Os Estados Unidos e a ameaça do crime organizado transnacional nos anos 1990
Introdução
O crime organizado transnacional (COT) tem sido foco de um conjunto crescente
de estudos desde a década de 1990, cujas abordagens teóricas e enquadramentos
empíricos têm enorme variação. Neste vasto meio de produções é possível
identificar profissionais de agências policiais e de governos, funcionários de
organizações internacionais e não governamentais, bem como acadêmicos. Este
crescimento de produção e preocupação coincide com a importância do tema para
os Estados Unidos, a União Europeia, a ONU e para um vasto número de países ao
redor do mundo. Em 2013, em reunião do Conselho de Segurança da ONU, o
Secretário Geral Ban Ki-moon explicitava esta preocupação coletiva no alerta:
Em todo o mundo, o tráfico de drogas e o crime organizado
transnacional ameaçam a segurança, minam o respeito pelo estado de
direito e põe em risco a paz e a estabilidade (United Nations 2013).1
A avaliação atual, mais ou menos homogênea, feita por estes atores, é de que o
crime organizado, circunscrito até os anos 1980 ao âmbito doméstico de países
como os Estados Unidos, a Itália e o Japão, ganhou força e amplitude alarmante
nas últimas três décadas, criando impulsos transnacionais, diversificando suas
atividades, desenvolvendo-se em países avaliados como falidos e afetando
diversas regiões do globo2. Esta nova dinâmica do crime, por tal concepção, tem
repercutido em problemas variados, dentre os quais se destaca a ameaça à
segurança doméstica, caracterizada como segurança pública, mas também à
segurança nacional, internacional e "humana".3
A produção sobre o COT, tendo como eixo a preocupação com o tema da segurança,
se ramificou para diversos campos de investigação, mesclando análise e
prescrição (Sheptycki_2007; Shelley_2005; Williams_2001; Von Lampe 2012;
Dreyfus_2009; Arsovska_2012; Naylor_2004).4 Compondo esta gama de estudos, há
aqueles que analisam o processo histórico de qualificação de tais grupos e
atividades por governos ou organizações internacionais como uma ameaça
doméstica e internacional. Este orientação de pesquisa, dentro da qual este
artigo se insere, tem importância por que possibilita a compreensão sobre as
bases de construção "do problema" e "da resposta" a tais práticas ilícitas. Ou
seja, uma abordagem que explica "como 'o problema' é narrado e como isso
respectivamente seleciona estratégias de controle e seus instrumentos
operacionais concomitantes" (Edwards_e_Gill_2002,_247). De fato, nenhum
conceito pode ser separado do contexto em que é criado, dado que é resultado de
forças institucionais, ideias e capacidades materiais em determinado tempo e
espaço (Cox 1981, 207). Desvendar esta inter-relação seria uma importante chave
para a avaliação adequada do tratamento conferido a muitos problemas
internacionais, dentre os quais incluímos o COT. Aqui, parte-se do pressuposto
de que a categoria "crime organizado transnacional" pode ser mais bem
compreendida por meio da sua evolução histórica se comparada a uma reflexão
essencialmente conceitual ou ao textualismo que investe na leitura jurídica do
termo, expressa em documentos oficiais nacionais e internacionais. No debate
sobre segurança internacional, esta dinâmica ganha relevância pela chave da
construção intersubjetiva de "ameaça", que a insere nos embates políticos e
sociais de agentes interessados, bem como na sua repercussão, em termos de
políticas coercitivas, de exceção e privativas de direitos (Buzan_et_al._1998).
Os Estados Unidos são, nesta área de investigação, um caso paradigmático,
considerado o lócus de origem e desenvolvimento do conceito de crime
organizado, bem como o principal exportador, desde a Segunda Guerra Mundial, da
ideia de que o law enforcement 5, e não a prevenção ou outras alternativas,
deve dominar a abordagem de controle da criminalidade organizada, inclusive a
que transpassa fronteiras (Edwards_e_Gill_2003, 3). A maioria dos trabalhos
dedicados às preocupações dos Estados Unidos com o COT, no entanto, está
centrada no aparato do país para promover o seu controle doméstico e
internacional, como é o caso de Andreas_e_Price_(2001) e Andreas_e_Nadelmann_
(2006). Poucos se dedicaram ao estudo do processo de construção histórica da
noção de COT e sua qualificação como uma ameaça internacional. Exceção a esta
regra é o trabalho de Woodwiss (2003, 2006, 2012) que cobre uma importante
lacuna no campo ao investigar a gênese da construção do termo crime organizado
nos Estados Unidos durante as décadas de 1930-1960. No entanto, o foco
prioritário de Woodwiss é a construção da noção de crime organizado doméstico e
não a sua derivação transnacional.
Dada esta lacuna, torna-se relevante a investigação dos processos políticos que
ocorreram no governo norte-americano ao longo dos anos 1990 e levaram ao
reconhecimento de que o crime organizado, em função da sua dinâmica
transnacional, havia se tornado uma ameaça que precisava ser combatida
domesticamente e internacionalmente. Portanto, as questões que orientam este
artigo são: por que os Estados Unidos identificaram na década de 1990 o COT
como um tema de segurança internacional? Como se deu a qualificação da ameaça
representada pelo COT? Quais foram os principais mecanismos institucionais do
governo norte-americano que promoveram este reconhecimento? Quais foram as
principais ações de combate ao COT propostas pelo governo norte-americano para
combater o COT?
Nossa hipótese é de que os Estados Unidos, na década de 1990, qualificaram o
crime organizado como eminentemente transnacional, assumindo que muitos grupos
focados na prática de atividades ilícitas não estavam mais confinados às
fronteiras domésticas dos países. Pautada na noção de "criminalidade
estrangeira", que remontava às décadas de 1940-1950, o COT passou a ser
percebido como uma ameaça à vida do cidadão, mas também à manutenção da própria
sociedade norte-americana. Pressupondo-o como um problema internacional, os
Estados Unidos avaliaram que o COT afrontava a soberania dos países nos quais
estava presente. Por um lado, ameaçava países aliados e minava a pouca
capacidade institucional de estados frágeis. Por outro, poderia fortalecer
Estados e outros grupos hostis, tais como organizações terroristas. Por fim, o
governo norte-americano identificava que o COT debilitava a economia do país e
até mesmo o sistema econômico capitalista mundial. Como reposta a estes
desafios, o governo Clinton tencionou a reestruturação da atuação das suas
agências de aplicação da Lei e do arcabouço jurídico penal do país. Utilizou,
para tanto, mecanismos institucionais previstos para temas de segurança
nacional, tais como aPresidential Decision Directive 42 (PDD-42).
O artigo esta estruturado em quatro partes. Na primeira parte explicamos a
inserção do COT na política de segurança dos Estados Unidos após o fim da
Guerra Fria, tendo em conta a incorporação das preocupações com ameaças não
estatais. Na segunda parte, destacamos a importância da globalização na
identificação da transnacionalidade do crime organizado pelos Estados Unidos.
