Política externa planejada: os planos plurianuais e a ação internacional do
Brasil, de Cardoso a Lula (1995-2008)
Introdução
O Brasil tem uma sólida tradição em planejamento, que começou a ganhar corpo a
partir da primeira metade do século passado. Desde o Plano Salte, no Governo de
Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek,
(1956-1961) até os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs) da década de
1970, o país acumulou uma bagagem valiosa em termos de planejamento
governamental que, dentro das estratégias de desenvolvimento nacional, sempre
tiveram impactos no modo pelo qual o país se lançava ao mundo e definia suas
prioridades para as relações internacionais (ALMEIDA, 2004).
A partir do III Plano Nacional de Desenvolvimento - PND, que cobriu o mandato
do último governo militar, de 1979 a 1985, e com o I Plano Nacional de
Desenvolvimento da Nova República, que data de 1986, os principais instrumentos
do planejamento federal passaram a representar documentos meramente formais.
Com o ritmo inflacionário ganhando força, os planos e os orçamentos estatais,
sem uma revisão periódica consistente, tornavam-se rapidamente peças
declaratórias da reduzida capacidade de implementação do Estado brasileiro.
A Constituição de 1988 tentou resgatar a importância do planejamento,
implementando os planos plurianuais (PPAs), hierarquicamente superiores e
vinculantes às leis orçamentárias, e tornando crime de responsabilidade do
presidente da República, sujeito à impedimento, o seu não envio ao Congresso
Nacional até do dia 31 de agosto do primeiro ano de governo. O primeiro plano
feito nas novas bases, o Plano Plurianual 1991-1995, no entanto, foi elaborado
com o objetivo principal de apenas cumprir os preceitos constitucionais, se
revelando mais uma peça formal, conforme reconhece o próprio Ministério do
Planejamento (MPOG, 2002).
É a partir de 1996 que os planos plurianuais passam não só a se constituir no
principal elemento organizador da ação governamental, mas também a apresentar
os grandes objetivos e delineamentos estratégicos a serem desenvolvidos para
cada período de quatro anos. São eles os documentos herdeiros dos grandes
planos que orientaram o estado desenvolvimentista das décadas de 1950 - 1970.
Ainda assim, embora esses novos planos tenham ganhado espaço em artigos de
revistas especializadas em economia e administração pública, os impactos dos
projetos e ações neles delineados e as suas repercussões sobre a capacidade de
ação internacional do país permaneceram desconhecidos para a área de relações
internacionais, particularmente para aqueles interessados em política externa
brasileira.
A relação entre os planos de governos e as relações exteriores é bastante
óbvia. Como o modelo desenvolvimentista que esteve em voga no Brasil por boa
parte do século XX, segundo aponta Cervo, concedia uma função supletiva ao
setor externo no projeto de desenvolvimento nacional, isso teve reflexos na
política externa brasileira que teve de se apropriar de determinadas
características para desempenhar seu papel (CERVO & BEUNO, 2002). A
política externa deve ser vista como mais um meio a ser articulado para a busca
dos objetivos maiores da nação explicitados no planejamento estatal. Ao se
definir determinada estratégia de desenvolvimento a ser perseguida, a política
externa cumpre seu papel buscando a mobilização de recursos externos, seja sob
a forma de mecanismos de financiamento, seja pelo acesso a bens de capital ou
tecnologias essenciais para o desenvolvimento industrial do país, por exemplo,
ou mesmo na busca de mercados externos ou parceiros estratégicos para investir
diretamente em setores considerados essenciais em determinado plano. Os planos
terão, pois, invariavelmente, reflexos sobre as linhas de ação externa
adotadas. Os planos de governo expressam as estratégias a serem adotadas e,
nela, qual o papel que concedem à política externa no período específico. Como
salienta Soares de Lima, a política externa "tem sido considerada como um dos
principais instrumentos para propósitos de desenvolvimento" (SOARES DE LIMA,
2005).
Com isso, este artigo tem como objetivo central trazer à discussão das relações
internacionais e da política externa brasileira os planos plurianuais, desde o
PPA 1996-1999 até o PPA 2008-2011. Busca-se apresentar as linhas estratégicas
dos planos e como contemplam as relações externas do país, dentro do quadro dos
grandes objetivos e metas estipulados. Assim, procura-se investigar a coerência
entre o planejado e o executado no período, que informa a validade do
instrumento enquanto objeto de estudo da área. Por fim, permite perceber a
racionalidade com a qual a política externa é concebida, como parte de um plano
de desenvolvimento, ainda que se possa questionar seus pressupostos, bases ou
seleção de objetivos. Trata-se de identificar o fio condutor das ações externas
do país que as amarram ao núcleo de uma estratégia de desenvolvimento nacional.
Investiga, portanto, se a política externa brasileira tem sido planejada em
conjunto com as demais ações de governo, ou o quanto dessa importante política
pública pode ser errática ou episódica.
PPA 1996/1999 - Estabilidade econômica, modernização e a negligência da
política externa
O primeiro Plano Plurianual (PPA) pós-constituição de 1988 foi elaborado apenas
como peça formal a cumprir os ordenamentos legais estabelecidos pela magna
carta, abrangendo o período de 1991 a 1995. O PPA iria se transformar
efetivamente em uma ferramenta de planejamento da ação estatal, entretanto,
apenas após a estabilização monetária alcançada em 1994, com o Plano Real.
Sob a coordenação do então ministro do Planejamento José Serra, o Plano
Plurianual 1996-1999 foi marcado pela priorização aos processos de
estabilização econômica, reforma do Estado e desestatizações. Estabelecia como
premissa básica a necessidade de consolidação da estabilidade, submetendo as
políticas macroeconômicas e setoriais à política monetária. O plano é um
retrato do pensamento liberal em voga na América Latina nos anos 90. Abertura
comercial e desregulamentação estão entre as premissas básicas, que ainda
direcionava ao setor privado parte substancial dos investimentos mais
importantes previstos no plano, entre os quais os de infra-estrutura
energética, que, por terem sido, em parte, frustrados, acabaram induzindo ao
apagão energético do início dos anos 2000.
Três estratégias de ação convergiram para desenhar a estratégia de
desenvolvimento que o país então adotava: construção de um Estado moderno e
eficiente; redução dos desequilíbrios espaciais e sociais; inserção competitiva
e modernização produtiva (MPOG, 1996). Esta última assentava-se na abertura da
economia, qualificação da mão-de-obra, com atenção especial à educação básica,
e à flexibilização das leis trabalhistas, enquanto a modernização do Estado
estava associada à melhoria do corpo técnico de servidores.
