservou, no entanto, a produção de mísseis terra-ar,
antinavios e para aviões militares.
Cabe, neste ponto, resumir as conseqüências da viagem de Lee Teng-hui aos
Estados Unidos, que resultou em exercício militares chineses de larga escala,
conforme antecipado no capítulo sobre "O passado recente".
Como represália principal, os militares chineses realizaram testes de mísseis e
movimentos significativos de tropas, entre julho de 1995 e março de 1996. Desde
junho de 1994, exercícios semelhantes já vinham sendo efetuados, no mar do Sul
da China. Nunca, contudo, em áreas tão próximas a Taiwan.
Como conseqüência, os EUA enviaram às águas formosinas a maior armada, reunida
na Ásia Oriental, desde o término da Guerra do Vietnam. Enquanto advertiam a
RPC sobre as "graves conseqüências" de seus atos "arriscados", os norte-
americanos estacionavam, próximos ao Estreito de Taiwan, dois porta-aviões ' o
Independence e o Nimitz ' com suas respectivas escoltas, além de três
submarinos nucleares.
Encerradas as demonstrações de força chinesas, Pequim parece ter deixado claro
que não tinha abandonado a opção do emprego da força para reconquistar Taiwan,
caso a ilha buscasse a independência ou houvesse intervenção estrangeira no
território taiwanês. Ficavam, ademais, propositalmente ambíguos os conceitos de
"independência" e de "intervenção estrangeira".
Isto é, não era esclarecido, por um lado, se seria necessária uma declaração
formal de independência, ou se seria suficiente movimento em direção a tal
situação de fato. Por outro, não se estabeleciam parâmetros para a intervenção
estrangeira, que poderia adquirir a forma de relações oficiais com outros
países, vendas de material de emprego militar, ou o envio de porta-aviões a
águas próximas ao estreito de Taiwan.
O relacionamento entre Pequim e Washington teve outro ponto de inflexão
marcante, quando da visita do ex-presidente Clinton à China, em 1998. Naquele
momento, sentia-se, em Taipé, ter avançado muito a parceria sino-estadunidense,
no sentido de chegar a uma receita de comportamentos considerados aceitáveis
para ordem regional, na Ásia-Pacífico, em que objetivos estratégicos da RPC e
EUA seriam respeitados.
Nessa perspectiva, chegou-se a observar que, a partir de então, seria distinta
a influência norte-americana na questão de Taiwan. Isto porque, desde o término
da Guerra Fria, acreditava-se, o futuro dos formosinos seria determinado,
principalmente, pelos desígnios de Washington. Pensava-se, a propósito, que, em
um mundo globalizado, de hegemonia unipolar, seria possível a esta ilha buscar
sua inserção internacional, somente pelo fato de adotar aqui formas de
governança aceitas pelo Ocidente e normas de livre organização do mercado.
Tal legitimidade seria obtida em detrimento da posição chinesa, de que o
respeito à soberania interna ' na forma em que os chineses consideram deve ser
colocado o problema taiwanês ' seria fundamental para a convivência entre as
nações. Tudo isso ocorreria com o discreto apoio norte-americano, por um lado,
para incentivar o diálogo através do estreito e, por outro, a um aumento do
espaço de atuação de Taipé no plano externo. Este esforço, no entanto, seria
feito com moderação, para não obter resultados cedo demais.
Isto é, haveria pressões para conversas, mas não negociações. Buscar-se-ia
prolongar ao máximo a situação presente de "separação, sem independência de
Taiwan" e de "paz, sem unificação nacional". Existiria sempre a "carta
taiwanesa", a ser acionada caso Beijing deixasse de cumprir alguma promessa
relacionada com interesses dos EUA na região.
Seria respeitado, também, o compromisso dos EUA quanto à recusa do
reconhecimento de "duas Chinas" e à independência de Taiwan. Durante sua
permanência na RPC, no entanto, Clinton assumiu o compromisso quanto a uma
terceira negativa: a referente à participação de Taiwan em organizações
reservadas a Estados. Dessa forma, ficou reduzida a possibilidade de reingresso
formosino na ONU e de sua participação de organismos multilaterais reservados a
Estados.
Dois aspectos principais devem, ainda, ser ressaltados como conseqüência da
adoção da política dos "três nãos", pelo presidente Clinton. O primeiro diz
respeito ao fato de que tal enunciado sempre foi a interpretação chinesa de
como deveria atuar a diplomacia norte-americana com respeito a Taiwan ' e não
uma retórica costumeira do Departamento de Estado. O segundo refere-se ao
inusitado de tal pronunciamento ter sido feito em território da RPC, ampliando,
assim, sua repercussão.
Clinton, então, fora muito além do previsto, por exemplo, no Taiwan Relations
Act (TRA), de abril de 1979, que estabelece, entre outros pontos, que "the
future of Taiwan will be determined by peaceful means". Duas vezes, durante sua
visita, no entanto, o presidente disse que "reunification will be determined by
peacefull means". Para os atentos taiwaneses, evidentemente, seu espaço de
manobra futura ficara reduzido à reunificação, como uma questão de tempo, sem
alternativa.
A idéia de que os cidadãos da ilha deveriam beneficiar-se de um "free choice"
ou autodeterminação, no entanto, seria central no contexto das relações entre
os EUA e a RPC. Tal conceito não apenas está consagrado no "TRA", mas também
fora reiterado em numerosos discursos presidenciais norte-americanos,
especialmente de Ronald Reagan, no dia em que, em 1982, assinou o segundo
comunicado conjunto com os chineses. " The Taiwan question is a matter for the
Chinese people, on both sides of the Taiwan Strait, to resolve", afirmara,
então, aquele ex-presidente.
