Condicionantes institucionais e políticos e poder de barganha nas negociações
internacionais sobre agricultura: o caso da União Européia
Introdução
Em outubro de 2005, as vésperas da Conferência Ministerial da OMC em Hong Kong
(12-18 de dezembro), o ministro de Comércio da França, Christine Lagarde,
acusou Peter Mandelson de estar excedendo a sua autoridade negociadora com as
propostas de redução dos subsídios agrícolas e cortes nas tarifas de importação
na área agrícola1. Em seguida, a França, com o apoio de 12 países, conseguiu
que a Inglaterra, que exercia a presidência da União Européia - UE, convocasse
uma reunião de emergência dos ministros das Relações Exteriores dos Estados-
membro para discutir suas preocupações relativas ao comportamento do Comissário
de Comércio Exterior. Na mesma semana, 13 ministros de Agricultura da UE, sob a
liderança da França, enviaram carta para Peter Mandelson requerendo o direito
de serem consultados a respeito de possíveis concessões na área agrícola.
Apesar da reunião de emergência ocorrida em Luxemburgo em 18 de outubro não ter
resultado na imposição de limites à atuação de Peter Mandelson, o que era
requerido pela França, os ministros concordaram em acompanhar mais de perto as
negociações.
Em 27 de outubro, às vésperas da UE apresentar uma nova proposta, o presidente
da França, Jacques Chirac declarou que o seu país bloquearia a aprovação de
acordos que colocassem em risco a Política Agrícola Comum (PAC), aprovada em 26
de junho de 2003 pelos ministros da Agricultura com vigência até 2013.2
Em decorrência dessas várias pressões, a Comunidade Européia que parecia
caminhar para aumentar as suas ofertas na agricultura, principalmente na área
de cortes nas tarifas de importação, recuou. Em 28 de outubro, ela apresentou
uma proposta modesta - 46% em média e 60% em sua tarifa mais alta. Além disso,
passou a declarar que não tinha mais nada o que oferecer, e que, de agora em
diante, as negociações deveriam se concentrar nas ofertas dos países em
desenvolvimento para abertura de seus mercados para produtos industriais e
serviços.
Por que em uma negociação que envolve a política supranacional por excelência
da UE - a sua política comercial externa - alguns países como a França, são
capazes de ter uma ingerência tão decisiva no processo negociador? Quais as
conseqüências desses fatos para o desenrolar das negociações multilaterais de
comércio? Como tais Estados afetam o desempenho dos adversários da UE e a sua
faculdade de influenciarem o desfecho das transações? Este trabalho procura
responder a essas questões investigando dois problemas: o papel que normas
formais e informais exercem no processo de tomada de decisão da política
comercial externa da UE e a influência da PAC nas negociações multilaterais
sobre agricultura.
Argumenta-se, primeiro, que as normas do processo de tomada de decisão podem
proporcionar aos Estados-membro um poder de veto sobre os acordos em discussão.
Em vista disso, em áreas econômicas sensíveis, aqueles que têm uma posição mais
próxima do status quo adquirem influência decisiva no desenvolvimento das
negociações e em seus resultados finais. Utiliza-se aqui a conceituação
proposta por Tsebelis (2002:2) para identificar atores com poder de veto a
saber, atores cuja concordância é necessária para mudar o status quo no âmbito
legislativo.
Tendo em vista os constrangimentos colocados pelas regras institucionais, o
poder de barganha da UE nas negociações multilaterais é aumentado, restringindo
a margem de manobra de seus opositores e dificultando ações desses atores para
avançar seus interesses. Esta situação é agravada no caso de uma negociação
multilateral de comércio como o da Rodada Doha, onde a questão central é a
redução dos subsídios agrícolas os quais são regulados por uma política
agrícola que beneficia mais alguns Estados do que outros e que adquiriu um
respaldo na opinião pública da UE para além de seus benefícios econômicos.
A PAC da União Européia é, assim, um elemento que vem se somar aos
constrangimentos institucionais para elevar o poder de barganha da UE. Além
disso, as regras que regulamentam as decisões no âmbito da PAC contribuem para
que suas reformas sejam incrementais ou parciais, dificultando mudanças
substantivas e aproximando-as da manutenção do status quo.
Na primeira parte do artigo, as instituições que regulam o processo decisório
da política comercial externa da UE são analisadas com o fito de demonstrar os
limites e oportunidades que elas colocam para a influência dos Estados-membro
nas negociações dos acordos multilaterais de comércio. Busca-se mostrar que as
tensões entre os interesses dos Estados-membro e os da Comunidade Européia
perpassam várias áreas de questões, sendo a agricultura o exemplo mais
flagrante. Em seguida, é feito um histórico da formação e evolução da PAC para
destacar a dimensão gradual de suas mudanças. A terceira seção investiga o
comportamento da UE nas Rodadas Uruguai e Doha do Desenvolvimento, incluindo a
VI Ministerial em Hong Kong (12-14 de dezembro de 2005) e indica-se que os seus
resultados aproximam-se mais das posições defendidas pela UE do que a de seus
adversários como os Estados Unidos (EUA), o Grupo de Cairns, o G-20, bem como o
Brasil. A conclusão contextualiza teoricamente as questões colocadas no artigo
e discute alguns aspectos do impacto dos condicionamentos institucionais e
políticos sobre a atuação da UE e de seus contendedores nas negociações
multilaterais de comércio.
Regras institucionais e áreas econômicas sensíveis: a tensão entre os
interesses dos Estados e os da Comunidade Européia
São três os modos de relacionamento da União Européia com o ambiente global: o
primeiro se refere à política externa da Comunidade Européia (CE)3 e abrange
comércio e desenvolvimento; o segundo consiste na Política Exterior Comum e de
Segurança; e o terceiro inclui a dimensão externa de Justiça e Assuntos
Internos. Estes três níveis ou pilares apresentam instituições e regras de
tomada de decisão diferentes.