A cada linha estratégica, associava-se um conjunto de diretrizes, no total de
23, que deveriam orientar os projetos e ações do plano. Em nenhuma delas, no
entanto, faz-se qualquer menção às linhas de ação de política externa a serem
priorizadas no período ou como a atuação externa do país estaria a serviço de
seu desenvolvimento.
Todavia, isso não chegava a representar negligência ou incoerência do PPA com a
política externa depreendida no período. Na visão de Amado Cervo, dando
continuidade à ruptura empreendida por Fernando Collor de Melo, Cardoso
consolidou uma política de abertura econômica como eixo diretor da ação
internacional do Brasil, sem estratégia de inserção madura no mundo da
interdependência global na ascenção do que chama de paradigma do Estado Normal
no Brasil (CERVO, 2003b). Já Soares de Lima destaca, por seu turno, a
existência de uma estratégia para obtenção da credibilidade internacional do
país, na qual "a restauração da confiabilidade e da credibilidade
internacionais está associada à vinculação da política externa à política
econômica interna", a qual seguia os princípios hegemônicos do Consenso de
Washington (SOARES DE LIMA, 2005).
Na busca de uma participação ativa na vida internacional, nos organismos e
regimes multilaterais, reverenciavam-se as fórmulas externas, mas alcançava-se
uma inserção dependente. Na interpretação de Vigevani, a política externa do
governo Cardoso procurou ter uma posição menos forte, de perfil mais moderado,
"em que a ação externa se daria em um contexto de colaboração com iniciativas
resultantes de órgãos internacionais, evitando assumir um papel internacional
que resultasse em responsabilidades e riscos" (VIGEVANI & CEPALUNI, 2007).
A obtenção da credibilidade por meio da aplicação da agenda econômica
pretensamente consensuada de então tornava incompatível uma postura externa
mais assertiva em temas centrais.
Nesse ponto, a indefinição quanto às linhas estratégicas a serem seguidas pela
política externa apresenta uma certa instrumentalidade. O ajuste aos
ordenamentos externos, na aceitação dos preceitos de soberania compartilhada,
conceito naturalmente aceito por Cardoso como mais uma face da inevitável onda
globalizatória, era a ordem estratégica para a movimentação externa do país. O
desenvolvimento não saía do horizonte da política externa, mas uma política
externa autônoma não era vista como necessária para o alcance dos objetivos
pretendidos. Bernal-Meza, em referência a Igor Fuser, coloca em termos de que
"arquivada a idéia de um projeto autônomo de desenvolvimento nacional, restava
ao país inserir-se passivamente na economia globalizada", destacando que o
"estilo da política (de Cardoso) foi marcadamente de caráter passivo,
conseqüência de problemas econômicos conjunturais e estruturais internos num
contexto de crise econômica que se estendeu até os anos 2000 (BERNAL-MEZA,
2002).
Mais, portanto, que autonomia pela participação, o conceito apropriado pelo
plano plurianual seria o de desenvolvimento pela aceitação, principalmente no
tocante à inserção econômica internacional do país (FONSECA Jr, 1998). Praticar
as reformas conforme receitado, esvaziar o papel central ocupado pelo Estado na
economia e tratar de atrair, pelo bom comportamento, o investimento externo
ansioso pela parceria entre baixo risco e alto lucro. Os planejadores e os
dirigentes da política externa brasileira no primeiro governo Cardoso viam que,
somente dessa forma, o Brasil teria concedido o seu direito a uma consideração
mais alta nas relações políticas e econômicas internacionais.
Mesmo Gelson Fonseca Jr., que define a autonomia pela participação como marca
da política externa brasileira da década de 1990, admite que no processo de
buscar legitimidade nas relações internacionais, uma das dimensões "nasce da
maneira como cada país lida com temas indicados, o que se torna, assim, um dos
fatores que servem para definir as possibilidades e o nível de participação
legítima que pode alcançar no sistema internacional" (FONSECA Jr, 1998). E
mais, que a primeira tarefa da diplomacia seria de natureza didática, não
buscando a síntese do interesse nacional, mas "ensinando" os atores nacionais a
conviver e aceitar com as novas regras internacionais. Todavia, ele próprio
também aponta que o Brasil continuava considerando o desenvolvimento como tema
"inescapável" da sua agenda internacional.
As crises financeiras do final dos anos 90 demonstraram que essa estratégia era
falha. Mesmo aplicando uma política fiscal restritiva, privatizando setores
importantes da economia nacional e implementando reformas liberalizantes, todas
iniciativas contidas no receituário do chamado "Consenso de Washington", o
Brasil foi fortemente afetado pelos efeitos da crise econômica e alcançou
resultados medíocres em termos de desenvolvimento e crescimento econômico.
Todavia, o cerne da estratégia do plano plurianual, a estabilidade monetária,
se mostrava bastante consistente.
Ademais, a modernização produtiva que teria como conseqüência uma inserção
competitiva no cenário global também não se deu de forma a promover mudanças
significativas na estrutura produtiva nacional. Segundo Machado, nos anos 90
percebeu-se duas modalidades de modernização no Brasil, uma centrada em
processos de racionalização e introdução de inovações organizacionais ou novas
formas de gestão - terceirização, abandono de linhas de produtos com custos não
competitivos, substituição de fornecedores locais por importados - e outra
referente à modernização da pauta de consumo, seja pela entrada de oligopólios
internacionais que miravam o mercado interno ou por conta da abertura comercial
(MACHADO, 2008). Cabe mencionar que o coeficiente de importações da indústria
de transformação brasileira apresenta um salto na década de 1990, subindo de 4%
em 1991 para 13% em 2000 - preços constantes de 2000 -, passando de 9,6% em
1996 para 13,97% em 99 (LEVY & SERRA, 2009). Esse processo de modernização,
ainda segundo Machado, "não redunda na criação e consolidação de uma estrutura
produtiva industrial que fosse capaz de gerar um núcleo endógeno de inovação"
(MACHADO, 2008).