We will not interfere in this matter or prejudice the free choice of,
or pressure on, the people of Taiwan. At the same time, we have an
abiding interest and concern that any resolution be peaceful. I shall
never waver from this fundamental position,
agregara.
Tal postura diferenciava-se da que veio, então, a ser adotada pela
administração Clinton que, entre outras iniciativas, propunha a criação de uma
"second track" para tratar a questão de Taiwan através de canal alternativo,
gerenciado por acadêmicos. Buscar-se-íam, assim, novas fórmulas para uma
possível reunificação. O problema é que, segundo a visão de Taipé, as sugestões
passavam a ser mais influenciadas pela receita chinesa de "um país dois
sistemas", do que pela taiwanesa de "um país, dois governos".
Em linhas gerais e no que diz respeito aos interesses de Taiwan, segundo se
podia observar em Taipé, estes seriam alguns aspectos da "parceria
estratégica", entre Washington e Pequim, que prevaleceram, quanto à questão
através do estreito, durante a Administração Clinton.
Em outro desenvolvimento, no início do ano 2000 (data), a RPC publicou um novo
"livro branco" sobre Taiwan. De acordo com a política, estabelecida a partir de
então, ficava introduzido um elemento adicional aos dois já previstos como
causa para uma ação militar chinesa contra a ilha. Anteriormente, conforme
mencionado, seriam suficientes movimento independentista ou invasão
estrangeira. Somava-se, doravante, uma excessiva demora, da parte taiwanesa,
para o reinício das negociações.
Tal evolução no pensamento de Pequim quanto aos formosinos ocorria a menos de
um mês de um pleito eleitoral que definiria o futuro do Kuomintang que, havia
cinquenta anos conduzia os destinos da "República da China" (como se sabe, em
março de 2000, realmente, o Partido Progressista Democrático derrotou o KMT nas
eleições para presidente de Taiwan). Felizmente, para os que nos encontrávamos
a apenas quatro minutos dos mísseis chineses, os ânimos mais exaltados foram
controlados, principalmente como reação ao discurso moderado de posse de Chen
Shui-Bian.
Com a eleição de George W. Bush, em novembro de 2000, os EUA passaram a
expressar um compromisso bem mais explícito, com respeito à defesa de Taiwan. A
partir de então, seria mais valorizado, em Washington, o fato de que os 21
milhões de habitantes da ilha "terem evoluído no sentido de um regime
democrático, enquanto Pequim armazenava forças navais e aéreas capazes de
atacarem os taiwaneses".6
Estimava-se, naquele momento, que nos dez anos anteriores, a RPC teria
instalado mais de trezentos mísseis contra Taiwan. Tais armas, do tipo Dong
Feng- 6 e 7, teriam alcance inferior a 400 km, mas seriam capazes de carregar
artefato nuclear. Caso disparados apenas com armamento convencional,
provocariam imensa destruição na população civil da ilha.
Ademais, a China comprara grande número de aviões de combate russos. Estima-se
que haviam sido adquiridos 75 caças SU 27, com mísseis ar-ar avançados, além da
autorização para a fabricação de 125 aparelhos em território chinês e 40 SU '30
também foram somados ao arsenal de Pequim.
A Rússia vendera também aos chineses quatro submarinos da classe Kilo e dois
destróiers da classe Sovremenny, equipados com mísseis capazes de atacar porta-
aviões norte-americanos.
Nesse contexto, em abril de 2001, o governo norte-americano anunciou sua
decisão de colocar à disposição de Taiwan um pacote "robusto" de armamentos,
cujos elementos principais seriam oito submarinos a diesel, quatro destróiers
da classe Kidd e doze aviões anti-submarino P-3s. A decisão, aguardada com
especial expectativa em função do "incidente" com o avião-patrulha retido na
ilha de Hainan, naquele mesmo mês, foi saudada pelos setores mais
conservadores, como uma resposta à "petulância" de Pequim, naquele episódio.
Para gáudio dos "falcões", o anúncio foi complementado por declarações do
presidente Bush de que faria "o que fosse necessário" ("whatever it takes")
para a defesa de Taiwan, sem descartar a possibilidade do envio de tropas
norte-americanas.
O tom da retórica efetivamente subiu, mas não foi acompanhado por medidas
práticas de intensidade comparável. Ao contrário, parecia evidente uma
preocupação em evitar a escalada das divergências com Pequim.
A "robustez" do pacote de armas para Taiwan (o mais significativo desde que
Bush pai autorizara a venda de 150 F-16s, em 1992) era real, mas devia ser
relativizada por um série de fatores: (a) tratava-se apenas de uma declaração
de disponibilidade, cabendo, então, a Taipé decidir o que queria, e o que
poderia em termos de custo, efetivamente adquirir; (b) os destróiers, caso
adquiridos, não estariam operacionais, senão dentro de alguns anos (segundo o
Pentágono, teriam antes de ser "tirados da naftalina"); (c) os EUA há muitos
anos deixaram de produzir submarinos a diesel, e não estava claro de onde estes
surgiriam (Alemanha e Holanda, mencionadas como possíveis fontes de tecnologia,
declinariam); e (d) mais importante, foram excluídos os navios dotados do
sistema de radar AEGIS, ponto central da resistência de Pequim.
Além disso, a Casa Branca anunciou o fim do processo anual de revisão da venda
de armas para Taiwan, e sua substituição por análises "caso a caso". Para
alguns analistas, a perda do automatismo diminuiria visibilidade do tema e
poderia diluir a capacidade de mobilização do lobby pró-Taipé.
Mesmo as declarações de Bush quanto à determinação dos EUA na defesa de Taiwan
foram devidamente temperadas. O comprometimento norte-americano não era uma
opção do Executivo, mas sim uma disposição legal (Taiwan Relations Act). O
próprio Bush negou que houvesse uma mudança de política, afastou a idéia da
independência de Taiwan e reafirmou o apoio dos EUA ao conceito de "uma China".
