O Brasil e o regionalismo continental frente a uma ordem mundial em transição
Introdução
Durante quase toda a segunda metade do século XX, a política externa brasileira
foi marcada por duas constantes - a preocupação com o desenvolvimento econômico
e, no contexto da Guerra Fria, a fidelidade à aliança ocidental. Era, em última
análise, a política internacional de um país em desenvolvimento ligado ao bloco
ocidental. Inevitavelmente, o peso relativo atribuído a cada um daqueles
condicionantes básicos, a percepção de como os dois interagiam e a maneira de
conciliá-los variou de acordo com o jogo das forças políticas internas,
determinando conseqüentemente algumas oscilações numa linha de atuação
diplomática que, na maior parte do período, manteve, porém, um considerável
grau de coerência.
A década de 1990, cujo início praticamente coincidiu com a implosão do império
soviético e com o desaparecimento da URSS, presenciou mudanças algo paradoxais
na nossa política internacional. Com o fim da Guerra Fria, a fidelidade
política ao bloco ocidental perdera sua razão de ser. Em ampla medida, ela foi,
entretanto, substituída pela adesão do país ao pensamento econômico de
Washington e, conseqüentemente, por uma nova percepção do papel do Estado na
promoção do desenvolvimento econômico. A fidelidade político-ideológica cedeu,
assim, lugar à afinidade econômico-doutrinária, e as duas constantes
mencionadas no parágrafo anterior desapareceram da agenda diplomática
brasileira como condicionantes autônomos - e às vezes conflitantes - de nossa
atuação externa, convergindo na prática para uma ampla aproximação política e
econômica com os Estados Unidos e "uma certa indefinição sobre o papel
internacional do Brasil".1
Em princípios deste século, um novo governo assumiu o poder com uma visão
internacional distinta e uma plataforma de política externa muito mais
assertiva do que aquela que prevalecera na década anterior. Tratava-se agora de
"garantir uma presença soberana do Brasil no mundo"2 e de fazer da ação
diplomática, "antes de tudo, um instrumento do desenvolvimento nacional"3. Esse
ativismo voltado para o desenvolvimento econômico vinha também marcado por uma
preocupação regionalista, que já não hesitava em comprometer-se com o
fortalecimento institucional do Mercosul - que deve, "obviamente, dotar-se de
uma política externa comum" - e com "a integração da América do Sul em seu
conjunto." No âmbito sul-americano, a assertividade é, pois, temperada pela
aceitação de uma institucionalidade forte, que inevitavelmente criaria limites
à liberdade de atuação do país. Trata-se, pois, de uma atitude a um tempo
ousada e cautelosa, que preconiza uma institucionalização necessariamente
limitativa da nossa liberdade de atuação, mas não hesita, diferentemente do
passado, em afirmar uma disposição de liderança regional que, no âmbito do
Mercosul, deverá, entretanto, conformar-se às normas das instituições que se
pretende criar.
A nova assertividade da política externa brasileira projeta-se também para fora
do âmbito continental, ao proclamar a intenção de Brasília de contribuir para a
democratização das relações internacionais e estimular "os incipientes
elementos de multipolaridade da vida internacional contemporânea". Para tanto,
caberia manter fortes vínculos bilaterais tanto com os grandes países
desenvolvidos quanto com outros países em desenvolvimento de maior expressão
geopolítica e econômica. Tal aproximação visaria não apenas a benefícios mútuos
diretos, mas também à cooperação em organismos multilaterais, com vistas à
consecução daqueles mencionados objetivos mais amplos de reforma da vida
internacional. A criação do G-20, às vésperas da reunião ministerial da
Organização Mundial de Comércio (OMC), em Cancun, e a do G-4, no âmbito da ONU,
com vistas à reforma do Conselho de Segurança, no qual nosso país aspira a um
assento permanente, ilustram a nova orientação da política externa brasileira.
Em suma, o Brasil deixou de apresentar-se apenas como membro ativo do grupo dos
países em desenvolvimento para assumir uma posição de potência emergente4, em
busca da situação a que se considera com direito na comunidade internacional.
O objetivo deste artigo não é, porém, às vésperas da próxima eleição
presidencial, examinar a política externa do governo Lula ou a maneira como vem
sendo executada. Trata-se aqui de fazer uma reflexão sobre em que medida a
mudança das condições mundiais e nacionais justifica que, sem esquecermos a
condição de país em desenvolvimento que ainda é a nossa, assumamos, no nosso
continente e no mundo, uma posição de potência emergente, independentemente de
quem ou de que partidos vençam as eleições de 2006.
Uma certa perplexidade
A dificuldade em precisar o que caracteriza a ordem mundial desde meados do
século passado criou a tendência a rotular cada fase em relação ao passado mais
recente - mundo pós-Segunda Guerra Mundial, pós-Guerra Fria, pós-moderno - ou
de acordo com a divisão internacional de poder, real ou percebida - mundo
unipolar, bipolar... Seguindo tal tendência, seria igualmente válido falarmos
de um mundo pós-bomba atômica, já que foi o desenvolvimento deste artefato
bélico e a demonstração prática de seu poder destrutivo sobre os infelizes
habitantes de Hiroshima e Nagasaki que determinou uma das principais
características políticas do período considerado - a ausência de enfrentamento
militar entre as grandes potências.
A certeza de que uma guerra entre potências nucleares resultaria, para ambos os
contendores, numa destruição tamanha que seria difícil falar em vencidos ou
vencedores levou à eliminação do choque bélico como forma extrema de solução de
diferenças entre elas. Pela sua própria natureza, não se poderia aplicar a um
conflito militar com armas atômicas a noção de Clausewitz de que a guerra é a
continuação da política por outros meios. A expressão Guerra Fria descreve
sinteticamente tal estado de coisas: uma situação na qual duas superpotências
viviam em constante enfrentamento político, mas sempre com o cuidado de evitar
situações que tornassem um choque militar inevitável ou altamente provável. A
crise de Berlim, a atitude de Washington em relação aos seus aliados quando do
apoio militar anglo-francês a Israel, em 56, ou a retirada dos mísseis
soviéticos de Cuba, no começo da década de 1960, são exemplos de casos em que
se evidenciou esse cuidado de evitar o abismo. Entre Estados, a força militar
das grandes potências passaria a ser usada apenas contra países menores,
desprovidos de armamento nuclear.
