Pax Americana ou o império da insegurança?
Introdução
O objetivo deste artigo é determinar o papel e a posição dos Estados Unidos em
um contexto abrangente e histórico e tentar escapar da imediatez da discussão
corrente sobre as escolhas estratégicas que Washington fez, está em vistas de
fazer, ou que poderá fazer no futuro. O artigo está dividido em três partes. Na
primeira seção, apresenta-se o questionamento de algumas premissas que são
constantemente feitas sobre a noção de império, particularmente sobre a
inevitabilidade de seu fim sobre a redundância e o anacronismo do império como
forma de ordem política, e a conseqüente implicação de que o foco natural das
relações internacionais devem ser as relações entre Estados ou Estados-nação. A
profunda extensão do poder dos Estados Unidos e a aparente obviedade da opinião
de que estamos vivendo em um mundo unipolar trouxeram de volta a linguagem de
império e têm levado muitos a ver os Estados Unidos como um poder imperial. A
segunda seção considera como devemos entender esse poder. A argumentação de que
noções de império informal oferecem algumas vantagens analíticas, mas
negligenciam a importância do papel do poder militar e da coerção na evolução
da política externa americana, e a importância de regras, normas e instituições
' o que pode ser chamado do lado formal do dito império informal. Também é
discutido que é analiticamente mais útil compreender os Estados Unidos como um
hegemon a vê-lo como um poder imperial porque, ao fazê-lo, o analista é forçado
a concentrar-se diretamente em questões cruciais tais como negociação,
legitimidade e a necessidade do hegemon conseguir adeptos e seguidores. Muitos
acreditam que hegemonia é uma forma de controle mais superficial e menos
impactante que império. Embora isso seja verdadeiro de certa forma, sugere-se
que a hegemonia dos Estados Unidos é marcada por várias forças históricas e
estruturais que têm empurrado esse país em direção a um envolvimento mais
profundo e intrusivo no resto do mundo e que continuam a fazê-lo, dificultando
o exercício do poder norte-americano.
Na terceira seção se examina de forma mais geral as cinco razões mais citadas
para a rejeição de concepções imperiais e verticalizadas do ordenamento
internacional. Em vez de comparar a extensão e o caráter do poder dos Estados
Unidos com o de outros Estados hegemônicos na história, se questiona como esses
cinco fatores podem ter mudado de forma a viabilizar um ordenamento hegemônico
e potencialmente sustentável. Claramente, as fontes de poder dos Estados Unidos
são enormes. No entanto, quando confrontadas com o modo em que a sociedade
internacional e a política global vêm mudando, o que mais chama a atenção são
os limites, a instabilidade e as incertezas desse poder. Embora essas
limitações apliquem-se mais diretamente ao exercício do poder coercitivo, suas
implicações são mais amplas e questionam a imagem simplista dos Estados Unidos
como um poder hegemônico todo-poderoso e sem rivais.
Impérios e ordem
A noção de império foi, durante muito tempo, central para as concepções de
ordem mundial. Isso era claramente verdade nas relações internacionais antes da
emergência do sistema europeu clássico de Estados. Mas o imperialismo também
era central para a operação política do sistema clássico de Estados, para seu
desenvolvimento econômico, para o caráter da ordem internacional legal e
normativa e, como muitos trabalhos recentes têm mostrado, para sua teoria
política. A lógica de poder em um sistema de Estados clássico deu origem a dois
padrões persistentes: primeiro, de equilíbrio de poder e, segundo, de
desigualdade e hierarquia. O campo do estudo acadêmico das Relações
Internacionais deu enorme atenção ao primeiro padrão, mas negligenciou o
segundo e subestimou o papel crucial da interação entre poder equilibrado e
poder desigual na gênese da ordem internacional. Da mesma forma, a disciplina
de Direito Internacional enfatiza tanto a idéia do direito internacional como
um sistema horizontal de coordenação (desfazendo analogias equivocadas com o
âmbito doméstico, onde o foco é na implementação, por vezes forçada, de
decisões), que acaba desviando sua atenção do importante tema dos diferenciais
de poder e do papel da desigualdade entre Estados.
O sistema de Estados clássico não somente foi marcado por desigualdades, como
foi estruturado em torno delas. A combinação do rápido desenvolvimento
industrial, a emergência de estruturas estatais administrativas organizacionais
mais eficientes, a consolidação dos Estados nacionais e mudanças na tecnologia
e na organização militar levaram à ascensão de um pequeno número de grandes
potências que dominaram o cenário da política internacional. No núcleo do
sistema, formas institucionalizadas de hierarquia foram centrais em dois
aspectos: por um lado, na compreensão pluralista de como sustentar o
ordenamento internacional; por outro, na geração das normas políticas que
institucionalizaram esses entendimentos. Embora a lógica do equilíbrio de poder
pudesse operar automaticamente, suas ameaças e atritos poderiam ser minimizados
pelo reconhecimento do papel gerencial das grandes potências. Elas poderiam
promover a ordem gerenciando as relações entre si (por meio da diplomacia,
conferências, missões, e intervenções conjuntas), assim como explorando seu
diferencial de poder em relação a Estados subordinados, esferas de influência e
sistemas de alianças. Apesar do movimento normativo em direção a maiores graus
de igualdade, esse padrão permaneceu central durante a maior parte do século
XX.
Se a desigualdade marcou o cerne do sistema de Estados, as relações entre o
núcleo europeu e a periferia foram ainda mais desiguais. A Revolução Industrial
e as inovações tecnológicas em armamentos forneceram a base para uma dominação
sem paralelos dos poderes europeus sobre o resto do mundo. O sistema clássico
de Estados era uma ordem imperial e colonial. Essa face imperialista precisa
ser entendida como uma das principais instituições da sociedade internacional.
Dessa forma, a ordem européia colonial foi construída em torno de territórios
formalmente subordinados que não tinham papel algum nas relações
internacionais, pois tratava-se de um sistema econômico marcado pela imposição
da abertura das economias periféricas, pela abertura demográfica das mesmas,
por premissas culturais que enfatizavam a superioridade da cultura ocidental e
branca, e pela crença em que o progresso era uma conseqüência da reprodução de
modelos europeus ' uma premissa verdadeira tanto para Marx como para Mill.
Mas, talvez, mais interessante que a centralidade histórica da noção de império
é a forma como uma gama de representantes de diferentes pensamentos políticos
via a mesma, não como um resquício de um passado feudal, mas sim como um
elemento central das relações internacionais do futuro; e, particularmente,
como uma resposta às mudanças impostas pelo desenvolvimento capitalista e pelas
forças do que veio a se chamar de globalização. Três momentos merecem atenção.
Escrevendo no auge da autoconfiança imperial vitoriana, John Seeley ressaltava
a transformação na escala de poder, as "vastas forças unificadoras" do
comércio, investimento e migração, assim como a extensão em que mudanças
tecnológicas e de comunicação estavam facilitando novas formas de organização
política. "Eu tenho sugerido que no mundo moderno a distância tem perdido muito
seus efeitos, e que existem sinais de um tempo no qual os Estados vão ser mais
vastos do que eles têm sido até o presente" (Seeley [1881] 1971: 234). Em
consonância com muitas das reflexões do pensamento do século XIX (por exemplo,
Cobden [1867] 1903: 5-119 e 122-258; para a visão admirável de Cobden do poder
dos Estados Unidos, ver Cowley, 1952), ele via a lógica dominante da integração
econômica e interdependência apontando para consolidação e fusão de estruturas
políticas. E, como vários de seus contemporâneos, ele via os Estados Unidos
como modelo: "o mais notável exemplo de expansão confiante e bem sucedida", um
modelo de instituições livres combinadas com uma expansão sem limite em seu
maior grau...é precisamente o tipo de união que as condições de nossa época
mais naturalmente necessitam. (Seeley [1881] 1971: 235/236).
