Diplomacia e multilingüismo no Direito Internacional
Introdução
As pesquisas no âmbito do Direito Internacional costumam dar pouca atenção a
dois aspectos inter-relacionados que participam de modo decisivo na criação
deste ramo do direito. São eles: as negociações diplomáticas destinadas à
elaboração dos compromissos jurídicos, e o papel das línguas na elaboração e na
evolução do próprio Direito Internacional. Presentes no processo de negociação
para a elaboração de normas jurídicas, a diplomacia e as línguas estão a
serviço das estratégias de composição e de diferença de posições desejadas
pelos atores da cena internacional.
Eis por que uma eventual ambigüidade do discurso diplomático, antes de ser um
vício que se deve evitar a qualquer custo, pode se apresentar como um tipo de
virtude, uma competência lingüística na qual se espera serem versados os
diplomatas. Ambigüidade da palavra que permite ao seu emissor situar-se
estrategicamente entre o consenso e o dissenso, entre o "não" e o "sim", de
maneira a conceder-lhe uma margem de ação política sem pô-lo em contradição com
seus termos, preservando a sua credibilidade de negociador.
É certo que não se exclui a possibilidade de encontrarmos discursos
diplomáticos marcados por tomadas de posição que se pretende explícitas e
redigidos com o intuito deliberado de afastar quaisquer dúvidas quanto ao
sentido das palavras por eles veiculadas. Mas, de todo modo, quando se trata de
uma relação de contraposição, onde ambas as partes defendem suas posições e
seus interesses, as alternativas incompatíveis (mas não contraditórias, pois
neste caso seriam mutuamente excludentes) tendem a ser objeto de um penoso e
meticuloso trabalho de aproximação dos sentidos das propostas textuais
apresentadas a fim de se chegar a um consenso possível.
O que se negocia são as expressões e seus valores semânticos correspondentes. É
na negociação, segundo observa Philip Allott, que "o mundo apaixonado e
desprovido de formas da política renasce como um mundo de palavras. Questões de
grande conseqüência prática, talvez envolvendo vida e morte em grande escala,
são concentradas na pequenina massa de umas poucas palavras, em uma espécie de
guerra de trincheiras ritualizada, em que grandes vitórias são medidas em
pequenos ganhos de território verbal" (grifo nosso).1 O domínio do discurso da
diplomacia torna-se um requisito importante para o êxito da negociação. Permite
que as partes interessadas possam se entender e ter o poder de se fazerem
compreender de modo cada vez mais claro, se assim desejarem.
A linguagem diplomática, com todas as suas peculiaridades, constitui um
importante instrumento utilizado pelos sujeitos de Direito Internacional em
suas atividades de negociação e, sendo assim, antecede e determina a
conformação do próprio Direito Internacional. Este, uma vez instituído, e na
medida em que constitui a ordem jurídica internacional, servirá de quadro de
referência para novas práticas discursivas diplomáticas. Percebe-se, assim, que
o discurso diplomático tem uma relação estreita com o Direito Internacional. A
realização deste último está condicionada pela existência do primeiro, que, por
sua vez, muito se baseia nas normas jurídicas anteriormente fixadas pelo mesmo
processo de criação.
Cumpre destacar aqui o problema da escolha de uma língua comum para se negociar
e veicular o texto jurídico resultante das negociações internacionais. Este
tema revela uma série de questões que os teóricos do Direito Internacional
pouco tem se debruçado. A principal delas diz respeito à dificuldade de se
neutralizar as diferenças semânticas entre os discursos dos negociadores e
entre as distintas versões lingüísticas dos acordos internacionais por eles
firmados. Esta neutralidade estaria refletida na tentativa dos redatores de
evitar o emprego de termos demasiadamente associados a uma determinada cultura
jurídica. O inglês jurídico, por exemplo, como diz Stéphane Chatillon, "veicula
os conceitos da common law e seu emprego nas relações entre parceiros que não
pertencem a esta cultura jurídica pode conduzir a erros ou a inépcias" (grifo
no original).2
Eis por que um estudo que enfoque os discursos do Direito Internacional não
deve se eximir de enfrentar o problema da diversidade lingüística e cultural
presente na sociedade internacional. Afinal, o paralelismo das versões
lingüísticas de um tratado não garante a identidade entre elas. Como observa
Daniel Jutras, "não há a certeza de que as versões, após passarem
inevitavelmente pelo filtro cultural de línguas e de tradições jurídicas
diferentes, produzam o mesmo efeito e evoluam da mesma maneira para ambas."3
Denys Simon já advertia da possibilidade de os Estados, mesmo agindo de boá-fé,
associarem um sentido diferente aos mesmos termos de um tratado, "considerando
as diversidades lingüísticas ou jurídicas nacionais."4 Estes problemas de
equivalência na interpretação de expressões são inerentes ao plurilingüismo e
ao multiculturalismo jurídico do sistema internacional. Estudá-los pode nos
ajudar a compreender o papel ativo da língua na construção de uma cultura
jurídica global e aquilatar a importância de se explorar as possibilidades de
sentido das palavras que são negociadas em uma negociação internacional.
Neste artigo se visa chamar a atenção para a importância do discurso
diplomático na evolução do Direito Internacional. Enfocaremos o problema da
escolha de uma língua comum e o desafio de se redigir e interpretar versões
lingüísticas de textos jurídicos de acordo com a vontade das partes envolvidas
na negociação. A tradução ocupa aqui um papel central. Ela nos ajuda a
compreender o papel ativo das línguas na elaboração destes documentos
jurídicos. Para o desenvolvimento deste tema, tomaremos como referência o
debate em torno do processo global de "americanização do direito".
A diversidade lingüística e cultural do sistema internacional traz sempre novos
desafios para o estudo do processo de negociação e de interpretação do Direito
Internacional.