Enquanto o primeiro pilar é o nível comunitário por excelência, com uma clara
dimensão supranacional, onde a Comissão Européia - o órgão executivo da União
Européia - possui um papel decisório significativo, as ações dos Estados
dominam a deliberação dos outros pilares. A operação das relações externas da
UE nestes dois últimos níveis ocorre, assim, e principalmente por meio da
interação entre os governos dos Estados-membro (Smith, 2003; White. 2001).
A competência exclusiva para negociar e concluir acordos bilaterais, regionais
e multilaterais de comércio foi concedida pelos Estados-membro à CE desde a sua
instituição. Esta autorização se originou nas bases do próprio processo de
integração: a instituição de um mercado comum fundamentado em uma união
aduaneira. Neste contexto, as ligações com terceiros países em suas trocas
comerciais só poderiam se efetivar com o estabelecimento de tarifas
consensualmente acordadas e que valessem para todo o conjunto de países que
compusessem a CE. Além disso, o poder de influência da CE nas negociações
internacionais de comércio está diretamente relacionada a sua capacidade em
atuar de forma integrada, isto é agir com "uma voz única" (Meunier, 2000).
A autoridade para transacionar e concluir acordos é da Comissão Européia
(Comissão). Cabe, no entanto, ao Conselho de Assuntos Gerais e Negócios
Exteriores (CAG) composto pelos ministros das Relações Exteriores dos Estados-
membro, autorizar o início do processo negociador e aprovar ou rejeitar o
acordo concluído.
Essas decisões, porém, devem ser adotadas segundo a regra de votação por
maioria qualificada,4 a qual eliminaria a capacidade de influência dos
interesses de cada estado tomado individualmente. A opção pela regra da maioria
qualificada para as negociações comerciais externas expressou a vontade dos
membros constituintes da UE de que a política comercial fosse efetivamente
definida ao nível supranacional, expressando, por conseguinte, um interesse
coletivo para além dos interesses particulares de seus governos. Já no segundo
e terceiro pilares - a Política Exterior Comum e de Segurança e a dimensão
externa de Justiça e Assuntos Internos - tem sido mais difícil para os Estados,
tendo em vista os tipos de política compreendidos nesses níveis, abdicarem de
sua autonomia em influenciar diretamente a tomada de decisão. Em conseqüência,
nesses dois casos, a regra de votação dominante é a unanimidade.
Porém, como se verá a seguir, a evolução da participação da CE nas negociações
multilaterais de comércio a partir da Rodada Uruguai exprimiu uma tensão entre,
por um lado, a necessidade dos Estados em atuar no nível comunitário para
conduzir a política comercial externa; e, por outro lado, seus interesses em
manter controle sobre áreas que afetavam de forma mais intensa as suas
preferências. Em conseqüência, a regra da maioria qualificada para as
deliberações no âmbito das negociações multilaterais de comércio passou a
sofrer restrições, bem como a decisão informal do uso da regra da unanimidade
se consolidou.
Dois fatores devem ser considerados para explicar as mudanças nas regras do
processo decisório: primeiro, a nova conformação do ambiente econômico global e
o seu impacto na instituição da agenda do comércio multilateral nos anos 80 e,
segundo, a inclusão da agricultura nas negociações da Rodada Uruguai.
Na década de 1980, novas áreas de atividades econômicas tornaram-se relevantes
no contexto internacional tais como: serviços, investimento e questões de
direito de propriedade intelectual relacionadas ao comércio. A Rodada Uruguai
incluiu-as em sua agenda de negociação - os chamados de "novos temas" - com
muita resistência dos países em desenvolvimento, que não tinham naquele
momento, vantagens comparativas nesses campos (Mello, 1992; Abreu, 1997).
Contudo, sob o ponto de vista do processo decisório da política comercial
externa da UE tratava-se de determinar quem teria a competência para negociar e
concluir acordos "nos novos temas": a Comissão Européia , os Estados-membro ou
ambos?
Como os efeitos do meio internacional no comportamento dos Estados não são
diretos, mas mediados pelo ambiente doméstico, diferenças em competitividade
entre os membros da UE levaram-nos a resistir em delegar autoridade para que a
Comissão negociasse e concluísse acordos naquelas áreas. Dessa maneira, durante
a Rodada Uruguai , na perspectiva dos Estados-membro os "novos temas" deveriam
ser negociados segundo as regras da competência nacional ou, no mínimo da
competência mista, onde a autoridade negociadora é compartilhada entre os
Estados e a Comunidade (Woolcock, 2000:376). Uma estreita vigilância dos
Estados-membro sobre o comportamento da Comissão e o pacto de que tanto a
Comissão como os Estados-membro assinariam o acordo final contribuíram para
diminuir as tensões entre estes dois atores durante o processo negociador.
(id.ibid).
A criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) intensificou outra vez o
debate. A proposta da Comissão de que a CE e os Estados-membro deveriam ser
membros integrais da OMC não foi suficiente, pois quem deveria ser o ator
negociador no novo organismo diante de uma agenda do comércio internacional
mais complexa e reguladora das políticas domésticas?
Retornou assim à baila a controvérsia a respeito de quem teria autoridade para
negociar os "novos temas" no âmbito da OMC. A decisão sobre esta questão
ocorreu em um contexto de desconfiança em relação ao comportamento da Comissão,
já que para alguns Estados, principalmente a França, ela tinha excedido a sua
autoridade negociadora nas transações do Acordo Agrícola de Blair House
(Meunier e Nicolaidis, 1999; 484). A decisão foi levada à Corte de Justiça
Européia que deu um parecer favorável aos Estados-membro, que não queriam
renunciar à soberania decisória nos novos temas. Segundo a Corte, a Comunidade
teria competência somente para concluir acordos multilaterais em mercadorias.