A assinatura da Carta das Nações Unidas consagrou juridicamente tal situação ao
reservar para o Conselho de Segurança o monopólio do uso internacional da força
e atribuir o direito de veto a seus cinco membros permanentes - que eram ou
logo se tornariam potências nucleares "legais". Daí em diante, o uso
internacional da força militar só seria juridicamente válido em casos de
legítima defesa ou quando tivesse a aquiescência consensual das potências
nucleares.
Para a comunidade internacional, tal estado de coisas criava, porém, um dilema.
Aos Cinco Grandes, interessava - e interessa - manter o oligopólio do poder
nuclear. Para isso é indispensável evitar que outros Estados venham a dispor de
armas atômicas e dos meios de lança-las ou, para usar o jargão que se tornou
corriqueiro, é indispensável impedir a "proliferação" de tais armas. Aos
demais, entretanto, interessa, conforme o caso, a obtenção de armamento nuclear
próprio e dos vetores necessários ao seu lançamento sobre os alvos escolhidos
ou a eliminação total desse tipo de armas, inclusive das ogivas e mísseis em
mãos dos Cinco Grandes. Esta última alternativa tem-se revelado, porém,
inexequível. Na prática, o que parece estar ocorrendo é o gradual desgaste do
objetivo de "não-proliferação" e o surgimento de quatro categorias de Estados:
a) aqueles que possuem "legalmente" armas nucleares; b) aqueles que não estão
ligados ao Tratado de Não-Proliferação, mas são considerados pelos grandes como
suficientemente úteis ou confiáveis (Índia, Israel, Paquistão) para que seu
arsenal atômico seja de facto aceito; c) aqueles que, embora pouco confiáveis,
são considerados demasiado perigosos para serem facilmente coagidos a
"desnuclearizar-se" (Coréia do Norte e, no futuro, talvez o Irã); d) os não-
nucleares. Felizmente, parece relativamente pequeno o número de países que não
só sentem a necessidade como têm as condições econômicas, técnicas e políticas
de adquirir armamento nuclear e os respectivos meios de lançamento. Por outro
lado, torna-se crescente o risco de que algum artefato dessa natureza - mesmo
rudimentar, como as chamadas bombas sujas - caia em mãos de grupos terroristas.
Paralelamente, o desenvolvimento da tecnologia militar convencional alcançou um
nível em que é possível a um país mais avançado, sem sofrer quaisquer baixas,
infligir danos insuportáveis a outro que não disponha dos mesmos recursos. Os
bombardeios da Sérvia pelas forças da Otan, que culminaram com a entrega de
Slobodan Mlosevic a um tribunal internacional, ilustram bem tal situação. É
claro, entretanto, que esse tipo de tecnologia bélica só está ao alcance de
países que dispõem de uma base econômica e técnica suficientemente sólida para
sustentá-la.
Em suma, mudaram a natureza do poder militar e, conseqüentemente, as posições
políticas de nações que se tinham historicamente habituado a ver nos conflitos
bélicos a forma extrema de acerto das suas controvérsias. Hoje, potências
nucleares não se guerreiam porque isso equivaleria a um pacto de suicídio
conjunto. Em princípio, as armas atômicas são, pois, mantidas e desenvolvidas,
não para serem usadas, mas para dissuadir outras potências nucleares de usarem
as delas. Por sua vez, as potências - menores que sabem que só em
circunstâncias absolutamente extremas seriam alvo de um ataque nuclear - já não
têm o recurso de desenvolver uma força militar convencional capaz de infligir
perdas inaceitáveis a um eventual agressor mais poderoso, que utilize armas
também convencionais de última geração. Tal política de defesa seria inútil
contra um inimigo capaz de causar danos incomensuráveis ao país mais débil sem
expor suas próprias forças em enfrentamentos diretos.
Um mundo em que as grandes potências militares deixaram de fazer a guerra umas
as outras, mas onde, em conjunto ou isoladamente, podem, praticamente sem
sofrer perdas humanas, levar a destruição a países mais fracos pareceria o
terreno ideal para o exercício da tirania desenfreada dos mais poderosos. No
entanto, embora subsista, como sempre, a prevalência dos mais fortes, a
dominação política aberta tornou-se menos freqüente, tendo praticamente
desaparecido o colonialismo tradicional. A preeminência dos poderosos passou a
perseguir objetivos distintos e a assumir formas bem mais sutis.
Por um lado, valores como a auto-determinação dos povos e o respeito aos
direitos humanos tornaram-se crescentemente aceitos internacionalmente e,
conseqüentemente, sua violação tende a ser rejeitada pela opinião interna dos
grandes Estados, exceto em situações percebidas como de ameaça à própria
segurança. Assim, excluídos os casos de nacionalismo exaltado ou de
fundamentalismo religioso, os povos dos países mais avançados - e poderosos -
parecem mais interessados na defesa de seu padrão de vida e no respeito aos
seus próprios valores do que na glória de conquistas militares. Isso é
particularmente verdadeiro nas sociedades democráticas, como bem ilustra a
reação da opinião pública americana em relação ao governo Bush à medida em que
se foram revelando a falácia dos motivos alegados para o ataque ao Iraque e a
dificuldade em atingir os objetivos declarados. Frente a esse conjunto de
circunstâncias técnicas e políticas, parece válida a ponderação de que "a
guerra não se tornou impossível, mas é muito menos aceitável hoje do que era há
um ou mesmo há meio século."5
Num mundo em que tradicionalmente a noção de poder nacional tendia a ser
equiparada à de poderio militar, todas essas mudanças suscitam uma reflexão
sobre os atuais condicionantes do poder nacional. Parece evidente que o poder
econômico se tornou muito mais importante do que no passado, não só porque é o
alicerce indispensável à manutenção de qualquer máquina bélica moderna, mas
também porque mesmo as economias mais poderosas enfrentam um problema de
opções. Isso ficou patente já nas primeiras décadas da Guerra Fria, quando
Washington optou por, ao mesmo tempo, manter a liderança político-militar do
bloco ocidental e promover a recuperação econômica dos seus principais aliados,
essencialmente a Europa Ocidental e o Japão. A conseqüência mais evidente foi a
erosão relativa da preeminência econômica dos Estados Unidos, com o resultante
fim da conversibilidade do dólar em ouro, no começo da década de 1970, a
desvalorização da moeda americana e, dois anos depois, o colapso formal do
sistema de paridades fixas estabelecido em Bretton Woods. Já na década de 1990,
o mundo assistiu à Guerra do Golfo, um empreendimento político-militar liderado
pelos Estados Unidos, levado a cabo com instrumentos bélicos dominantemente
americanos, mas para cujos gastos financeiros Washington arcou com uma
percentagem bastante modesta. Em suma, a Europa e o Japão optaram pela própria
prosperidade, deixando aos EUA a preeminência estratégica e a principal
responsabilidade pela segurança do Ocidente, mesmo ao custo político de
financiarem a liderança americana sobre eles mesmos.