Escrevendo em 1926, Alfred Zimmern, o principal pensador liberal e defensor da
Liga das Nações, também via o império como um elemento necessário e benéfico à
futura ordem mundial. Assim como Seeley, ele acreditava que transformações
econômicas mudavam os imperativos tanto do poder nacional como os de governança
internacional. "Historiadores futuros, eu acredito, vão olhar para o século XIX
como um século que uniu o mundo economicamente, por intermédio do
desenvolvimento de um sistema mundial de comércio, indústria, e comunicações; e
eles vão apontar para o século XX como o que regularizou e controlou esses
contatos econômicos, pelo desenvolvimento de uma cooperação intergovernamental
e pelo estabelecimento de uma base firme para o direito internacional como um
sistema de regras vinculantes entre os Estados". (Zimmern, [1934] 1979: 60/61).
Nessa busca por governança, contudo, o império continuaria a ter um papel
central. De um lado, a Commonwealth britânica representava, para Zimmern, um
modelo para a Liga das Nações - um modelo de associação livre e pacífica de
Estados e comunidades nacionais. Do outro, a Liga das Nações era central para a
sobrevivência e sustentabilidade da Commonwealth, daí a noção de Zimmern de
"uma liga dentro de outra mais ampla, uma sociedade dentro de uma sociedade
maior". (Zimmern, [1934] 1979: 61). Esse pequeno lapso entre liberais
internacionalistas e liberais imperialistas não era de forma alguma restrito a
Zimmern. Assim, Wilson defendia a Doutrina Monroe em Paris, não como um arranjo
regional hegemônico que refletia os interesses egoístas dos Estados Unidos, mas
como um modelo para a Liga. Essa idéia tinha sido discutida em novembro de
1914, e era expressa em vários documentos e no discurso de Wilson no Senado (22
de janeiro de 1917), como tentativa de tornar a Liga aceitável para a opinião
pública norte-americana. Mas essa idéia também refletia, de acordo com a
proposta de House, que Wilson adotou com entusiasmo, uma crença genuína de que
um Pan-Americanismo, inspirado na Doutrina Monroe, poderia fornecer um modelo
de organização internacional para o pós-guerra (Gilderhus, 1986: 135-139 e
Gilderhus, 1980: especialmente 415-417).
Ao final da Segunda Guerra Mundial, a maré contrária à noção de império parecia
avançar com mais força. De fato, a guerra em si foi crucial no processo de
descolonização: a devastadora fraqueza do núcleo europeu, a ascensão das
superpotências (termo cunhado em 1944), a perda do controle direto sobre
territórios coloniais (especialmente na Ásia), e a intensificação do
nacionalismo anticolonial alimentado em oposição à tentativa européia de
mobilizar os impérios para o esforço de guerra. Os conflitos catastróficos da
primeira metade do século XX, pareciam reforçar a idéia difusa, mas
generalizada, de que a época dos Estados-nação chegava no fim e que as forças
políticas internacionais e o desenvolvimento do capitalismo global estavam
levando a novas formas de ordenamento político (por exemplo, Carr, 1945). Mas
nesses debates a noção de hierarquia permanecia central. Por vezes, a ligação
entre hierarquia e ordem era focalizada em instituições, como no caso das
Nações Unidas, com o entusiasmo (consistente) de Churchill e (inicial) de
Roosevelt por uma ordem construída em torno dos "quatro policiais", cada um
mantendo a ordem em suas respectivas esferas de influência. Às vezes, a ênfase
recaía mais diretamente na noção de império. Alexandre Kojève, o grande
especialista em Hegel e oficial do governo francês, oferece um exemplo
particularmente interessante de como a percepção dessas mudanças apontava tanto
para a centralidade continuada da noção de império como para a mudança de seu
caráter.
Em seu trabalho Outline of a Doctrine of French Policy, escrito em agosto de
1945, ele escreveu: "No presente, são esses Estados-nação que, inexoravelmente,
estão de forma gradual dando lugar a formações políticas que transcendem
fronteiras nacionais e que podem ser designadas pelo termo 'Impérios'. Estados-
nação, ainda poderosos no século XIX, estão cessando de ser realidades
políticas. (...) O Estado moderno, a realidade política corrente, requer uma
fundação maior do que aquela representada por Nações no sentido estrito. Para
ser politicamente viável, o Estado moderno deve ser baseado em uma 'vasta união
"imperial" de Nações afiliadas'. O Estado moderno só é realmente um Estado se
for um Império" (Kojève, 1945). Na visão de Kojève, a Alemanha nazista tinha
reconhecido essas mudanças, como pode ser visto nos extensos debates sobre
Grossraumtheorien e na geopolítica de Haushofer (que influenciariam Spkyman e,
depois, Kennan)1. Mas, para Kojève, a Alemanha tinha procurado uma solução
nacional que estava fadada ao fracasso quando confrontada pelo "socialismo
imperial" da URSS, de um lado, e pelo 'capitalismo imperial dos Anglo-Saxões',
do outro. "Pode-se dizer, portanto, que a Alemanha perdeu essa guerra porque
queria ganhá-la como um Estado-Nação". Assim como Zimmern, ele via a
Commonwealth como um modelo, mas argumentava que esse era um modelo ainda muito
nacional. E, de novo de acordo com Zimmern, o futuro estava do lado dos Estados
Unidos, com seus arranjos desterritorializados e estruturados de maneira muito
mais difusa. "É o império Anglo-Saxão, o que significa dizer o bloco político-
econômico Anglo-americano, que é hoje a realidade política efetiva" (Kojève,
1945: 3). As soluções do próprio Kojève apontavam, de forma presciente, para o
regionalismo (a outra unidade óbvia da ordem mundial além do Estado-nação) e,
de forma profundamente implausível, a noção de "Império Latino".
Politicamente, é claro, o período pós-Segunda Guerra Mundial presenciou o
desafio dos territórios europeus ultramarinos de se fortalecer, levando à
conclusão da terceira onda de descolonização (contra os impérios europeus) e,
finalmente, à quarta onda (com a quebra do império soviético e do sistema
hegemônico). Analiticamente, a disciplina de Relações Internacionais insistia
ainda mais em descrever o seu campo de estudo como "A Política entre as Nações"
ou como a política de um sistema inter-estatal anárquico, apesar do importante
papel da hierarquia nos dois lados da Guerra Fria. George Liska foi inusual ao
salientar o caráter dual ou variado do sistema. "A política internacional
contemporânea", ele escreveu em 1967, "é um agregado de dois ingredientes: a
política dos Estados-nação renovados ou fortalecidos e a política de império e
das relações interimperiais" (Liska, 1967: 3).
A emergência dos Estados Unidos como núcleo de um mundo unipolar reforçou a
atenção dada às implicações da recentralização do poder global ' não
simplesmente em relação às escolhas estratégicas dos Estados Unidos, mas, mais
amplamente, em termos da possibilidade de gerar ordem mediante hierarquia,
hegemonia ou até mesmo império. Falar dos Estados Unidos como a nação
indispensável tornou-se mais persistente e, para muitos, mais persuasivo; e a
caracterização de Krauthammer de um "momento unipolar" abriu espaço para a
crença de que o mundo havia entrado em uma era unipolar (ver Brooks e
Wohlforth, 2002). Ambos, império e hegemonia, requerem poder, propósito e apoio
político de terceiros. Como os muitos catalogadores e contadores de recursos
objetivos de poder notaram, os recursos dos Estados Unidos não têm rival: a
verba militar dos Estados Unidos é maior que a dos 14 países seguintes juntos e
a economia dos Estados Unidos é maior do que as próximas três combinadas. Mas
foram, é claro, os eventos que se seguiram ao 11 de Setembro que pareceram
oferecer aos Estados Unidos um propósito muito mais claro (e talvez um
projeto), assim como níveis muito maiores de apoio político doméstico, a uma
política externa ativa e engajada. A emergência de uma política externa mais
unilateral e nacionalista por parte dos Estados Unidos reforçou ainda mais o
retorno à linguagem de império. Como resultado, um número cada vez maior de
comentadores passou a falar do papel dos Estados Unidos no mundo em termos
imperialistas (para um exame mais detalhado, ver Cox 2003; Bacevich, 2002: 142-
43; Ferguson, 2002; Ikenberry, 2002; and Snyder, 2003) e, de modo também
crescente (tanto à direita como à esquerda), outros passaram a defender as
virtudes de um Império Americano ' como a melhor política para salvaguardar os
interesses nacionais norte-americanos; como a única fonte possível de segurança
global e outros bens públicos internacionais; como o único Estado com a
capacidade de comprometer-se com as tarefas de intervenção e state-building que
o caráter evolutivo da própria segurança torna vitais; e como o agente político
essencial para a expansão do liberalismo global.