Os acordos em serviços (Gats) e propriedade intelectual (Trip's), por sua vez,
deveriam ser concluídos pela Comunidade e pelos Estados-membro (id.ibid.: 488)
Na revisão do Tratado de Maastricht a partir de 95 e que resultou no Tratado de
Amsterdã em 99 tentou-se estender a competência da Comunidade à negociação dos
"novos temas". Porém, o que se alcançou foi, apenas, que novos acordos em
propriedade intelectual e serviços poderiam ser negociados pela Comissão a
partir de uma autorização do CAG tomada sob regra da unanimidade. Em
conseqüência, as decisões naquelas duas áreas foram mantidas sob a influência
individual dos Estados, lhes proporcionando um poder de veto sobre elas.
A ampliação parcial da competência decisória da Comunidade em relação a
serviços e propriedade intelectual foi estabelecida no Tratado de Nice (2001).
Mas ela relacionou-se a setores específicos de serviços; e, no caso de
propriedade intelectual a esferas em que regras internas já tivessem sido
instituídas pelos Estados-membro. Em conseqüência, negociações abrangentes dos
"novos temas", incluindo investimentos, serviços e propriedade intelectual
devem ser decididas por acordos mistos, isto é acordos em que a competência
decisória é compartilhada entre a Comunidade e os Estados-membro, o que
possibilita a esses "(...) reterem um veto por meio do voto unânime no Conselho
(CAG) e por meio de ratificação pelos seus próprios parlamentos" (Meunier e
Nicolaïdis,1999: 480).
Em relação à agricultura é importante tecer, inicialmente, algumas
considerações relativas às razões pelas quais este setor econômico não esteve
integrado às regras do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt) desde o sua
criação em 1947 e como isso colaborou para solidificar a PAC ao longo do tempo.
Em seguida, serão discutidas as regras de tomada de decisão na negociação de
acordos multilaterais em agricultura.
Apesar de defenderem a liberalização do comércio mundial no final da Segunda
Guerra Mundial, os EUA não tiveram a mesma postura quando se tratou de
agricultura, já que a legislação comercial americana protegia este setor das
flutuações no mercado internacional (Goldstein,1993). Em vista disso, os
negociadores americanos lutaram e conseguiram que fosse permitido o uso de
restrições quantitativas no caso da agricultura (artigo 11 do Acordo Gatt) e
que "exportações agrícolas eram uma exceção a qualquer compromisso contrário a
subsídios á exportação" (Id. Ibid.: 218).
Além do mais, em 54 os EUA obtiveram do Gatt uma exceção (waiver) para a sua
política agrícola que permitiu o uso de restrições quantitativas às importações
de produtos agrícolas mesmo na ausência de um programa doméstico direcionado a
reduzir a produção dos mesmos como previsto no artigo 11 citado. A PAC,
instituída em janeiro de 62, beneficiou-se claramente da existência dessas
regras que, não só possibilitaram a sua criação, mas também que ela se
consolidasse ao longo do tempo (Id.Ibid.).
Estando profundamente incrustada no modo como a produção agrícola funcionava na
UE5, e dentro das normas do Gatt, a mudança das regras da PAC em uma direção
liberalizante, ainda que de modo incremental, só veio a ocorrer durante a
Rodada Uruguai. A reforma resultou, por um lado, de séria crise nos recursos da
PAC que incidiu negativamente sobre o orçamento da UE, decorrente dos problemas
de superprodução nos anos 70 e 80; e, por outro lado, da pressão internacional,
agora dos EUA, somados ao Grupo de Cairns e com a atuação expressiva do Brasil
(Mello, 1992; Abreu, 1997; Patterson, 1997),
A agricultura é, por conseguinte, uma área de grande sensibilidade para a UE,
na medida em que ela afeta um conjunto de interesses solidificados no ambiente
doméstico de seus Estados-membro. Em conseqüência, o grau de flexibilidade da
Comissão para negociar acordos nessa área é restrito. Segundo Woolcock , "os
mandatos são usualmente rigorosos em questões sensíveis, como agricultura"
(2000: 301).
Na preparação do mandato negociador para a Rodada Doha, por exemplo, o
presidente da União Européia determinou que o mandado para a agricultura fosse
submetido ao Conselho de Agricultura, antes de ser enviado ao CAG 6, como forma
de eliminar qualquer tipo de divergência entre os Estados-membro nessa área.
Cabe, ainda, destacar que nas discussões de acordos de comércio internacional
envolvendo a agricultura, o Comissário para a Agricultura participa ao lado do
negociador formal da CE, ou seja, o Comissário para Comércio Exterior. Esta é
uma situação que não se repete em outras esferas negociadoras e expressa a
intensidade dos efeitos que decisões neste setor têm sobre as preferências dos
Estados-membro.
Em transações abrangentes como as rodadas do Gatt e da OMC a regra formal da
votação por maioria qualificada para a conclusão do acordo vem sendo
substituída pelo consenso (Woolcock, 2000: 384). Em conseqüência, "a Comissão
tem espaço limitado para manobra, porque ela não pode apelar para uma maioria
qualificada de governos para derrotar interesses minoritários. Governos-membro
que se opõem a elementos de um pacote proposto, tais como liberalização em
agricultura, podem ser efetivamente capazes de exercer um veto no resultado"
(Id.bid.; 385).
Esse mesmo raciocínio pode ser aplicado à decisão por votação de maioria
qualificada para a aprovação do mandato no CAG, já que na prática os Estados-
membro procuram chegar a um texto comum na fase inicial do processo negociador
(Meunier e Nicolaïdis, 1999:480).