Tudo isso nos deixa sem uma resposta clara sobre o que se entende por poder e
quais os seus fundamentos no âmbito internacional, algo relevante no contexto
da presente reflexão. Para facilidade de análise, poderíamos partir da
conceituação simplificada proposta por Joseph Nye, para quem ele seria "a
capacidade de obter os resultados desejados e, se necessário, mudar o
comportamento dos outros para obtê-los."6 Tratar-se-ia, portanto, não apenas da
capacidade de auto-realização do país (seu desenvolvimento econômico e social,
por exemplo), mas também da sua capacidade de influenciar o comportamento dos
demais, de modo a criar um ambiente favorável à consecução dos próprios
objetivos.
Neste último sentido, ele tem sido tradicionalmente equiparado ao peso militar
e/ou econômico relativo de cada país, no âmbito regional ou mundial. Ambos
representam o que tem sido denominado de poder duro, a capacidade de pressionar
o mais fraco para leva-lo curvar-se ao desejo do mais forte. Também existe,
entretanto, o chamado poder brando, que consiste na capacidade de liderar
sobretudo pelo exemplo e pela persuasão. Isto implica em que os liderados
percebam os objetivos preconizados pelo líder como conducentes ao bem comum,
pelo menos em suas linhas gerais. Essencialmente, foi esse o tipo de liderança
exercido pelos Estados Unidos sobre seus aliados da Otan durante a Guerra Fria.
Apesar de divergências tópicas, prevalecia o sentido de parceria para a
consecução de objetivos maiores de segurança frente à ameaça soviética.
Neste começo de século XXI, terminada a rivalidade entre as duas
superpotências, que condicionara a ordem mundial entre o término da Segunda
Guerra Mundial e o fim da década de 1980, reina uma certa perplexidade quanto
ao que seja a ordem atual e ao papel que nela cabe tanto aos protagonistas
tradicionais como aos países que foram assumindo o papel de potências
emergentes, entre os quais o Brasil.
Atores em busca de um papel
Durante mais de quatro décadas a atenção da comunidade internacional esteve
voltada dominantemente para aquela rivalidade, que não só condicionava a
segurança mundial, mas também oferecia uma opção política e ideológica aos
países menos engajados, geralmente do terceiro mundo. Isto não significa que
não estivessem ocorrendo desenvolvimentos de monta não diretamente relacionados
com tal rivalidade. Talvez uma das mais interessantes tenha sido o crescimento
do peso econômico relativo daqueles a que hoje se tornou usual chamar de países
emergentes. Assim, já num ensaio publicado em 987, Bowman Cutter refere-se a um
grupo que chama de "new Big 7" (China, Índia, Indonésia, Brasil, Coréia do Sul,
Tailândia e Rússia), os quais, na sua estimativa, responderão, nos vinte anos
seguintes, por mais de metade do crescimento mundial, enquanto os atuais "7
Grandes" serão responsáveis por menos de um quarto. E mais. Tomado em conjunto,
o PIB daqueles novos Sete, segundo o mesmo autor, será, ao fim daquelas citadas
duas décadas, maior do que o dos atuais. Evidentemente, não se pode atribuir
uma grande precisão a tais extrapolações, mas o fato concreto é que, em 2003,
segundo comparação publicada por The Economistcom base na paridade do poder de
compra das moedas, das dez maiores economias mundiais (Estados Unidos, China,
Japão, Índia, Alemanha, França, Grã-Bretanha, Itália, Brasil e Rússia), quatro
eram países em desenvolvimento8. Num texto mais recente9, a mesma revista
assinala que, em 2005, as "economias emergentes produziram pouco mais da metade
do produto mundial medido pela paridade do poder aquisitivo das moedas" e
também "responderam por mais da metade do aumento do PIB global em termos de
dólares correntes". No mesmo sentido, caberia recordar uma apreciação ainda
mais recente de John Major, ex-primeiro-ministro do Reino Unido e hoje
conselheiro do Crédit Suisse, para quem, "nos últimos sessenta anos, a economia
mundial cresceu puxada por três motores: EUA, Japão e União Européia. Em breve
os motores serão seis: os três de antes mais China, Sudeste Asiático e Índia. E
talvez alguns outros países emergentes, como o Brasil. Isso significa que já
não teremos mais uma nação tão dominante. Os EUA continuarão os maiores, e são
infinitamente mais poderosos em termos militares, mas serão os primeiros entre
pares."10 Em sentido semelhante, a expressão Bric, referindo-se às maiores
economias emergentes - Brasil, Rússia, Índia e China - , tornou-se corriqueira,
e os quatro, com suas potencialidades e mazelas, passaram a ocupar
crescentemente a atenção dos países da OCDE.11 As implicações de tais
desenvolvimentos não eram, porém, imediatas e, dada a polarização de forças
prevalecente durante a Guerra Fria, a atenção dos estadistas da época tampouco
tendia a deter-se na relevância que eles poderiam ter a mais longo prazo.
Assim, foi preciso que desaparecesse o bipolarismo da ordem mundial para que se
colocasse a questão de como se deveria estruturar uma comunidade internacional
tão diferente da existente ao término da Segunda Guerra Mundial.