Os efeitos dessa linha de ação sobre o mercado de trabalho também foram
perversos. Houve um acréscimo de quase 50% no nível de desemprego entre janeiro
de 1996 e dezembro de 1999 na região metropolitana de São Paulo, enquanto o
rendimento médio real trimestral, no mesmo período, caiu mais de 10%, conforme
dados da pesquisa de emprego e desemprego do DIEESE. Por fim, os efeitos sobre
o balanço de pagamentos, seja por conta do aumento das importações - também
estimulada pela política cambial da época - ou pela remessa de lucros e
dividendos das empresas internacionais que atuavam no Brasil e que, conforme
Cervo, juntamente com a especulação financeira, se tornavam uma nova via de
dependência, aumentavam a vulnerabilidade externa do país (CERVO, 2002).
Assim, a negligência da política externa pelo PPA 1996-1999 e a obediência
servil aos receituários hegemônicos que ecoaram em diversos países na América
do Sul mostravam-se equivocados. O segundo governo Cardoso, por outro lado,
encarou com mais sobriedade a realidade internacional, proferindo um discurso
de cautela com relação aos efeitos nefastos de uma globalização assimétrica1. E
o plano plurianual 2000-2003, refletindo esses ajustes, buscou inovações nesse
sentido, resgatando o papel da política externa como elemento importante para a
estratégia de desenvolvimento esboçada pelo governo.
PPA 2000-2003: um novo planejamento e o resgate da política externa
O plano plurianual passou por uma reformulação a partir da promulgação do
Decreto 2.829, ao final de 1998, que estabeleceu novas regras para a sua
elaboração e gestão. Organizando toda a ação de governo em torno de programas,
os quais deveriam ser desenhados para enfrentar um problema específico na
sociedade, o PPA passava a ter uma identificação total com os orçamentos
anuais, sendo, na sua parte tática, considerado como um grande orçamento de
quatro anos, sem expressar com clareza as prioridades estabelecidas pelo
governo (Ipea, 2008).
Ainda que não expressasse diretamente no conjunto amplo das ações de governo, o
PPA 2000-2003 apresentava uma orientação estratégica composta por seis grandes
diretrizes, desdobradas em 28 objetivos de governo. Cabe ressaltar que duas das
diretrizes que compunham as orientações estratégicas do plano não foram
projetos do executivo, mas propostas do Congresso Nacional que acabaram
incorporadas no plano de governo.
A estabilidade econômica continuava em destaque. O sucesso na garantia do
controle da inflação deveria permanecer como trunfo essencial para os próximos
quatro anos. Frente aos impactos nefastos sobre o mercado de trabalho que se
verificou no período anterior, expostos acima, a segunda diretriz tratava da
promoção do desenvolvimento sustentável e da geração de emprego e oportunidades
de renda.
Combater a pobreza, promover a cidadania e a inclusão social e consolidar a
democracia e a defesa dos direitos humanos compunham as diretrizes iniciais
enviadas pelo governo ao Congresso Nacional. Garantir a estabilidade e buscar o
resgate social numa sociedade severamente afetada pelas crises financeiras do
final dos anos 90 era a agenda do segundo governo Cardoso. Reduzir as
desigualdades inter-regionais e promover os direitos de minorias vítimas de
preconceito e discriminação foram as duas diretrizes enxertadas pelo congresso
nacional ao plano plurianual.
Dentre os 28 objetivos de governo, destacam-se, por fazerem referência
explícita as relações internacionais do país, atingir 100 bilhões de dólares de
exportação até 2002 e fortalecer a participação do país nas relações econômicas
internacionais. A política externa voltava a constar do planejamento do
desenvolvimento nacional, sendo elemento importante das orientações
estratégicas do segundo governo Cardoso.
O PPA enfatizava a importância da Organização Mundial do Comércio - OMC, e as
negociações patrocinadas pela organização deveriam ocupar lugar especial na
política de comércio exterior brasileira. Além disso, inseria linhas de
financiamento à exportação, ações de suporte aos setores exportadores, além de
desenvolvimento de uma cultura exportadora no empresariado nacional.
Segundo dados do Banco Central, o Brasil fechou o ano de 2002, contudo, com
pouco mais de 60 bilhões de dólares em exportações. Apenas em 2005 o balanço de
pagamentos apresentou exportações anuais acima de 100 bilhões de dólares,
chegando a 118,3 naquele ano, depois de ter alcançado aproximadamente 96,5
bilhões de dólares em 2004. Obviamente, o aumento do preço das commodities no
mercado internacional contribuíram bastante nessa escalada, que apresentou um
salto de 21% entre 2003 e 2002, e mais 32% em 2004 com relação aos resultados
obtidos no ano anterior. Todavia, o PPA não apresentava outras metas que
pudessem expressar mais a influência direta das ações de governo sobre dinâmica
exportadora. Volume exportado, diversificação da pauta exportadora, número de
empresas exportadoras ou participação brasileira no comércio internacional não
são mencionados.
Segundo as orientações estratégicas do PPA 2000-2003, o respeito e a
credibilidade internacional do Brasil abriam caminho para aumento da sua
participação nas relações econômicas internacionais e na discussão dos grandes
problemas mundiais. Alinhado com o discurso do presidente que apontava para os
efeitos da globalização assimétrica, após a crença kantiana no multilateralismo
internacional ter se arrefecido, o plano plurianual defendia a participação do
Brasil nas discussões da nova ordem econômica mundial que se insinuava após as
graves crises financeiras da década de 1990. Apontava-se com preocupação para a
desigualdade entre as nações, e aos efeitos desiguais, prejudiciais aos países
em desenvolvimento, que as crises produziram e que a globalização, por si só,
não equacionava (MPOG, 2000).
O plano não se furtava também em apresentar os parceiros-chave do Brasil na
consecução da sua estratégia de desenvolvimento. Em primeiro lugar, o Mercosul,
que completaria seus dez anos de existência e tinha, até então, apresentado
resultados animadores. Em 1991, o Brasil respondia por pouco mais de 12% das
exportações argentinas, e em 1998 as importações brasileiras advindas do país
vizinho já representavam mais de 30% da sua pauta de exportações. As
importações argentinas de produtos brasileiros representavam, em 1991, 17,5% do
total das importações do país. Em 1998, esse número era de 22,5% (COUTO, 2006).
Cabe lembrar, no entanto, que a abrupta desvalorização do Real nos primeiros
meses de 1999, ano em que se elaborava o PPA 2000-2003, tinha gerado uma crise
entre os membros do bloco, suscitando dúvidas quanto ao seu futuro.