Na terceira parte argumentamos que a noção de ameaça estrangeira, que remonta à
qualificação do crime organizado nos Estados Unidos nos anos 1950, foi um
aspecto decisivo para a explicação do COT pelo governo norte-americano. Na
quarta parte, destacamos a importância da PDD-42 para a institucionalização da
identificação e combate ao COT nos Estados Unidos, bem como algumas das suas
decorrências domésticas e internacionais mais importantes.
O COT na política de segurança dos Estados Unidos
Em 1994, segundo ano do governo de Bill Clinton, o Center for Strategic and
International Studies (CSIS) convocou uma conferência de oficiais de alto nível
da Inteligência e aplicação da Lei. Seu título era "Crime Organizado Global: O
Novo Império do Mal". O sumário da apresentação trazia os dizeres:
as dimensões do crime organizado global colocam um desafio de
segurança internacional maior do que qualquer coisa que as
democracias ocidentais tiveram que lidar durante a Guerra Fria.
(apud. Andreas e Nadelmann 2006, 158)
No mesmo ano ocorreu, no Comitê sobre Assuntos Governamentais do Senado norte-
americano, uma série de depoimentos sobre "O Crime Organizado Internacional e
seus impactos nos Estados Unidos". Um ano antes já havia ocorrido no Comitê de
Assuntos Internacionais da Câmara dos Deputados uma sessão para se debater "A
Ameaça do Crime Organizado Internacional", na qual a maior preocupação era
discutir
organizações criminosas, grupos terroristas, cartéis de narcóticos,
negócios ilegítimos e a grave ameaça crescente que representam para a
comunidade internacional e, claro, para os Estados Unidos (US
Congress 1993, 1).
Clinton, por sua vez, explicou diante da Assembleia Geral da ONU em 1996 os
novos problemas que os Estados Unidos e, por decorrência, o resto do mundo,
enfrentariam nos anos vindouros. De acordo com ele,
o surgimento da era da informação e da tecnologia nos trouxe todos
mais próximos e nos deu extraordinárias oportunidades para construir
um futuro melhor. Na nossa aldeia global o progresso pode se espalhar
rapidamente, mas o problema também pode. Problemas na outra
extremidade da cidade logo se tornam uma praga na casa de todos. (The
White House 1995b).
O entendimento expresso por Clinton e amplamente disseminado era de que a
globalização, que trazia conectividades inéditas nas relações internacionais,
não viabilizava somente o progresso político-econômico mundial, entendido como
a expansão dos regimes democráticos e do capitalismo, estimulado pela
circulação de bens, capital, pessoas. Este mesmo processo também incentivava as
atividades ilícitas transnacionais, expressas pela circulação de drogas, armas
e pessoas "indesejáveis", o que viria a ser chamado alguns anos mais tarde pelo
Secretário Geral da ONU, Koffi Anan, de uncivil society. Tais preocupações se
cristalizaram em 1996, no National Security Strategy of Engagement and
Enlargement do governo norte-americano A concepção geral era de que sociedades
abertas e livres estavam sofrendo maior impacto do "terrorismo, crime
internacional e tráfico de drogas", desafiando a segurança do país (The_White
House_1996, 1). O caráter transfronteiriço destas ameaças obrigava os Estados
Unidos a elaborar uma orientação de segurança para o século 21 que seria
determinada principalmente pelo sucesso de atuação além das suas fronteiras.
Daí em diante todos os planos estratégicos do governo Clinton conteriam
referências importantes ao COT como ameaça direta ou indireta à segurança do
país, expressando a atuação norte-americana no combate destas atividades com
propostas legislativas e reordenamento institucional, bem como nas relações
internacionais bilaterais e nos fóruns multilaterais.
Globalização e o "nascimento" do crime organizado transnacional
As atividades ilícitas transnacionais claramente não são inéditas no sistema
internacional moderno. Há variados exemplos históricos de grupos não estatais
que promoveram ações consideradas ilegais através de fronteiras nacionais e
acarretaram agressões à política e à economia dos países. Essas referências
remontam a diferentes processos de proibição internacional, como a pirataria e
o tráfico de escravos (Andreas_e_Nadelmann_2006, 23). Por decorrência, há que
se levar em conta a relação direta destes episódios com o desenvolvimento do
sistema mundial capitalista e a formação e fortalecimento do Estado moderno
como instituição política privilegiada (Gallant_1999,_50), já que é a lei do
Estado que inevitavelmente cria sua contrapartida: zonas de ambiguidade e de
completa ilegalidade (Heyman_e_Smart_1999, 1).
No entanto, apesar deste histórico, o Estado norte-americano avaliou, ao longo
dos anos 1990, que o crime organizado transnacional contemporâneo era inédito.
Motivadas por novas dinâmicas técnicas, econômicas e políticas reunidas sob a
rubrica de globalização, as atividades ilegais que atravessavam fronteiras
teriam se expandido e se estruturado a ponto de representarem ameaças
alarmantes e não simplesmente problemas domésticos com soluções domésticas.
Conferiam claro suporte para essas concepções os dados referentes ao aumento da
circulação de bens e pessoas recolhidos pelo grupo interagências norte-
americano responsável pelo International Crime Threat Assessment (ICTA). Em
1999, cerca de 395 milhões de pessoas haviam entrado nos Estados Unidos por
terra desde o México e o Canadá. Mais de 76 milhões de pessoas chegaram em
cerca de 930 mil voos de companhias aéreas comerciais e privadas. Do quadro
existente em 1990, isso significava um aumento de 59% de pessoas que entraram
nos Estados Unidos por transporte aéreo e um aumento de 80% do número de voos
comerciais que entraram nos Estados Unidos (The_White_House_2000,_3). Os portos
marítimos seguiam a mesma evolução, movimentando mais de 4,4 milhões de
contêineres em 1999 (um aumento de 23% desde 1990) e 400 milhões de toneladas
de carga. Os portos possibilitaram ainda a entrada de nove milhões de pessoas
nos Estados Unidos. Por fim, cerca de 140 milhões de veículos atravessaram a
fronteira do sul dos Estados Unidos em 1999, carregando um sem número de
mercadorias lícitas e ilícitas (The_White_House_2000,_4). Estes números devem
ser avaliados não somente pela magnitude da circulação e sua facilidade, mas
também em função da capacidade reduzida da alfândega norte-americana para
inspecionar o decorrente montante de mercadorias. Estimava-se que somente cerca
de 3% das mercadorias eram inspecionadas, com o prognóstico de que esse número
diminuiria para 1% até 2005 (The_White_House_2000,_8).
Estas expressões objetivas das transformações ocorridas ao longo dos anos 1990
tornaram-se elementos decisivos para a explicação dada pelo governo norte-
americano para os novos patamares de expansão e relevância alcançados pelo COT.