Inicialmente, Washington tomou uma iniciativa retórica, de sabor wilsoniano, em
favor do estabelecimento de uma "nova parceria de nações", baseada no respeito
ao direito internacional e numa divisão eqüitativa de responsabilidades entre
os Estados12. Logo se tornou evidente, porém, que tal parceria - e o genuíno
multilateralismo que ela implicaria - teriam de ceder o passo às realidades do
poder e ao pragmatismo da política internacional. Continuavam, portanto, sem
resposta as questões básicas suscitadas pelas mudanças ocorridas na ordem
mundial que se tratara de estabelecer mais de quatro décadas antes. Em que
consistia o poder internacional nas novas circunstâncias do mundo? Quem o
detinha? De que maneiras seus detentores podiam utilizá-lo e com que
conseqüências para a comunidade internacional? Em suma, que ordem mundial
substituiria o bipolarismo defunto?
Para uns, como Fukuyama, o fim do império soviético e o fracasso da ideologia
por ele encarnada levara ao fim da história; para outros, como Huntington,
iniciava-se um período de choque entre civilizações; para outros ainda, como
Joseph Nye, o mundo vive uma realidade extremamente complexa, que não permite
esquematizações simplistas. Dentro dos objetivos já mencionados deste artigo,
não cabe examinar as diferentes teses sobre a atual ordem mundial, mas tão
somente refletir sobre a posição do Brasil num mundo em transição.
Hegemonia em cheque?
Depois de várias décadas, em que duas superpotências disputaram a hegemonia
mundial, criando na prática uma ordem internacional bipolar, é natural que, com
a desaparição de uma delas, a outra se considere o centro da nova ordem e passe
a atuar no sentido de obter que os demais a reconheçam como tal. Por outro
lado, não é menos compreensível que muitos paises que tinham seguido sem
maiores questionamentos a liderança de Washington, vista como necessária à
segurança do Ocidente face à ameaça soviética, passem, desaparecido este
perigo, a exibir maior desenvoltura em suas políticas externas. Essa nova
atitude tem-se manifestado, em diferentes graus, tanto entre grandes potências
tradicionais como entre países emergentes que, no período considerado, haviam
adquirido um peso especifico de que absolutamente não dispunham em meados do
século passado. Assim, pode-se dizer que a ordem mundial formalmente vigente,
tal como refletida em instrumentos como a Carta das Nações Unidas e o Tratado
de Não-Proliferação, já não satisfaz inteiramente a quem quer que seja, mas
tampouco existe qualquer indício de consenso sobre como torná-la mais
consentânea com a realidade atual.
Para Joseph Nye, o jogo internacional de poder pode ser hoje comparado a uma
complexa partida tridimensional de xadrez. No primeiro tabuleiro, onde está em
causa o poder militar, é possível falar em um mundo unipolar, dada a enorme
superioridade quantitativa e tecnológica dos Estados Unidos, capaz de enfrentar
com êxito qualquer inimigo potencial ou aliança provável de adversários. No
segundo, onde se disputa o poder econômico, já não existe uma potência
igualmente avassaladora, prevalecendo, assim, uma situação de multipolaridade.
Paralelamente, num terceiro tabuleiro, desenvolve-se um número crescente de
atividades transnacionais legais e ilegais, que vão desde a atuação de grandes
corporações multinacionais até o terrorismo, passando pelo narcotráfico e a
lavagem de dinheiro. Embora de nível infra-estatal, sua relevância para a
política internacional é inegável. Nesse terceiro tabuleiro, seria fútil,
entretanto, falar de unipolarismo, multipolarismo ou qualquer outra forma
razoavelmente estável de distribuição internacional de poder.
Para atuar dentro desse quadro complexo, os atores disporiam, em diferentes
graus, de um poder duro, essencialmente militar ou econômico, que
possibilitaria o exercício de pressões diretas do mais forte sobre o mais
fraco, mas haveria também - e não menos relevante - um poder brando, que se
exerceria sobretudo pela cooperação e pelo exemplo. A eficácia relativa de cada
uma dessas formas de poder dependeria do objetivo que se tenha em mira. Assim,
a relevância do poder militar para a política externa não desapareceu, porém
sua importância diminuiu, não apenas pelas razões já apontadas acima, mas
também porque um número crescente de problemas exige um grau de cooperação
internacional inalcançável apenas pelo uso do poder duro.
Em tal contexto, o maior ou menor êxito da atuação internacional dos Estados
Unidos, como maior potência mundial, muito dependerá da sua habilidade em
utilizar os enormes recursos ao seu dispor. Não apenas - ou sequer
dominantemente - os militares, mas também o seu peso econômico e os aspectos
positivos do seu sistema político-social, bem como sua capacidade de difusão
cultural. Em outras palavras, muito dependerá de como Washington administrará a
delicada passagem da hegemonia para a liderança, quando - parafraseando John
Lewis Gaddis ao referir-se ao poder brando - se tratará de conseguir que outros
queiram o que o líder quer e não apenas que façam o que ele deseja que seja
feito.
Regionalismo e afirmação nacional
Por definição, um país em desenvolvimento que aspira a uma maior projeção
externa - seja em âmbito regional, seja internacional - não tem os meios de
conseguir tal objetivo sem o concurso de outros. Tal circunstância é um dos
fatores que têm levado à multiplicação dos arranjos econômicos regionais. Eles
podem contribuir para aumentar, ainda que em diferentes graus, o peso
específico dos participantes individuais. Podem também ser utilizados para
inibir uma potência de dentro ou de fora da área de exercer uma influência
considerada excessiva em assuntos da região. A primeira reunião de Cúpula da
Ásia Oriental, realizada na Malásia, em dezembro do ano passado, é um bom
exemplo deste último caso. Nela estiveram presentes os dez membros da
Associação das Nações do Sudeste da Ásia (Asean, na sigla em inglês), a China,
o Japão e a Coréia do Sul. Também foram convidados a Austrália, a Índia e a
Nova Zelândia, mas não os Estados Unidos. Aparentemente, a maioria concordou em
evitar uma presença americana que poderia perturbar as bases de uma "comunidade
da Ásia oriental" dotada de "valores comuns" e de uma "identidade própria".13
Dados os laços políticos entre os EUA, e alguns dos países presentes, não se
poderia falar de hostilidade em relação a Washington, mas de um aparente desejo
de limitar uma intrusão considerada potencial ou atualmente excessiva, pelo
menos por alguns países da região.