A imprensa internacional transmitia, a propósito, uma imagem de extrema
virulência na reação chinesa àquela decisão norte-americana de venda de
equipamento militar à Taiwan. Divulgou-se uma impressão de clima de crise pela
insistência literal nas palavras do porta-voz do Ministério do Exterior chinês,
que divulgara que as relações bilaterais seriam afetadas e que a decisão norte-
americana constituía uma grave intromissão nos assuntos internos da China.
Não era, todavia, esse o panorama que se verificava, segundo análises feitas em
Pequim, onde se entendia tratar-se de um ritual normal e previsível de protesto
o qual dissimulava talvez um certo alívio. Com certeza, o material de emprego
militar então ofertado a Taipé representava o maior nos últimos dez anos,
incluindo submarinos. Os meios fardados chineses, então, teriam manifestado sua
irritação por meio da imprensa especializada. No entendimento de Pequim,
contudo, o pior parecia não ter ocorrido, na medida em que o pacote prometido a
Taiwan, não incluiria os navios dotados do famoso sistema Aegis, que teria
efetivamente alterado o equilíbrio então existente entre as forças através do
estreito.
Em fevereiro de 2002, George W. Bush visitou Pequim. Para Taiwan, sua ida à
capital chinesa não representou perdas, nem ganhos. O presidente, ao contrário
de seu antecessor, absteve-se de referências aos três comunicados conjuntos
sino-norte-americanos ou aos "três nãos" de Clinton. Não houve, portanto,
esforço seu, para colocar a ilha em condição de inferioridade ao continente.
Pela primeira vez, segundo registrado em Taipé, enquanto na RPC, um chefe de
Estado norte-americano mencionou o previsto no Taiwan Relations Act, que, como
que sabe, é uma lei interna dos Estados Unidos, que interfere nas relações
através do estreito.
Bush reiterou, também, o compromisso de seu Governo com o princípio de "uma
China", bem como com o conceito de que a questão do estreito deve ser resolvida
pelos "chineses" que habitam suas margens. Ambas as idéias são coerentes com a
tradicional ambigüidade de Washington, com respeito ao problema.
Em maio de 2002, o vice-presidente chinês Hu Jintao visitou os EUA, quando
tratou da questão de Taiwan, sem que qualquer das partes tenha recuado de suas
posições de princípio. Assim, em seus encontros com o presidente George Bush e
secretário de Estado Collin Powell, Hu teria levantado as preocupações de seu
país quanto a demonstrações claras de favorecimento da administração norte-
americana, com respeito à ilha. Entre os fatos conhecidos, citam-se a venda sem
precedentes de material de emprego militar mencionada acima, o incremento da
cooperação com as forças armadas formosinas e a autorização para que o ministro
de Defesa taiwanês visitasse os Estados Unidos.
O vice-presidente da RPC teria solicitado que Washington "handle the sensitive
Taiwan issue properly" de maneira a evitar "emerging disruption which we are
unwilling to see". Reiterou, como não poderia deixar de ser, a necessidade de
respeito ao princípio de "uma China" e ao previsto nos documentos pertinentes
assinados entre os dois países.
Entendeu-se, também, que, em contrapartida, o lado norte-americano repetiu suas
posições conhecidas. Mas, desta vez, teria havido referência expressa ao fato
de que a concentração de efetivos e equipamento militar no lado chinês do
estreito, bem como o aumento da retórica bélica daquela margem, teriam levado
ao incremento das vendas de armamento aos formosinos.
A administração Bush, portanto, ao assegurar ao visitante sua continuada adesão
ao princípio de "one China" e à insistência no sentido de que o problema
taiwanês seja resolvido de forma pacífica, eximiu-se de causar rupturas no
relacionamento bilateral, enquanto atribuía ao continuado elevado estoque de
armamento chinês as razões para o incremento da assistência militar a Taiwan.
No início de junho de 2003, por ocasião de novo encontro entre o presidente
George W. Bush e o já então igualmente presidente Hu Jintao, em Paris ' Reunião
do Grupo dos 8 ' o dirigente norte-americano afirmou que os EUA "do not support
Taiwan's independence".
Até então, Bush vinha apenas reiterando seu apoio aos três comunicados
conjuntos assinados com a RPC e fazendo referências ao previsto no Taiwan
Relations Act. Sua "ausência de apoio" a eventual iniciativa separatista de
Taipé, portanto, causou ansiedade as autoridades formosinas.
Cumpre assinalar que tal desenvolvimento ocorreu em momento oportuno da
política interna da ilha, na medida em que a crise da pneumonia asiática
passava a ocupar espaço menor de preocupação e voltavam a crescer em
importância os temas relativos à eleição presidencial prevista para março de
2004.
Nessa perspectiva, os partidários da reeleição de Chen Shui-Bian precisavam ser
lembrados de que os compromissos de Washington com a defesa de Taipé '
previstos no Taiwan Relations Act ' não teriam aplicação prática, no caso de
ação independentista local.
Recordava-se, a propósito ' conforme será analisado no tema sobre a dimensão
política ' que, ao assumir a liderança, em maio de 2000, Chen, em seu discurso
de posse, tranqüilizara seus aliados norte-americanos, ao declarar que não
tomaria iniciativas em direção à independência formosina.
O presidente, contudo, vinha ensaiando gradativo afastamento daquela posição,
chegando, em 2002, a defender a idéia de que existiria "um país, em cada margem
do estreito". Com freqüência, ademais, recolocava a hipótese de realização de
plebiscito, para definir rumo separatista da ilha.