Em uma audiência no Comitê sobre Relações Internacionais no Congresso norte-
americano, David Carey, diretor da divisão de crimes e narcóticos da Central
Intelligence Agency (CIA) durante o governo Clinton, afirmou que
atividades criminosas transnacionais estão crescendo praticamente em
todas as regiões do mundo, enquanto grupos criminosos organizados
tiram proveito da redução das barreiras políticas e econômicas, das
sociedades em transição, da tecnologia de telecomunicações modernas e
práticas empresariais que facilitam o comércio legítimo
internacional. (US Congress 1996b, 9)
Embutida nesta avaliação da CIA estava a concepção de que o fim da Guerra Fria,
ao ter resultado na abertura maior das fronteiras nacionais e na quebra de
barreiras políticas e econômicas, também foi responsável pelo enorme aumento do
comércio, do fluxo de bens, pessoas e capital. Os acordos comerciais da então
Comunidade Europeia e do Tratado Norte-americano de Livre Comércio, bem como a
integração política da Comunidade dos Estados Independentes eram algumas
expressões da integração política e econômica de várias regiões do globo, bem
como da construção de uma ordem mundial nova neoliberal (Edwards_e_Gill_2003,
11). Todas elas tiveram como dinâmica impulsionadora o aumento das relações e
atividades sociais que atravessam os países, fazendo com que os Estados e as
sociedades ficassem cada vez mais vinculados a redes de interação. Isso teve
impacto significativo em muitas sociedades anteriormente fechadas,
particularmente naquelas que faziam parte da esfera soviética, nos países em
desenvolvimento e mesmo em países desenvolvidos. De acordo com o ICTA (The
White_House_2000,_3), as reformas econômicas de alcance global teriam
particular importância nesse quadro, já que liberalizando mercados e retirando
poder regulatório da mão dos governos o controle fronteiriço e financeiro seria
dificultado.
Os argumentos para o crescimento do COT se baseavam também no amplo acesso do
cidadão comum a tecnologias revolucionárias a partir dos anos 1990. Teria
importância fundamental o avanço das tecnologias via satélite, dos cabos de
fibra ótica e da miniaturização e o aumento da capacidade dos computadores.
Estes aspectos, somados aos telefones celulares, dinheiro eletrônico e
internet, promoveram um aumento exponencial na comunicação, no transporte, na
distribuição e, especialmente, no anonimato. Grupos criminosos transnacionais
se utilizavam, por exemplo, de celulares e cartões de banco piratas,
criptografados ou simplesmente roubados para se proteger de rastreamentos e
investigação (Naím_2006, 22-27).
Tudo isso indicaria um novo momento histórico para as atividades ilícitas, dado
que este cenário "beneficiava as capacidades, recursos e estratégias que estão
disponíveis para o crime organizado transnacional" (Shelley_et_al._2003,_156).
Nas palavras de Taylor (2005, 186), teriam crescido as chamadas "estruturas de
oportunidade" para quem quisesse participar dos mercados criminalizados. Na
avaliação do governo norte-americano, os mais interessados neste envolvimento
advinham do estrangeiro, baseados em países pobres e institucionalmente fracos.
Por isso a necessidade de uma atuação concertada entre os países desenvolvidos
e "cumpridores da Lei" para a repressão doméstica e internacional dos
indivíduos desviantes.
Há que se ter em conta que esta vinculação entre o crime transnacional e a
globalização é passível de críticas, já que ela procede a uma aplicação
mecanicista do processo ao fenômeno. A decorrência disso é a atribuição de
culpa pela expansão e fortalecimento do COT ao aumento da interação entre as
sociedades (Serrano_2005, 47). Repercute daí a tendência a combater o COT a
partir da diminuição da porosidade das fronteiras dos países, no mais das vezes
restringindo direitos de circulação de pessoas provenientes de países pobres e,
inclusive, incentivando a criação de um mercado paralelo e ilegal de imigração
(Massari_2003,_58). Esse é um dos motivos pelos quais o debate acadêmico e
político sobre a relação entre COT, terrorismo e imigração, seja no sentido
conservador ou crítico, tem ganhado cada vez mais importância recentemente
(Arsovka 2012). Além disso, nesta interpretação mecanicista são deixados de
lado aspectos que podem se mostrar importantes para o aumento do COT
contemporâneo, tal como a internacionalização de leis penais e políticas de
proibição, como as relacionadas às drogas, que criam mercados ilegais e grupos
criminosos que neles operam para satisfazer a demanda por bens e serviços
ilícitos (Farer_1999, 251; Nadelmann 2006, 17), particularmente nos Estados
Unidos e na Europa (United_Nations_2014).
Crime organizado como ameaça estrangeira
Ao longo dos anos 1990, o crime organizado transnacional assumiu a noção
desenvolvida ao longo dos anos 1940-1950 de que o crime organizado é alóctone,
mas complementando-a com a ideia de que esta ameaça tinha como base e proteção
outros países, sempre pobres e fracos institucionalmente, que, por incapacidade
ou falta de interesse, não os combatiam. O entendimento original do crime
organizado estrangeiro teve como influência o contexto do macarthismo, com seus
temores em relação ao estrangeiro e às ideias exógenas e conflitantes à
sociedade norte-americana, além de ter tido como referência a máfia ítalo-
americana (Edwards_e_Gill_2003, 7). A relevância deste último aspecto não deve
ser menosprezada.
Entre 1891 e 1920, mais de quatro milhões de italianos entraram nos Estados
Unidos e se depararam com circunstâncias de privação econômica e social. Isso
incentivou a criação de regimes de proteção familiares, as chamadas máfias, com
funções financeiras - mais das vezes ilícitas - e de identidade (Abadisnky
2013, 46-47). Jacobs e Panarella (1998, 159-160) destacam a importância destas
máfias dentro dos Estados Unidos, cujo poder não foi igualado por nenhum outro
grupo de crime organizado, seja o russo, chinês, jamaicano e mesmo o
colombiano. O que distinguiu a Cosa Nostra durante todos esses anos e até
recentemente foi o sucesso com que penetrou nos sindicatos, na atividade
industrial, na política e o seu poder e influência tanto no submundo quanto no
mundo legítimo. Por isso, segundo Finckenauer_e_Albanese_(2005, 440), a Cosa
Nostra tornou-se o sinônimo de crime organizado. Mesmo tais avaliações, no
entanto, ressalvam que o crime não era estrangeiro de fato, mesmo quando
etnicamente definido, já que a Cosa Nostra Americana e a Máfia Italiana não são
e nunca foram uma única organização ou mesmo dois ramos de uma única
organização (Jacobs_e_Panarella_1998, 165). Este equívoco foi assumido, no
entanto, na década de 1990, quando o governo norte-americano voltou o seu foco
de atuação contra o crime organizado transnacional.
Nos anos 1920-1930, a noção de crime organizado baseava-se essencialmente na
definição de "atividade criminosa sistemática" ou como sinônimo de "extorsão"
(Woodiwiss_2006, 14). O governo norte-americano avaliava que essas "redes
criminosas poderiam e geralmente incluíam o envolvimento ativo da polícia,
políticos, juízes, homens de negócio legais e advogados", além de serem
impulsionadas pelas próprias características do sistema comercial dos Estados
Unidos (Woodiwiss_2003, 14). Ao contrário de avaliar esta relação como uma
expressão de corrupção pontual, ela era entendida como o pressuposto da
existência do crime organizado, bem como uma de suas partes constitutivas. As
reformas promovidas pelo New Deal de Franklin Roosevelt continham algo desta
concepção, que focava as causas "domésticas" do crime organizado, atreladas à
própria sociedade e Estado norte-americanos. Nesta época, mais importante do
que a prisão de gangsteres e seus protetores políticos e policiais, foram as
políticas destinadas à redução das oportunidades para o desenvolvimento de
atividades do crime organizado.