A situação no nosso continente - onde o espírito regionalista tem assumido
diferentes formas - apresenta alguma analogia com a mencionada problemática
asiática. Em 1823, ao enviar sua famosa mensagem ao Congresso americano, o
presidente James Monroe assumiu unilateralmente a posição de patrono das
Américas. Surgia assim o pan-americanismo, uma forma de regionalismo
paternalista que, na época, oferecia vantagens circunstanciais àqueles países
do continente que ainda lutavam por afirmar sua independência recente em
relação às metrópoles européias. Evidentemente, faltava-lhe, porém, o elemento
de consenso ou sequer de consulta. Em suma, era uma iniciativa de política
externa de Washington - que por sua vez se escudava no apoio, tido como certo,
embora não declarado, da esquadra britânica - que afetava todo o continente.
Já no fim do século, quando da I Conferência Internacional Americana (1889-
1890), os Estados Unidos, fortes da sua posição de maior potência das Américas
e desejosos de eliminar a preeminência comercial das economias européias na
região, lançou a idéia de uma união aduaneira de âmbito continental. Olhando
retrospectivamente, é interessante recordar que, naquela conferência, o grande
adversário dessa precursora da Alca foi o delegado argentino Roque Saens Peña.
O projeto integracionista não prosperou, mas foram lançadas as bases formais de
um pan-americanismo dominantemente econômico, com a criação de um Bureau
Internacional das Repúblicas da América, "destinado a reunir e publicar as
informações relativas ao comércio, aos produtos, às leis e as tarifas dos
países que o compõem". Pouco mais de meio século depois, já no ambiente
internacional da Guerra Fria, ele assumiria sua institucionalidade política
atual, com o estabelecimento da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a
assinatura do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar).
A essa visão monroísta, que via no Hemisfério Ocidental uma vasta área de
influência dos EUA, veio a contrapor-se uma percepção bolivariana, que buscava
aproximar as nações americanas de colonização espanhola. Na visão de Bolívar,
ficariam, porém, de fora tanto os Estados Unidos, anglo-saxônico e dominador,
como o Brasil, lusitano e imperial. Só muito gradualmente, com a solução dos
problemas de fronteiras com os nossos vizinhos, a noção das afinidades do
subdesenvolvimento e dos benefícios potenciais da integração econômica entre os
países pobres do continente, essa visão bolivariana foi cedendo lugar a uma
percepção latino-americanista, que nunca chegou, entretanto, a adquirir
significação efetiva, econômica ou política. Sua expressão institucional mais
abrangente é o Sistema Econômico Latino-Americano (Sela), que pouco tem
representado como elemento aglutinador dos países da América Latina. Da mesma
forma, as iniciativas tendentes a fomentar especificamente a integração
econômica dos países latino-americanos - o Tratado de Montevidéu I (60), que
criou a Alalc, e o Tratado de Montevidéu II (80), que estabeleceu a Aladi -
tampouco contribuíram significativamente para dar ao conjunto dos países
latinos do continente uma identidade política própria. Nem sequer se
aproximaram da meta declarada de um mercado comum dos Estados-parte.
O escasso êxito desses esforços para criar uma personalidade latino-americana
não impediu - possivelmente terá mesmo estimulado - iniciativas mais limitadas,
de âmbito sub-regional, com vistas a objetivos menos abrangentes. Assim, em 69,
Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai firmaram, em Brasília, o Tratado
da Bacia do Prata, para "promover o desenvolvimento harmônico e a integração
física da Bacia do Prata e de suas áreas de influência direta e ponderável."14
Em 78, também em Brasília, Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru,
Suriname e Venezuela firmaram o Tratado de Cooperação Amazônica, pelo qual se
comprometiam a "realizar esforços e ações conjuntas para promover o
desenvolvimento harmônico de seus respectivos territórios amazônicos".15 Os
objetivos dos dois instrumentos têm evidentes pontos em comum, e o fato de
participar simultaneamente de ambos colocou o Brasil como traço de união entre
duas redes de cooperação sub-regional que, tomadas em conjunto, cobrem
praticamente toda a América do Sul. Em certo sentido, pode-se dizer, portanto,
que, ao promover a conclusão do instrumento amazônico, o Brasil estava
antecipando outra forma de regionalismo continental - o sul-americanismo -, que
só viria a explicitar-se bem mais tarde. Com a iniciativa da Área de Livre
Comércio Sul-Americana (Alcsa) e sobretudo com a realização da I Reunião de
Cúpula Sul-Americana, o Brasil lançaria ostensivamente no continente as bases
formais de um novo movimento regional, presumivelmente mais consentâneo com a
sua efetiva capacidade de influência na área.
Escrevendo em maio de 2000 sobre a reunião de cúpula dos países da América do
Sul, que se realizaria meses depois, o embaixador Luís Felipe Lampreia, então
nosso ministro das Relações Exteriores, ressaltou a especificidade da América
do Sul, pelo que teriam sido deixados de fora a América Central e o Caribe,
"vinculados de forma mais próxima e direta à América do Norte, em particular
aos Estados Unidos"16. O Brasil marcava assim, ostensivamente, uma clara
distância em relação ao pan-americanismo e qualificava o seu latino-
americanismo, dando prioridade a "um projeto pragmático de organização do
espaço sul-americano".17
Esta tem sido também a orientação do governo atual, aparentemente disposto a
promover a união dos países sul-americanos a partir do núcleo representado por
um Mercosul que, na visão de Brasília, deveria ser aprofundado e consolidado, a
ponto de dotar-se de uma política externa comum. Tal projeto, se bem sucedido,
certamente aumentaria o peso internacional de cada um dos seus integrantes e,
no caso do Brasil, nos ofereceria uma base regional de tais amplitude e solidez
que muito facilitaria a consecução do objetivo de levar avante uma política
externa de potência emergente. Resta saber se é factível.