O discurso diplomático e o problema da escolha de uma língua comum
Uma questão central para as negociações internacionais diz respeito à escolha
de uma língua comum de referência. Na história da diplomacia, a
interdependência entre língua e nacionalidade associada a pontos de vistas
nacionalistas foi um dos obstáculos para a solução deste problema. A língua
nacional resistia às influências das línguas estrangeiras capazes de
enfraquecer o seu poder na formação da consciência nacional. A ameaça do idioma
estrangeiro residia na pressuposição de que o seu conhecimento atrairia, como
conseqüência, todo um conjunto de informações culturais relacionadas ao país do
idioma em questão.
Para Benedict Anderson, a língua nacional teria sido criação de uma elite
administrativa ou culta, transformada em uma espécie de modelo para a
comunidade maior da "nação". Estas línguas recebiam o status de "línguas-do-
poder".5 A língua dos Estados modernos seria, assim, a língua oficial da elite
dominante, construída e imposta por meio da educação pública, dos mecanismos
administrativos e com o apoio da atividade editorial, notadamente da imprensa,
que teria contribuído para conferir uma fixidez à língua, fazendo-a parecer
"eterna". Por se instituírem com base em uma elite que controlava o poder
estatal, as línguas seriam mais propriamente "de Estado" do que "nacionais".
O princípio da soberania associado ao da igualdade jurídica entre os Estados
serviu não só para justificar medidas de políticas lingüísticas internas, mas
também para apoiar as iniciativas de proteção e promoção da língua nacional nos
foros internacionais. Com base nestes princípios, os Estados viam-se
autorizados a fazer uso de seu idioma oficial ao se comunicarem com outros
países. A igualdade entre os entes soberanos incluiria a prerrogativa da
igualdade lingüística. Para Alexander Ostrower, esta atitude teria
caracterizado a teoria e a prática da diplomacia em todos os períodos da
história.6 Mas a condução das relações internacionais por intermédio das
línguas oficiais dos Estados, apesar de satisfazer as aspirações e o orgulho
dos governantes, gerou obstáculos que de outra forma não existiriam, caso se
optasse pelo uso de um idioma comum.
A utilização de uma mesma língua permitiria criar um padrão mínimo de
comunicação com a ressalva de que ela, como bem observou Pierre Bourdieu,
constitui não só a condição da produção econômica, mas também da dominação
simbólica.7 Assim, a conveniência e a necessidade de adotar-se uma forma
lingüística comum para a comunicação interestatal decorre das vantagens de
ordem prática e das relações de poder.
A guerra das línguas na diplomacia
Louis-Jean Calvet sustenta a idéia de que a história das línguas, sendo um
capítulo da história das sociedades, é marcada por uma relação de violência
umas contra as outras - "porque, se há guerra de línguas, é porque há
plurilingüismo" (grifo no original).8 Esta visão hobbesiana das inter-relações
lingüísticas não ignora as iniciativas de gestão deste plurilingüismo. O
mercado é o exemplo maior. Afinal, "pelo número de línguas que ele põe, em
certos casos, face a face, e pela necessária comunicação que ele implica
(valorizar sua mercadoria, chamar o cliente, perguntar os preços, discuti-
los...), é efetivamente um bom revelador da gestão do plurilingüismo que pode
constituir a prática social (grifo no original)."9 Mas esta afirmação não
afasta o autor de sua idéia central.
A conseqüência lógica de uma guerra das línguas seria a supremacia de uma sobre
as outras, de modo a consagrar, no limite, a existência de uma única língua
universal. O caráter de universalidade de tal língua seria alcançado após uma
longa batalha terminológica travada com outros idiomas que seriam eliminados do
mapa. Este ideal da universalidade lingüística é aqui concebido por meio de um
processo de disputa, diferenciando-se de outras perspectivas mais pacifistas
onde a universalidade não implicaria o aniquilamento de outros sistemas
lingüísticos.
De todo modo, a uniformidade lingüística seria atinente aos significantes10 de
uma língua adotada em escala mundial. Isto não erradicaria totalmente os
'ruídos' nos processos comunicativos internacionais pois não eliminaria os
problemas que surgem na determinação do sentido da mensagem comunicada. Afinal,
os interlocutores podem não compartilhar da mesma visão de mundo. A despeito de
utilizarem as mesmas expressões, os conteúdos a elas vinculados podem ser
diferentes porque distintas são as culturas dos interlocutores.
Para James Boyd White, insistir na adequação da língua universal é um tipo de
tirania. Segundo ele, deve-se reconhecer que os inúmeros idiomas presentes no
planeta não podem ser adequadamente traduzidos em uma "superlíngua", e é neste
plurilingüismo onde residiria, paradoxalmente, a radical igualdade entre os
indivíduos.
Pois se todos nós falamos diferentemente, e não existe nenhuma
superlíngua em que essas diferenças possam ser definidas e julgadas,
o que é necessariamente exigido é uma espécie de negociação entre
nós, eu da minha posição - imbuído da minha língua e cultura - e você
das suas. Nós podemos e fazemos julgamentos, mas precisamos aprender
que eles são limitados e incertos; eles podem representar o que
pensamos, e nesse sentido, podem ser bem firmes, porém eles também
devem refletir o reconhecimento de que tudo isso poderia parecer
diferente desde outros pontos de vista.11
A defesa do plurilingüismo recebe importante apoio de Claude Hagège em seu
trabalho intitulado La souffle de la langue. Sua proposta, referente à
realidade lingüística européia, vai de encontro às tendências favoráveis à
adoção de um idioma comum. Diz ele:
A Europa das línguas tem um destino que lhe é próprio, e não saberia
se inspirar em modelos estrangeiros. Se a adoção de uma língua única
aparecesse nos Estados-Unidos, para cada novo emigrante, como um
carimbo de identidade, o que faz a originalidade da Europa é, ao
contrário, a imensa diversidade das línguas e das culturas que elas
refletem. A dominação de um idioma único, como o inglês, não responde
a este destino, mas sim a abertura permanente à multiplicidade. O
europeu vive em plurilingüismo. Ele deverá educar seus filhos e suas
filhas na variedade das línguas, e não na unidade. Tal é, ao mesmo
tempo, para a Europa, o apelo do passado e do futuro.12
Vale destacar, contudo, que o próprio Claude Hagège não ignora a função do
inglês como língua comum na Europa.13 Mas esta concessão do autor não é feita
sem algumas considerações. Ressalta ele que "o poder do inglês" é de alguma
forma promovido pelos países que falam este idioma. Neste sentido, "as vias da
hegemonia são ainda hoje aquelas que existiram no Império romano. Uma potência
econômica mundial determina-se tanto a servir sua língua como a conquistar
mercados para seus produtos. As duas empresas são, de resto, solidárias, porque
a exportação da língua, de maneira natural, abre o caminho para aquela das
mercadorias".14 A promoção de uma língua comum tem um propósito político e
econômico evidente, e seu domínio tem uma importância considerável no aumento
da competitividade de um país em suas relações internacionais.