Definições e distinções
A caracterização dos Estados Unidos como um poder imperial sempre foi difícil e
contestada. Assim, o clássico retrato de Ernest May da ausência de uma
inclinação imperial pode ser contestado com a igualmente clássica exposição de
Williams de Empire as a Way of Life (May, 1968 and Williams, 1980). É
claramente o caso que os Estados Unidos têm, há muito tempo, mantido uma
poderosa imagem de si como um poder anticolonial, com sua rejeição à política
de poder européia; sua sustentada e recorrente retórica de liberdade e
autodeterminação; seu papel decisivo no estabelecimento da autodeterminação
como uma norma política internacional; e sua pressão direta sobre os Estados
europeus para que abdicassem de suas possessões imperiais, desde os holandeses
na Indonésia até os franceses e britânicos em Suez.
Contra isso, no entanto, os Estados Unidos têm que ser vistos como um produto
da expansão européia, que envolveu assentamento de colônias e a subjugação de
povos indígenas e independentes. O país era forte territorialmente e bem
sucedido em sua dimensão expansionista no decorrer do século XIX ' via
colonização, compra de terras e guerra (usando a força mais de cem vezes entre
1807 e 1904). Ademais, quando o país abandonou a expansão territorial e a
conquista, não o fez notadamente por fatores liberais. Dessa forma, é inegável
que preocupações liberais tiveram um papel: em termos das ameaças à liberdade
doméstica associadas com a expansão imperial no exterior, e na dificuldade de
reconciliar a realidade do império e o domínio ultramarino com os valores
norte-americanos. Mas raça e escravidão também foram fatores dominantes para
explicar o fim da expansão rumo ao sul e para levar os Estados Unidos a novas
formas de controle territorial ' como a doutrina de territórios não-
incorporados ou arranjos de protetorados, como a Emenda Platt, que serviu de
modelo para o Haiti, Nicarágua, Republica Dominicana e que, por sua vez, havia
sido aplicada com base no modelo de domínio britânico no Egito. E, como
Morgenthau e outros já observaram, nunca houve um imperativo geopolítico pró-
expansionista forte. "Raramente, se não nunca, poderia uma grande potência
atuar com uma política de conquista com menos convicção, determinação e senso
de propósito". Para os Estados Unidos, conquistas além dos limites do
continente norte-Americano eram, desde o início, um inevitável embaraço, mais
que a realização de um objetivo nacional'2. Onde esse imperativo realmente
existia, como era o caso dos chamados Strategic Trust Territories, então a
conquista não era renunciada. Igualmente, quando a geopolítica ditava
rearranjos territoriais e a permuta de povos e soberanias (como ocorreu tanto
em Paris em 1918, como em Yalta em 1945), os Estados Unidos, então, estavam
dispostos a seguir seus interesses em vez de seus professados valores, abrindo
espaço à recorrente acusação de ser um conspirador maquiavélico por trás de uma
fachada Wilsoniana.
Ainda assim, os Estados Unidos distanciaram-se da conquista formal e da
anexação territorial, buscando expansão econômica externa e a abertura de
mercados. É isso que nos força a lidar com os aspectos não-territoriais do
poder norte-americano e com a distinção entre império formal e informal, entre
controle político direto (hasteando bandeiras e pintando mapas) e controle
econômico informal (abrindo as portas da economia; para a exposição clássica
ver Gallagher e Robinson, 1953). Essa diferenciação permanece crucial para o
entendimento do poder dos Estados Unidos, mas sofre de duas sérias limitações.
A primeira é que negligência a disposição continuada, por parte dos Estados
Unidos, de usar a força e a coerção na busca de seus interesses. É essa
disposição uma das características mais importantes que distingue hegemonia de
primazia livremente reconhecida. Em áreas onde sua hegemonia estava
estabelecida há muito tempo, como na América Latina, intervencionismo e uso da
força mantiveram-se presentes mesmo quando o caráter do sistema internacional
passou por dramáticas mudanças. Por isso, por exemplo, intervencionismo não
pode ser entendido como uma função dos constrangimentos da Guerra Fria. Além
disso, conforme o poder relativo dos Estados Unidos cresceu e as restrições da
Guerra Fria diminuíram, aumentou sua disposição de usar a força. Assim,
Bacevitch (2002: 142-43) indica a existência de um "nível de ativismo militar
sem precedentes" durante os anos 90, e 48 intervenções militares levadas a cabo
durante os anos Clinton.
O segundo problema é a tendência a ignorar os aspectos "formais" do império
informal. Essa foi uma falha da formulação original do conceito e, ainda mais,
em suas aplicações ao caso norte-americano. Historicamente, a prática do
império informal envolveu um complexo conjunto de normas e arranjos
institucionais (a respeito de, entre outros, extraterritorialidade,
protetorados, territórios não-incorporados, esferas de influência, assim como
normas relativas à soberania, autodeterminação, ou sua ausência, e ao uso da
força). As normas fundamentais da sociedade internacional estavam marcadas
permanentemente pelo seu caráter dual tanto de sistema interestatal como de
sistema inter-imperial. Hoje, o lado formal do império informal torna-se ainda
mais crucial para a projeção de poder norte-americano, já que as regras e
instituições em torno das quais a globalização é estruturada, tornam-se cada
vez mais ambiciosas, intrusivas e abrangentes. Uma grande parte do poder norte-
americano é exercida pela "metamorfósica" estrutura normativa e legal da
sociedade internacional ' por intermédio da influência norte-americana sobre
normas centrais (por exemplo, aquelas relativas ao uso da força ou à
modificação do caráter da soberania); pela influência dos Estados Unidos em
regimes e instituições dos quais escolhe não participar; por sua capacidade de
influenciar escolhas entre modos de governança de mercado ou políticos; e por
seu cultivo de modos alternativos de governança (por exemplo, a expansão de
redes regulatórias ou a externalização de seu direito doméstico). Assim, a
visão dos Estados Unidos como sendo ou 'a favor' ou 'contra' o direito
internacional e instituições é altamente enganosa e corre o risco de desviar
nossa atenção das formas pelas quais o poder dos Estados Unidos é realmente
exercido.
Isso leva ao segundo tópico, a saber, a distinção entre o controle coercitivo
direto, por um lado, e o controle exercido por regras e instituições e mediado
por negociação, por outro. Para muitas pessoas, a inevitabilidade do termo
"império" parece decorrer naturalmente do imenso manancial de recursos de poder
à disposição de Washington e, especialmente, da extraordinária capacidade
militar lhe dá uma aparente dominação avassaladora sobre seus adversários.