Dos esquemas regionais ou sub-regionais de que o Brasil faz parte, o Mercosul é
aquele que - apesar de suas limitações - apresenta os elementos institucionais
e de coesão geográfica que, em tese, mais o habilitariam a tornar-se o cerne de
uma organização sul-americana - política e econômica - mais abrangente. A
experiência dos 15 anos decorridos desde a assinatura do Tratado de Assunção
deixa claro, entretanto, que não existe entre os quatro países signatários -
Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai - e os dois associados - Bolívia e Chile
- a vontade coletiva de criar um mercado comum, muito menos um bloco capaz de
atuar solidariamente na área internacional - econômica e política. Esta seria a
razão profunda de os compromissos de 91, assumidos para serem cumpridos até 31
de dezembro de 94, permanecerem até hoje em grande parte letra morta18: o
mercado comum não é mais do que uma pseudo-união aduaneira, com uma tarifa
externa comum cheia de exceções; a coordenação de políticas macroeconômicas e
setoriais resta por fazer; a harmonização de legislações internas tampouco
prosperou; divergências entre os Estados-parte transformam-se em problemas
políticos pela falta de mecanismos institucionais para resolvê-las. Mesmo o
grande feito do Mercosul, que foi a expansão do comércio entre os Estados-
parte, parece ter entrado numa fase de estagnação ou de relativo declínio, na
medida em que as vendas para os parceiros da área têm representado, nos últimos
anos, uma percentagem declinante das exportações totais de cada país. Em 98, o
Brasil exportou para o Mercosul 17,4% de suas vendas externas de bens, enquanto
em 2005 tal percentagem não excedeu os 9,9%; na Argentina, a parcela das
exportações totais que se destinava aos parceiros da área era de 16,5% em 91,
subiu para 36,5% em 97, mas, em 2005, não excedeu 19,2%; no caso do Uruguai, as
percentagens correspondentes foram de 35% em 91, de 42,7% em 2001 e de apenas
23,5% em 2005; no Paraguai, as exportações intrazona, que atingiram 63,4% do
total em 2001, caíram para 54% em 2005.19
O Brasil e o regionalismo continental
Para o Brasil que se percebe como uma potência emergente e é crescentemente
visto como tal internacionalmente o quadro acima esboçado coloca sérias
questões de política regional e internacional.
Simplificadamente, pode-se dizer que a idéia-chave subjacente à nossa atual
política regional é a construção de uma base subcontinental tão ampla e sólida
quanto possível, de modo a firmar a liderança brasileira na América do Sul, o
que deveria facilitar, no âmbito mundial, o exercício de uma política de
potência emergente. Ao adotarmos abertamente tal linha de conduta, afastamo-nos
da prática tradicional brasileira de negar qualquer aspiração de liderança no
subcontinente e aceitamos o risco de acirrar rivalidades e ressentimentos
latentes em relação ao Brasil. Exemplificativamente, as resistências regionais
a nossa aspiração a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e o
escasso apoio à candidatura de um brasileiro à direção da Organização Mundial
de Comércio são sintomáticas de tal situação.
O problema não se restringe, entretanto, a rivalidades por motivos de projeção
externa. Chega ao campo das divergências de interesses reais ou percebidas e do
surgimento de lideranças sub-regionais conflitantes com a nossa. A situação é
ilustrada pelo rumo que tomou a aproximação entre Bolívia, Cuba e Venezuela e,
particularmente, pelo discurso do governo Evo Morales, que oscila entre a
animosidade grosseira em relação ao nosso país e o desejo declarado de, nas
palavras do vice-presidente , "ser o sócio mais importante de abastecimento
energético" (do Brasil)20. A dubiedade da retórica boliviana reflete a
ambigüidade da posição daquele país, mas também assinala as possibilidades que
nos são abertas pelo peso específico do Brasil, não só em relação à Bolívia,
mas no conjunto da América do Sul. Em entrevista coletiva em Viena21, o
presidente Morales deixou clara sua hostilidade á Petrobras e a outras
petroleiras, que operariam em seu país com contratos "ilegais e
inconstitucionais". Manifestou também sua aparente preferência por países como
Japão, Cuba, Venezuela e alguns europeus não identificados, "que ajudam sem
pré-condições", em contraste com o Brasil, com quem "falamos bastante e não
concretizamos absolutamente nada", e que, no passado, obteve "o Acre em troca
de um cavalo". Por outro lado, o vice-presidente Álvaro Garcia Linera, na
entrevista acima citada, assinalava que os acordos energéticos com a Venezuela,
"país irmão",(...) "são investimentos de US$70 milhões, US$80 milhões. E com a
Petrobras temos US$1,5 bilhão em acordos." Em suma, a leitura do discurso
político boliviano deixa a impressão de que coexistem em La Paz uma simpatia
político-ideológica por Cuba e Venezuela, mas também o reconhecimento
pragmático de que o Brasil é um parceiro mais relevante, e que, portanto,
caberia conservá-lo como tal.
As divergências na área andina não têm, porém, repercussões apenas sobre as
aspirações brasileiras de liderança no nosso subcontinente. Elas afetam
sobretudo a estabilidade da Comunidade Andina de Nações (CAN), na medida em que
Colômbia e Peru tendem a firmar instrumentos bilaterais de comércio com os EUA,
enquanto Venezuela e Bolívia ameaçam deixar a CAN por se oporem a eles. Ao
mesmo tempo, o Equador, que também negocia um acordo de comércio com
Washington, decidiu rescindir os contratos com a companhia americana
Occidental, o que teria levado os Estados Unidos a suspenderem as negociações.