Repercutindo os sinais de crise eminente que se abatiam sobre o ânimo do
projeto de integração, o embaixador argentino creditado no Brasil à época,
Jorge Hugo Herrera Vegas, escrevera num artigo publicado na Revista Brasileira
de Política Internacional - RBPI, a respeito da desvalorização do Real naquele
ano, que o mal já havia sido feito, mas que era necessária uma coordenação das
políticas macroeconômicas intra-bloco para que perturbações dessa natureza não
colocassem o Mercosul em perigo (VEGAS, 1999).
Em termos concretos, a desvalorização do real teve impactos consideráveis sobre
o comércio entre os dois principais parceiros do Mercosul. Em 1999, houve uma
redução de quase 30% nas exportações argentinas para o Brasil, em relação ao
ano anterior. As importações argentinas de produtos brasileiros recuaram também
20% no mesmo período. Com isso, a definição do Bloco como parceiro preferencial
na estratégia de inserção internacional do Brasil e elemento essencial do
planejamento do seu desenvolvimento servia, sobretudo, para reafirmar o
compromisso brasileiro com o projeto de integração após os questionamentos
colocados em pauta pelos vizinhos. Todavia, é num horizonte regional ampliado
que o Brasil lançava as sementes mais fecundas da estratégia de desenvolvimento
do PPA 2000-2003.
É nesse contexto que começa a se afirmar a América do Sul como plataforma
regional preferencial do Brasil. Após um flerte com a região, no início dos
anos 90, com a proposta de criação dae uma Área de Livre Comércio da América do
Sul - ALCSA, o governo brasileiro, a partir dos anos 2000, assumiu a América do
Sul como sua referência regional imediata, em substituição à América Latina ou
ao próprio Mercosul, e isto já é declarado no plano plurianual elaborado em
1999. No ano seguinte ocorreria, em Brasília, a primeira reunião de presidentes
dos países da América do Sul.
Em terceiro lugar, o objetivo do governo priorizava as relações com a União
Européia. De outra parte, não citava nominalmente os Estados Unidos ou a Alca,
mas afirmava que "o Brasil quer participar de um processo mais amplo de
integração, que permitirá a criação de um espaço econômico no continente,
marcado pelo equilíbrio de vantagens e por verdadeiro sentido de cooperação"
(MPOG, 2000). Destacava, no entanto, os esforços para diminuir as barreiras
tarifárias às exportações brasileiras, discriminando os casos do aço, suco de
laranja, a carne e o açúcar, parte importante das quais se erguiam justamente
no mercado norte-americano.
Por fim, revelava que o governo deveria buscar alternativas para proteger o
país das crises financeiras internacionais. Assim, propõe a criação de
mecanismos multilaterais que pudessem reduzir as turbulências internacionais e
"permitir ao Brasil participar das discussões sobre os rumos da economia
mundial" (MPOG, 2000).
Nesse sentido, há um resgate da política externa no PPA 2000-2003 desde o
reconhecimento de sua importância para concretizar os avanços necessários ao
desenvolvimento. As crises financeiras internacionais do final dos anos 90
haviam mostrado que não bastava apenas seguir as regras internacionais postas,
mas também precisava-se tratar de modificá-las. A América do Sul, frente à
instabilidade do Mercosul, revelava-se como plataforma regional preferencial
para o Brasil se preparar para os desafios de uma inserção competitiva
internacional.
PPA 2004-2007: a política externa para a promoção do Consumo de Massas e a
formação de novas parcerias
A transição do Governo Cardoso para o Governo Lula envolveu-se de grande
expectativa por conta da mudança que se alardeava. Enquanto assumia as ações
orçamentárias dispostas na Lei Orçamentária Anual proposta pelo executivo no
ano anterior e a estrutura programática do PPA 2000-2003, o novo governo ao
mesmo tempo desconsiderava os seus pressupostos estratégicos, valendo-se da
fraca amarração entre as esferas estratégica e tática/operacional.
Notadamente, era a primeira transição de governo desde que se assumia o Plano
Plurianual, além de um mero dispositivo constitucional, como o principal
instrumento do planejamento brasileiro, a ferramenta de ligação entre as
intenções de médio prazo e a operacionalidade da máquina pública no curto
prazo. A elaboração do novo plano ganhava, portanto, a atenção especial do novo
grupo dirigente e até dos movimentos sociais organizados que tinham uma ligação
histórica com o Partido dos Trabalhadores.
Assim, e alinhado com as experiências administrativas petistas em
administrações municipais e estaduais, pretendeu-se construir um plano de forma
participativa, com o "envolvimento direto da sociedade". As relações formais,
institucionalizadas, do Governo com a sociedade, nas figuras dos conselhos
nacionais setoriais, ficaram em segundo plano. Em destaque, uma participação
assembleística nos 26 estados da federação e do Distrito Federal, juntando
representantes dos governos estaduais e da sociedade civil organizada, num
total de mais de duas mil entidades representadas, para debater e definir os
desafios centrais do governo que deveriam estar expressos no plano. Segundo o
próprio texto introdutório do PPA, "a construção e a gestão do Plano a partir
de um amplo debate com a sociedade busca a implantação de um novo padrão de
relação entre Estado e sociedade, marcado pela transparência, solidariedade e
corresponsabilidade"(MPOG, 2004).
A proposta de lei para o Plano Plurianual 2004-2007 foi entregue pelo Executivo
no Congresso Nacional no final de agosto de 2003, como previa o decreto 2.829/
98. Sua configuração compunha-se de uma estratégia de longo prazo baseada na
promoção de um mercado interno de consumo de massa, com três grandes objetivos
de governo claramente demarcados nas áreas social, econômica e institucional.
Esses objetivos desdobram-se em trinta desafios, esses o principal aspecto
debatido nos fóruns de participação social. E, por fim, cada desafio
desdobrava-se em diretrizes de ação que seriam posteriormente vinculados aos
programas e ações do PPA e das leis orçamentárias anuais.
A estratégia de desenvolvimento de longo prazo ganhava destaque neste PPA.