Império (em vez de hegemonia ou primazia), parece particularmente apropriado
para o uso direto de coerção em relação aos Estados mais fracos e subordinados,
não mediada por negociações políticas, regras acordadas ou instituições
compartilhadas. No entanto, a visão do poder em termos puramente coercitivos e
materiais, baseia-se em um entendimento do poder bastante limitado e pouco
útil. O poder nas relações internacionais deve ser visto como uma relação
social, posto lado a lado com outros conceitos sociais essenciais como
prestígio, autoridade e legitimidade. Grande parte da luta por poder político é
a busca de controle legítimo, evitando o apelo, custoso e perigoso, à força
bruta e à coerção.
Teóricos do imperialismo nos ensinaram, há muito tempo, que impérios formais
dependiam de uma variedade de controles indiretos, e que o fim do império
chegou quando os imperialistas ficaram sem colaboradores. Se isso era verdade
para impérios formais, o é ainda mais para impérios informais e sistemas
hegemônicos. É por essa razão que o conceito de hegemonia é tão importante.
Afinal, uma hegemonia estável se apóia em um delicado equilíbrio entre a
coerção e o consenso; entre o exercício do poder direto e indireto do Estado
hegemônico, por um lado, e, por outro, a provisão de algum grau de autonomia de
ação e respeito para os Estados mais fracos. Apesar de ênfases e implicações
poderem variar, essa descrição geral é adequada tanto se adotarmos visões
realistas, liberais ou neogramscianas de hegemonia3. Diferentemente da
subordinação direta, a hegemonia precisa ser estruturada em um processo de
negociação constante e comumente instável, entre o forte e o fraco. Negociação
e o cultivo de legitimidade têm um papel crucial, especialmente dada a natureza
mutável do conteúdo das políticas em um mundo globalizado.
Se a modalidade de controle é melhor encapsulada pelo termo "hegemonia", o
terceiro tópico relaciona-se à profundidade do envolvimento norte-americano. A
intuição óbvia é que hegemonia e império informal implicam um envolvimento
menos profundo e esforços menos intrusivos tanto para moldar regimes
subordinados às preferências do hegemon, como para proteger-se de rivais
estratégicos. Na visão de Gallagher e Robinson, o império informal é mais
flexível, mais barato e menos arriscado, e é essa a razão de a Grã-Bretanha tê-
lo preferido sempre que possível. A mesma lógica e os mesmos benefícios devem
aplicar-se aos Estados Unidos, também sendo um império informal mais coerente
com seus valores.
Contra essa visão, contudo, há claros exemplos nos quais os Estados Unidos
envolvem-se profundamente em iniciativas para remodelar unidades políticas
subordinadas. Pode-se apontar, por exemplo, as tentativas de state-building
colonial durante a fase mais aguda do fervor intervencionista entre 1898 e a
Política da Boa Vizinhança de 1933, especialmente em Cuba, no Haiti e nas
Filipinas. O "Fardo do Homem Branco" de Kipling era, afinal, endereçado e
dedicado não ao Império Britânico, mas à ocupação norte-americana nas Filipinas
(Kramer, 2002: 1348). Fora isso, as pressões da Guerra Fria impulsionavam os
Estados Unidos em direção a iniciativas ainda mais expansivas e ambiciosas de
promoção da democracia, desenvolvimento econômico e reformas sociais pacíficas,
mais notadamente no caso da Aliança para o Progresso nos anos 60. A Aliança foi
o maior esforço norte-americano nesse sentido, entre as ocupações do Japão e da
Alemanha na década de 1940, e o renascimento de tentativas de nation-building
dos anos 90. E foi quase um fracasso total4.
Mas a questão mais importante é se não existem pressões mais profundas e
permanentes em prol de maior envolvimento norte-americano. Um conjunto de
pressões origina-se da recorrente ambição política e moral dos Estados Unidos
de melhorar o mundo e exportar os seus valores. "Eu estou buscando o mínimo de
interferência necessária para torná-los bons" disse Theodore Roosevelt em 1908,
em relação a Cuba e à América Central. Mas, seja em 1908 ou em 2004, é
altamente improvável que fazer os povos melhores, ou até moderadamente menos
piores, seja um objetivo a ser realizado com doses mínimas de interferência.
Outro conjunto de pressões pode ser derivado do caráter mutável dos interesses
econômicos dos Estados Unidos. Ao contrário do envolvimento britânico no
comércio e no investimento de portfólio, a expansão dos interesses econômicos
norte-americanos durante o século XX, envolveu investimentos na produção e
exploração de matérias primas, comumente à sombra de barreiras tarifárias de
bem-sucedidos arranjos de substituição de importação que dominaram o
crescimento econômico de boa parte do mundo durante grande parte do século.
Manter-se nesse âmbito significava, inevitavelmente, que os Estados Unidos
estariam envolvidos na política doméstica de diversos países ao redor do
planeta com mais intensidade que a Grã Bretanha. Além disso, o caráter mutável
da regulação econômica global, relacionado, de um modo ou de outro, aos
interesses dos Estados Unidos, tem, cada vez mais, envolvido regras amplamente
intrusivas, cujo valor depende de sua internalização e implementação nessas
sociedades.
Esse ponto crucial pode ser mais generalizado. A promoção dos interesses dos
Estados Unidos em uma era globalizada tem, cada vez mais, envolvido a intrusão
profunda na forma como diferentes sociedades devem ser organizadas
domesticamente, sendo essa uma mudança estrutural. Se os Estados devem
desenvolver políticas efetivas para o desenvolvimento econômico, proteção
ambiental, direitos humanos, resolução de crises de refugiados, narcotráfico e
terrorismo, então eles precisam engajar-se com uma ampla gama de atores
internacionais e transnacionais e interagir não só com governos centrais, mas
com um conjunto muito mais diversificado de atores políticos domésticos,
econômicos e sociais. Se os Estados Unidos desejam resolver problemas em um
mundo globalizado, não podem simplesmente persuadir ou intimidar governos a
assinar tratados; terminam, inevitavelmente, envolvidos na condução dos
negócios domésticos e na organização interna dessas sociedades. Essa tendência
tem sido reforçada pela transformação da agenda de segurança e, como eu
argumentarei em seguida, esse é um dos fatores mais importantes que tem
reformulado o debate sobre legitimidade e, uma vez mais, complicado o exercício
do poder hegemônico.
Finalmente, sempre tem sido extremamente difícil para impérios e potências
hegemônicas definir e limitar seus interesses. As Relações Internacionais como
disciplina têm costumado a pensar o sistema político internacional em termos
neo-realistas: um mundo no qual sistemas "constrangem", empurrando e forçando
os Estados a agirem de determinadas formas. A desigualdade de poder e a falta
de competidores políticos tradicionais em termos de poder, levam analistas
naturalmente a privilegiar fatores domésticos norte-americanos. Daí o argumento
comum que, em um período de unipolaridade, a política dos Estados Unidos deve
ser explicada em termos de grupos de interesses (empresariais ou petrolíferos),
ou ideologia (a ascensão dos neoconservadores). Daí, também, o foco nas formas
pelas quais Estados hegemônicos ou imperiais são levados a realizar escolhas
políticas e, em particular, estão tentados à expansão excessiva pelas pressões
de grupos de interesse domésticos e pelos "mitos de império" domésticos, do
tipo analisado percucientemente por Jack Snyder (Snyder, 1991).