Paralelamente a esse bosquejo de algumas das complexidades da atual situação na
América do Sul, o próprio Mercosul, visto por Brasília como núcleo de uma
integração mais ampla do nosso subcontinente, parece ter hoje um futuro
incerto. Por um lado, a falta de instituições adequadas torna politicamente
sensíveis controvérsias como as freqüentes desavenças entre o Brasil e a
Argentina ligadas ao protecionismo desta última que, num organismo mais
estruturado, deveriam ser resolvidas por procedimentos ordinários de solução de
divergências. Por outro, a assimetria entre os dois sócios maiores e os dois
menores tendem, na ausência de mecanismos compensatórios eficazes, a alimentar
insatisfações de parte destes últimos. É o que ocorre no momento, quando o
presidente do Uruguai manifesta a intenção de fortalecer seus vínculos
comerciais com os Estados Unidos e deixa claro que o Mercosul, tal como existe,
tem pouco interesse para o seu país. Nada disso prenuncia o fim próximo do
projeto que se denominou, algo prematuramente, Mercado Comum do Sul. Significa,
porém, que os países que o integram enfrentam um dilema: rever em profundidade
seus objetivos e instituições certamente uma tarefa árdua e de longo prazo ou
deixar que definhe rumo a uma relativa irrelevância, sobretudo em negociações
com terceiros.
O quadro geral de divergências de interesses e percepções acima esboçado é, por
si só, complexo bastante para tornar extremamente problemático o projeto do
atual governo brasileiro de promover a integração da América do Sul. As
dificuldades de origem dominantemente sul-americanas tinham sido multiplicadas,
porém, pela proposta americana de uma área hemisférica de livre comércio, que,
à primeira vista, parecia abrir aos países latino-americanos, em base
preferencial, o maior mercado nacional do planeta. A iniciativa de Washington
formalmente aceita pelo conjunto dos países latino-americanos, menos Cuba, na I
Cúpula das Américas, em 94 até hoje não conseguiu concretizar-se. Parece ter
mesmo perdido muito da sua relevância na política latino-americana dos EUA,
que, sem abandonarem declaradamente a idéia da Alca, passaram a negociar
acordos com diferentes países ou grupos de países da região. O que
aparentemente subsiste, pois, em Washington é a idéia de atrelar aos Estados
Unidos as economias emergentes da América Latina, em conjunto ou separadamente.
Na medida em que tal projeto consiga congregar todos ou a grande maioria dos
países da região, suas implicações políticas parecem evidentes.
O que nunca ficou claro, entretanto, pelo menos para a opinião pública, foi
como se conciliariam ou como interagiriam o sul-americanismo de Brasília e o
pan-americanismo de Washington, sobretudo a partir do momento em que os EUA
reconheceram que, apesar da sua liderança no continente, as peculiaridades
nacionais ou sub-regionais latino-americanas tornavam problemática a construção
de uma área hemisférica de livre comércio. Sem abandonarem a idéia inicial,
passaram, portanto, a concluir acordos de âmbito mais limitado. Ao fazê-lo,
puseram em cheque a coesão do próprio Mercosul e, com mais forte razão,
qualquer projeto integracionista que abrangesse toda a América do Sul.
De maneira mais crua, poder-se-ia perguntar como o Brasil, que com os outros
três co-signatários do Tratado de Assunção não conseguiu que se cumprissem
sequer os compromissos assumidos naquele instrumento, vai levar os quatro a
adotarem uma política externa comum e ainda mais difícil congregar o conjunto
da América do Sul em torno de objetivos aceitos por todo o subcontinente?
Provavelmente não o conseguirá, pelo menos no futuro previsível. Se este for o
caso, como me parece, em que medida tal situação comprometerá a política
externa do atual governo e, sobretudo, a idéia mais ampla de uma política
externa de potência emergente?
É normal que um país com as dimensões territorial, demográfica e econômica
alcançadas pelo Brasil aspire a ter, na cena internacional, um papel mais
marcante do que aquele que lhe tem cabido até agora. Dentro da mesma ordem de
idéias, é ainda mais natural que, pelo seu peso relativo, se perceba na posição
de primus inter pares na América do Sul. Em última análise, tal situação
objetiva não é contestada sequer pelos nossos vizinhos, embora, como já
assinalado acima, isso seja freqüentemente motivo de preocupação e
ressentimento. Em tais circunstâncias, arrogar-se ostensivamente uma posição de
liderança sul-americana será sempre contraproducente, ainda que procurar
discretamente exerce-la na prática, não necessariamente o seja. Trata-se,
portanto, de ter uma noção muito clara daquilo que uma ainda hipotética
liderança regional brasileira poderia ser e ainda mais importante daquilo que
não deveria ser nem parecer ser.
Tudo o que foi dito até aqui parece deixar clara a inviabilidade do
estabelecimento de um conjunto de normas e instituições capazes de orientar,
num sentido comum e solidário, a atuação internacional dos países sul-
americanos em seu conjunto ou sequer a daqueles que integram o Mercosul. Esta
última hipótese aparentemente acalentada pelo atual governo, que deseja uma
política externa comum aos signatários do Tratado de Assunção já representaria
um enorme passo, mas parece inviável dentro de qualquer horizonte cronológico
relevante.
Inegavelmente, um Mercado Comum do Sul cuja realidade correspondesse a sua
ambiciosa denominação aumentaria consideravelmente a projeção econômica
internacional de cada um dos seus integrantes, com reflexos no campo político.
Isso seria verdadeiro mesmo se, à integração econômica, não fosse possível
acrescentar uma política externa comum, como já mencionado. Qualquer dessas
hipóteses envolve, porém, duas pré-condições. A primeira é um entendimento
muito mais profundo com a Argentina no político e no econômico do que tudo
quanto, até agora, tem sido possível estabelecer de forma estável. Sem ele,
porém, o Mercosul tenderá a perder muito da sua relevância, como aparentemente
já está acontecendo. A segunda seria, no quadro de tal entendimento, a
disposição comum dos dois sócios maiores de criar condições mais favoráveis às
áreas menos favorecidas, de modo a atenuar as atuais assimetrias, algo no
espírito do que há tempos vêm fazendo os países que criaram a Comunidade
Econômica Européia. Sem mecanismos compensatórios capazes de atrair de forma
duradoura os sócios menores, a solidez do bloco estará sempre ameaçada, como
ilustrado pelas já mencionadas declarações do presidente Tabaré Vasquez.