No entanto, essa concepção não perdurou como orientação das políticas
governamentais, e o combate ao crime organizado teve uma clara mudança de foco
nos anos posteriores para centrar-se no combate ao que eram consideradas
"conspirações criminosas estrangeiras". Esta segunda fase data da década de
1950, momento no qual se retirou grande parte das responsabilidades da chamada
"sociedade respeitável" norte-americana. Nestes anos foi criada a noção de
máfia moderna, centralizada, hierarquizada, originada fora da nação norte-
americana e que ali desenvolvia uma relação parasitária (Woodiwiss_2003, 16).
Destaca-se aqui o Senate Investigation Committe on Organized Crime, que foi uma
importante parte desse processo de caracterização. Pelos fins dos anos 1960,
esta concepção já esta presente nas referências governamentais e na mídia,
considerada uma ameaça às administrações locais e federais pela sua infiltração
em negócios legítimos, corrupção dentro da polícia e das estruturas legais
públicas. O crime organizado passou a ser visto como a conspiração de um
exército criminoso estruturado por imigrantes e/ou pelos seus filhos e netos,
muito distante das primeiras análises que o compreendiam como expressão das
oportunidades e problemas da sociedade norte-americana.
Richard Nixon tornou-se uma das principais referências desta perspectiva
"estrangeira" da ameaça representada pelo crime organizado ao liderar a criação
do Organized Crime Control Act em 1970. Na mesma trilha foi criada, em 1983,
durante a administração Reagan, a Commission on Organized Crime, destinada a
investigar os motivos pelos quais, mesmo depois do dispêndio de grande
quantidade de dinheiro e esforço para o combate do problema, não havia se
chegado a soluções satisfatórias para reduzir este tipo de criminalidade. As
legislações desenvolvidas nesse período, dentre as quais se destaca a Racketeer
Influenced and Corrupt Organizations Act (RICO), deram às agências de
inteligência e de reforço da lei poderes sem precedentes, viabilizando a fácil
utilização de escutas telefônicas, dispositivos de espionagem, inserção de
agentes encobertos e outros mecanismos que incorriam em maiores sentenças e
apreensão dos bens dos acusados (Finckenauer_e_Albanese_2005,_444). Outra
mudança significativa foi possibilitar trazer a um único julgamento famílias e
grupos criminosos, desde que tivessem participado de uma mesma atividade
criminosa, como a atividade padrão de extorsão (Jacobs_e_Panarella_1998, 173).
Essa mudança significativa, até mesmo em relação a garantias constitucionais,
eram todas justificadas pela crença de que o crime organizado era uma
conspiração integrada, estrangeira e massiva (Woodiwiss_2003, 16-17). No
entanto, de acordo com McCarthy_(2011, 89), apesar de durante as décadas de
1970 e 1980 o RICO ter condenado os chefes de todas as cinco famílias
criminosas mais poderosas de Nova York a mais de 100 anos de prisão cada, em
termos objetivos, o sentido original da legislação, que era extinguir as
famílias mafiosas dos Estados Unidos, fracassou. Tais grupos se mantiveram ao
longo dos anos, até o presente.6
A evolução natural desta concepção na década de 1990 foi de que os mais
importantes grupos do COT ao redor do mundo haviam se fortalecido, expandido
suas capacidades e ampliavam a sua presença no território norte-americano. Eles
continuariam utilizando a infraestrutura do país para circulação, se
beneficiariam do seu mercado consumidor para obtenção de grandes lucros,
manipulariam o mercado financeiro e os bancos para viabilizar a lavagem de
dinheiro proveniente de suas atividades. No entanto, havia uma importante
diferença a partir de então: os grupos criminosos haviam se articulado entre si
e mantinham bases nos seus países de origem, avaliados pelos Estados Unidos
como países institucionalmente fracos ou coniventes com a ilegalidade. Tais
territórios eram de difícil acesso ao poderio policial e militar norte-
americano. Sendo assim, qualquer tentativa de debelar o crime organizado nos
Estado Unidos seria infrutífera, dado que, como uma hidra, novas cabeças
surgiriam. O então vice-diretor do Federal Bureau of Investigations (FBI)
durante a administração Clinton, Jim Moody, afirmou em uma declaração ao
Subcomitê sobre Crime no Congresso estadunidense em 1996, que os principais
grupos do COT em atividade eram
a Cosa Nostra americana, as empresas criminosas na Colômbia e na
América do Sul, a empresa criminosa mexicana, a empresa criminosa
italiana, os grupos e gangues asiáticas, o crime organizado da
Eurásia e outras empresas criminosas nacionais e internacionais.
[...] Seis dessas amplas categorias estão sediadas fora dos Estados
Unidos dirigindo as operações dentro dos Estados Unidos. As duas
grandes categorias que estão sediadas nos Estados Unidos estão sendo
subsidiadas por aquelas com sede fora dos Estados Unidos (US Congress
1996a, 4).
A referência à transnacionalidade contida na noção de COT fortaleceu a noção de
ameaça estrangeira aos Estados nacionais (Edwards_e_Gill_2003, 268). Foi um
importante reforço desta concepção a produção de trabalhos acadêmicos e
jornalísticos a respeito desta nova fase do crime organizado. Um dos mais
importantes foi produzido em 1993 pela jornalista Claire Sterling, intitulado
"A Máfia Globalizada", cuja tese era que "as máfias siciliana, americana,
colombiana e asiática já se mesclavam com a russa, formando um submundo
criminoso sem fronteiras, que circundava o globo" (Sterling_1997, 10). Isso
significava que o submundo internacional estaria se encaminhando na direção de
uma pax mafiosa mais ampla - um acordo para evitar conflito, conceber uma
estratégia comum e explorar pacificamente o planeta juntos (Sterling_1997, 18).
SegundoSterling_(1997, 31), esses sindicatos infiltravam-se em corporações
legais, manipulavam os mercados financeiros mundiais, desestabilizavam moedas e
compravam países inteiros, podendo ser comparado a um "terrível tumor
canceroso" (Sterling_1997, 12).