Poderia ser conveniente aos EUA, portanto, estabelecer, logo, limites a
eventual mobilização dos seguidores de Chen, nos meses seguintes, em torno do
ideal de independência, razão de ser do Partido Progressista Democrático, que
buscava manter-se no poder. Desnecessário lembrar a inconveniência de mais um
foco de instabilidade mundial, caso a China, a exemplo do ocorrido em 1996, se
sentisse ofendida por desenvolvimentos através do estreito.
Caso a questão formosina, nesse ponto, fosse vista apenas em sua dimensão de
segurança, bem como o futuro da ilha se resumisse apenas à preservação de
estruturas de confrontação herdadas da Guerra Fria, não poderia haver cenário
mais favorável para os 23 milhões de habitantes do lado formosino do estreito
do que aquele que se delineou quando da visita de Hu Jintao aos Estados Unidos.
Isto é, enquanto a China continuasse a armar-se, os EUA continuariam a fornecer
equipamento militar a Taiwan.
Verifica-se, assim, que o desenvolvimento mais favorável à China, na dimensão
de segurança, seria a renúncia de Taiwan à independência, submetendo-se à
soberania de Pequim, sem que a RPC necessitasse de utilizar a força. Para os
formosinos, em contrapartida, a melhor tendência seria a renúncia chinesa à
utilização da força, de forma a permitir que Taiwan negocie a reunificação em
termos mutuamente convenientes. O problema, no entanto, tem repercussões, como
se sabe, em outros patamares ' político, econômico e cultural.
A dimensão política
Conforme analisado na dimensão de segurança, com a segunda vitória eleitoral de
Chen Shui-Bian, sérias dúvidas passaram a prevalecer, com respeito a um futuro
formoso para os 23 milhões de taiwaneses, que no processo de escolha do novo
"presidente", tiveram que participar de debate relativo à questão da existência
de "uma China" ou de "um país em cada lado do estreito".
Nesse sentido, nas vésperas da eleição, a política interna da ilha encontrava-
se polarizada em torno, por um lado, da aliança entre o Partido Nacionalista
Chinês (Kuomintang ' KMT), o People First Party" (PFP) e o Novo Partido '
denominada "pan azul" ' e, por outro, a frente formada pelo Partido Democrático
Progressita (PDP), então no poder, e a União de Solidariedade de Taiwan (UST) '
conhecida como "pan verde".
O "campo" azul defendia, como temas principais, o conservadorismo, a
estabilidade, valores tradicionais chineses e um forte sentido de nacionalismo
da "Grande China".
De sua parte, os "verdes" concentravam-se nas conquistas democráticas obtidas,
graças à luta do PDP quando em oposição ao regime do KMT, à construção de um
identidade cultural taiwanesa e às reformas que possibilitem a mobilidade
social, como instrumentos para consolidar o término de uma era ditada pelo
Kuomintang.
Em 2000, como já mencionado, o Partido Nacionalista Chinês, imposto aqui por
Chiang Kai-shek, fora derrotado nas "eleições presidenciais". A vitória do PDP,
no entanto, fora resultado inteiramente da divisão do KMT, cujo candidato, Lien
Chan, obteve 2,9 milhões de votos (22%). James Soong, candidato independente
que havia sido expulso do Kuomintang, recebeu 4,6 milhões (36%) e Chen Shui-
Bian, independentista, fora vitorioso, com 4,9 milhões de eleitores (39%).
No pleito de 2004, Lien Chan e James Soong ' que se tornou presidente do PFP '
pareciam determinados a consolidar a tal aliança "pan azul". Mesmo tendo obtido
votação superior a Lien, Soong candidatou-se, então, ao posto de vice, com a
promessa de ocupar o cargo de primeiro-ministro e ser o candidato a líder, em
2008, caso retornassem ao poder.
O Partido Kuomintang, que pretendia recuperar o poder, advogava que a discussão
sobre "soberania" ' referente à existência de "uma China" ' deveria ser adiada,
enquanto consideram que a "República da China" continua a existir sim, conforme
estabelecida em 1912. A fórmula de integração chinesa de "um país, dois
sistemas" não seria, contudo, aceitável. Por enquanto, caberia apenas conversar
com Pequim sobre questões técnicas, decorrentes de intercâmbio cada vez mais
intenso entre as duas margens.
Segundo os seguidores do Kuomintang, seria o progresso constante da economia e
do "sistema democrático" da ilha que, em momento futuro, proporcionaria seu
amplo reconhecimento internacional, no âmbito de alguma fórmula de integração
de "uma grande China".
O PDP, liderado por Chen shui-Bian, e a União de Solidariedade de Taiwan,
chefiada pelo ex-líder Lee Teng-hui ' formadores da "aliança verde" ' em
contrapartida, juravam que existe "um país, em cada lado do estreito" e que o
preceito de "uma China", ditado pela RPC, não é admissível. Insistem que,
qualquer negociação com os chineses deve iniciar com este entendimento.
Assim, a concepção do Partido Democrático Popular, quanto à existência de "uma
país em cada margem" difere-se da visão do KMT, quanto à existência da
"República da China". A primeira trata Taiwan como um "Estado soberano",
independente da China, opondo-se à reivindicação de soberania de Pequim sobre a
ilha. A segunda preferiria manter a estrutura de confrontação herdada do
período da Guerra Fria, que perduraria o conflito histórico entre o sistema
político da RPC e o modelo de governança e organização de mercado vigente aqui,
a partir de 1949. Neste último caso, não haveria "divisão territorial".