Tudo indica que nenhuma das duas condições venha a ser satisfeita com
facilidade ou rapidez. Caberia considerar, portanto, aquilo que embora não
desistindo formalmente de preencher aquelas duas pré-condições poderemos fazer
para irmos construindo uma base regional mais sólida. Não podemos, entretanto,
partir da premissa de que tal base regional depende de alguma estrutura
multinacional sul-americana que já vimos ser pouco viável, pelo menos num
futuro previsível, ainda que limitada ao Mercosul.
Assim, sem prejuízo dos esforços necessários para aprofundar e fortalecer
econômica e politicamente o Mercosul, deveríamos atuar bilateralmente, tratando
de usar o considerável poder de atração regional da economia brasileira. Isso
envolveria oferecer em termos de reciprocidade relativa ou, em alguns casos,
mesmo sem reciprocidade condições favoráveis de acesso ao nosso mercado a um
certo número (a maioria?) dos nossos vizinhos sul-americanos. A principal
preocupação não seria com a reciprocidade comercial, mas sim com problemas como
regras de origem (para limitar os free riders), com um mínimo de seletividade
nas concessões (produtos sensíveis, por exemplo) e com o estabelecimento de uma
rede de infra-estrutura de transporte (terrestre e fluvial) e energética, de
modo a viabilizar a desejada expansão de comércio e o fortalecimento de laços
econômicos e humanos com nossos vizinhos.
Em última análise, tratar-se-ia de abandonar a idéia de um grande projeto
multinacional sul-americano em favor de uma aposta a um tempo ousada e generosa
na capacidade de competição regional da economia brasileira, tanto no comércio
de bens como no de serviços, inclusive com a participação de bancos e
companhias brasileiras de construção civil naquela rede de infra-estrutura. O
benefício para nós como para nossos parceiros em tais acordos bilaterais
derivaria do entrelaçamento de interesses comuns de caráter bilateral. A
sinergia derivada da justaposição de tais interesses poderia contribuir para a
eventual formação de algum arranjo plurilateral sul-americano ou de esquemas
sub-regionais de cooperação e integração. Nenhum desses desenvolvimentos seria,
porém, essencial à consecução do desejado objetivo de aprofundar a
complementaridade de interesses entre os países sul-americanos, o que deveria
facilitar a coordenação de suas respectivas posições e atuações na cena
mundial.
Como país de maior peso econômico e demográfico na área e ponto focal desses
vários acordos, o Brasil tenderia a tornar-se a peça-chave desse projeto de
aproximação regional, sem o recurso, pelo menos no futuro próximo, a uma
estrutura institucional disciplinadora ou ao estabelecimento de um sistema
multilateral de integração econômica da América do Sul em seu conjunto.
A idéia de uma liderança brasileira desapareceria, assim, de nosso discurso
político ou de eventuais projetos brasileiros de âmbito regional. Na medida em
que ainda existisse na prática, tal noção derivaria das condições objetivas
criadas por iniciativas limitadas que, se bem sucedidas, iriam no sentido do já
mencionado pensamento de John Lewis Gaddis de conseguir que outros queiram o
que o líder quer e não apenas que façam o que ele deseja seja feito. Não
estaríamos, pois, ignorando o peso específico do Brasil na América do Sul ou o
fato de que uma base regional seria um elemento importante de nossa política
internacional. Estaríamos simplesmente reconhecendo o fato de que tal base
teria de ser dada pela única forma de regionalismo continental que
realisticamente nos convém um sul-americanismo que promova os interesses
brasileiros dentro do respeito às peculiaridades, sensibilidades e
suscetibilidades de nossos vizinhos.
1. Souto Maior, Luiz A. P., "Desafios de uma Política Externa Assertiva",
Revista Brasileira de Política Internacional, Ano 46, no. 1, 2003.
2. Silva, Luiz Inácio Lula da, "Presença soberana no mundo", Carta
Internacional, no. 114, ano X, agosto de 2002, p. 9.
3. Silva, Luiz Inácio Lula da, Discurso de posse, texto publicado na Gazeta
Mercantil, 2.1.2003, p. A-7.
4. A expressão "potência emergente" é usada neste artigo para descrever a
situação daqueles países em desenvolvimento cuja política aspira não apenas ao
próprio progresso econômico, mas também, especificamente, a uma ampliação da
sua projeção externa.
5. Nye Jr., Joseph S. O Paradoxo do Poder Americano, Editora UNESP, 2002, p.33.
6. Nye Jr, Joseph S. Op. cit., p. 30.
7. Cutter, W. Bowman, "A New International Economic Order?" in Robert Hutchings
(ed.), At the End of the American Century, The Johns Hopkins University Press,
Baltimore, 1998.
8. "A Survey of the World Economy - The dragon and the eagle", p. 7, The
Economist, 2-8.10.2004.
9. The Economist, 21.1.2006, p. 10.
10. Major, John, entrevista publicada no jornal Valor Econômico, de 21.3.2006,
p. A14.
11. Ver, por exemplo, notícia sobre reunião da OCDE, em maio último, em que se
assinalou que os BRIC, liderados no caso pela China, teriam aumentado de 18%
para 27% sua participação no produto mundial, entre 90 e 2005. Nos últimos
cinco anos, os quatro teriam assim contribuído quase tanto quanto os trinta
países da OCDE para o crescimento do produto global. Valor, 25.5.2006, p. A9.
12. Discurso do presidente George Bush perante a Assembléia Geral das Nações
Unidas, em 1.10.90.
13. Pomonti, Jean-Claude, "Redistribution des cartes en Asie", Le Monde
Diplomatique, Dezembro 2005, p. 10.
14. Tratado da Bacia do Prata, art. 1.
15. Tratado de Cooperação Amazônica, art. 1.
16. Lampreia, Luís Felipe, "Cúpula da América do Sul", Carta Internacional, no.
87, ano VIII, maio de 2000.
17. Lampreia, Luís Felipe, Op. Cit.
18. V. Tratado de Assunção, art. 1.
19. Valor Econômico, 28.3.2006, p. A2.
20. Entrevista do vice-presidente Alvaro Garcia Linera, Valor Econômico,
15.5.2006, p.A4.
21. Valor Econômico, 12, 13 e 14 de maio de 2006, p. A4.