Desta maneira, os Países-membro, por meio de regras informais e formais estão
continuamente influenciando o processo decisório da UE nas transações
multilaterais de comércio. Por conseguinte, apesar de a política comercial
externa ser a política comunitária por excelência da UE - aquela que
expressaria, mais do que qualquer outro nível de atuação exterior da UE o
interesse coletivo de seus membros - ela sofre a influência decisiva dos
Estados-membro cujas preferências aproximam-se do status quo. Isto tolhe a
capacidade dos Estados opositores da UE em negociações de comércio
internacional de obter concessões significativas em áreas sensíveis, sobretudo
em agricultura, que é o objeto de estudo deste artigo.
Consolidação e reforma da Política Agrícola Comum (PAC)
Esta seção do artigo procura mostrar porque a PAC é um poderoso fator que
constrange o comportamento dos opositores da UE nas rodadas multilaterais de
comércio, restringindo suas margens de manobra durante o processo negociador.
Em primeiro lugar, expõem-se as razões pelas quais a PAC consolidou-se nas
instituições da UE e nas sociedades dos Estados-membro a partir de uma análise
de seus objetivos e dos mecanismos criados para alcançá-los; em segundo lugar,
mostra-se como esta consolidação se expressou nas dificuldades para modificá-
la, investigando-se as várias reformas que a PAC sofreu a partir dos anos 70.
A política agrária da UE é regida por um conjunto de normas e princípios
consubstanciados na PAC. Instituída em 62, a PAC está profundamente incrustada
nos interesses dos agricultores da UE, já que desde o seu início ela mesclou
objetivos distributivos e econômicos. Além do mais, para a implementação dessa
política formou-se uma ampla rede de instituições burocráticas que vincularam
os níveis municipal, nacional e supranacional da instituição européia. Um
conjunto de interesses sociais, políticos e burocráticos direcionados para a
manutenção daquela política constituiu-se, deste modo, ao longo dos anos e
impediram que ela sofresse mudanças significativas.
A PAC surgiu no contexto da construção do estado de bem estar social na Europa
no após-guerra. Desse modo, além de ter como um de seus objetivos estimular a
produção de alimentos, tornando os países membros auto-suficientes nesta área,
a PAC ainda visou proteger a renda dos trabalhadores (Rieger, 2000; Fouilleux,
2003). Somado a isto, destacou-se o seu objetivo político: obter o apoio dos
agricultores ao projeto de integração européia - projeto este que abrangeu no
seu começo a França, Alemanha, Itália, Holanda, Bélgica e Luxemburgo A
combinação de dimensões distributivas e econômicas nessa política agrícola é um
dos fatores que explica as dificuldades para a sua modificação, já que ela
acabou por se enraizar de forma profunda nos interesses de produtores agrícolas
grandes e pequenos.
Os aspectos distributivos e econômicos estão claramente enunciados no artigo 39
do Tratado de Roma:
1) aumentar a produtividade da agricultura, (...) assegurando o
desenvolvimento racional da produção agrícola e a ótima utilização
dos fatores de produção, em particular do trabalho; 2) assegurar um
padrão de vida justo para a comunidade agrícola e em particular
elevando os rendimentos individuais das pessoas empregadas na
agricultura; 3) estabilizar os mercados; 4) assegurar a
disponibilidade dos suprimentos, e assegurar que os suprimentos
cheguem aos consumidores a preços razoáveis (Fouilleux, 2003: 247).
Os princípios que nortearam a implementação da PAC, como a garantia de preço
para os produtores e um sistema de reembolso para cobrir a diferença entre o
valor da produção interna em relação ao valor exportado, foram, por sua vez,
estabelecidos na Conferência de Stresa em 58 e entraram em vigor em 1962. Eles
compreenderam a unidade de mercado (um mercado único), a preferência
comunitária; e a solidariedade financeira (id.ibid).
O mercado comum passou a funcionar com um preço assegurado para os produtos
agrícolas determinado de forma centralizada pelos funcionários da Comunidade e
pelos políticos dos Estados-membro. Se o preço caísse, o que reduziria os
ganhos dos produtores e afetaria negativamente a oferta, agências estabelecidas
no nível nacional deveriam comprar o excesso da produção (id.ibid.),
substituindo dessa forma a "mão invisível do mercado" pela atuação da
burocracia estatal. Além disso, para impedir que as instabilidades do mercado
internacional prejudicassem o desempenho do mercado interno fixou-se de modo
centralizado e acordado com os países-membros um preço de entrada para cada
produto agrícola importado. Somado a isto incluiu-se "um sistema de
"reembolsos" (...) permitindo aos produtores europeus vender seus produtos no
mercado externo mundial pelos preços determinados pelo mercado mundial. Esses
subsídios cobriam a diferença em custo entre o mundo e os preços europeus mais
altos." (Id. Ibid., 248). Os produtores agrícolas foram, assim, incentivados
neste sistema a produzir cada vez mais, pois quanto mais eles produziam mais
eles recebiam dos governos dos Estados-membro. Por último, os recursos
financeiros necessários para administrar e implementar a PAC resultaram da
criação de um fundo comum, com a contribuição de todos os Estados-membro, o
European Agricultural Guindance and Guarantee Fund (EAGGF). No início de
funcionamento da PAC, os recursos da EAGGF alcançaram a quase totalidade do
orçamento da CEE, decaindo de 65,1% em 1986 para 53,8 % em 2000.
Entretanto, com o passar dos anos, a PAC começou a apresentar problemas que
ameaçaram a sua sobrevivência. Os incentivos para os agricultores produzirem
independentemente dos sinais do mercado colaboraram para as crises de
superprodução dos anos 70 e 80. Estas por sua vez elevaram os custos daquela
política com tal intensidade que acabaram por colocar em risco o próprio
orçamento da UE. Dessa maneira, surgiram pressões internas para reforma-la
(Fouilleux, 2003).