A predominância do inglês é discutida por Robert Phillipson em seu livro
intitulado Linguistic imperialism. Nesta obra, a partir do viés lingüístico, o
autor ocupa-se das relações estruturais entre países ricos e pobres e os
mecanismos pelos quais a desigualdade entre eles é mantida. Uma reflexão é
particularmente interessante:
Para nossos propósitos, é necessário estabelecer o imperialismo
lingüístico como um tipo distinto de imperialismo para sermos capazes
de avaliar o seu papel dentro de uma estrutura imperialista como um
todo. O imperialismo lingüístico permeia todos os tipos de
imperialismo por duas razões: a primeira diz respeito à forma (a
língua como um meio de transmissão de idéias), a segunda, ao conteúdo
(grifo nosso).15
Para o autor, o imperialismo lingüístico é um componente primário do
imperialismo cultural. Por meio dele fornece-se não só um sistema de
significantes a ser compartilhado, mas exportam-se conteúdos culturais para
dentro de outros idiomas e, conseqüentemente, de outras culturas.
Obtém-se a supremacia de um sistema de signos16 lingüísticos tanto por meio da
difusão e prevalência de seus significantes, como por meio da disseminação e
fixação de seus significados. O êxito desta empreitada favoreceria outras
formas de imperialismo. Entretanto, a organização dos conteúdos veiculados por
uma língua dá-se de modo diferente e mutuamente indeterminável em cada país ou
cultura. Afinal, como adverte Umberto Eco, a "palavra" só mantém a sua pureza
se não for difundida, do contrário, "ela se 'babeliza'"17. Disseminar um
sistema de signos não é só compartilhar suas expressões, mas realimentá-lo,
ampliando suas possibilidades de sentido para novas e outras práticas de
comunicação e difusão.
A despeito dos riscos de divergências semânticas, o uso de uma língua comum
responde às necessidades de comunicação entre os povos, entre os governos, os
comerciantes, etc. Uma competição lingüística não contribuiria para o
encorajamento de um modus vivendi no sistema internacional. Por este motivo, a
escolha de um idioma comum é sempre o primeiro passo para o diálogo
diplomático.
A busca da "terceira coisa" na negociação do discurso jurídico internacional
O discurso do Direito Internacional é um tipo de discurso diplomático,
resultado da atividade da diplomacia. Trata-se de um dos instrumentos
privilegiados de comunicação no âmbito do sistema internacional. Poder fazer
uso do mesmo significa ter a capacidade de agir juridicamente neste sistema.
Tal discurso é veiculado por meio dos tratados internacionais. É considerado
jurídico em virtude de seu valor normativo, e diplomático pelo fato de que seu
texto decorre do exercício da diplomacia bilateral ou multilateral.
Mas o que este discurso pode ainda ter de característico? De maneira criativa e
esclarecedora, Péter Kovacs explica que a legislação internacional, por
originar-se de um complexo processo de negociação, tem algo em comum com o
salame: "é melhor não estar presente durante sua preparação para poder apreciar
o seu gosto".18 Uma declaração espirituosa que chama a atenção para a
complexidade do processo de negociação do conteúdo do texto normativo
convencional. Para o autor, "a negociação e principalmente a redação do texto
dos tratados internacionais são portadores de compromissos políticos e de
concessões favorecendo muitas vezes a aceitabilidade, mas não a compreensão do
texto elaborado."19 Como diz Gérard Cornu, "a política está na palavra".20 O
tratado resultante das negociações seria uma colcha de retalhos que se espera
cobrir (atender a) todos os interesses visados pelas partes envolvidas. Estas,
porém, podem possuir distintas pretensões e atribuir diferentes sentidos a
respeito do que foi fixado no acordo internacional.
As negociações são levadas a efeito com base das propostas textuais de tratado
preparadas com antecedência pelos Estados. O nó górdio da negociação repousa na
procura por "formas de palavras" aceitáveis para todos os participantes.
Afinal, conforme observa Yves Delahaye, "o negociador que penou durante semanas
ou meses sobre um projeto de acordo, dá naturalmente mais importância a este do
que a outro texto ou palavra que ele ouviu ou mesmo pronunciou ao longo do
debate, qualquer que seja seu orgulho de autor"21. É neste sentido que, para
Philip Allott, a negociação constitui um processo que visa a encontrar uma
"terceira coisa", que nenhuma das partes quer, mas que mesmo assim pode
aceitar. Este entendimento motivou o próprio autor a sugerir uma curiosa
definição para "tratado": "um tratado é um desacordo reduzido a escrito."22
A primeira conseqüência deste entendimento é que o discurso jurídico veiculado
nos tratados não reflete necessariamente a vontade real de todos os Estados que
o negociaram. Seja no que diz respeito ao conteúdo, seja quanto à forma, o
discurso em questão, via de regra, difere daquele que cada um dos Estados,
considerados isoladamente, teria desejado e apresentou na fase de negociações.