Esse modo de pensar tem méritos, mas também limites. Impérios sempre enfrentam
vários dilemas estratégicos genuínos que estão enraizados na natureza do
sistema, não em política doméstica; e o analista deve colocar muito mais ênfase
na forma pela qual os sistemas "constrangem", não só pela forma que eles
empurram e pressionam, mas também pela forma como eles aprisionam. Manter um
império de forma bem sucedida é uma tarefa extraordinariamente difícil. No caso
da Grã Bretanha, o que a fez se mover do império informal para o formal foi,
diversas vezes, a rivalidade estratégica em termos consistentes com o neo-
realismo; mas também foi freqüentemente o resultado de mudanças socioeconômicas
na periferia, de crises locais que pareciam ameaçar a estabilidade do controle
e o prestígio do poder imperial, e de uma grande variedade de pontos conectando
o exterior imperial com o interior local (Darwin, 1997). Conforme o sistema
distancia-se da era dos impérios formais, as opções disponíveis para a as
potências têm sido repetidamente constrangidas pelas ações dos fracos e pelas
instabilidades da periferia. Ao contrário do que afirmam os neo-realistas
(especialmente os neo-realistas defensivos), não pode haver um equilíbrio
estável de poder nem uma definição de interesse inconteste. Como nota Hoffmann,
"quase tudo pode ser descrito como interesse vital, já que até mesmo desordem
na periferia pode desestabilizar a eminência de uma superpotência" (Hoffmann,
2004: 35). Isso deveria também prevenir contra tentativas de entender as
políticas dos Estados Unidos em termos de suas próprias escolhas estratégicas.
Assim como na questão de legitimidade, o foco do estudo precisa estar nos
objetos do poder norte-americano, assim como nos objetivos da política norte-
americana. Equilíbrios e barganhas locais podem ser tão vitais quanto grandes
negociações estratégicas.
O debate sobre a coerência da expansão norte-americana e o balanço entre os
diferentes componentes do interesse do país é muito grande para ser resumido
aqui. Não é difícil refutar a visão dos Estados Unidos como um país puramente
reativo aos eventos do mundo exterior. Em um sentido importante, os Estados
Unidos têm sempre sido um Estado revisionista, tanto em sua posição de cruzado
como de farol5. Mas a noção de "império por convite" também constitui uma parte
importante do retrato histórico (principalmente em relação à Europa), assim
como a aquisição de poder predominante, se não por acidente, então certamente
como resultado da busca de outros objetivos mais importantes, principalmente
ganhar grandes guerras. Mas o que se procurou salientar aqui é que os fatores
de pressão por trás da política norte-americana devem ser entendidos em um
conjunto mais complexo de questões relativas à manutenção do poder, mesmo na
falta de um rival estratégico direto.
A sustentabilidade da hegemonia
Nesta seção serão examinados cinco fatores comumente citados como causas para o
fim dos impérios no século XX: a utilidade declinante da força militar;
resistência ao domínio estrangeiro; mudanças nas próprias metrópoles; mudanças
no ambiente internacional em sua interface legal e moral; e a existência de
oponentes e rivais. Esses fatores também estão por trás de aspectos mais
amplos, como a difusão e descentralização do poder que, para autores como
Hedley Bull e Adam Watson, caracterizaram o período de 1900 até o final da
década de 1970. Nesse sentido, a descolonização e o fim do império foram apenas
um dos elementos da revolta contra a dominação ocidental sobre o resto do
sistema internacional. Outros elementos incluem a luta por soberania
igualitária, igualdade racial, justiça econômica e liberação cultural6. Até que
ponto essa difusão ou descentralização tem sido revertida é, portanto, não só
central para o entendimento do papel dos Estados Unidos, como também para
compreender a natureza e desenvolvimento do sistema internacional de forma mais
geral.
O primeiro fator relaciona-se à utilidade da força militar e aos argumentos
correntes sobre a sua utilidade declinante. Esse era um tema comum dos anos 70,
tanto na literatura mais geral sobre poder e interdependência, como nos textos
mais específicos sobre força militar e sobre o porquê das grandes nações
crescentemente perderem pequenas guerras. Não é necessário deter-se nos
elementos específicos desse debate. Basta dizer que, com a leitura dessa
posição, é possível traçar, claramente, um caminho da certeira dominação, com a
qual os poderes imperiais coletivamente suprimiram a rebelião dos Boxers em
1900, às falhas militares dos impérios europeus na Argélia, sul da África, ou
Indochina, assim como a derrota dos Estados Unidos no Vietnã em 1975, e as
dificuldades encontradas pela União Soviética no Afeganistão de sua invasão em
1979, a sua retirada em 19897.
O poder militar talvez seja a área mais óbvia onde os proponentes da reasserção
hegemônica podem indicar uma mudança significativa e de grande extensão. Tais
argumentos geralmente enfatizam a transformação de tecnologias militares, a
revolução em questões militares e a assombrosa distância que surge entre os
Estados Unidos e todos os outros países, em decorrência das diferenças de novas
tecnologias, dos grandes gastos e da capacidade organizacional. Daí, a ênfase
no impacto de uma ampla gama de tecnologias sobrepostas: o grande crescimento
da capacidade de processar informação e de penetrar a "névoa da guerra" 8; o
crescente raio de ação, precisão e letalidade dos sistemas bélicos; a
emergência de um novo padrão de guerra com forças móveis, flexíveis e
articuladas em rede (para uma clara introdução ver Freedman, 1998). Disso
decorre, também, o argumento que, além de permitir ganhar guerras mais
facilmente, esses desenvolvimentos também serviriam para reduzir o fardo e o
perigo do uso da força militar: devido à redução de baixas, por permitir maior
discernimento, por facilitar a obtenção de apoio doméstico para a guerra, por
tornar mais fácil a obediência ao direito internacional humanitário, e por
diluir a urgência de o país manter alianças e bases militares no estrangeiro.
À luz desses desenvolvimentos, alguns têm tentado revisar, se não reverter, a
histórica trajetória notada acima. Dessa forma, Niall Ferguson compara o atual
poder militar dos Estados Unidos à vitória britânica em Omdurman em 1898,
quando 45.000 dos 52.000 soldados do exército de Mahdi foram mortos com somente
48 baixas do lado britânico (Ferguson, 2003). Logo, também, a tendência de
lembrar as palavras de Hilaire Belloc: Whatever, happens we have got/the Maxim-
gun; and they have not("Aconteça o que for, nós temos a arma máxima; e eles
não"). Para muitos, a experiência dos Estados Unidos na década de 1990,
representou o restabelecimento da utilidade da força de coerção militar a
custos relativos muito baixos: não somente a Guerra do Golfo (1991) envolveu
menos baixas que as esperadas, como as perdas no Haiti, Somália, Bósnia e
Kosovo totalizaram menos que cinqüenta mortes.
Mas, embora esse quadro sugira uma mudança fundamental, a realidade é bem mais
complexa. A primeira resposta é bastante conhecida: se os opositores no campo
de batalha forem racionais, vão escolher evitar lutar em termos que sejam
favoráveis ao mais forte ' daí a noção de resposta assimétrica e o recurso ao
terrorismo, à insurgência e à procura por armas de destruição em massa. As duas
outras razões para dúvida podem ser frouxamente descritas como Clausewitzianas.
Para Clausewitz, o uso bem-sucedido do poder coercitivo relaciona-se ao fim da
motivação do oponente por intermédio de uma complexa mistura de violência
física e moral. O uso bem-sucedido do poder coercitivo envolve a capacidade de
mudar e de controlar as mentes de outros seres humanos ' fazer com que outros
se rendam a sua vontade e aceitem uma visão particular da realidade.
Independentemente de sua eficácia técnica e destrutiva, uma força militar
incapaz de lidar direta e brutalmente com a vontade do oponente, e que relute
em pagar altos custos e baixas, possivelmente não alcançará esse critério
essencial de sucesso (Clausewitz, [1832-37] 1976: especialmente o segundo
capítulo do primeiro livro). A assimetria de comprometimento (entre as guerras
que foram escolhidas versus o compromisso extremo e autodestrutivo do homem-
bomba suicida), continua, portanto, sendo um fator limitador e importante no
poder militar dos Estados Unidos.
A outra dúvida Clausewitziana, ainda mais intensa, advém diretamente do
argumento clássico que o objeto da estratégia não é a vitória e que o único
propósito do sucesso militar é modificar os termos de uma relação política.