Ausente no plano anterior, parte de um diagnóstico que identificava os
principais problemas a serem enfrentados, dentre os quais se destacava a
concentração social e espacial da renda e riqueza, pobreza e exclusão social,
desrespeito aos direitos fundamentais da cidadania, degradação ambiental, baixa
criação de empregos e "as barreiras para a transformação dos ganhos de
produtividade em aumento de rendimentos da grande maioria das famílias
trabalhadoras". Prenuncia da seguinte forma a estratégia formulada:
Inclusão social e desconcentração de renda com vigoroso crescimento
do produto e do emprego; crescimento ambientalmente sustentável,
redutor das disparidades regionais, dinamizado pelo mercado de
consumo de massa, por investimentos, e por elevação da produtividade;
redução da vulnerabilidade externa por meio da expansão das
atividades competitivas que viabilizam esse crescimento sustentado; e
fortalecimento da cidadania e a democracia (MPOG, 2004).
No que mais diz respeito às preocupações do presente artigo, a estratégia de
longo prazo traz uma projeção importante de redução da vulnerabilidade externa,
o que se mostrava central para um país que ainda sofria conseqüências das
crises internacionais do final da década de 1990 e da fuga de capitais que
ocorrera em 2002, pela sombra da possibilidade real de eleição de candidato que
já tinha defendido a moratória da dívida e pela realidade das fragilidades das
contas externas do país.
Sua implicação imediata se traduziu no esforço direcionado ao aumento das
exportações, para o que o plano sugeria o caminho da diversificação da pauta
exportadora do país, a conquista de novos mercados, além da maior presença dos
produtos brasileiros em mercados já consolidados, sem entretanto indicar metas
quantitativas para tanto. Nesse ponto, a estratégia de desenvolvimento já fazia
menção ao Mercosul e aos demais países da América do Sul, para os quais antevia
uma integração comercial sólida.
A estratégia de desenvolvimento visava também ampliar a competitividade da
produção nacional pela via dos investimentos em infra-estrutura,
particularmente nas áreas de logística de transportes, energia e comunicações.
O aumento dos investimentos, tanto nos setores de forte emprego de mão-de-obra
quanto, e principalmente, em ciência, tecnologia e inovação estava também no
cerne do modelo de crescimento por consumo de massas, que traria benefícios,
segundo a estratégia de desenvolvimento apontava, sobre o balanço de pagamentos
do país.
A questão chave do modelo de crescimento por consumo de massas está na
transmissão dos ganhos de produtividade da economia para o rendimento das
famílias trabalhadoras, que aumentaria a massa salarial do país que se
direcionaria, naturalmente, aos setores mais modernos da economia e, por
conseqüência, aumentaria a competitividade da produção nacional pelos ganhos de
escala auferidos pela expansão do mercado interno. Ganhos de produtividade
também seriam alcançados com investimentos em inovação que deveriam seguir-se
ao crescimento dos ganhos dos setores modernos da economia produtores de bens
de consumo de massas. Ao ganhar eficiência pelo aumento da escala conferida
pelo mercado doméstico, aproximar-se-ia das conquistas de mercados externos,
devido aos benefícios do primeiro estágio. Haveria, portanto, um circuito
positivo entre investimentos, ganhos de produtividade, transmissão desses
ganhos às famílias trabalhadoras, aumento da demanda que impulsionaria, por sua
vez, novos investimentos, com lugar especial à inovação.
Assim, os benefícios para a balança comercial brasileira dar-se-iam nos dois
sentidos. Os impactos dos ganhos de produtividade seriam benéficos aos setores
exportadores como garantiriam uma maior competitividade da produção voltada ao
mercado interno que concorre com as importações. De outro lado, dado que grande
parte da renda das famílias trabalhadoras é comprometida com alimentos,
moradia, educação e saúde, não pressionariam as importações.
Denota-se aí uma contradição intrínseca ao modelo. Se a demanda da camada menos
abastada da população, ao ser incluída no mercado, seria direcionada aos
setores mais modernos, ela poderia sim exercer pressão sobre as importações.
Não se poderia garantir que o abastecimento dessa demanda se daria
exclusivamente pela produção interna, ainda mais em setores com componentes
tecnológicos que não são fabricados no país. Dados apontam para um aumento da
participação de importados no consumo doméstico, especialmente em material
eletrônico e de comunicações, dentre os quais se pode incluir computadores
pessoais e telefones celulares, que tiveram uma grande expansão no consumo nos
últimos anos. O conteúdo importado desses equipamentos subiu de 38,1%, em 2003,
para 66,3% em 2008. Entre 2003 e 2007, a participação dos importados no consumo
doméstico aumentou de 14% para 21,3%, alcançando 23,7% em 20082.
Todavia, ainda assim os resultados alcançados para o comércio exterior do
período ficaram acima das metas estabelecidas no plano plurianual. Em 2007, a
soma das importações e exportações brasileiras foi de 306,97 bilhões de
dólares, 46,18% maior do que a meta prevista em 2003 e 136% maior do que o
realizado naquele ano. Em 2003, o saldo da balança comercial, que era de pouco
menos de US$ 25 bilhões, passou de U$ 33 bilhões em 2004, US$ 42 bilhões em
2005, US$ 43 bilhões em 2006, recuando para 40 bilhões em 2007. As metas
estabelecidas pelo governo consideravam saldos superavitários entre 17 e 21
bilhões de dólares anuais para o período.
Consolidava-se, portanto, os ensaios da correção de rumos que passaram a
ocorrer com a corrente comercial brasileira, principalmente pós-crise de 1999.
Segundo Amado Cervo, com Cardoso, o comércio exterior tinha adquirido função de
variável dependente da estabilidade financeira, deixando de lado duas de suas
funções históricas estratégicas de promotor da produção interna e de formação
de reservas de capital externo. Ainda em Cardoso, no entanto, face aos efeitos
das crises internacionais que haviam afetado o país, esse papel era revisado,
ao mesmo passo em que se ensaiava a promoção do paradigma do Estado Logístico
no país3.
Em termos de reservas internacionais, os resultados alcançados, com reflexos na
redução da vulnerabilidade externa do país também foram expressivos. Em 31 de
dezembro de 2007, as reservas internacionais divulgadas pelo Banco Central do
Brasil - BACEN, somavam mais de US$ 180 bilhões, número que no último dia do
ano de 2003 estava um pouco abaixo de US$ 49,5 bilhões (em 2002, excluídos os
empréstimos do FMI, esse valor era de US$ 16,3 bilhões, aproximadamente). Em
fevereiro de 2008, o BACEN divulgaria que o Brasil passava à condição de credor
internacional, posição alcançada ainda em janeiro, quando os ativos brasileiros
no exterior superaram a dívida externa pública e privada em US$ 4 bilhões. Em
abril de 2008, o Brasil seria receberia o grau de investimento pela agência
americana de classificação de risco Standard & Poor's.