Aliadas a elas destacaram-se, ainda, como fatores relevantes para as mudanças
da PAC, as pressões que se desenvolveram no ambiente internacional durante as
Rodadas Uruguai (Patterson, 1997) e Doha, e que contribuíram para desencadear
as reformas de 1992 e a de Meio Período de 2003.
Contudo, um exame das várias reformas da PAC indica que medidas mais
significativas, ainda que propostas pela Comissão, são limitadas pela atuação
dos Estados-membro mais protecionistas. Desta forma, ainda que não se possa
dizer que plus ça change, plus c'est la même chose, vale destacar que os
efeitos das mudanças aprovadas são reduzidos e que o seu avanço no sentido de
criar um ambiente mais competitivo para a agricultura européia é lento. Sob o
ponto de vista do impacto desta situação no processo negociador, ressalta-se o
limitado espaço de manobra que este contexto propicia aos oponentes da UE no
âmbito negociador.
As primeiras modificações dos anos 70 e 80 na PAC foram tópicas e visaram
combater os problemas da superprodução por meio do estabelecimento de reduções
quantitativas da produção. Além disso, "o princípio de preços garantidos para
os produtos agrícolas permaneceu o elemento central da PAC, e não foi tocado
pela reforma" (Fouilleux 2003:249).
Com a reforma de 92, pela primeira vez, os problemas de superprodução passaram
a ser enfocados a partir de cortes nos preços. Mas a aplicação deste
instrumento foi bastante restrita. Não obstante esta limitação, enfrentou-se,
ainda que de forma tímida, o princípio do preço garantido. Além disso,
objetivando manter os rendimentos dos produtores agrícolas, uma modalidade de
apoio a renda foi criada - o sistema de pagamentos diretos - a qual veio se
tornar parte integrante da PAC nas reformas seguintes. Por este sistema, os
agricultores passariam a receber recursos diretamente para compensar as perdas
decorrentes dos cortes efetuados nos preços (id.ibid).
A perspectiva de um alargamento futuro da UE, com países do centro e leste da
Europa levou a Comissão Européia em 1997, a propor uma nova reforma da PAC
consubstanciada no documento Agenda 2000: For a Stronger and Wider Union. Já
estão presentes neste documento as preocupações em vincular a atividade
agrícola com aspectos não-comerciais como a proteção ao meio ambiente e medidas
de desenvolvimento rural. (Landau, 2001:915-916; Fouilleux, 2003: 257).
No Conselho Europeu7 em Berlim, em março de 1999, que debateu e aprovou a
Agenda 2000, as propostas da Comissão que envolveram mudanças mais estruturais
da PAC como "a dissociação do apoio da renda da produção de maneira mais séria,
introduzindo tetos e (alguma) redução escalonada nos pagamentos dos
rendimentos, e tornando os membros dos governos responsáveis por algum co-
financiamento dos pagamentos diretos" não foram aceitas e a deliberação a
respeito dessas questões foi adiada para 2002-2003. (Rieger, 2000: 203).
Incorporaram-se certas modificações à PAC, as quais abrangeram: "alguma redução
de preço compensado por pagamentos diretos dos rendimentos, pagamentos diretos
dos rendimentos em relação com medidas de proteção do meio-ambiente (as quais
deveriam ser implementadas em uma base voluntária)". Além do mais, o conceito
de "multifuncionalidade" passou a integrar a formulação e implementação da PAC
(Fouilleux,2003:258). Este conceito passou a definir a atividade agrícola como
se constituindo de duas dimensões: a produtiva e a não-comercial. Esta última
abrangeria o desenvolvimento da cultura local, a defesa do meio ambiente e a
manutenção do contexto social em que se desenrola a produção.
Em 2002 a Cúpula de Bruxelas aprovou a extensão das normas da PAC aos futuros
membros da UE. Somado a isto, definiu-se um teto para a expansão do seu
orçamento, o qual deveria vigorar até 2013.
A reforma de Meio Período da PAC foi aprovada pelo Conselho da Agricultura da
UE em 26 de junho de 2003. Esta reforma representou um passo importante no
sentido da redução dos subsídios à exportação, já que ela determinou, pela
primeira vez e de forma definitiva, a dissociação entre produção e pagamentos
aos produtores, bem como um cronograma para implementá-la. A reforma vinculou,
ainda, o pagamento anual do produtor ao atendimento de padrões de segurança
alimentar, saúde animal e defesa do meio ambiente. Outras medidas
significativas incluíram a redução dos pagamentos diretos aos grandes
produtores para fortalecer a política de desenvolvimento rural e a criação de
mecanismos que possibilitassem à Comissão intervir caso o orçamento aprovado
para a PAC até 2013 fosse excedido (Jank, 2003).
Porém, esta reforma conteve também várias qualificações resultantes da pressão
dos países mais protecionistas sob a liderança da França, o maior produtor
agrícola do grupo, que diminuíram bastante o seu impacto.8 Dessa forma,
permitiu-se aos Estados-membro manter um vínculo, ainda que limitado, entre
pagamentos diretos e produção e conservarem o sistema de subsídios para
determinados produtos como cereais e carne bovina. Ainda que o pagamento único
passasse a ser válido a partir de 2005, fixou-se um período de transição de
dois anos para que os Estados-membro se adaptassem às novas regras.9
A União Européia na Rodada Uruguai e Doha
A investigação das negociações durante as Rodadas Uruguai e Doha possibilita
demonstrar que os constrangimentos e políticos da UE colaboram para aumentar a
capacidade deste ator em resistir às pressões internacionais e obter resultados
que se aproximaram mais de suas posições relativamente à de seus contendores.