Isto é particularmente comum no seio das organizações internacionais. A segunda
conseqüência é que tal discurso, apesar de encerrar a fase de negociação,
inicia um outro processo: o da disputa pelo significado da chamada "terceira
coisa". Ou seja, a palavra que outrora permitiu o consenso entre os
negociadores passa a motivar novas divergências. Presas à "forma da palavra"
que foi consagrada no texto do tratado, as partes direcionam os seus olhares
para o conteúdo. Trata-se de uma batalha de cunho semiótico geralmente
transferida para os mecanismos de solução de controvérsias.
Os órgãos decisórios chamados para examinar a disputa sobre os conteúdos das
palavras terão a incumbência e a oportunidade de eliminar as eventuais
incertezas e as ambigüidades lingüísticas do discurso do Direito Internacional.
Mas a análise deste discurso reveste-se de uma complexidade adicional por se
operar em um sistema multilíngüe. Isto quer dizer que o seu limite é o mesmo de
qualquer outra língua natural: pressupõe um princípio de traduzibilidade. Isto
é, prevê que seus discursos possam ser vertidos para outras línguas, apesar de
cada uma possibilitar formas diferentes de perceber, organizar e interpretar o
direito.
A tradução do Direito Internacional
A intensificação das relações internacionais e a conseqüente multiplicidade de
acordos jurídicos conferem ao fazer tradutório uma importância pouco
considerada pelos juristas. A necessidade de tradução decorre diretamente da
necessidade de comunicação e esta existe tanto no interior de uma mesma língua,
como entre duas línguas onde a mediação do tradutor se impõe.
O termo "traduzir" é um composto prefixado que tem como fonte latina a
expressão transducere, do prefixo trans- ("através") aplicado ao verbo ducere
("conduzir"). Outro paralelo pode ser feito com o verbo latino transferre, de
ferre, "levar", "trazer". Ambas as expressões transmitem um sentido de
"transferência", de "transporte", de "levar ou trazer por meio de", o que
autoriza propor uma definição de tradução como sendo o traspassar das
fronteiras de um texto por meio da condução de seus significados para o
território das formas expressivas de uma outra língua. A situação-tipo em que a
tradução se impõe é aquela em que há um bloqueio parcial ou total na relação
comunicativa emissor '! receptor. Tal bloqueio decorre de interferências na
comunicação provocadas por variações lingüísticas. É o caso, geralmente, de o
receptor não ter um conhecimento satisfatório do vocabulário empregado pelo
emissor. A configuração desta situação-tipo é a seguinte:
A superação do bloqueio na comunicação dá-se com a retomada da relação emissor-
receptor por meio de um novo ato comunicativo, o ato tradutório. É por isto que
devemos considerar a tradução não apenas como um mero intercâmbio de signos
lingüísticos ou um simples processo de transcodificação do texto original, pois
o tradutor não deve negligenciar que a tradução é destinada também a
estabelecer novos processos de comunicação. O tradutor é o emissor do texto a
ser produzido na língua de chegada (Emissor 2 da figura_1), viabilizando a
comunicação entre dois sujeitos: o Emissor 1 e o Receptor 1. Por intermédio da
tradução, uma segunda relação comunicativa substitui a primeira, buscando
estabelecer uma aproximação entre os conteúdos das línguas em presença. É um
processo de comunicação bilíngüe que leva em conta a dimensão cultural dos
falantes.
Neste sentido, pode-se admitir a possibilidade de que um texto jurídico escrito
em português de Portugal, possa ensejar sua tradução para o português falado no
Brasil. Tal situação ocorre porque conteúdos culturais do primeiro sistema de
signos, no qual foi escrito o texto original, diferem daqueles encontrados na
língua do texto da tradução. Traduz-se cultura e não apenas signos
lingüísticos. Maher Abdel Hadi traz alguns exemplos a respeito de expressões
utilizadas por países de língua francesa:
O tradutor inglês ou árabe ao traduzir um texto jurídico belga para o
inglês ou o árabe ficará perplexo diante de algumas expressões como,
por exemplo, o termo 'parastatal' que designa na Bélgica o que está à
margem do Estado enquanto que, no direito francês, é totalmente
desconhecido e não aparece no Larousse. Por outro lado, a noção
jurídica abrangida por este termo existe no direito francês, mas ela
é envolvida por uma outra expressão. Os 'organismes parastataux' da
Bélgica correspondem, na França, às 'collectivités publiques' (grifo
no original).23
Vê-se que a tradução deve tomar o conteúdo como o seu objeto e, sendo assim,
não se limita a comparar expressões. O conteúdo está longe de ser estático e
dado objetivamente, tal como aparenta ser a face expressiva do signo
lingüístico. Isto quer dizer que entre o significante e o significado do texto
"original" existe uma correlação culturalmente sedimentada onde se instala o
problema fundamental da tradução. É por este motivo que o francês jurídico, o
belga ou o da África francófona possuem suas próprias peculiaridades de
sentido. As particularidades da língua e a diversidade cultural contribuem para
o surgimento de problemas práticos decorrentes da não concordância da linguagem
do direito de um sistema jurídico em relação a um outro.
O esforço do tradutor consiste em localizar os significados do texto jurídico
de origem e retransmiti-los em um outro sistema de signos lingüísticos. O ato
de traduzir não seria apenas uma simples trasladação de lexemas com a
conseguinte adequação de sua estrutura sintática. É insuficiente dizer que se
trata de uma operação de representação de um vocábulo por um outro
correspondente em uma outra língua. É, antes, um ato que envolve a compreensão
e a transmissão do sentidodo texto original.