No que diz respeito ao crescente intercâmbio entre as duas margens, o
Kuomintang e o PDP oferecem, também, visões distintas. Para o partido que
visava a recuperar o poder, o continente estaria prestes a tornar-se potência
econômica. Empresas taiwanesas, portanto, deveriam tirar o melhor proveito
possível desta evolução, enquanto desfrutam das vantagens competitivas de um
imenso território tão próximo e com vasta população, que fala a mesma língua
que os formosinos.
Para Chen Shui-Bian, contudo, o fenômeno de crescimento chinês representava
grave ameaça, na medida em que provocava a transferência do parque industrial
taiwanês, causando o desemprego nesta margem. Dessa forma, as autoridades
locais, então no poder em Taipe, pouco progresso permitiram, nos três anos
anteriores, em termos de facilitar investimentos na RPC. Mesmo a questão dos
transportes diretos, através do estreito, continuava em compasso de espera,
apesar do aumento de custos que tal impedimento representava para os
empresários que já transferiram suas fábricas para o outro lado.
Verifica-se, nessa perspectiva, que, entre 1949 ' com a vitória do Partido
Comunista Chinês sobre o Kuomintang, a fundação da República Popular da China,
em Pequim, com a conseqüente fuga de Chiang Kai-Shek para Taipé ' até março de
2000 ' com a elevação de Chen Shui-Bian à condição de líder máximo da ilha ' o
processo de discussão sobre a reintegração de Taiwan à China, foi determinado
por dinâmica condicionada pela continuação da disputa entre o PCC e o KMT.
A partir daquele momento, os dirigentes da República Popular não cessaram de
acusar as autoridades taiwanesas de "criarem duas Chinas", "divisionistas" e
"dependentes de apoio estrangeiro".
Os dois lados do estreito, no entanto, têm sido governados separadamente, sem
que um tenha sido subordinado ao outro.
Em 1991 ' fica bem claro que, de forma unilateral, sem levar em conta a opinião
da outra parte ' as autoridades taiwanesas decidiram que não era mais realista
esperar que, com a utilização de suas próprias forças, a China viesse a ser
reunificada. Parece conveniente ressaltar que, até então, a opção de emprego de
meios militares era considerada válida pelo Kuomintang, para seu retorno ao
governo central. Doravante, passou-se a reconhecer que o Partido Comunista
Chinês governava o outro lado do estreito e que a reunificação do país
dependeria de diálogo e, não mais da confrontação armada.
Gradativamente, o KMT decidiu tolerar transformações econômico-sociais, sem,
contudo, perder o controle da vida política formosina. Nesse processo, as
autoridades impostas em Taipé, a partir de 1949, não tiveram de recorrer à
construção de novas instituições para acomodar tal abertura. Já haviam trazido
e implantado, de forma colonial na ilha, toda a moldura política e o mecanismo
ideológico necessário a sua sustentação, previstos quando foi fundada, por Sun
Yat-Sen, a República da China. Daí era necessário apenas ir implementando
princípios já escritos em constituição, que não vinham sendo respeitados.
A partir de sua imposição aqui, o Kuomingtang procurou assegurar o respeito a
três princípios: a obediência à constituição da "República da China", elaborada
em 1947, ainda no continente; a manutenção de um partido único; e a promoção da
democracia em Taiwan (curiosamente, sem que se permitisse a criação de novos
partidos).
No final da década de 1960, vários parlamentares vindos com Chiang Kai-shek
haviam morrido e tornava-se necessário substituí-los. O KMT decidiu, então,
permitir eleições setoriais. Passou, também, a incorporar em seu discurso a
idéia de democracia, uma vez que esta era uma das propostas de Sun Yat-Sen,
quando fundou a República da China. Tendo sucedido a seu pai, em 1978, Chiang
Ching-Kuo iniciou processo de abertura política. Segundo alguns observadores,
na medida em que se fortalecia, na ilha, a convicção de que seria impossível a
retomada pela força do poder no continente, a liderança local passou a
identificar a necessidade de justificar o KMT, interna e externamente, como o
partido capaz de conduzir a China a um sistema de governo democrático.
A partir daquele momento, o Kuomintang buscou ampliar sua base de sustentação,
limitada apenas aos aliados do regime imposto. Com o cancelamento da Lei
Marcial, em 1987, passou-se a permitir a formação de partidos, que vieram a
competir em eleições que proporcionariam a gradativa substituição de uma
geração de líderes escolhidos ainda na China continental, em 1947.
Coube a Lee Teng-Hui, taiwanês de nascimento e sucessor de Chiang Ching-Kuo,
com a morte deste, em janeiro de 1988, consolidar as mudanças. Em 1991, o ex-
líder autorizou a formação de novas agremiações políticas e o Partido
Democrático Progressista (PDP), de oposição, passou à legalidade. Em 1996,
foram realizadas eleições presidenciais livres, pela primeira vez. Em maio de
2000, o KMT perdeu o poder central, com vitória de Chen Shui-Bian, do PDP. Em
dezembro do mesmo ano, o Kuomintang deixou de contar, também, com maioria
legislativa.
Esta evolução recente ocorreu no quadro da "democracia eleitoral" existente na
margem formosina do estreito. Inexiste na ilha, contudo, uma sociedade civil
politicamente organizada, a partir de instituições escolhidas pela cidadania
taiwanesa, na medida em que, na linha de raciocínio exposta acima, a
constituição vigente foi outorgada, em estilo colonial, pelos seguidores de
Chiang Kai-Shek há mais de cinqüenta anos.
Em linhas gerais, portanto, verifica-se que a "primeira democracia chinesa"
seria, na essência, um compromisso entre líderes do Kuomintang, vindos da China
com Chiang Kai-shek, e representantes de forças políticas taiwanesas, no
sentido de obter-se, por um lado, a estabilidade necessária ao crescimento
econômico da ilha e, por outro, a conquista de base de sustentação ideológica
para justificar a sobrevivência da "República da China".