A Rodada Uruguai (1986-1994) iniciou-se com a proposta americana de eliminação
de todos os subsídios agrícolas que distorcessem o comércio, proposta esta
extremamente radical e a qual não foi nem endossada pelo Grupo de Cairns.
Posteriormente, acordou-se que seriam transacionadas "reduções progressivas e
substanciais no apoio à produção doméstica e subsídios" (Abreu, 1997:335).
Em 90, em Bruxelas, "na reunião que deveria coroar os quatro anos de
negociações da Rodada Uruguai" a distância entre as posições americanas e da CE
se mantiveram: os EUA propuseram 75% de corte no apoio doméstico e 90% de corte
de subsídios de exportação, ambos em dez anos, enquanto a CE ofereceu 30% de
cortes nos dois casos, ano base 1986 (id.ibid., 335-336).
O impasse entre a tímida proposta da CE diante da expectativa dos EUA e dos
membros do Grupo de Cairns conduziu ao fracasso da Reunião de Bruxelas. Com o
objetivo de impedir que a Rodada finalizasse sem os interesses pró-
liberalização do mercado agrícola, o Grupo de Cairns, com a significativa
atuação do Brasil e o apoio dos EUA, conseguiu a aprovação no encontro de
Bruxelas da suspensão das negociações nos outros temas enquanto não se
resolvesse o impasse na agricultura (Mello, 1997).
A reforma da PAC, baseada em uma revisão da proposta MacSharry e adotada pelo
Conselho Europeu em maio de 1992, ainda que tenha sido limitada em relação aos
seus propósitos originais, "ressuscitou a emperrada Rodada Uruguai" (Dinan,
1994:444). Contudo, a partir daí, as margens para negociação passaram a ficar
condicionadas pelo que tinha sido acordado no âmbito daquela reforma.
O Relatório Dunkel, apresentado pelo diretor-geral do Gatt, em final de 91,
estabeleceu aproximou as posições negociadoras com vistas a desbloquear a
Rodada . Sob o ponto de vista da Comissão, com o apoio da Alemanha, interessada
em abrir mercados para os seus produtos industriais, e também da Inglaterra o
relatório Dunkel "(...) proporcionava uma base para o acordo final" (White,
2001:65). Porém, a França se opôs a ele e acusou a Comissão de exceder o seu
mandato.
O acordo de Blair House selado entre os EUA e a CE, em novembro de 92,
intensificou a oposição francesa, que sob a expectativa de uma eleição
presidencial em 2003, ameaçou vetar o acordo caso ele fosse apresentado no CAG.
Naquele acordo ficou estabelecido: 20% de redução no apoio doméstico em termos
de AMS10 para o período 86-88; 21% de redução no volume dos subsídios
exportados e 36% na redução nos valores exportados, com o período base como
definido no Relatório Dunkel. (Trebilcock e Howse, 1999: 261). Além disso, os
pagamentos diretos aos agricultores, com algumas ressalvas, não ficaram
submetidos aos limites determinados para a redução do apoio doméstico - o que
não estava claro no Relatório Dunkel e relevante reivindicação da CE já que se
referia a um elemento central da reforma da PAC de 92. Houve, ainda, "uma
tendência à concentração da liberalização nos produtos mais atingidos pela
reforma da PAC: grãos e sementes seriam relativamente mais atingidos, carne
apenas moderadamente e açúcar e laticínios quase nada"(Abreu, 1997:342). Por
último, mas não menos importante, incluiu-se no acordo a Cláusula da Paz que
instituía restrições à aplicação de medidas compensatórias para os países que,
apesar de subsidiar as exportações e manter medidas de apoio interno com
impacto negativo sobre o comércio internacional, estivessem cumprindo o que
tinha sido deliberado na Rodada.
A oposição da França foi contornada com dois movimentos durante os últimos
momentos do processo negociador. O primeiro, ocorreu em final de 93, em
Bruxelas, quando CE e os EUA concordaram em modificar a base de cálculo para
redução dos subsídios para a exportação de 86-90 para 91-92 e em estender o
período de vigência da "Cláusula da Paz" de seis para nove anos. O segundo, foi
uma concessão crucial de último minuto pelos Estados Unidos que atendeu a
demanda da França em manter o setor cultural excluído de obrigações no Acordo
de Serviços (White, 2001:68).
Este relato da Rodada Uruguai demonstra a contribuição das regras
institucionais e da presença da PAC para reduzir o espaço negociador da
Comunidade e aumentar o seu poder de barganha. O resultado das negociações
beneficiou claramente a Comunidade e aproximou-se de suas propostas iniciais. A
dinâmica entre a Comissão e o Conselho evidenciouou, também, que a capacidade
de introduzir mudanças mais significativas na política agrícola é restringida
pela atuação dos Estados cujos interesses estão mais próximas do status quo.
As transações que se desenrolaram no âmbito da Rodada Doha do Desenvolvimento
até a VI Ministerial da OMC em Hong Kong obedeceram a um padrão semelhante ao
que aconteceu na Rodada Uruguai: os resultados das negociações aproximaram-se
mais das posições defendidas pela CE do que das posturas dos EUA, do Grupo de
Cairns e do G-20, a reforma de Meio Período da PAC contribuiu para flexibilizar
a posição da CE ao mesmo tempo que passou a determinar os parâmetros do
processo negociador, e a França, mais uma vez, desempenhou, com o apoio de
outros países-membro, o papel de hard-liner.
Na IV Conferência Ministerial em dezembro de 2001, constituída com o propósito
de decidir a agenda da nova Rodada, a CE conseguiu que as suas propostas na
área agrícola fossem aprovadas pelo EUA e pelo Grupo de Cairns, ainda que com
qualificações. Diversamente dos Estados Unidos e do Grupo de Cairns que
demandavam a eliminação completa dos subsídios à exportação e defendendo, desde
a fracassada III Ministerial em Seattle, o conceito de que a agricultura tem
características específicas que a diferem de outras formas de produção e que,
por conseguinte, preocupações sociais, culturais e ambientais devem ser levadas
em conta nas negociações sobre a agricultura, a UE chegou a Doha com uma
disposição bastante limitada de transação na área agrícola.