Segundo Garland_(1996,_461), esta orientação política sobre o crime organizado
está relacionada à noção de "criminalidade do outro, do pária ameaçador, do
estranho temível, do excluído." Por ela pratica-se a "demonização" do criminoso
e a manipulação dos medos e das agressividades da população, garantindo, assim,
suporte para amplos meios de punição dentro e fora do Estado. Na esteira desses
poderes arregimentados existe a possibilidade dos governos viabilizarem outros
interesses políticos que, de outra forma, não seriam viáveis. A criminalidade
do outro responsabiliza causas exógenas à sociedade pelo crime e, no caso do
COT, o foco acaba sendo os grupos culturalmente/nacionalmente/etnicamente
definidos. O crime é consequência de atores desviantes, caracterizados como
patológicos socialmente e diferentes daqueles que são normais e cumpridores da
lei: os nacionais. Isso se expressa também na caracterização que Clinton fez do
crime como "praga", citada no tópico anterior. Fundamental notar, segundo
Sheptycki_(2007,_489), que "a metáfora da doença se encaixa bem com o tema da
doença estrangeira e contagiosa", indicando que, se tal fenômeno era algo
exógeno ao corpo social, ele poderia ser, então, retirado "cirurgicamente" e
descartado. Essa era a expressão da mistificação da discussão pública pela qual
passou o crime organizado transnacional nos EUA ao longo dos anos 1990, com
repercussões importantes desde então.
De acordo com Massari_(2003,_54), o risco mais importante produzido por esta
abordagem "global" do crime organizado transnacional é a subestimação das
condições internas que possibilitam ao crime organizado desenvolver-se e ser
tolerado nas sociedades que o avaliam como alóctone. De fato, qualquer
avaliação sobre o crime organizado transnacional deve levar em conta a
dialética relação que existe entre o local e o global, onde a localidade tem,
por vezes, importância decisiva (Hobbs_1998). As estratégias de segurança se
tornam, por estes parâmetros, um processo de aplicação, punição, contenção e
desmantelamento desses grupos estrangeiros. Esta reiterada relação entre crime
e estrangeiros pressionou os direitos das minorias estrangeiras em muitos
países, com destaque para os EUA (Sheptycki_2003). Segundo Ruggiero_(2000,
188), "esta nova versão da 'teoria da conspiração estrangeira' se manifesta
através do medo de que as mercadorias ilícitas [...] possam destruir os
cidadãos e as instituições do mundo civilizado".
PDD-42: identificação e combate à ameaça do COT
Apesar de já haver uma crescente preocupação do governo norte-americano com
grupos criminosos transfronteiriços desde o final dos anos 1980, foi a PDD-427
de Clinton, em 1995, que desencadeou um movimento consistente e contínuo para a
sua alocação na agenda de segurança nacional do país (Andreas_e_Nadelmann_2006,
158). Para tanto, se previa o "aumento da prioridade e dos recursos destinados
a este esforço", a "melhora da coordenação entre agências governamentais", "um
trabalho próximo a outros governos" e o "uso criativo e agressivo de todos os
meios legais disponíveis" (The White House 1995a). A PDD-42 dialogava com
diretrizes anteriores, tais como a PDD-14 (enfrentamento das drogas ilícitas),
a PDD-9 (combate ao contrabando de estrangeiros) e a PDD-39 (enfrentamento ao
terrorismo), todas promulgadas entre 1993 e 1995, no primeiro governo Clinton.
No entanto, nem no governo Clinton, nem em governo anteriores foram elaboradas
outras diretrizes presidenciais que desse conferisse prioridade ao combate à
criminalidade transfronteiriça, o que torna a PDD-42 uma iniciativa inédita do
Poder Executivo norte-americano.8
O diagnóstico da PDD-42 reforçava uma concepção alóctone do crime ao afirmar
que
Os americanos têm sido há tempos os alvos da violência e ataques em
solo estrangeiro. Mas uma das novas dimensões do crime internacional
(...) que vivem em paraísos protegidos além das nossas fronteiras,
estão cada vez mais realizando assassinatos e outras formas de
violência em solo americano. Por conta disso, o nosso governo deve
ver o crime internacional como um perfeito continuum dos barões do
crime abrigados no exterior para a violência e destruição deixadas
nas nossas ruas. (The White House 1995a).
O discurso de Clinton na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1995 sintetiza
os elementos cooperativos, mas principalmente o viés unilateral previsto. O
início do seu pronunciamento destacou que o COT colocava em perigo a tendência
internacional para a paz e a liberdade, minava as novas e frágeis democracias e
retiravam forças dos países em desenvolvimento, ameaçando o esforço dos Estados
Unidos e das Nações Unidas para a construção de um mundo mais pacífico e
próspero. Em um segundo momento convocou os países para esta luta, que não era
uma luta solitária, solicitando a cooperação dos outros países presentes para
se estabelecer o compromisso de extinguir todos os "santuários" utilizados pelo
crime organizado. Finalizou seu discurso, no entanto, avisando que, se mesmo
com o auxílio dos Estados Unidos não houvesse cooperação e se alguma nação não
atendesse aos requisitos mínimos de combate à criminalidade, o país
consideraria o uso de sanções (The_White_House_1995b). Em outras palavras,
recursos unilaterais poderiam ser usados pelos Estados Unidos para a garantia
da sua segurança e da segurança da ordem nascente contra a criminalidade
organizada.
A PDD-42 teve decorrências importantes. Três delas são particularmente
relevantes para compreender a alocação do COT no âmbito da segurança. São elas:
a aprovação, pela Assembleia Geral da ONU, da Declaração das Nações Unidas
Sobre o Crime e Segurança Pública em 1997; a elaboração de uma estratégia
nacional norte-americana abrangente para atacar a criminalidade transnacional,
sob a responsabilidade do Departamento de Justiça, Departamento de Estado e
Departamento do Tesouro, que resultou no International Crime Control Strategy
(ICCS) em 1998 e a subsequente apresentação do projeto de lei International
Crime Control Act of 1998 (ICCA), elaborada pela Casa Branca e levada ao
Congresso pelo Senador democrata Patrick J. Leahy. Todo este investimento
político se justificava, na avaliação do governo norte-americano, por conta da
diversidade e intensidade das ameaças postas pelo COT ao país.
Tipificação das ameaças do COT: diversidade e intensidade
Ao longo da década de 1990, diversas ameaças nacionais e internacionais
advindas do COT foram identificadas pelos Estados Unidos. A primeira dessas
ameaças e uma das mais relevantes dizia respeito às direcionadas à sociedade e
ao indivíduo. O crime e o efeito das suas atividades causariam uma disfunção
social, ao mesmo tempo em que atentariam contra a integridade física dos
cidadãos. O Estado, por princípio, deveria se responsabilizar pela proteção de
ambos. A avaliação do governo norte-americano era de que a soberania do país
estava sendo questionada, uma vez que os cidadãos tinham sua vida, subsistência
e bem-estar social ameaçados pelos grupos criminosos (The_White_House_1998b,
1). As principais atividades relacionadas a essa ameaça advinham do tráfico de
drogas, cuja enorme intensidade minaria os valores sociais, levaria a um
aumento das taxas de criminalidade, à corrupção de agentes públicos e à
elevação dos gastos sociais para combater a adicção às drogas e a violência
urbana (The_White_House_2000,_123).