Não houve, portanto, assembléia constituinte. Tratava-se de outorga de
direitos, e não da conquista destes em lutas populares. Não se tratou de buscar
novas garantias à cidadania ou parcerias com a sociedade, por meio de consenso
ou projeto nacional. Na medida em que fora afastado qualquer perigo à
supremacia do partido dominante ' até pela eliminação física, mesmo, dos
opositores nos quarenta anos anteriores ' foram, aos poucos, sendo autorizadas
eleições municipais e em níveis superiores. Apenas em 1996, houve escolha
direta para "presidente" da ilha.
Taiwan evoluiu, assim, de um sistema político instalado de forma ditatorial
pelos dirigentes da "República da China", para um modelo de governança, em que
partidos puderam, recentemente, competir a todos os níveis de governo e prestar
contas de seu desempenho a uma imprensa livre e a opositores.
Em julho de 1999, com a declaração de Lee, produziu-se debate de grande
interesse que opôs o conceito de "um país, dois sistemas" ao de "uma nação,
dois Estados". O primeiro vinha constituindo a moldura que permitira, nos
últimos anos, as negociações através do estreito. O outro vinha a ser o
resultado do esforço de redefinição dessas relações, proposto por Lee Teng-hui.
Tendo em vista que este desenvolvimento ocorreu logo após as celebrações do
segundo aniversário da reincorporação de Hong Kong à China, tornou-se
impossível evitar o exercício de reflexão sobre a validade da aplicação da
solução encontrada para aquela Área Administrativa Especial, em algum cenário
futuro de Taiwan.
Lembra-se, inicialmente, que a fórmula de "um país, dois sistemas", fora
proposta por Deng Xiaoping, em 1982, tendo em mente a convicção chinesa quanto
à futura reintegração de Taiwan e, não de Hong Kong ou Macau. Foi, no entanto,
muito mais fácil negociá-la com as nações européias que então dispunham
colônias em território chinês ' Reino Unido e Portugal ' do que com os
"compatriotas taiwaneses".
A razão óbvia para esta maior facilidade deve-se ao fato de que naqueles
"enclaves ocupados ilegalmente" não havia um governo eleito pela população
local, com preocupações de consulta a partidos políticos ou sociedade civil.
Tratava-se de conversar com Londres e Lisboa, cuja preocupação maior era a de
manter boas relações com Pequim, diante do vasto mercado chinês, que então se
abria ao exterior.
Até o final da década de 1980, como se sabe, prevaleceu, em Taiwan, o delírio
de que na ilha se situava o Governo da China como um todo. Não ocorria,
portanto, ao Kuomintang, negociar a existência de qualquer outro sistema, uma
vez que jurava que o país tinha sua sede em Taipé.
Com o início do processo de "democratização", a partir de 1986, por Chiang
Ching-Kuo (filho de Chiang Kai-shek), tão pouco ocorreria às autoridades locais
outorgar à população formosina a opção de integrar-se, naquele momento, à
China.
Nessa perspectiva, cabe questionar se a experiência vivida por Hong Kong, no
período daqueles dois anos, com o "alto nível de autonomia" acordado com
Pequim, serviria de inspiração para o futuro que almejavam para si os
taiwaneses. À primeira vista, eram desfavoráveis as comparações, entre o status
quo, então vivido pela ilha, e as expectativas do que lhes seria reservado ' a
partir da experiência vizinha ' caso se tornasse uma área administrativa
especial.
Nota-se, ademais, que dinâmica de política interna formosina passou a refletir
ações da sociedade civil identificada, cada vez mais, com uma nação taiwanesa.
Nesse processo, identifica-se gradativa obsolescência de formas originais de
governança, em desacordo com a constituição em vigor que determina, inclusive,
a existência de "uma China", cuja única "República" legítima teria sede em
Taipé.
Para observadores do processo, portanto, até março de 2000, tratava-se muito
mais de conflito não resolvido, entre os seguidores do PCC e do KMT, sobre quem
teria o mandato para governar a China ' ou uma parte dela ' do que de exercício
acadêmico de tentar, segundo preceitos jurídicos ocidentais, acordar se, no
lado formosino do estreito, existe uma "entidade política" ou "estado".
Nessa perspectiva, a situação em Taiwan, desde 20 de março de 2000, quando o
KMT foi afastado do poder pelo voto, passou a exigir que a dimensão política
através do estreito passasse a ser acompanhada a partir de nova dinâmica, agora
determinada por ações da sociedade civil de cidadania, cada vez mais
identificada com uma nação taiwanesa.
A propósito, cabe lembrar que o título do discurso de posse de Chen Shui-Bian,
no dia 20 de maio de 2000 foi "Taiwan levantou-se" ' repetindo declaração de
Mao Zedong, havia 51 anos, quando proclamou a independência da República
Popular da China. Ao final, declarando-se um "filho de Taiwan", o novo líder
comandou o público em exaltação à "Nossa Terra ' Formosa". Formulou, também,
votos de felicidades à "República da China". Sob a administração do Kuomintang,
a população taiwanesa estava acostumada a ouvir louvores apenas a esta última.
Houve, no entanto, amplas manifestações de boa vontade aos dirigentes chineses
e aos compromissos com "cinco nãos": à independência; à mudança de nome
(R.O.C.); à inclusão da teoria de "dois Estados" na constituição; a referendum
sobre a reunificação; e a mudanças na política em vigor quanto à reintegração.
O ponto mais controvertido foi sua resposta à exigência chinesa de
reconhecimento de "uma China", no momento da posse. Chen ficou aquém das
expectativas de Pequim, ao afirmar que "líderes das duas partes possuem
sabedoria e criatividade suficientes para juntos lidarem com questão de "uma
China", no futuro.