As suas propostas estavam calcadas em decisões tomadas anteriormente em
diversos níveis decisórios da CE bem como nas propostas da PAC consubstanciadas
na Agenda 2000. Desta maneira, a reforma da PAC aprovada pelo Conselho Europeu
em Berlim em 1999 manteve os subsídios a exportação, ainda que tenha ampliado
as áreas em que os produtores poderiam receber pagamentos diretos para
compensar a redução nos preços, e introduziu como elemento relevante para se
considerar nas decisões a respeito da atividade agrícola o conceito de
multifuncionalidade.
Não estando preparada, naquele momento, para se comprometer com a eliminação
dos subsídios à exportação a CE dificultou bastante o término do processo
negociador se opondo ao uso da expressão "phasing out" (eliminação progressiva)
em relação à redução de todas as formas de subsídios à exportação, "alegando
que esta fórmula prejulgava o resultado das negociações, e poderia inclusive
ser interpretada como eliminação de todos os subsídios durante a fase de
implementação da Rodada" (Amorim e Thorstensen, 2002:67). A sua concordância em
conservar aquele termo no texto Declaração Final ocorreu só após a introdução
da frase "without prejudging the outcome of the negotiations".
Em vista disso, os resultados das negociações em Doha mantiveram na agenda os
subsídios à exportação, com a aprovação da uma redução progressiva dos mesmos
sem no entanto o estabelecimento de prazos. Além do mais, o documento final da
Rodada incluiu de modo inequívoco que "preocupações não-comerciais serão
levadas em consideração nas negociações como previsto no Acordo sobre
Agricultura"11, apesar de não ter contemplado a demanda da CE, do Japão e de
outros países de que constituíssem "um novo 'pilar' das negociações"
(Id.ibid.).
Uma análise do processo negociador que precedeu a VI Ministerial em Hong Kong,
por sua vez, bem como os resultados finais desta reunião demonstra a influência
dos Estados-membro hard-liners e o papel que a Reforma de Meio Período de 2003
teve no sentido de condicionar a posição da UE.
Cabe destacar, contudo, que um novo elemento veio se juntar a esse quadro. Ele
disse respeito ao pouco empenho demonstrado pelos Estados Unidos em avançar nas
propostas de diminuição das políticas de apoio doméstico, entre eles os
pagamentos contra-cíclicos,12 em decorrência da aprovação do Farm Security and
Rural Investment Actem 2002 e que elevou os subsídios domésticos americanos em
US$ 75 milhões para os próximos dez anos.13 Em conseqüência, a posição dos EUA
neste quesito foi defensiva e suas propostas ficaram aquém das propostas
européias. Neste pilar das negociações sobre agricultura, é o ambiente interno
americano que está reduzindo a ambição das transações na área, tema este
relevante, mas que foge ao escopo deste artigo.
Um outro dado dessas negociações é que ele se faz em um contexto de atuação
expressiva do G-20 sob a liderança do Brasil e da Índia. Instituído às vésperas
da V Ministerial em Cancún, o G-20 surgiu como resposta à tentativa de
"bilateralização" das negociações14 ensaiada pelos EUA e a UE ao apresentarem
uma proposta conjunta sobre agricultura que diminuía em muito à ambição do
mandato da Rodada Doha. Pretendia-se repetir, com essa atuação, a experiência
do Acordo de Blair House que possibilitara concluir a Rodada Uruguai, mas que,
paralelamente, eliminara a participação dos países em desenvolvimento no
processo negociador. O desempenho dos EUA e da UE resultou em muita
insatisfação e crítica por parte dos países em desenvolvimento (Trebilcock e
Howse, 1999:262). Em vista disso, cabe assinalar que o G-20 foi responsável por
dar uma nova dinâmica às negociações multilaterais de comércio na OMC,
inserindo nelas um significativo terceiro pólo.
A proposta americana apresentada em 10 de outubro de 2005 à OMC incluiu entre
outras coisas, a eliminação total dos subsídios à exportação a partir de 2010;
um corte em 60% no apoio aos preços domésticos, exigindo um corte para UE e
Japão na faixa de 83%; e uma redução média de 75% nas tarifas agrícolas,
incluindo a redução de 90% nas tarifas mais altas.
A reposta da UE apresentada em 28 de outubro foi bem menos ambiciosa em relação
à eliminação dos subsídios à exportação e a acesso à mercados do que a dos EUA.
Dessa maneira, ainda que concordasse com a proposta de eliminar os subsídios à
exportação, colocou como objeto de negociação a data em que isto deveria
ocorrer, sujeita a movimentos semelhantes das outras contrapartes. O corte
proposto nas tarifas agrícolas foi de 46%, sendo a mais alta diminuída em 60%.
Contudo, em relação ao pilar apoio doméstico a UE propôs a redução de 70% em
subsídios agrícolas que distorcessem o comércio. A proposta de 70% foi
compatível com a soma das reduções da reforma da Política Agrícola Comum de
2003 da UE".15
A proposta da UE, por sua vez, foi acompanhada de vários desdobramentos,
descritos no início deste artigo, quando a França acusou Peter Mandelson de ter
excedido o mandado negociador e ameaçou vetar um possível acordo se ela
implicasse em uma nova reforma da PAC.