A problemática da relação entre o texto original e o texto da tradução está em
ver este último como sendo uma mediação do primeiro que, por sua vez, passa a
ocupar o lugar da "coisa-em-si", isto é, o lugar do significado que a tradução
apenas substitui. Desde esta perspectiva a tradução estaria para o "original" -
lugar onde repousariam os significados que supostamente estariam a salvo da
relatividade do sentido. Mas todo "original", como os signos que o constituem,
é também mediação e, portanto, também provisório e secundário. É o que sublinha
Rosemary Arrojo:
[...] o significado não se encontra para sempre depositado no texto,
à espera de que um leitor adequado o decifre de maneira correta. O
significado de um texto somente se delineia, e se cria, a partir de
um ato de interpretação, sempre provisória e temporariamente, com
base na ideologia, nos padrões estéticos, éticos e morais, nas
circunstâncias históricas e na psicologia que constituem a comunidade
sociocultural [...] em que é lido. O que vemos num texto é exatamente
o que nossa 'comunidade interpretativa' nos permite ler naquilo que
lemos... [...] Assim, nenhuma tradução pode ser exatamente fiel ao
'original' porque o 'original' não existe como um objeto estável,
guardião implacável das intenções originais de seu autor (grifo
nosso).24
Isto é assim porque não há no discurso original um significado que se refira a
si próprio, mas sim a algo que está 'fora' dele mesmo, qual seja, a realidade
culturalmente constituída. Logo, será frustrada toda tentativa de tradução que
tente reproduzir a totalidade de sentido do discurso 'original', exatamente
porque não há esta 'totalidade', posto que não há texto que esteja imune a
diversas leituras.
Não se transporta um significado do discurso original sem correr o risco de
promover alguma alteração em seu sentido. Para James Boyd White, no processo de
tradução "sempre há ganho e perda, sempre há transformação; o 'significado
original' do texto não pode ser nosso significado, pois ao reformulá-lo em
nossos termos, em nosso mundo, não obstante o quão fielmente ou literalmente,
nós produzimos algo novo e diferente".25 A própria atividade de tradução de
discursos jurídicos não escaparia imune a estas modificações na transposição de
significados jurídicos, exigindo do tradutor uma contínua reflexão sobre o
discurso a ser traduzido e sobre o contexto legal no qual o mesmo se insere.
Isto não implica que o discurso jurídico possa ser recriado livremente em outro
idioma, mas, sim, que é improvável uma tradução capaz de exprimir com exatidão
todos os significados por ele veiculados, ou que reproduza 'fielmente' a
intenção do autor. Isto porque na passagem de uma língua para outra tende-se a
mudar de um universo referencial para outro, podendo envolver realidades
distintas, de cultura a cultura. A apreensão do texto original deve ser
efetuada tendo por pano de fundo o quadro referencial da língua/cultura de
chegada, fazendo com que o produto final - o texto da tradução - possa conter
expressões cujos sentidos não coincidem exatamente com o discurso de origem.
Aquilo que parece culturalmente bem definido em uma língua pode apresentar-se
obscuro ou ambíguo em uma outra. Por estes motivos é que a tradução jurídica,
mesmo vinculada (em maior ou menor grau) ao texto original, recria um novo
texto em uma outra língua. O êxito do ato de tradução depende da competência
referencial e lingüística do tradutor que deve estar consciente dos riscos
deste ato sobre vida dos destinatários do direito traduzido.
O papel ativo da língua estrangeira
O tema da tradução do direito ajuda-nos a revelar o poder da língua estrangeira
na construção e na disseminação de uma cultura jurídica sobre outra no âmbito
do sistema internacional. A noção de poder é aqui associada à força social do
discurso veiculado no texto jurídico convencional. Desde esta perspectiva, tal
poder é diretamente proporcional ao seu efeito na consolidação de uma realidade
jurídicacompartilhada pela sociedade internacional, aumentando as
possibilidades de eficácia do Direito Internacional e investindo o seu conteúdo
de legitimidade.
O ponto de partida para o desenvolvimento deste raciocínio é a obra de Stéphane
Beaulac intitulada The power of language in the making of international law. O
autor desenvolve seu estudo a partir da noção de que a linguagem, por meio do
processo cognitivo da mente humana, pode não só representar a realidade, mas
também ter um papel importante na sua criaçãoe na sua transformação, incluindo
a atividade de modelagem da "consciência compartilhada da sociedade".26 Cada
palavra seria, assim, uma "forma de poder social", um instrumento que poderia
ser utilizado de modo a (re)constituir uma visão de mundo a incidir sobre o
próprio mundo. Expressões como "Estado", "soberania", "livre comércio",
"globalização", "direito", dentre outras, moldurariam a nossa percepção sobre a
realidade internacional, isto é, exerceriam um papel ativo sobre a nossa
compreensão do sistema internacional como ele foi, ée como ele pode ser.
A linguagem é vista como um instrumento que modela a realidade e, como as
palavras mudam, a realidade ajustar-se-ia de maneira apropriada para as
circunstâncias em particular. A alteração da língua, concernente à introdução
de um novo significado por intermédio de um novo significante, reclamaria um
ajuste da realidade. Mas não exclui a via inversa. Um dado novo da realidade
poderia requerer daquela mesma língua uma modificação no seu plano do conteúdo.
No primeiro caso a linguagem assume uma função ativa; e, no segundo, passiva.
Assim, se as transformações na realidade ocasionam alterações em nosso
conhecimento sobre o mundo, as palavras poderiam, por sua vez, constituírem-se
em instrumentos de produção de novos conteúdos sobre a realidade e, por
conseguinte, construírem novas e outras realidades.
A dinâmica do processo cognitivo é que está na base das alterações sobre as
duas dimensões em questão: a da realidade extralingüística e a da palavra
"concretamente" considerada. As mudanças emnossa percepção efetuadas pela
primeira conduzem-nos a retê-las no intelecto e nomeá-las para propósitos de
significação e comunicação. Por outro lado, as mudanças da nossa percepção
sobre aquela 'realidade' conduzem-nos a renomeá-la tendo em conta os conteúdos
de consciência construídos mentalmente.
O que queremos destacar no momento, quanto a este ajuste da percepção da
realidade pelo fato da linguagem, é a palavra considerada dinamicamente como
elemento que contribui para a criação de novas visões de mundo. Assim é que,
para Philip Allott,
Nossas palavras criam nossos mundos. Escolher nossas palavras é
escolher uma forma de vida. Escolher nossas palavras é escolher um
mundo. Confrontar palavras é confrontar uma forma de vida e um mundo.