Abaixo da estratégia de desenvolvimento de longo prazo, revelam-se três grandes
objetivos (ou mega-objetivos) do governo que orientavam o restante do plano. O
primeiro dizia respeito à inclusão social e redução das desigualdades sociais,
que se desdobrava em dez desafios específicos. O segundo mega-objetivo
apresentava crescimento com geração de trabalho, emprego e renda,
ambientalmente sustentável e redutor das desigualdades sociais, com 11 desafios
arrolados. Por fim, o terceiro ressaltava a promoção e expansão da cidadania e
fortalecimento da democracia, com nove desafios enumerados.
Este último traz um desafio específico diretamente relacionado com a política
externa a ser empreendida no período: "Promover os valores e os interesses
nacionais e intensificar o compromisso do Brasil com uma cultura de paz,
solidariedade e de direitos humanos no cenário internacional." Em seu enunciado
nada que revelasse qualquer linha específica do novo governo que então, com
cerca de seis meses no poder, tentava imprimir na sua relação com o mundo.
Na sua descrição, porém, os pontos principais da linha adotada na política
externa de Lula já estavam presentes. Partia de uma crítica direta ao
relacionamento do Brasil com seus vizinhos sul-americanos, no qual teria tido
uma postura apenas discreta, enquanto considerava tímida a posição adotada até
então nas relações com os parceiros comerciais, nas negociações de acordos
multilaterais e de blocos econômicos.
Em seguida, para reverter o quadro anterior, o plano defendia uma articulação
regional que buscasse a complementaridade que favoreceria o "desenvolvimento
harmônico" do Brasil e dos países do continente. Com relação aos países do
centro, ressaltava que se devia manter uma relação equilibrada com os países
que integravam o NAFTA, a UE e o bloco asiático em torno do Japão. Ainda,
antevia uma maior aproximação do Brasil com China, Índia e Rússia, além dos
países africanos, em particular os de língua portuguesa e a África do Sul
(MPOG, 2004).
Nesses aspectos, chama a atenção, em primeiro lugar, um reconhecimento
institucional de uma consideração diferenciada do México, enquanto participante
do NAFTA, dos demais países da América do Sul. A "América Latina", cada vez
mais, deixa de fazer sentido enquanto sujeito das relações internacionais do
Brasil, porquanto deixa de fazer parte das considerações estratégicas dos
atores (MARTINS, 2004), e mesmo como objeto de estudo desde uma perspectiva
brasileira ou sul-americana.
Ainda que tenha ocorrido antes da aprovação formal do plano, a iniciativa de
articulação trilateral entre Índia, Brasil e África do Sul, com a formação do
IBAS, já na administração Lula, tentava estreitar os laços de relacionamento
entre os três países, destacados no desafio estratégico do PPA. Na mesma linha
situavam-se as tentativas de conferir uma instrumentalidade prática ao conceito
de BRICs, a partir do que o Brasil buscava uma articulação com China e Rússia,
além da Índia, insinuando interesses comuns frente aos desafios impostos no
cenário internacional.
Por fim, mas não menos importante, preconizava a reforma e "democratização" do
Conselho de Segurança das Nações Unidas, enfatizando como um dos objetivos da
política externa brasileira a presença do Brasil enquanto membro permanente num
conselho de segurança ampliado. A propósito, cabe ressaltar os esforços
empreendidos pelo Brasil pela reforma do principal fórum político mundial. A
formação do G4, entre Brasil, Alemanha, Índia e Japão, que se apoiavam
mutuamente para garantirem um assento permanente no Conselho, data de 2004.
Seus resultados, no entanto, foram inexpressivos em termos práticos.
Em sete diretrizes de ação dentro do objetivo específico, se dava maior luz aos
componentes principais do desafio proposto. Logo na primeira, como tem sido a
tônica do Governo atual, era destacada a intensificação das relações e da
cooperação do Brasil com os países da América do Sul e, em seguida, com os
demais países em desenvolvimento. Mais uma vez, reforçava-se a imagem da sul-
americanidade com a qual o Brasil passou a cunhar sua identidade internacional
a partir dos anos 90.
Em segundo lugar, uma defesa do multilateralismo e do direito internacional.
Assim como defende o aperfeiçoamento da legitimidade e representatividade dos
organismos internacionais, o Brasil também passou a defender uma
institucionalização do diálogo multilateral na própria América do Sul, com a
proposta da Comunidade Sul-americana de Nações - Casa, que viria a ser
formalmente criada em 2008 como União Sul-americana de Nações - Unasul.
Em terceiro lugar, apresentava-se o país com a intenção de reforçar o combate
aos ilícitos transfronteiriços em todas as suas formas. As pressões pós-11 de
Setembro de 2001 com relação à tríplice fronteira, por parte dos Estados
Unidos, pressões também com relação ao combate à pirataria e as preocupações
com o tráfico de drogas e a seus reflexos na violência dos grandes centros
urbanos do país justificavam tal posição.
A quarta diretriz foi dedicada às questões atinentes à defesa do meio ambiente
e desenvolvimento sustentável no plano internacional. O Brasil, como ator
interessado e sujeito a pressões nessa área envoltas ao tema da floresta
amazônica, mostrava-se preocupado em se apresentar ativo internacionalmente.
Apenas a quinta diretriz, embora não haja uma hierarquia entre elas, ressaltava
o relacionamento do país com seus parceiros de Mercosul. Preconizava-se um
fortalecimento das relações entre os países do bloco, valorizando outros
aspectos além das questões comerciais, particularmente a integração social e
cultural. Enquanto o foco é América do Sul, o Mercosul é uma plataforma de
ensaio dessa integração regional, e se o objetivo é a construção de um bloco
regional, ou de uma união de nações sul-americanas, a vertente meramente
comercial é limitada.
As duas últimas diretrizes eram mais reiterações do discurso histórico
diplomático do que efetivamente prioridades da política externa para o período
em voga. Diziam respeito ao fortalecimento da atuação do país nos fóruns
multilaterais, com ênfase "na promoção de uma cultura de paz e de direitos
humanos" e da divulgação dos acordos internacionais que o país é signatário e o
compromisso de acompanhar seu cumprimento.