Dessa forma, a vitória no campo de batalha deve ser vista somente como um meio
para um fim político. A dificuldade de vincular objetivos militares a
resultados políticos sustentáveis tem sido o aspecto mais importante nos
debates sobre a utilidade da força militar. Também foi central em muitos dos
debates sobre contra-insurgência nos anos 60 e na análise do porquê dos Estados
Unidos terem falhado no Vietnã na década de 1970. Essa questão também aparece
em casos nos quais a "militarização" do conflito pouco ou nada fez para
diminuir ou compensar uma falha geral de ações políticas, cujas raízes são
políticas e sociais, como é o caso da guerra contra as drogas. E ainda, é
fundamental na difícil tarefa de avançar do estágio de manutenção da paz e
imposição da paz para o estágio da reconstrução pós-conflito e state-building.
Isso nos leva ao segundo fator: resistência à dominação estrangeira. A
crescente mobilização política e social das sociedades e povos antes
subordinados foi central para o processo de descolonização. A realidade do
envolvimento externo genérico ou formas mais específicas de dominação
estrangeira direta, combinadas com mudanças inerentes ao desenvolvimento
capitalista, à expansão da educação e à disseminação de idéias sobre liberdade
política, estimularam o desenvolvimento de um nacionalismo anti-colonial. Isso
não ocorreu em todos os lugares e certamente não teve mesmos alcances, mas a
questão crucial é que o sucesso do desenvolvimento de um império carrega em si
as sementes de sua própria destruição. O poder do nacionalismo
anticolonialista, da idéia de autodeterminação nacional e a emergência da
resistência tanto das massas como das elites à dominação estrangeira
representaram mudanças profundas nas estruturas sociais e nas mentalidades
previamente subordinadas desses povos. De muitas formas, isso representou a
ascensão, por todo o mundo, de um processo generalizado e universal de mudança
social e desenvolvimento.
Em alguns casos, as continuidades são patentes e trabalham para reforçar o
argumento sobre as dificuldades do uso da força militar. Confrontadas a
resistências nacionalistas, até os Estados que estão dispostos a arcar com
pesadas baixas, encontram dificuldades no uso da força militar. A Chechênia tem
uma população de somente 2.5 milhões de habitantes, mas em 1994-1995, seu
movimento nacionalista derrotou o exército Russo, e Moscou ainda continua sem
conseguir reaver o controle estável da região, mesmo com o desejo de arcar com
pesados custos e manter a subjugação brutal da região. Outros exemplos incluem
Israel nos territórios ocupados, e a situação no Sri Lanka. O nacionalismo
também complica a busca por padrões estáveis de colaboração. Como notado
anteriormente, os altos custos de envolvimento direto têm consistentemente
levado Estados imperiais e hegemônicos ao uso de formas substitutas de
dominação. Mas o desafio aqui é grande e provavelmente está aumentando: esses
substitutos precisam prover segurança local eficientemente, além de preencher
objetivos de segurança mais amplos (vide o antiterrorismo); também têm que ser
comprometidos com valores, dado o compromisso dos Estados Unidos e de seus
aliados com a democracia e os direitos humanos e as dificuldades de evadir-se
da política transnacional dos direitos humanos; e, igualmente, necessitam
manter tanto a confiança de seus aliados e apoios internacionais ,como aos
sentimentos e necessidades de sua população, da qual suas próprias posições, em
última instância, dependem.
Também é possível indagar o porquê do nacionalismo ter diminuído em
importância. Em parte, esse fenômeno pode ter a ver com o poderoso legado da
visão liberal da descolonização ' a independência dos povos submetidos era
parte dos propósitos do império, mais do que o resultado de um processo de
resistência armada e conflito. Em parte, isso pode ser relacionado com as
suposições liberais implícitas que marcaram tanto o renascimento do
multilateralismo da década de 1990, como a mais recente militância Wilsoniana '
a visão segundo a qual a obtenção de autodeterminação interna relativiza a
necessidade de autodeterminação externa.
Por outro lado, a importância decrescente do nacionalismo pode estar
relacionada à tendência comum de interpretar os padrões de violência mais
perigosos e ameaçadores como novos. Muitos vêem a "nova onda" de terrorismo
transnacional religioso como indicação de uma ruptura decisiva na evolução do
terrorismo realizado por grupos não-estatais. Há, certamente, muita novidade no
que se refere às condições, meios de operação e, em alguns casos, metas e
objetivos. Mas o nacionalismo e a luta por autodeterminação têm sido, por muito
tempo e de forma proeminente, facetas do terrorismo e assim permanecem
(Rapoport, 2004: 46-73). Isso foi evidente no caso do papel que o terrorismo
teve na luta anticolonial e na criação de Estados como Irlanda, Israel, Quênia
e Argélia. Ainda que vários movimentos radicais na década de 1970 tenham se
expressado na linguagem do internacionalismo, metas nacionalistas permaneceram
proeminentes, como no caso de bascos, irlandeses e palestinos. E na chamada
onda religiosa que se desenvolveu no fim dos anos 70, o vínculo bem próximo
entre identidade religiosa e étnica, assim como a relação entre violência
terrorista e a meta de autodeterminação e resistência à dominação estrangeira.
Dessa perspectiva, movimentos terroristas religiosos de natureza claramente
transnacional são exceções. Focalizando o terrorismo suicida, a questão fica
ainda mais clara: "Do Líbano e Israel até Sri Lanka, Caxemira e Chechênia,
todas as campanhas suicidas de 1980 a 2001 foram realizadas por grupos
terroristas que têm como principal objetivo estabelecer ou manter a
autodeterminação para suas comunidades por intermédio da tentativa de compelir
um inimigo à retirada" (Pape, 2002: 344).
Grande parte das teses da questão da reasserção hegemônica depende da crença
que essas ameaças e inimigos são localizadas (como os Estados-pária), ou
personalizadas (como com Saddam Hussein ou Slobodan Milosevic); e que
ideologias de revolta ou resistência legitimadoras ou unificadoras simplesmente
estão ausentes. Não há nenhuma razão para acreditar que a forma específica do
anticolonialismo nacionalista do século XX, deva perdurar indefinidamente. Ao
contrário, o nacionalismo anticolonial deve ser visto como uma ilustração de um
fenômeno mais amplo que pode ser chamado de resistência subalterna. Essa
resistência pode ter alvos difusos (como o 'ocidente' ou a 'globalização') ou
indivíduos detentores de poder local, assim como forças externas; seus
objetivos podem ser bem menos definidos que os dos nacionalistas anticoloniais,
que buscavam a criação de um novo Estado-nação, e pode ser intimamente ligado
ao processo de transnacionalização e desterritorialização9. É possível,
contudo, que fontes mais profundas de convergência e integração (como
globalização e propagação da democracia), e o atrativo soft power dos Estados
Unidos façam a resistência subalterna ao controle direto e a modos
verticalizados de governança bem menos importantes que no passado. Mas há um
grande terreno para questionar tanto a atual negligência do nacionalismo nas
discussões de hegemonia, como a crença que a resistência subalterna e a luta
por reconhecimento por parte dos dominados e marginalizados vão continuar a ser
forças poderosas10. No mínimo, é mister reconhecer e debater explicitamente a
imensa importância do argumento de que algo fundamental mudou.
O terceiro fator a ser considerado refere-se à política interna do poder
metropolitano. A maior parte da historiografia do fim dos impérios concentra-se
nos desenvolvimentos internos da metrópole imperial: a falta de desejo de arcar
com os custos do império, a mudança da guerra (warfare) para o bem-estar
(welfare), assim como o declínio da mentalidade imperial, uma parte tão
importante do funcionamento daquelas sociedades dominantes. O imperialismo
europeu não era caracterizado somente por formas específicas de comportamento
de política externa, mas fundava-se na existência de sociedades e ideologias
extremamente imperialistas, tanto no plano da opinião pública como no da
mentalidade oficial. O debate é colocado comumente em termos da força de
vontade imperial: diz o argumento, que os impérios europeus entraram em colapso
quando os europeus perderam a vontade de dominar e o desejo de arcar com os
custos do império.