Modificar palavras é modificar uma forma de vida e um mundo. Podemos
criar novas formas de vida social, novos mundos sociais ao escolher
novas palavras coletivamente, incluindo as novas palavras
constantemente criadas através da redefinição de palavras antigas.
Criar uma nova palavra ou alterar o significado de uma velha palavra
é tornar possível novas realidades.27
É particularmente em relação a este papel ativo da linguagem que se vislumbra a
possibilidade dos signos lingüísticos exercerem um poder na construção social
da realidade. Esta força social da língua participa do processo de formação de
uma cultura jurídica global fortemente influenciada pelas culturas jurídicas
dos países de língua inglesa, notadamente dos Estados Unidos.
O poder da língua inglesa na americanização do direito
Para desenvolver este tópico exploraremos melhor a função ativa da língua
retomando, brevemente, o tema da tradução. Esta é vista por Reib e Vermeer como
"um tipo especial de transferência de valores culturais" (grifo nosso).28
Newmark, por sua vez, entende que a tradução é usada "tanto para transmitir
conhecimento e propiciar a compreensão entre grupos e nações, como também para
transmitir cultura" (grifo nosso).29 Na medida em que importa o conteúdo do
texto original para uma outra língua, a tradução constrói uma ponte entre duas
culturas que, a partir de então, estabelecem contatos entre si. Transporta-se,
pois, um conteúdo cultural, uma visão de mundo que pode ou não se chocar,
adequar-se, identificar-se ou influenciar a outra língua/cultura de chegada.
Estas considerações são relevantes quando encontramo-nos na esfera do Direito
Internacional. A operação intelectual própria da tradução é, ainda que
inconscientemente, freqüente no processo de negociação de um acordo
internacional. Trata-se de um procedimento mental de que lançam mão os
negociadores para se comunicarem em um sistema marcado pelo plurilingüismo e
pelo multiculturalismo jurídico. Mesmo o uso de uma única língua de trabalho
(por exemplo, o inglês), não eliminaria o papel ativo da linguagem. Isto é
válido não só para os falantes de outros idiomas, mas também para os próprios
negociadores que encontram no inglês sua língua de domínio mais ativo. Em
qualquer caso, a tradução para a língua de trabalho dos conteúdos jurídicos
negociados é um método que permite saber o que se está negociando. Afinal, o
que é trazido à mesa de negociação, via idioma de expressão comum, é o conteúdo
cultural - ou, na expressão de Pierre Bourdieu, o capital cultural que é o
capital jurídico.30 Este, por si só, bastante para garantir posições de poder.
A função ativa da linguagem nas relações internacionais está associada ao
"papel histórico" - ou "ativo", como utilizamos - da palavra estrangeira no
processo de formação de todas as civilizações. Para Mikhail Bakhtin,
A palavra estrangeira foi, efetivamente, o veículo da civilização, da
cultura, da religião, da organização política. [...] Esse grandioso
papel organizador da palavra estrangeira - palavra que transporta
consigo forças e estruturas estrangeiras e que algumas vezes é
encontrada por um jovem povo conquistador no território invadido de
uma cultura antiga e poderosa (cultura que, então, escraviza, por
assim dizer, do seu túmulo, a consciência ideológica do povo invasor)
- fez com que, na consciência histórica dos povos, a palavra
estrangeira se fundisse com a idéia de poder, de força, de santidade,
de verdade, e obrigou a reflexão lingüística a voltar-se de maneira
privilegiada para seu estudo (grifo no original).31
Poder-se-ia conjecturar, na linha de um Louis-Jean Calvet, que o referido papel
organizador da palavra estrangeira inscreve-se em meio à guerra das línguas.
Mas, uma vez que esta palavra "transporta consigo forças e estruturas
estrangeiras", poderíamos postular que a guerra das línguas seria apenas o
epifenômeno de uma disputa mais profunda, de ordem cultural mais ampla e que,
em nosso caso, abrange a dimensão jurídica. Esta hipótese parece encontrar
guarida quando defrontamo-nos com o debate atual a respeito da "americanização
do direito". No centro desta discussão está a indagação sobre o peso e o grau
de influência da cultura jurídica estadunidense sobre os diversos direitos e
práticas jurídicas de outros países. Não é outra a preocupação expressada por
Antoine Garapon e Ioannis Papadopoulos: "todos os juristas (à exceção, claro,
dos lawyers americanos que impuseram em quase todo lugar sua maneira de
trabalhar, nivelando por sua oferta a demanda de direito) têm o sentimento de
viver uma certa aculturação jurídica generalizada por conta da competição entre
os sistemas jurídicos."32
A resposta de E. Allan Farnsworth para explicar a "evidente influência
americana" não passa à margem do que estamos tratando neste trabalho. Deixa
explícita a importância de se ter em conta, nesta discussão, as relações entre
direito e língua. Diz ele: "Evidentemente, como outros países vinculados à
common law, os Americanos têm a vantagem de falar inglês. É difícil se lançar
nos negócios internacionais sem uma certa familiaridade com a língua inglesa.