Tais interpretações sobre a ameaça do COT baseavam-se em dados produzidos em
relatório da United States General Accounting Office (US GAO) no ano 2000 e
focavam as explicações para este problema na produção e tráfico de drogas em
países estrangeiros, especialmente da América Latina9. Jim Moody, vice-diretor
do FBI, afirmou perante o Congresso norte-americano que
em anos passados nós consideramos a Cosa Nostra como a principal
ameaça aos Estados Unidos, que tem, de alguma forma, diminuído. Hoje
ela seria provavelmente os cartéis de cocaína da Colômbia (US
Congress 1996b, 6).
O foco principal da preocupação de Bill Clinton era com os traficantes de
drogas ilícitas do Cartel de Cali, na Colômbia, responsáveis por 80% da cocaína
e 15% da heroína que entrava nos Estados Unidos. Para o presidente e toda a sua
cúpula executiva, este grupo representava "uma ameaça incomum e extraordinária"
(The_White_House_1995b).
De acordo com o US GAO, em 1999 os Estados Unidos haviam apreendido 73
toneladas de cocaína nas suas fronteiras, cerca de 880 quilogramas de heroína
nos seus portos e 536 toneladas de maconha, a maioria dos quais vieram do
México (US GAO 2001, 29). Neste mesmo ano, os americanos haviam gastado US$ 63
bilhões em drogas ilegais (US GAO 2001, 29). Pesquisas utilizadas pelo governo
norte-americano estimavam que no ano 2000 três milhões de indivíduos nos
Estados Unidos estavam tendo problemas sérios com o uso de drogas ilícitas.10
Um documento da DEA contra a descriminalização das drogas afirmava ter o FBI
contabilizado que, em 24% das ocorrências de violência praticada contra
policiais, os agressores estavam sob a influência de drogas e que, em 72% dos
casos, os agressores tinham uma história de violações da lei de drogas (The
White_House_2003,_17). Isso se refletia nos dados a respeito da população
prisional, sendo que 60% dela respondiam por crimes relacionados a drogas
ilícitas. Em 1995, quase 225 mil pessoas foram encarceradas em prisões
estaduais e quase 52 mil em prisões federais por delitos de drogas (The_White
House_2000,_18). De acordo com a DEA, o uso de drogas ilícitas também se
relacionava diretamente à perda de produtividade no trabalho, causando danos
expressivos à economia norte-americana (The_White_House_2000,_18).
Esses eram, para os centros decisórios governamentais, problemas que ganhavam
tonalidades de segurança nacional, deixando de ser uma questão simplesmente de
saúde ou segurança pública. Expressões desta concepção alarmista sobre as
drogas já haviam tido outras edições no passado, tais como com Nixon e sua
qualificação das drogas como o inimigo público número 1 dos Estados Unidos ou
as campanhas proibicionistas de Nancy Reagan, como o Just Say No. De fato, tal
argumentação mostra que, apesar da guerra às drogas em voga nos Estados Unidos
desde 1960 já ter se mostrado infrutífera, conferiu um enorme suporte para a
construção da categoria do crime organizado transnacional e sua alocação na
agenda de segurança do país.
Era também um diagnóstico do ICTA (The_White_House_2000,_17) que as mesmas
mudanças políticas e econômicas mundiais das quais os grupos de crime
organizado estavam se beneficiando eram exploradas também pelos grupos
terroristas. Estes, quando não tinham o suporte e financiamento de Estados
párias (designados rogue states) do sistema internacional, poderiam utilizar
atividades criminosas para financiar suas operações ou para auxiliar na
aquisição de armas e materiais bélicos mais sofisticados. Relacionado a este
aspecto estava o fato dos cidadãos norte-americanos que viviam, trabalhavam ou
viajavam para fora do país também estarem sofrendo o impacto de tais problemas
de segurança, pois muitas vezes serviam de alvo para a violência praticada por
cartéis de drogas ou por grupos terroristas.
Isso se expressava no fato de em 1999 ter havido 169 ataques terroristas contra
alvos norte-americanos em todo o mundo, um aumento de 52% em relação a 1998 (US
GAO 2001, 29). O ICCS (The_White_House_1998b, 2) afirmava ainda que, nos
últimos anos, empresários norte-americanos haviam sido sequestrados e mantidos
como reféns por grupos de guerrilha e narcoterroristas que operavam na América
Latina, enquanto outros haviam sido assassinados na Nigéria, no Paquistão e na
Rússia pelo crime organizado. Vale notar que a relação entre criminalidade
transnacional e terrorismo, uma das tônicas deste período, ganhou maior
expressão especialmente após os atentados terroristas ocorridos nos Estados
Unidos em 2001.11
A relação com a imigração ilegal e o contrabando de pessoas torna-se, neste
contexto, um importante elemento que ganhava dimensão como ameaça à segurança
nacional dos Estados Unidos, reforçando problemas já mencionados. A preocupação
era dupla. De um lado, documentos afirmavam que os imigrantes ilegais
residentes nos Estados Unidos - algo em torno de 500 mil à época (US GAO 2001,
29) - eram transportados para o país em condições brutais e depois forçados a
formas severas de servidão involuntária. Muitos grupos criminosos etnicamente
definidos, especialmente da Nigéria, China e Rússia, empregariam ou coagiriam
imigrantes ilegais contrabandeados para o país para realizar atividades
criminosas de risco elevado, preservando-se, assim, do envolvimento na linha de
frente do grupo. Aqueles que conseguiam se livrar desses arranjos e permaneciam
nos Estados Unidos passariam a gerar outros tipos de problemas. Comprometeriam
os recursos sociais e econômicos do país, prejudicando salários e condições de
trabalho dos outros trabalhadores nacionais, fariam aumentar a criminalidade, o
sentimento anti-imigrante e o custo de programas sociais do governo (The_White
House_2000, 22).
Outra categoria de ameaça se pautava nos problemas causados pela criminalidade
a outros países do sistema internacional e que poderiam ter repercussões
negativas para a segurança nacional e internacional dos Estados Unidos. No que
se refere à primeira, dada a rede de relações transnacionais entre os grupos
criminosos, o reforço e expansão de determinado COT em um país ou região, como
o tráfico de drogas, poderia se refletir no aumento da insegurança dos cidadãos
norte-americanos, prejudicando o funcionamento da própria sociedade. Além
disso, esta dinâmica poderia ameaçar a estabilidade de países aliados, minar a
capacidade institucional de estados frágeis e mesmo fortalecer a capacidade de
países que tinham intenção hostil em relação aos Estados Unidos (The_White
House_1998b,_13).
O último aspecto da ameaça representada pelo COT dizia respeito à economia,
especialmente no que se refere ao crescimento comercial norte-americano e às
dinâmicas do sistema econômico capitalista mundial. De um lado, a utilização de
bancos e instituições financeiras para a lavagem de dinheiro e outras
transações financeiras ilícitas minava a credibilidade do sistema econômico, ao
mesmo tempo em que possibilitava a retorno financeiro "branqueado" dos ganhos
obtidos de maneira ilícita. Além disso, o governo norte-americano avaliava que
o enfraquecimento e falta de credibilidade do sistema bancário internacional
poderia aumentar a probabilidade de uma crise financeira doméstica grave (The
White_House_2000, 124). Dois âmbitos relacionados caracterizavam a ameaça desta
categoria. O primeiro se referia às próprias empresas norte-americanas e aos
impactos negativos sobre empresários, empregados, produção e recursos das
indústrias. O segundo se dirigia a pilares de funcionamento do sistema
capitalista mundial, tal como a concorrência, que seria desvirtuada por meio da
corrupção, das fraudes, das falsificações e do roubo de propriedade
intelectual. O aspecto da segurança, no entanto, ficava centrado na lavagem de
dinheiro, que viabilizava todo o mecanismo de lucros e reinvestimento do COT.