A posição do G-20 aproximou-se da dos EUA no que concernia a eliminação total
dos subsídios à exportação a partir de 2010 e acercou-se da UE relativamente à
redução dos subsídios domésticos. O G-20 defendeu a diminuição de 80% nos
subsídios americanos e 75% nos da UE. Em relação a acesso a mercado, o G-20
propôs um corte em média de 54% para os países desenvolvidos.16
Não foi possível se chegar a alguma decisão em relação aos dois pilares, acesso
a mercado e subsídios domésticos, em função das discordâncias entre os três
atores. Concordou-se, no entanto, com a eliminação total dos subsídios à
exportação em 2013, data final de vigência da reforma de Meio Período da PAC de
2003, quando ela, então, deverá passar por uma nova avaliação.
Conclusão
O objetivo deste trabalho foi o de analisar a influência das instituições
políticas e da PAC sobre o comportamento da UE nas negociações comerciais
internacionais no âmbito da agricultura. Buscou-se demonstrar que as normas que
regulam a tomada de decisão na política externa de comércio possibilitam aos
Estados-membro, detentores de uma posição mais próxima ao status quo, usarem do
poder de veto para obter uma ingerência significativa no processo negociador.
Além do mais, investigou-se o quanto a PAC está enraizada nas estruturas
políticas e sociais da UE e o quanto tem sido difícil modificá-la em um sentido
mais liberalizante e competitivo, dada à oposição dos Estados mais
protecionistas.
Os dois elementos - as regras e a política agrícola - aumentam o poder de
barganha da UE nas transações internacionais que envolvem agricultura e tornam
mais difícil para os adversários obterem concessões significativas desse ator
no processo negociador. A averiguação do comportamento da UE na Rodada Doha e
Uruguai corroborou o argumento, pois evidenciou que os resultados alcançados
nessas duas rodadas se aproximaram, em larga medida, das posturas defendidas
pela UE vis à visàs posições de seus opositores.
Sob o ponto de vista teórico, esta pesquisa baseia-se no quadro de referência
dos Jogos de Dois Níveis sugerido por Robert Putnam (1993). O autor argumenta
que, paradoxalmente, quanto menor o win-set de um negociador, isto é, quanto
mais reduzido é o conjunto de alternativas ratificáveis em seu ambiente
doméstico que o ator negociador pode apresentar no nível internacional, maior
capacidade ele possui de conseguir um resultado na mesa de negociação que se
aproxime mais diretamente de seus interesses, (id.ibid., 441-442). Esta
hipótese, como salienta Putnam, calca-se, por sua vez, na abordagem proposta
por Thomas Schelling (1960). De acordo com o autor, "(...) o poder de um
negociador frequentemente está em uma manifesta inabilidade em fazer concessões
e aprovar demandas" (id.ibid: 19). Comentando sobre a autoridade negociadora
americana em acordos comerciais - o instituto da Autoridade de Promoção
Comercial - Schelling afirma: "(...) se o Executivo negocia sob autoridade
legislativa, com sua posição constrangida pela lei (...), então o executivo tem
uma posição que é visível para seus parceiros negociadores" (id.ibid:28).
Contudo, Putnam também argumenta que movimentos no nível internacional são
capazes de interferir no ambiente doméstico do ator negociador e flexibilizá-
lo, aumentando assim as chances para que os opositores possam extrair dele
concessões mais expressivas (Putnam, 1993 :455-456).
No caso específico da UE é preciso considerar além do nível internacional das
negociações e das articulações que se desenvolvem no ambiente doméstico dos
Estados, um terceiro nível, o Comunitário, "no qual os Estados-membro tentam
alcançar objetivos domésticos enquanto simultaneamente perseguem uma cooperação
integrativa" (Patterson, 1997: 141).
Durante as Rodadas Uruguai e Doha foram muito importantes os movimentos que
ocorreram no nível internacional e que tiveram efeitos no nível Comunitário e
doméstico dos países membros. Aquelas pressões conduziram a duas relevantes
reformas da PAC - ainda que não tenham sido os únicos fatores responsáveis por
elas - e que desbloquearam o processo negociador. Neste contexto, vale destacar
o desempenho do G-20 como um elemento fundamental no conjunto de pressões que
interferiram sobre o comportamento da UE.
Por último, é preciso fazer dois comentários sobre os resultados alcançados
neste artigo. Em primeiro lugar, a dinâmica de uma negociação como a que está
ocorrendo na Rodada Doha implica que a restrição no âmbito da agricultura tem
efeitos negativos na capacidade da UE de extrair concessões em outras áreas em
negociação como, por exemplo, acesso a mercado em serviços e indústria. Em
outras palavras, aquilo que é um trunfo em uma área de negociação pode se
transformar em um impedimento em outras.
Nessa situação, além de pressões internacionais se exercerem sobre o âmbito
Comunitário, outros tipos de pressões também ocorrem: a dos setores internos
dos Estados-membro sobre os seus representantes políticos, já que estão
interessados em obter maior acesso em serviços e produtos industriais. Em
conseqüência, o processo negociador no âmbito da UE torna-se mais intrincado o
que pode possibilitar a realização de diferentes tipos de estratégias por parte
de seus adversários.
Em segundo lugar, vale ressaltar que sob o ponto de vista da UE os
constrangimentos colocados para sua atuação, e que se referem à realidade de
suas instituições e da sua política agrária, dificultam processos de mudança
que podem ser mais interessantes sob o ponto de vista dos interesses mais
gerais da UE, e que podem ser provocados pelas transações que se desenrolam ao
nível internacional. Em outras palavras, a possibilidade de que acordos
internacionais possam desencadear mudanças internas positivas é limitada pelo
contexto restritivo ratificador. Sob o ponto de vista dos opositores, os
impedimentos apresentados pela UE nas negociações agrícolas representam um
desafio de formulação de estratégia negociadora, onde a atuação em múltiplos
tabuleiros - no contexto internacional, bem como na esfera de relacionamento
com os governos dos países membros e com seus ambientes domésticos - pode vir a
desempenhar um papel fundamental.