Logo, ter o inglês como língua materna é um grande trunfo."33 A influência do
direito estadunidense também não é negada por Mathias Reimann. Mas ele a vê
desde outro ângulo, o da cultura jurídica em seu sentido mais amplo, e não
somente restrito ao direito positivo. Aquela é associada à prática jurídica,
que sofre um processo de transformação como resultado da globalização do
mercado de serviços jurídicos, "sob dominação americana".34 E acrescenta:
Esta evolução tem também uma ligação estreita com a supremacia do
inglês (americano) como linguagem jurídica internacional. Os negócios
jurídicos internacionais na Europa, e aliás hoje em dia quase no
mundo inteiro, empregam palavras inglesas, bases de dados americanas
e mesmo freqüentemente abordagens americanas em matéria de
negociação, de redação de contrato e de solução de conflitos.35
A língua apresenta-se, mais uma vez, como um fator importante para a
configuração deste cenário de prestígio de um direito sobre outros. É o que
sublinha também Horatia Muir Watt:
Naturalmente, é difícil conceber o prestígio jurídico
independentemente daqueles outros fenômenos culturais, tais como a
língua ou o modelo econômico. A atração exercida atualmente pelo
direito americano sobre outros sistemas do globo se acompanha de uma
ampla difusão da língua inglesa e é dificilmente dissociável da
prosperidade econômica cujo direito em questão é o vetor.36
Associar o aspecto econômicoao par direito-língua traz novos elementos ao
estudo do poder da língua inglesa na formação do discurso jurídico
internacional que servem de contrapeso a uma abordagem marcadamente idealista
que o viés unicamente lingüístico poderia supor. O discurso jurídico em questão
não estaria dissociado da produção das condições de existência material dos
seus emissores e receptores. Ele exprime, no plano do Direito Internacional, as
relações de força (das forças produtivas) presentes na esfera econômica no
âmbito do sistema internacional. De todo modo, a língua tem um papel destacado.
A exportação da língua abre caminho não só para as mercadorias, como sustenta
Claude Hagège37, mas também para os conteúdos jurídicos.
Conclusão
A transposição lingüística de formulações jurídicas e de sentidos jurídicos
oriundos de um meio plurilíngue e multicultural é sempre um desafio para os
profissionais que trabalham com o Direito Internacional. Isto é particularmente
evidente quando se está diante de versões oficiais de tratados internacionais.
A igualdade de valor das múltiplas versões do acordo é, na prática, deplorada
quando o texto inicialmente redigido em um dos idiomas oficiais é, em seguida,
traduzido para uma outra língua também oficial. É neste sentido a advertência
de Gérard Cornu:
Não é menos verdade que, quando um direito nascido em uma língua é
transposto para uma outra, a igualdade de principio das duas versões
não impedirá jamais que, com relação à afinidade natural que reina
entre um direito e sua língua de nascimento, o sucesso da
transposição seja uma conquista de alta luta, fruto do labor e da
pena, o que, em realidade a diferença é sociológica não assegurará
necessariamente uma igual recepção e uma mesma clareza à versão
inevitavelmente marcada de um certo artificialismo.38
Só discordaríamos destas palavras se admitíssemos a hipótese das línguas em
questão terem uma mesma referência cultural e o processo intelectual dos povos
envolvidos fosse idêntico, o que é difícil de se constatar e de se registrar. À
parte esta ressalva, a elaboração de um tratado internacional em um determinado
idioma e sua correspondente tradução para as demais línguas oficiais da
organização internacional levanta questões a respeito da uniformidade de
sentido dos textos em causa. A tradução ocupa, portanto, um lugar importante na
abordagem do discurso diplomático e no estudo da hermenêutica do Direito
Internacional.
A proximidade entre tradução e interpretação resta também evidenciada. Ela
decorre do fato de que ambas são composições de um texto particular como
resposta a um outro texto. Tanto na tradução como na interpretação há a
produção de um segundo texto com referência a um outro. Isto é particularmente
importante no Direito Internacional quando um acordo resultante de uma
negociação internacional, e escrito inicialmente em um idioma, é traduzido para
um outro idioma oficial e interpretado à luz das duas versões lingüísticas.
Ressalta James Boyd White que "o efeito de tal medida não é conferir, por
decreto, a ambas versões o mesmo significado, pois isto é impossível; o efeito
é de simplesmente adiar o problema de diferença de idioma e torná-lo objeto de
negociação em uma data posterior, quando ambos os lados propuserem construções
diferentes do tratado, cada um confiando em sua própria versão."39 As
diferenças de significados entre as versões do tratado seriam resolvidas
ulteriormente por meio dos mecanismos institucionalizados de solução de
controvérsias.
Neste sentido, pode-se afirmar que os textos das versões oficiais do tratado
constituir-se-iam, de algum modo, em discursos jurídico-diplomáticos distintos
tanto na forma quanto no conteúdo. Quer-se dizer que, muito embora sejam
autênticos e façam igualmente fé, os discursos não são idênticos. Mas apesar de
não haver identidade entre as versões, não se pode dizer que se trata de
discursos totalmente incompatíveis. Como observa Francis Henrik Aubert, a
relação entre original e tradução difere da relação entre dois discursos
completamente díspares, uma vez que a primeira relação dá-se por meio de uma
equivalência de mensagens. Mas acrescenta: "Não se trata, nem seria o caso, de
uma mesma mensagem: são duas as mensagens, como são duas as 'roupagens'
lingüísticas, mas visando fins comunicativos similares, que se aproximam o
suficiente (sem se confundirem) para que uma seja percebida como sendo a
tradução - a equivalência - da outra." (grifo no original).40
O efeito prático desta asserção seria a erosão da idéia de que a pluralidade
dos suportes textuais não afetaria em nada a unidade do conteúdo do texto
normativo. Há um enfraquecimento do argumento que sustenta que as versões
traduzidas de tratados não operam modificações (perdas e/ou ganhos), mesmo que
muito particulares, se comparadas ao discurso jurídico da versão original.
Ademais, desmistifica-se o jogo ideológico que atribui apenas ao autor do
"original" o poder de determinar os significados. Este poder de significar não
seria unicamente do autor, mas também do tradutor - mesmo o mais 'fiel' deles -
cuja intervenção não é desinteressada em relação ao original.
O discurso do Direito Internacional é construído por meio de um longo processo
de negociação dos seus conteúdos, onde culturas jurídicas distintas procuram
dialogar e aproximar o seu entendimento sobre o direito à luz dos objetivos que
a sociedade internacional almeja. O desafio posto para aqueles que trabalham
com o Direito Internacional é o de compreender o sistema jurídico desde outras
possibilidades de sentido, desde outras realidades culturais. Se, de um lado,
isto exige do jurista, do internacionalista, do diplomata etc., competências e
habilidades muito amplas e complexas, de outro, convida-nos a construir um
mundo mais aberto à experiência da alteridade, oferecendo ao Direito
Internacional a oportunidade de ser a expressão legítima da vontade dos povos.