Notou-se, por um lado, a ausência de promessa quanto ao cancelamento da"s três
proibições: ao comércio, transporte e vínculos postais diretos com a China '
que seria um gesto amistoso. Por outro, deixou de haver referência a esforços
continuados no sentido do ingresso da ilha na ONU ' que vinham sendo fator de
irritação em Pequim.
Apenas um sexto do discurso foi reservado a temas relacionados com a questão do
estreito. Grande parte das referências à política interna, no entanto, visaram
a uma nova inserção internacional de Taiwan. Daí a ênfase à visão de que a
democracia é a tendência irreversível da história. Confirmou, portanto, a
antecipação de que falaria, também, para audiência norte-americana.
Segundo noticiado, houve, de imediato, duas reações chinesas. Uma alegando
"falta de sinceridade" de Chen, por não reconhecer a existência de "uma China".
A segunda, mais moderada, considerou possível o estabelecimento de diálogo.
No que diz respeito a seu segundo discurso de posse, em 20 de maio de 2004,
Chen Shui-Bian salientou, na parte inicial, entre seus pontos principais, as
propostas seguintes: a) o fortalecimento da sociedade civil, com capacidade
para participar da formulação de políticas públicas, inclusive por meio de
referenda; b) esforço para criar uma identidade formosina que inclua o
território e a memória compartilhada, "transcendendo as limitações étnicas, de
linhagem, língua e cultura", conduzindo a "novo consenso de unidade e destino
comum"; e c) reengenharia constitucional, com o propósito de aumentar a
governança, a eficiência administrativa, assegurar sólida fundação democrática
e criar estabilidade e prosperidade a longo prazo.
Na parte final do pronunciamento, a exemplo do que já registrara em seu
primeiro discurso de posse, em 20 de maio de 2000, Chen deixa de reconhecer,
mais uma vez, o princípio de "uma China", mas disserta sobre raízes históricas
comuns, entre as populações das duas margens do estreito.
Dessa forma, verifica-se que, durante cinco décadas, a partir de 1949, o
Kuomintang manteve o poder deste lado do estreito articulando dois eixos
verticais ' a unidade entre o partido e o estado e o corporativismo ' e três
eixos horizontais ' um partido de organização leninista, um vasto império
econômico administrado pelo KMT e a colaboração com facções locais. Esses cinco
eixos interagiam e constituíam a rede simbiótica do regime então deposto.
Os que se preocupam quanto a um futuro formoso para Taiwan, registram que, com
as duas sucessivas derrotas do Kuomintang (2000 e 2004), nota-se o
desaparecimento gradativo do mecanismo de sustentação mencionado no parágrafo
anterior. Dessa forma, receia-se ver reproduzido, através do estreito, o mesmo
efeito que a queda do "muro" provocou na Europa.
Isso tudo ocorre no contexto de crescente consciência de cidadania da sociedade
civil que poderá atropelar a possibilidade de réplica, em Taiwan, da solução
sul-africana, que permitiu a preservação do aparato institucional herdado do
regime antigo. No quadro específico local, tal evolução resultaria no
desaparecimento de qualquer mecanismo de sustentação da "República da China" e
na emergência de formas de governança originais de uma "República de Taiwan" '
exatamente como não quer a República Popular da China.
Assim, na dimensão política, as ásperas trocas de ofensas, amplamente
divulgadas na imprensa internacional, entre Pequim e Taipé, não deve, ainda,
ser entendida como rompimento completo no diálogo através do estreito. Isto
porque, segundo divulgam os próprios dirigentes chineses, a RPC preferiria, no
momento, não mais prestar atenção às palavras de Chen Shui-Bian '
principalmente no que se refere ao que foi dito ou não em seus dois discursos
de posse ' e concentrar-se na observação de suas ações.
Bastaria, portanto, que, por um lado, Pequim decidisse que atos futuros das
autoridades formosinas significariam o respeito à existência de "uma China", de
forma a permitir que as duas partes passassem a discutir temas relativos à
integração econômica, segurança e maior espaço internacional para Taiwan.
Por outro, Taipé terá que agir no sentido de não contrariar as interpretações
da RPC, quanto ao princípio de "uma China", no que diz respeito às reformas
constitucionais que Chen anuncia pretender efetuar.
Tais desenvolvimentos ' que conduziriam a um futuro formoso para a ilha de
Taiwan ' dependerão de uma boa dose de ambigüidade, conforme se pretende
concluir.
Conclusão
Cenário futuro formoso para a questão de Taiwan, em sua dimensão de segurança,
dependeria da consolidação de tendências como: não à independência, não à
utilização da força.
No que diz respeito ao patamar político, a evolução favorável do problema
dependeria, para os chineses, de acordo entre as duas margens do estreito de
que: existe apenas "uma China", representada pela RPC, da qual Taiwan faz
parte. Em contrapartida, para os formosinos, desde a primeira eleição de Chen
Shui-Bian, em março de 2000, para o cargo de líder ("presidente") a ilha
deveria ser tratada em condições de igualdade, pelo continente. Isto é, Taiwan
não seria uma província chinesa, mas, sim um Estado, tal como a China.
Conclui-se, nesta perspectiva, que o cenário futuro favorável para a questão de
Taiwan, em suas dimensões de segurança e política, poderia ser descrito nas
linhas gerais seguintes: haveria acordo quanto à renúncia taiwanesa à
independência e ao término da ameaça chinesa de utilização da força para a
reunificação. Prevaleceria a idéia de que existe apenas uma China, sujeita a
duas interpretações, correspondente a cada margem do estreito.
O processo de reintegração de Taiwan ao continente, no entanto, implica também
na convivência com esforços acelerados de integração econômica entre os dois
lados do estreito. Permeando tudo isso, existe o fortalecimento de uma noção de
cidadania formosina.