Há, portanto, um alto grau de coerência entre o disposto no Plano Plurianual e
as linhas de atuação implementadas pelo primeiro governo Lula. A priorização da
América do Sul enquanto foco da política externa, presente desde os primeiros
discursos do presidente eleito e do chanceler Celso Amorim, ganhava destaque.
Da mesma forma, o novo patamar de relacionamento com os BRICS e África do Sul
estavam em linha. Por fim, os esforços em torno da diminuição da
vulnerabilidade externa do país, seja pela ampliação das exportações,
acumulação de divisas ou atração de investimentos fazem parte de uma estratégia
de longo prazo embasada na consolidação de um mercado de consumo de massas que,
todavia, demanda muito mais do que quatro anos para ser implementada em sua
plenitude.
PPA 2008-2011: o foco na América do Sul e a nova agenda dos biocombustíveis
O Plano Plurianual para o período 2008-2011 começou a ser moldado com o
lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento - PAC, logo no início do
segundo mandato do presidente Lula da Silva. Com uma pesada agenda de
investimentos em infra-estrutura, boa parte dos recursos discricionários do
governo, ao se construir o plano, já tinham uma destinação previamente
programada.
As transferências de renda que atingiram, apenas com o Bolsa Família, mais de
11 milhões de famílias ainda em 2007, ficaram no centro de uma agenda social
que ladeia o PAC na conformação estratégica do plano. E, a completar o tripé de
sustentação do PPA 2008-2011, dá-se destaque ao Plano de Desenvolvimento da
Educação - PDE, que abrange desde a educação básica e alfabetização e educação
continuada para jovens e adultos, até o ensino superior, passando pelo ensino
profissional e tecnológico. O PPA 2008-2011, trata, portanto, de reunir e
forjar, a posteriori, uma agenda estratégica baseada em iniciativas previamente
lançadas pelo governo. Faz-se um esforço de amarração, a direcionar agendas
independentes rumo a um mesmo norte.
No núcleo da amarração, novamente a estratégia de crescimento pela via da
ampliação do mercado de consumo de massas, herança consistente do período
anterior, considerando-se que este mecanismo exige prazo mais longo para
aprimorar o seu funcionamento. Persiste a ênfase no ciclo virtuoso a ser gerado
por investimentos, inovação, aumento da produtividade, distribuição dos ganhos
de produtividade aos trabalhadores, aumento da massa salarial, ganhos de escala
e novos investimentos. A visão do componente internacional da estratégia
continua presente, reforçando o papel da Ciência, Tecnologia e Inovação para um
posicionamento competitivo do Brasil no contexto internacional na sua
centralidade para as políticas de promoção de investimento produtivo.
A dimensão territorial do desenvolvimento ganha espaço dentro da nova
estratégia. A valorização das realidades sub-regionais e seu papel na
construção de uma agenda de desenvolvimento do país ecoa no discurso oficial. A
incorporação da dimensão territorial à estratégia promoveria, entre outros, um
apoio à integração sul-americana e à inserção competitiva autônoma no mundo
globalizado (MPOG, 2008a).
Considerar o território como suporte à integração sul-americana tem, a
princípio, dois pontos positivos. O primeiro diz respeito à própria assimilação
da integração do Brasil com a América do Sul como parte da estratégia
brasileira de desenvolvimento. É reconhecer que se integrar aos vizinhos é
benéfico ao Brasil e transmite a idéia de que a região tem um papel a cumprir
nos caminhos a serem trilhados pelo processo de desenvolvimento nacional. Em
segundo lugar, de ordem mais prática, representa a disposição de preparar o
território para essa integração. Dotar o território de instrumentos, de
técnicas, que facilitem e tornem mais velozes os fluxos intra-continentais,
aproximando as distâncias. Pensar, ademais, cidades ou regiões a oeste do país
que sirvam de suporte a essa virada ao interior, desconcentrando o
desenvolvimento brasileiro ao oferecerem serviços de qualidade no interior do
país, lastreadas por infra-estrutura compatível que prepare uma logística capaz
de absorver esse aumento de fluxo (MPOG, 2008b).
O cenário macro-econômico da estratégia de desenvolvimento prevê, para o
período, um saldo em conta corrente declinante em termos de percentuais do PIB.
Previu-se, para 2008, 0,4% do PIB, caindo 0,1% a cada ano, chegando em 2011 com
saldo positivo de 0,1% do Produto Interno Bruto. Obviamente, as previsões foram
feitas antes da grave crise internacional que se abriu no segundo semestre de
2008 ter se instalado, cujos impactos sobre o balanço comercial brasileiro
ainda não são consenso entre os analistas, além da esperada redução no fluxo
total de comércio. Todavia, segundo dados do Banco Central, entre janeiro e
outubro de 2008, o saldo brasileiro de transações correntes já foi negativo em
1,83% do PIB, tendo alcançado, em 2007, saldo positivo de apenas 0,13% do PIB,
frente 1,27 do ano anterior. Para 2011, o governo apresenta meta de elevar a
participação brasileira para 1,3% do comércio internacional, uma meta um pouco
mais elaborada que as anteriores, com as exportações alcançando US$ 230
bilhões.
No lugar dos 30 desafios do PPA 2004-2007, o novo plano apresenta 10 objetivos
de governo. Entre eles, "Fortalecer a inserção soberana nacional e a integração
sul-americana". Em termos de política externa, esse é o grande destaque do novo
plano, que concebe a integração sul-americana como objetivo transversal do
governo, formalizando o destaque que a região ganhou ao longo do primeiro ano
do governo Lula.
O objetivo de governo é respaldado pelas iniciativas já em curso e não
apresenta, para este tema, nenhuma novidade. Assim, sublinha as ações levadas a
cabo pelo governo nos quatro anos antecedentes, como o Programa de Substituição
Competitiva de Importações para incentivar a exportação dos países sul-
americanos para o Brasil. Todavia, as iniciativas não se bastam na área
comercial, contemplando, comunicações, saúde, saúde animal, ciência e
tecnologia, meio ambiente e educação, além do programa de desenvolvimento da
faixa de fronteira capitaneado pelo Ministério da Integração Nacional.