Como isso se encaixa no caso dos Estados Unidos? De muitas formas, a posição
dos Estados Unidos parece relativamente favorável. Tanto Kojève como Negri
Hardt estão errados ao sugerir que formações imperiais modernas não têm um
núcleo nacional (Hardt and Negri, 2000). Os Estados Unidos são, afinal, um
Estado-nação imperial com uma capacidade impressionante de mobilização
nacionalista e têm um Estado que tem sido, há muito tempo, bem mais 'forte' do
que a mitologia sugere. Realmente, é a combinação desses traços com as
características não-territoriais e transnacionais de sua projeção de poder que
está na base de seu sucesso e sustentabilidade. Embora haja muitas tensões e
fissuras (especialmente durante seus maiores períodos de expansão, imigração e
desenvolvimento econômico), e apesar das dúvidas recorrentes dos conservadores
(Kennan anteriormente, Huntington mais recentemente), por qualquer critério de
comparação, os Estados Unidos têm sido, e permanecem, um Estado-nação
socialmente efetivo e coeso (Huntington, 2004).
Os pré-requisitos domésticos da hegemonia são complexos e é difícil articulá-
los em uma análise geral. A visão pós-Vietnã de que a política externa dos
Estados Unidos, e especialmente o uso da força, tende a ser severamente
constrangida pela opinião pública, está dando lugar à visão que vê a opinião
pública como muito sensível a baixas, mas não completamente avessa a elas,
estando disposta a apoiar, pragmaticamente, projetos externos factíveis e
compatíveis com valores norte-americanos. Mas o desejo em arcar com os custos
do império em termos de sangue e recursos não é a única forma, nem
necessariamente a mais importante, pela qual os fatores domésticos ganham
relevância ' como nos debates convencionais sobre como suplantar "os fantasmas
do Vietnã". Se, como sugerido acima, a hegemonia refere-se à coerção e ao
consenso, além da capacidade de recompensar aliados e realizar arranjos com
colaboradores, então esse conjunto complexo e mutável de barganhas externas
deve ser internalizado na política doméstica dos Estados Unidos. Dessa forma,
os reais constrangimentos domésticos são muito menos relacionados com a questão
dos custos do que com a grande dificuldade de compatibilizar a dimensão externa
do gerenciamento hegemônico, com o caráter extremamente complexo, fechado e
introspectivo da política doméstica americana.
Em quarto lugar está o papel desempenhado por mudanças no ambiente legal e
normativo. Desse ponto de vista, o progressivo desenvolvimento da luta contra o
império refletiu-se em numerosas mudanças cruciais nas normas dominantes da
sociedade internacional e foi reforçada por elas: o aumento das limitações ao
uso da força, especialmente em relação à conquista, controle forçado e
ocupação; e a crescente centralidade da norma de autodeterminação. De várias
formas, mudanças legais e normativas na década de 1990, pareceram estar andando
na direção oposta. Exemplos disso incluem a crescente aceitação da necessidade
de repensar e reconceitualizar soberania; a crescente concordância com o
argumento segundo o qual os novos desafios da segurança necessariamente
acarretam o envolvimento profundo nos assuntos de outros Estados, especialmente
os mais fracos; o estabelecimento de administrações internacionais para
administrar territórios, cuja soberania foi suspensa; o retorno mais amplo em
direção a idéias sobre protetorados e noções graduais de soberania, muito
familiares aos textos jurídicos do final do século XX; e a propagação de idéias
sobre intervenção humanitária, segurança humana e a responsabilidade de
proteção.
No entanto, devem-se notar quatro questões. Primeiramente, embora possa ser
correta a afirmação de que o caráter da ordem legal reflete padrões do poder
hegemônico e o interesse das grandes potências, também é correto afirmar que
controlar uma ordem legal cada vez mais complexa e pluralista é bem mais
difícil hoje que há cem anos, quando o direito internacional era feito pelas
grandes potências imperiais e para elas. Essa é uma razão estrutural para
explicar o crescimento da frustração dos Estados Unidos com o direito
internacional. Em segundo lugar, as mais importantes limitações normativas
ainda estão presentes, especialmente em termos de normas contra a conquista e a
favor da autodeterminação. Ainda, outros desenvolvimentos normativos,
principalmente no campo dos direitos humanos, têm complicado em grande medida o
uso da coerção. Certamente é verdade que a guerra ao terror representou uma
profunda mudança na questão dos direitos humanos em várias partes do mundo, mas
é também certo que a reação a esses desafios demonstra pelo menos um certo grau
de assentamento da cultura dos direitos humanos, que se tornou uma parte
central da visão liberal solidarista da sociedade internacional.
Em terceiro lugar, para tirar vantagens dos potenciais benefícios da ordem
legal, os Estados Unidos têm que se engajar nela. De fato, visto de fora, a
característica mais marcante do período pós-11 de Setembro foi a falha daquele
país em engajar-se de forma mais sistemática com a ONU e o direito
internacional, em uma época em que vários aspectos da ordem legal estavam
caminhando a seu favor. Mas, em quarto lugar, e em direção oposta, os Estados
Unidos escolheram dois conjuntos de normas para os quais o consenso na
sociedade internacional é muito difícil de se conseguir ' certamente se for
fora de um comprometimento mais profundo com processos e procedimentos. O
primeiro conjunto tem a ver com o uso da força e a enunciação de uma doutrina
expandida de preempção e prevenção, que representa claramente uma mudança
profunda nos atuais entendimentos legais sobre a justificativa do uso da força.
O segundo conjunto é o da noção emergente de soberania qualificada ou
condicional, que precisa de definições mais nítidas: por exemplo, por meio da
argumentação de que alguns tipos de Estados perderam o direito soberano de
possuir certos tipos de armamentos, ou de que em casos de soberania condicional
ou qualificada é legítimo intervir para mudar o regime político interno.
Finalmente, há a questão sobre os oponentes e potenciais desafiadores. Como foi
sugerido anteriormente, esse não é o único fator que precisa ser considerado,
mas seu exame é inevitável. O fim dos impérios europeus esteve ligado
intimamente à existência de um equilíbrio de poder global e à dinâmica de
competição entre as superpotências, dinâmica essa que gerou oportunidades para
os Estados mais fracos e os movimentos nacionalistas. Igualmente, quaisquer
seja o papel atribuído à pressão externa, o fim do império soviético só pode
ser entendido dentro do contexto da Guerra Fria e da rivalidade bipolar. Sem
pretender apresentar um quadro completo, duas posições podem ser identificadas.
A primeira posição é alta, mas não exclusivamente, baseada na noção de poder.
Essa explicação assenta-se em três proposições. Em primeiro lugar, que a
dominação dos Estados Unidos é estável devido à absoluta extensão do poder
americano e à impossibilidade de existir qualquer desafio ou desafiante a esse
poder. Em segundo lugar, que é possível negociar suficiente apoio para as
posições dos Estados Unidos. Em alguns casos, o apoio vem da dependência na
área da segurança (dadas as falhas dos mecanismos de segurança coletivos), da
importância do poder dos Estados Unidos nos equilíbrios de poder regionais, e
do argumento que somente os Estados Unidos podem lidar com desafios comuns,
como o terrorismo e as armas de destruição em massa. Em outros casos, o apoio
deriva do poder econômico norte-americano, tanto em termos de incentivos como
de constrangimentos. E, em terceiro lugar, o poder dos Estados Unidos é estável
porque ele realmente tem por base propósitos legítimos. É interessante notar
que, até mesmo entre os neoconservadores, os argumentos sobre legitimidade têm
se tornado mais proeminentes, tanto a legitimidade de resultados, referente aos
bens públicos que só os Estados Unidos podem prover ao mundo, como também a
legitimidade de valores sociais compartilhados, especialmente a liberdade e a
democracia (por exemplo Kagan, 2004).