Algumas decorrências políticas domésticas e internacionais do PDD-42
A PDD-42 sintetizou um movimento de alocação do COT na agenda de segurança dos
Estados Unidos, gerando algumas decorrências políticas domésticas e
internacionais importantes. É possível, por exemplo, relacionar a diretriz
presidencial à elaboração e apresentação norte-americana da Declaração das
Nações Unidas Sobre o Crime e Segurança Pública na Assembleia Geral da ONU em
1996.
O intuito da declaração era promover um concerto de nações em prol do objetivo
de combater a ameaça do COT. Três artigos da declaração são particularmente
esclarecedores da sua convergência com as próprias aspirações e posições norte-
americanas. O artigo 3 afirmava que os Estados-Membros deveriam tomar medidas
para impedir o apoio às atividades das organizações criminosas em seus
territórios nacionais. O mecanismo da extradição era colocado como instrumento
fundamental "a fim de que eles não encontrem portos seguros". O artigo 4, por
sua vez, incentivava instrumentos usados pela política externa dos Estados
Unidos para lidar com ameaças em conflitos domésticos de outros países nos
quais não havia interesse no engajamento militar direto, tais como o
fortalecimento dos sistemas de compartilhamento de informações entre Estados e,
mais importante, o estabelecimento de acordos bilaterais de assistência técnica
que previsse programas de treinamento em aplicação da Lei e justiça penal. Por
fim, o artigo 8 corroborava as atividades realizadas sob o International
Emergency Economic Powers Act (IEEPA)12 de acordo com a PDD-42 ao afirmar que
"os Estados-Membros concordam em adotar medidas, conforme apropriado, para
combate à ocultação ou dissimulação da verdadeira origem dos produtos da
criminalidade transnacional", dentre outras várias ações relacionadas à
diminuição das limitações para a quebra de sigilo bancário com o sentido de
obter cooperação das instituições financeiras na detecção de operações que
pudessem ser utilizadas para efeitos de branqueamento de capitais. (United
Nations_1997)
Para a ONU, o crescimento do crime organizado representou um dilema com
preocupações e oportunidades (Felsen_e_Kalaitzidis_2005, 14). A busca de uma
liderança na reestruturação do mundo pós Guerra Fria se relacionava com o
envolvimento em temáticas como combate à pobreza e à fome, promoção do
desenvolvimento e dos direitos humanos. O COT foi avaliado, no entanto, como um
importante empecilho para esses processos de ajustamento e regimes de proteção,
passando a ser um dos fenômenos mais focados da Assembleia Geral desde 1990.
Nesta época foi elaborada uma série de convenções sobre extradição e
assistência mútua em assuntos criminais que culminaram com a criação da
Commission on Crime Prevention and Criminal Justice (CCPCJ), cujo pilar é "a
ação internacional para combate ao crime nacional e transnacional, incluindo o
crime organizado, crime econômico e a lavagem de dinheiro", bem como o United
Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), estabelecido em 1997, um dos maiores
responsáveis pela produção e divulgação de conteúdos destinados ao combate
internacional ao crime transnacional.
Tanto a Conferência Ministerial Mundial sobre o Crime Organizado Transnacional,
que ocorreu na Itália em 1994, quanto a Convenção das Nações Unidas Contra o
Crime Organizado Transnacional de 2000 foram eventos decisivos que selaram a
importância do COT como uma questão de segurança para a ONU. A primeira
promoveu o reconhecimento internacional da "crescente ameaça do crime
organizado, com a sua grande influência desestabilizadora e corruptora sobre as
instituições sociais, econômicas e políticas fundamentais" (United Nations
1994). A segunda funcionou como um instrumento de homogeneização de categorias
e procedimentos de aplicação da Lei referentes à acusação, julgamento, sanções,
jurisdição, extradição, bem como formas de assistência jurídica mútua,
investigações conjuntas, proteção de testemunhas e das vítimas (United_Nations
2000). Como resultado, criou-se legitimidade internacional para as iniciativas
que estavam sendo levadas a cabo pelos Estados Unidos, possibilitando ao país
exportar prioridades policiais com importante detalhamento e padrões comuns
(Andreas_e_Nadelmann_2006, 173).
Há uma segunda decorrência relevante da PDD-42: a International Crime Control
Strategy (ICCS) de 1998. Esta estratégia realizou uma reengenharia
institucional dos órgãos do governo norte-americano para lidar com a ameaça do
COT. O governo norte-americano articulou aproximadamente trinta e quatro
agências federais em torno do combate ao COT. As mais relevantes eram o
Departamento de Justiça, o Departamento de Estado, o Departamento do Tesouro e
a United States Agency for International Development (USAID), levando em conta
todas as suas estruturais internas, tais como o FBI, a Drug Enforcement
Administration (DEA), o Immigration and Naturalization Service, o Bureau of
Alcohol, Tobacco and Fireamrs (ATF), o Customs Service, o Financial Crimes
Enforcement Network (FinCEN), o Federal Law Enforcement Training Center, o
Bureau for International Narcotics Control and Law Enforcement Affairs (INCLE)
e o Bureau of Diplomatic Security.
A tentativa de coordenação destas estruturas governamentais de aplicação da Lei
e de Inteligência, já definida como prioridade na PDD-42, mostrou-se um grande
desafio, dado que durante a Guerra Fria cada uma cumpria funções distintas e
razoavelmente bem definidas. As estruturas de aplicação da Lei, tal como o FBI,
deveriam cuidar de assuntos domésticos, enquanto as de Inteligência, tal como a
CIA, deveriam preocupar-se com as rivalidades estratégicas com outros países
(Andreas_e_Nadelmann_2006, 160). Isso repercutia em claras diferenças de
culturas institucionais e métodos que se expressavam em diversos antagonismos
ao longo da história norte-americana.
A alocação de recursos e de pessoal, bem como o aumento de prestígio
proveniente da atenção conferida a novos temas de segurança são fatores que
tendem a impulsionar as agências governamentais a disputarem entre si uma boa
inserção durante os rearranjos institucionais. O quadro de funções e atividades
propostas pelo ICCS era extremamente extenso, mas estava pautado em duas
grandes linhas de ação que refletiam a noção anteriormente debatida sobre
"criminalidade do outro": "a primeira linha de defesa deve ser no estrangeiro"
e a segunda deve ser "proteger nossas fronteiras em ar, terra e mar contra os
criminosos internacionais" (The_White_House_1998b).