Os projetos brasileiros de infra-estrutura que estabelecem ligações com o
continente sul-americano são destacados. A maioria deles consta entre os
projetos prioritários da Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura
Regional Sul-americana - IIRSA, implicando um reconhecimento da importância da
agenda da iniciativar 23. Dos dez projetos do setor de transportes citados,
sete fazem parte daquela agenda. Além desses, os dois projetos de comunicações,
a cooperação em torno da exportações via remessas postais para pequenas e
médias empresas e a promoção do roaming internacional de telefonia celular na
região são também projetos da agenda de implementação consensuada da IIRSA,
apresentada em 2004, na terceira reunião de presidentes da América do Sul,
realizada em Cuzco, no Peru.
Ainda, o plano posiciona-se na defesa de uma ordem internacional mais justa e
solidária, destacando a Ação contra a Fome e Pobreza, lançada em 2004. Mais uma
vez, como tem sido uma constante na política externa do governo Lula, ressalta
a importância da reforma da ONU, particularmente do seu Conselho de Segurança,
destacando a articulação brasileira, até agora frustrada, em torno do G4, que
já sofreu a deserção formal do Japão. Na mesma linha, a sua participação no
Haiti também é lembrada.
No mais, defende a formação de uma nova geografia comercial e destaca o papel
brasileira na formação do G-20. Invoca a relevância da cooperação Sul-Sul, com
atenção especial ao fórum de diálogo Índia-Brasil-África do Sul - IBAS,
seguindo a linha de prioridades destacadas no PPA 2004-2007. Por outro lado, a
China e Rússia, que conformam, junto com Brasil e Índia, os BRICs, não são
citados pelo novo plano, substituídas por uma breve menção à Ásia, considerada
novo centro dinâmico da economia mundial.
Além dessa marcante ausência, o que de mais novo consta no PPA 2008-11 é o
tópico referente aos biocombustíveis. A degradação ambiental e a conseqüente
mudança do clima e seus impactos são encarados como desafios globais que
contarão com "postura ativa" da diplomacia brasileira. Um projeto de
desenvolvimento sustentável é aclamado e, nele, ganham importância os
combustíveis renováveis, cujos benefícios devem ser compartilhados com os
demais países.
O estouro e o desenrolar da crise econômica, não limitada ao mundo das
finanças, tratou de colocar às sombras muitos dos assuntos que não tivessem
como foco de atenção justamente o debate em torno das soluções frente à
recessão que ameaça o globo. Todavia, o cenário atual da inauguração da
administração Obama nos Estados Unidos e a agenda política conflitiva herdada
dos Estados Unidos no Oriente Médio, particularmente no Iraque e no
Afeganistão, podem representar um novo fôlego às discussões acerca de
substituição paulatina da dependência energética do petróleo, respaldada pelas
suas implicações ambientais, e se poderá verificar se a aposta brasileira na
temática foi acertada e se os esforços, além dos discursos, foram feitos, e se
foram suficientes.
Conclusão
Neste artigo, apresentou-se o modo com que a política externa brasileira vem
sendo tratada nos últimos planos governamentais de médio prazo. A expectativa
foi, em primeiro lugar, indicar a existência de uma frente de pesquisa
inexplorada nos estudos sobre política externa brasileira. Vê-se, por exemplo,
que toda a programação plurianual de recursos para investimentos públicos ou a
previsão orçamentária para o período de quatro anos dos órgãos públicos, seja
nos ministérios, nas autarquias federais ou nas empresas estatais podem
emprestar dados para a análise concreta das prioridades de governo e de suas
linhas de ação internacional.
Outrossim, buscou-se demonstrar que a política externa empreendida no período
guardou coerência com as orientações estratégicas estabelecidas nos planos
plurianuais. Mesmo no Plano Plurianual do período 1996-1999, no qual as
orientações estratégicas não fazem referência às linhas prioritárias de
política externa a serem seguidas, há uma consonância com o que de fato se
verificou na maior parte do período, que significava seguir as linhas políticas
ortodoxas hegemônicas, que vincularia responsabilidade à imagem internacional
do país e o credenciaria na arena global. Era a ausência de intencionalidade de
se propor uma política externa autônoma que se fazia presente no planejamento
governamental.
Por outro lado, as principais parcerias a serem estimuladas pelo governo
estavam expressas nos planos seguintes. Desde a delimitação da América do Sul,
que se apresentava no plano 2000-2003 e se consolidou nos planos posteriores,
mostrando que essa opção não é nova no governo Lula, até a aposta na projeção
internacional da temática dos biocombustíveis, no PPA 2008/2011, fizeram parte
das orientações estratégicas do governo, que deveriam subsidiar as ações
setoriais e estimular a cooperação técnica e coordenação política entre os
países ou blocos parceiros.
Em terceiro lugar, se considera que, embora a estratégia de desenvolvimento não
tenha saído do horizonte, o modo como se percebia que a política externa
poderia contribuir para o seu alcance variou nos diferentes planos que se
sucederam de 1996 até o PPA 2008/2011. A modernização e o desenvolvimento
sempre constaram dessa agenda, mas mesmo quando houve a reeleição do principal
governante, e principalmente na passagem de governo entre grupos politicamente
opostos, as estratégias eram claramente distintas e guardavam lugares e temas
prioritários específicos para a política externa brasileira.
A análise sistemática das orientações estratégicas dispostas nos últimos quatro
planos plurianuais também pode contribuir para o debate acerca do grau de
continuidade e ruptura em termos da política externa tanto planejada quanto
efetivamente implementada por Cardoso e Lula. Mesmo que grandes objetivos
permaneçam na agenda, isso não implica necessariamente uma continuidade
automática, dado que a estratégia de desenvolvimento pode se traduzir em
iniciativas ou ações diferenciadas a ponto de se perceberem rupturas no
tratamento de determinado tema.
Por fim, a análise dos planos plurianuais permite visualizar múltiplos
elementos que podem revelar o grau de racionalidade da política externa. É
dizer, em primeiro lugar, que a política externa é transversal à ação
governamental, para a qual devem convergir os demais órgãos da administração
pública (KEOHANE & NYE, 2001). E, num segundo plano, considerar a ação
externa como um componente de uma estratégia política mais ampla, na qual
vários elementos se complementam em busca de objetivos maiores. Sãos os fins, e
não os meios, que devem reger a análise. Nessa linha, a política externa deixa
de ser vista como exclusividade do Ministério das Relações Exteriores, mas
responde também como a soma das movimentações externas dos diversos órgãos de
Estado. O quanto a burocracia internaliza o plano e o tem como norte a ser
perseguido, no entanto, resta a ser verificado por pesquisas futuras.