No entanto, esse argumento encontra sérias dificuldades. Primeiro, ele vê a
política do equilíbrio de poder unicamente em termos de desafios e desafiadores
militares. O problema do poder não-equilibrado não é que ele vá,
inevitavelmente, pôr seus tanques em operação. O que ocorre é que o poder
radicalmente não-equilibrado vai permitir que o mais poderoso imponha leis aos
menos poderosos, distorcendo os termos de cooperação a seu favor, impondo seus
próprios valores e modus operandi, e minando os procedimentos dos quais depende
a cooperação estável e sustentável. É por essa razão que a notada necessidade
de "conter" os Estados Unidos atualmente é a resposta racional pluralista, não
precisando ser relacionada a qualquer anti-americanismo político ou cultural e,
menos ainda, à noção de que os Estados Unidos representam uma "ameaça" num
sentido militar ultrapassado. Ainda que persista apenas como pano-de-fundo, o
equilíbrio de poder continua a ter relevância e, em relação a isso, não é
coincidência que dois dos mais elaborados exemplos de sucesso na construção de
instituições, a União Européia e a Organização Mundial de Comércio, reflitam
relações de poder relativamente equilibradas.
O segundo problema com esse argumento é que minimiza o desejo dos principais
Estados afetados em desenvolver novas formas de equilíbrio para limitar a
potência norte-americana. Enquanto a possibilidade de um equilíbrio mais
profundo possa estar fora de cogitação, esse não é o caso de exercícios de
equilíbrio mais limitados e leves. Portanto, rivais potenciais certamente têm
estado dispostos a realizar acordos com os Estados Unidos, mas eles também se
dispõem a complicar e aumentar os custos das políticas norte-americanas em
algumas instituições internacionais (pela negação de legitimidade), e a
desafiar as preferências dominantes em outras (como os países em
desenvolvimento na OMC). E, terceiro, as pretensões de legitimidade não parecem
ganhar adeptos em grande parte do mundo, mesmo entre aqueles que compartilham
os mesmos valores políticos e culturais.
Uma forma alternativa de observar as escolhas estratégicas do hegemon é no
âmbito dos esforços para constitucionalizar seu poder e ganhar a aceitação de
sua proeminência. Essa idéia é antiga. Para Aron, por exemplo, a escolha para
um potencial hegemon é clara: "Ou uma grande potência não vai tolerar a
igualdade, e deve então buscar o último grau de império, ou ele outorga-se a
posição de primazia entre as unidades soberanas, tendo que ganhar a aceitação
dessa proeminência" (Aron, 1966: 70). Nesse último caso, é crucial a idéia da
auto-restrição estratégica e o papel das instituições. Se a potência dominante
deseja manter sua posição predominante, então ela deve agir com essa auto-
restrição estratégica para prevenir a emergência de potências rivais. Dessa
forma, um hegemon racional vai agir com auto-restrição e limitações de ordem
institucional de forma a diminuir a percepção de ameaça por parte de outros
Estados.
John Ikenberry fornece uma das mais claras explicações dessa lógica. Em todos
os seus trabalhos recentes, ele tem enfatizado o caráter distinto, aberto e
institucionalizado da hegemonia dos Estados Unidos e da barganha "liberal" que
Washington foi capaz de realizar para lidar com as "incertezas do poder
americano": Estados asiáticos e europeus concordam em aceitar a liderança
americana e operar dentro de um sistema político-econômico acordado. Em troca,
os Estados Unidos abrem-se e atam-se aos seus parceiros, construindo uma
coalizão institucionalizada de parceiros e reforçando a estabilidade dessas
relações de longo prazo, tornando-se mais 'user friendly' ' isto é, jogando de
acordo com as regras estabelecidas e criando processos políticos contínuos com
esses Estados que facilitam a consulta e a tomada de decisões conjunta
(Ikenberry, 2001a: 27; e Ikenberry, 2001b).
Ainda é cedo para julgar se os Estados Unidos vão ser capazes de restabilizar a
sua hegemonia por essa rota; mas existem três questões que serão cruciais. A
primeira relaciona-se com o grau em que o engajamento institucional norte-
americano é genuíno. É suficiente, como Richard Betts tem argumentado, para
Washington ir "por intermédio de moções de consulta, apoiando retoricamente as
instituições internacionais mesmo que ele as menospreze em última instância"?
(Betts, 2005: 13). Afinal de contas, fora do Atlântico Norte, até que ponto
Washington tem desejado algo minimamente semelhante a um genuíno esforço de
consulta ou "processo decisório conjunto"? A segunda é o grau pelo qual o
enredamento institucional com o Estado dominante pode enfraquecer, ao invés de
fortalecer, outros Estados. Sim, existem grandes incentivos que pressionam
Estados fracos em direção às instituições, mas também há um ponto no qual os
valores e os interesses representados pelas instituições são extremamente
favoráveis aos mais poderosos, ou no qual os procedimentos para mitigar a
desigualdade de poder não podem ser utilizados de forma efetiva pelos mais
fracos (ou podem facilmente ser contornados pelos mais fortes). A terceira
questão relaciona-se com o balanço de satisfação e com a forma pela qual esse
balanço é, ou não, visto como legítimo por um conjunto consideravelmente amplo
da opinião política. A definição clássica de grande potência, afinal, é aquele
Estado que está disposto a ter uma concepção ampla de seus próprios interesses
e tem por objetivo criar um sistema no qual a maioria dos Estados e indivíduos
se vêem como tendo algum grau de participação.
Conclusões
As fontes de poder dos Estados Unidos são de fato enormes. Mas o que é mais
notável é a instabilidade desse poder, suas incertezas e a dificuldade perene
de se traduzir poder em resultados desejados, especialmente duráveis em um
mundo cada vez mais complexo. Na medida em que os Estados Unidos buscam uma
concepção rígida e exclusivista de seus próprios interesses e propõem uma
concepção estreita e hegemônica de ordem, então é possível gerar não uma Pax
Americana, mas sim um império da insegurança, tanto para si mesmos como para
outros. Os desafios às estruturas da sociedade internacional provavelmente se
tornarão mais sérios e as dificuldades de reparos institucionais ficarão mais
difíceis. Mas, mesmo se entrarmos em um período de descompressão hegemônica,
então precisaremos nos perguntar o quanto os fatores examinados nesse trabalho
também complicam a busca por alternativas. Afinal, é uma ilusão dos críticos da
administração Bush que possa haver uma alternativa multilateral simples, pronta
e esperando para ser implantada. Nesse sentido, a legitimidade do
multilateralismo liberal da década de 1990, já foi questionada por muitos
Estados (e movimentos sociais), com o desenrolar da década. Para esses, a
retórica do multilateralismo liberal encobre seu real caráter hierárquico,
prescritivo e frequentemente coercitivo. Os resultados substantivos pareceram
estar em favor do mais poderoso: segurança coletiva havia tornado-se segurança
seletiva; a agenda de direitos humanos beneficiava a democracia, e direitos
civis e políticos, mas negligenciava direitos econômicos e sociais, e ignorava
pedidos por maior justiça econômica; e, apesar de a globalização econômica ser
altamente promovida, pouca atenção era dada às suas insatisfações e
desvantagens. A linha-dura hegemônica do "nós podemos fazer isso sozinhos" está
claramente equivocada. Mas a versão hegemônica liberal, "nós podemos fazer isso
juntos" depende de quem 'nós' somos, do que 'isso' significa, e do que se quer
dizer com 'juntos'.