No processo de integração econômica, já se conta volume de investimentos
taiwaneses na RPC estimado em cerca de US 110 bilhões e crescente comércio
bilateral (ao redor dos US 20 bilhões, em 2003), que poderiam levar a crer que
existe unanimidade quanto à conveniência do visível intercâmbio entre os lados
do estreito e que, portanto, neste patamar, haveria invariantes e, não
tendências antagônicas. Na prática, contudo, já existe competição entre as duas
economias, o que poderia dificultar a realização de um cenário futuro favorável
através do estreito.
Existe, assim, por um lado, a percepção das vantagens que a economia chinesa
oferece à taiwanesa e, por outro, a noção do perigo que uma integração
crescente entre as duas margens representa para as dimensões de segurança e
política da questão de Taiwan. Os favoráveis às livres forças de mercado
advogam que a transferência de fábricas, capital e capacidade gerencial para o
continente significa o fortalecimento da economia formosina que, caso
contrário, perderiam vantagens competitivas. Em contrapartida, os mais avisados
quanto a assuntos de defesa e estabilidade interna insistem que a dependência
excessiva da outra margem tornará a ilha vulnerável a decisões a serem tomadas
não mais em Taipé, mas em Pequim.
Quando se analisam aspectos culturais, no entanto, verifica-se que representam,
na verdade, uma condicionante de qualquer cenário alternativo futuro para a
questão de Taiwan. Isto é, nessa esfera de relacionamento, existe, entre
chineses e taiwaneses, somatório de interesses compartilhados por diferentes
ações das sociedades civis, ora divididas e governadas separadamente, que
servirão de cimento para resgatar a identidade de uma mesma nação através do
estreito.
Nessa perspectiva, nota-se que, entre os mecanismos de cooperação
proporcionados pela identidade cultural comum entre os dois lados do estreito,
encontra-se a capacidade, demonstrada historicamente, de fazer prevalecer,
diante de qualquer adversidade, os valores mais importantes da civilização
chinesa.
Assim aconteceu, por exemplo, quando a China foi invadida, durante séculos, em
diferentes momentos, por mongóis e manchus. Sempre, aqueles que demonstraram
superioridade militar, acabaram sendo absorvidos pela superioridade cultural
chinesa. Da mesma forma, voltará a ocorrer, após o período iniciado em 1949,
durante o qual parte do território chinês tem estado inserido na fronteira
ideológica de potência situada fora da região, que fornece armamento avançado
para manter tal divisão.
A partir de março de 2004, no entanto, sérias dúvidas prevalecem com respeito a
um futuro formoso para os 23 milhões de taiwaneses, na medida em que as
eleições, em 20 de março deste ano, evidenciaram que existem, na ilha de
Formosa, duas Taiwans, divididas em torno de questões como soberania,
identidade cultural e status quo. Problemas de segurança e políticos,
influenciados por poderosas forças externas, contribuem para o clima de
incerteza que se vive, conforme se procurou descrever neste trabalho.
Um futuro formoso para Taiwan, portanto, dependerá da capacidade de Taipé de
demonstrar competência na arte de ambigüidade, de forma a alternar,
pronunciamentos e ações, esforços e gestos, ora de conciliação, ora de
afastamento, com respeito à China, que visariam a ganhar tempo, para que
eventuais alterações na economia e forma de governança da RPC, a tornem mais
atrativa à reunificação.
O maior obstáculo a tal projeto formosino parece ser a dificuldade de Pequim
aceitar que a ambigüidade dos pronunciamentos e ações de Chen Shui-Bian indica
a realidade de que o Partido Comunista Chinês ' desde 2000, quando o líder
independentista chegou ao poder, pelo voto ' tem que dialogar não mais com a
"República da China" ou com o Kuomintang, mas com uma multiplicidade de
interlocutores de uma sociedade civil, composta por 23 milhões de pessoas,
dispostas a reivindicar direitos de sua cidadania, entre os quais, julgam, se
encontram o de eleger seu próprio líder e exercer maior representatividade no
espaço internacional.
Novembro de 2004
1 Cenário é a descrição de um futuro possível, imaginável ou desejável para um
sistema e seu contexto, e do caminho ou trajetória que o conecta com a situação
inicial deste sistema e contexto. Outra definição, segundo GODET. Michel, em
Méthode des Scénarios, em Futuribles, Nov. 1983, "Cenário é o
conjunto formado pela descrição de uma situação de origem e dos acontecimentos
que conduzem à situação futura, sendo que esse conjunto de acontecimentos e
situações deve apresentar uma certa coerência".
2 Cena: descrição do estado ou situação do sistema cenarizado e do seu contexto
num determinado instante de tempo, isto é, de como estão organizados ou
vinculados entre si os autores e as situações, representando um "corte" dentro
do processo evolutivo do objeto considerado.
3 Ver: LIJUN, Shen. China's Dilemma ' The Taiwan Issue. Cingapura: Institute of
South East Asian Studies, 2001.
4 Ver: LIJUN, Sheng. China and Taiwan ' Cross-Strait Relations Under Chen Shui-
Bian. Cingapura: Institute of South East Asian Studies, 2002.
5 A "Constituição da República da China" foi adotada, em 25 de dezembro de
1946, pela Assembléia Nacional chinesa, reunida em Nanking ' China Continental
e promulgada em 1º de janeiro de 1947. Antes, portanto, da retirada do
Kuomintang para Taiwan, em 1949. Em sua essência, o documento pretende garantir
os ideais de "soberania popular, respeito aos direitos humanos e liberdade".
6 Washington Post. Washington: International Herald Tribune, 27 de abril de
2001, intitulado Confusion on Taiwan.