A última decorrência da PDD-42 foi o ICCA, elaborado pelas agências federais e
enviado ao Congresso. O ICCA foi um pacote legislativo que tinha o objetivo de
ajudar as agências de aplicação da Lei dos Estados Unidos em seus esforços
contra o COT. Apesar de não ter se tornado lei, indicava uma orientação do
executivo norte-americano, pautada em medidas de exceção, com vistas a ampliar
a atuação policial norte-americana em países estrangeiros, aumentar a punição
penal e restringir direitos com o intuito de garantir maior segurança. Tais
propostas viriam a se concretizar em anos posteriores, incentivadas pelos
atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova York.
Sobre a ampliação da atuação policial norte-americana além das fronteiras
nacionais, o ICCA autorizava a investigação e punição dos grupos de crime
organizado que cometessem crimes graves contra norte-americanos no exterior, a
ampliação da capacidade de julgar criminosos de contrabando de mercadorias fora
dos Estados Unidos, a ampliação da lista de crimes de lavagem de dinheiro, a
maior jurisdição extraterritorial para combater a fraude envolvendo cartões de
crédito e a expansão da autoridade dos organismos de aplicação da Lei dos
Estados Unidos, que viabilizava o compartilhamento dos bens apreendidos de
criminosos internacionais com agências estrangeiras de controle do crime (US
Congress 1998a, 2).
Sobre o aumento da punição, o ICCA autorizava o aumento das penas para os
traficantes que colocassem em perigo os funcionários policiais federais ou que
interditassem suas atividades, o endurecimento das penalidades para violações
do IEEPA e a criminalização da tentativa de violação da Trading with the Enemy
Act13 (US Congress 1998a, 2-3). Por fim, sobre a restrição de direitos, o ICCA
autorizava o aumento da autoridade governamental para fiscalizar cartas
internacionais, caso houvesse "motivos razoáveis" para suspeitar que elas
tivessem algum conteúdo relacionado a dinheiro ilegal, drogas ou ADMs, dispunha
sobre a expulsão de traficantes de drogas, seus familiares diretos e pessoas
que tentassem entrar nos Estados Unidos a fim de evitar a condenação em outro
país e facilitava o uso de determinados tipos de registros de governos
estrangeiros como prova em processos judiciais nos Estados Unidos (US Congress
1998a, 2).
Vale notar que não eram somente as restrições ou lacunas da legislação
direcionada ao âmbito internacional que causavam incômodo. Isso também ocorria
em relação à legislação doméstica, que por vezes asseguravam direitos
relacionados à privacidade do cidadão e à publicização de informações
governamentais, tais como os Right to Privacy Acts e a Freedom of Information
Act (US Congress 1996a, 35).
Conclusão
Os anos 1990 foram um marco na identificação do COT como uma importante ameaça
nacional e internacional, bem como na sua qualificação como algo inédito e
originado no estrangeiro. Essas concepções não se circunscreveram à sociedade e
ao governo norte-americano. Elas ganharam expressão na ONU, corroborando a
avaliação de que "qualquer processo de internacionalização da definição do
crime e do controle do crime é o resultado da exportação de percepções
domésticas e definições que refletem as relações entre poderes políticos"
(Irrera_2010,_71).
Os impactos deste processo sobre vários países ao redor do mundo ainda estão
por ser esclarecidos,14 especialmente no se refere ao combate ao tráfico de
drogas e às guerrilhas latino-americanas nas últimas duas décadas, incentivado
e financiado pelos Estados Unidos, mas também em relação às Operações de Paz da
ONU em vários países da África e da Ásia, que continham em seus mandatos
destaque ao combate à criminalidade organizada. É possível, assim, que tenha
havido importantes repercussões da alocação do COT no âmbito da segurança
internacional em termos de desrespeito aos direitos humanos e à reprodução da
violência urbana e rural. Essas possíveis vinculações pressupõe a comprovação
de investigações futuras.
Neste artigo, argumentamos que a categoria "crime organizado transnacional",
bem como sua avaliação como ameaça internacional, deve ser compreendida
contextualmente e historicamente. Assim, é fundamental notar, ao contrário do
que a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional de
2000 faz crer, que a identificação e qualificação da ameaça do COT não são
óbvias, unívocas ou simplesmente decorrentes de acordo pelo assentimento dos
países em uma Assembleia Geral. Esses diagnósticos foram e continuam sendo
parte de uma disputa política que não se encerra nos dados empíricos trazidos,
por exemplo, pelo ICTA norte-americano ou pelo UNODC. Não descartamos os
aspectos materiais deste fenômeno, mas pressupomos que é na interação entre os
agentes políticos que se constroem interesses e preferências em relação a tais
aspectos. Em outras palavras, os fatores materiais importam, muitas vezes de
maneira determinante, mas como e em que grau importam depende das ideias e dos
interesses que se projetam sobre eles (Fearon e Wendt 2002, 58). Assim, os
dados empíricos sobre o aumento das atividades ilícitas transnacionais não
repercutem em uma interpretação necessária, mas somente em uma interpretação
possível.
Concluímos que os dois mandatos de Clinton (1993-2001) foram decisivos para a
qualificação do COT como um tema de segurança internacional, cuja maior
expressão é a PDD-42. Este mecanismo executivo do governo buscou construir uma
estrutura mais coordenada e com maiores recursos para a identificação e combate
desta ameaça. Com isso, reorganizou estrategicamente estruturas policiais,
militares e de Inteligência para promover um controle doméstico, mas também
internacional do crime.15 Este processo corrobora a avaliação de Buzan_et_al._
(1998, 28), segundo o qual, quando um assunto é inserido no âmbito da segurança
há um período de adaptação, na qual as antigas estruturas institucionais
designadas para outros tipos de ameaça passam a operar em um novo contexto. A
partir dessas considerações, é possível inferir que este processo de
readequação repercutiu em ganhos expressivos para as agências estatais de
segurança e desenvolvimento que lidavam ou passaram a lidar com o problema do
COT, tanto no que se refere à capacidade e liberdade de ação, quanto à
influencia política sobre o governo norte-americano.
Demonstramos, ainda, que não se podem menosprezar os precedentes históricos de
avaliação sobre o crime organizado nos Estados Unidos desde a década de 1950,
pautada na "criminalidade do outro", que reforçou a noção de tal crime como
estrangeiro e transnacional, baseado e incentivado por países incapazes ou
moralmente reprováveis. Além deste aspecto determinante, há que se ter em conta
a importância da avaliação catastrofista desta ameaça. Apesar de tantos
exemplos históricos de criminalidade transfronteiriça, o governo norte-
americano a identificou como inédita. Apesar da reponsabilidade pela demanda de
bens e produtos ilícitos, bem como pela corrupção de setores do governo e do
setor privado (especialmente do setor bancário para a lavagem de dinheiro) na
relação com o COT, os Estados Unidos qualificaram esse processo como exógeno à
sua sociedade. Ademais, a projeção da destruição da organização social, da
economia e do próprio Estado norte-americano pelo COT desaguavam no medo da
desestruturação da ordem internacional nascente após o fim da Guerra Fria.