1. ALLOTT, Philip. The concept of international law. European Journal of
International Law (EJIL), v. 10, Nº 1, 1999, p. 46.
2. CHATILLON, Stéphane. Droit et langue. Revue International de Droit Comparé,
Nº 3, juil.-sept. 2002, p. 715.
3. JUTRAS, Daniel. Énoncer l'indicible: le droit entre langues et traditions.
Revue Internationale de Droit Comparé, Nº 4, oct.-déc. 2000, p. 786.
4. SIMON, Denys. L'interprétation judiciaire des traités d'organisations
internationales: morphologie des conventions et fonction juridictionnelle.
Paris: Pedone, 1981, p. 130-131.
5. ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional, São Paulo: Ática, 1989, p.
46 a 55.
6. OSTROWER, Alexander. Language, law and diplomacy: a study of linguistic
diversity in official international relations and international law.
Philadelphia: University of Pennsylvania, 1965. v. 1, p. 732.
7. BOURDIEU, Pierre. ¿Qué significa hablar? Economía de los intercambios
lingüísticos. 2. ed. Madrid: Akal, 1999, p. 19.
8. CALVET, Louis-Jean. La guerre des langues et les politiques linguistiques.
Paris: Hachette, 1999, p. 10.
9. Ibid., p. 108.
10. O termo "significante" é aqui considerado como sendo a "expressão" da
palavra, isto é, a face concreta (audível, visível ou tangível) da palavra que
o sujeito detecta antes de associá-la a um conteúdo.
11. WHITE, James Boyd. Justice as translation: an essay in cultural and legal
criticism. Chicago, London: The University of Chicago Press, 1994, p. 264.
12. HAGÈGE, Claude. Le souffle de la langue. Paris: Odile Jacob, 2000, p. 8-9.
13. As informações contidas no sítio eletrônico da União Européia corroboram a
posição do autor. O inglês é a língua mais "falada" da União Européia. Dos 47%
dos cidadãos que a falam, 16% a têm como sua língua materna e 31% a falam
"suficientemente bem para manter uma conversa". Para mais informações
consultar: http://europa.eu.int/_comm/education/policies/_lang/languages/lang/
europeanlanguages_pt.html.
14. HAGÈGE, Claude. Le souffle de la sangue, Op. cit., p. 42.
15. PHILLIPSON, Robert. Linguistic imperialism. Oxford: Oxford University
Press, 1993, p. 53.
16. O "signo" pode ser aqui entendido como sendo "tudo quanto, à base de uma
convenção social previamente aceita, possa ser entendido como algo que está no
lugar de outra coisa(grifo no original)." (ECO, Umberto. Tratado geral de
semiótica, 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 11,. Neste
trabalho, o signo lingüístico pode ser compreendido como sendo o resultado da
combinação entre o significante e o significado de uma palavra.
17. ECO, Umberto. A busca da língua perfeita na cultura européia. Bauru: EDUSC,
2001, p. 384.
18. KOVACS, Péter. Developpement et limites de la jurisprudence en droit
international. In: La juridictionnalisation du droit international. Paris:
Pedone, 2003, p. 269.
19. Ibid., p. 269.
20. CORNU, Gérard. Linguistique juridique, 2e. éd. Paris: Montchrestien, 2000,
p. 317.
21. DELAHAYE, Yves. La frontière et le texte: pour une sémiotique des relations
internationales. Paris: Payot, 1977, p. 28.
22. ALLOTT, Philip. The concept of international law, Op. cit., p. 43.
23. HADI, Maher Abdel. Géographie politique et traduction juridique: le
problème de la terminologie. Terminologie et Traduction, Nº 2/3, 1992, p. 49-
50.
24. ARROJO, Rosemary. Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio de Janeiro:
Imago, 1993, p. 19.
25. WHITE, James Boyd. Justice as translation, Op. cit., p. 241.
26. BEAULAC, Stéphane. The power of language in the making of international
law: the word sovereignty in Bodin and Vattel and the myth of Westphalia.
Leiden; Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2004, p. 1.
27. ALLOTT, Philip. Eunomia: new order for a new world. New York: Oxford
University Press, 1990, p. 6.
28. Apud AZENHA JUNIOR, João. Tradução técnica e condicionantes culturais:
primeiros passos para um estudo integrado. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP,
1999, p. 31.
29. NEWMARK, P. Apud. Ibid., p. 31.
30. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2002, p. 242.
31. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais
do método sociológico na ciência da linguagem. 10. ed. São Paulo: Hucitec;
Annablume, 2002, p. 101.
32. GARAPON, Antoine; PAPADOPOULOS, Ioannis. Juger en Amérique et en France:
culture juridique française et common law. Paris: Odile Jacob, 2003, p. 13-14.
33. FARNSWORTH, E. Allan. L'américanisation du droit: mythes ou réalités.
Archives de Philosophie du Droit, Paris: Dalloz, t. 45, 2001, p. 24.
34. REIMANN, Mathias. Droit positif et culture juridique: l'américanisation du
droit européen par reception. Archives de Philosophie du Droit, Paris: Dalloz,
t. 45, 2001, op. cit., p. 72.
35. Idem, loc. cit.
36. WATT, Horatia Muir. Propos liminaires sur le prestige du modèle américain.
Archives de Philosophie du Droit, Paris: Dalloz, t. 45, 2001, p. 32.
37. HAGÈGE, Claude. Le souffle de la langue, Op. cit., p. 42.
38. CORNU, Gérard. Linguistique juridique, Op. cit., p. 12.
39. WHITE, James Boyd. Justice as translation, Op. cit., p. 245.
40. AUBERT, Francis Henrik. As (in)fidelidades da tradução: servidões e
autonomia do tradutor. 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994, p. 32.