O conceito de categoria ontológica: um novo enfoque
0. Preliminares
Se queremos compreender o mundo, temos de reconhecer de início que ele é um
todo altamente diferenciado e estruturado. Para esse fim vários filósofos, a
começar por Aristóteles, fizeram uso do conceito de categoria. Este artigo não
pretende apresentar um tratamento abrangente deste tópico, o que não seria
possível neste espaço limitado. Em vez disso, pretende-se destacar a estrutura
categorial da linguagem ordinária, que se revelará como sendo do tipo
substância-propriedade. Argumenta-se-á que o conceito de substância, assim como
o de uma propriedade abstrata ou universal, não é aceitável. Será feito um
esforço no sentido de criar uma nova linguagem não comprometida com uma
ontologia de substâncias e propriedades nem com qualquer tipo de dualismo entre
o concreto e o abstrato, ou seja, entre items que são localizáveis no mundo
espacial e/ou temporal e items que não o são.
Os filósofos concordam que as categorias são classificações fundamentais que
determinam a maneira como pensamos e falamos sobre o mundo. Mas os filósofos
discordam sobre como compreender a expressão "nossa maneira de pensar e falar
sobre o mundo". Se tomarmos a cláusula "sobre o mundo" como tendo prioridade no
plano da compreensão e da explanação, ou seja, como sendo a cláusula que
determina como a outra cláusula "nossa maneira de pensar e falar" deve ser
interpretada, então as categorias emergirão como tendo um estatuto ontológico,
pois elas demarcarão diferentes tipos de items ou de entidades no mundo como
constituindo as estruturas mais fundamentais do mundo. A categoria de
substância, começando por Aristóteles, tem sido usualmente tomada como a
categoria mais primária e mais fundamental.
Mas se entendermos "nossa maneira de pensar e falar sobre o mundo" na ordem
inversa, assumindo a cláusula "nossa maneira de pensar e falar" como
prioritária, então as categorias serão compreendidas como sendo os conceitos
mais fundamentais dos quais dispomos na maneira mais geral de usar a linguagem.
As categorias a priori de Kant dão prioridade à cláusula "nossa maneira de
pensar", enquanto a filosofia analítica realizou seu linguistic turn, segundo o
qual as categorias (freqüentemente chamadas de "esquemas conceituais") devem
ser entendidas com base na prioridade de "nossa maneira de falar (sobre o
mundo)". O objetivo do presente artigo é desenvolver uma teoria das "categorias
ontológicas" na qual se demonstra que estes dois enfoques são dois lados da
mesma medalha.
Este ensaio divide-se em três seções. Na seção 1 serão apresentadas de forma
esquemática e submetidas a uma crítica concisa as concepções mais
importantes sobre categorias ontológicas presentes na filosofia contemporânea.
O propósito da seção 1 é o de motivar o leitor a engajar-se na busca de um
enfoque significativamente diferente deste tema. Na seção 2 este novo enfoque
será elaborado sistematicamente. A estratégia geral pode ser delineada da
seguinte forma: mostrar-se-á que a semântica pressuposta pelas "ontologias da
substância" é composicional, i. e. que é uma semântica baseada no Princípio de
Composicionalidade, como será demonstrado no fim da seção 1. Mostrar-se-á que
este princípio tem implicações ontológicas inaceitáveis e que, portanto, deve
ser rejeitado. Uma semântica baseada em um outro princípio, o Princípio de
Contextualidade Sentencial (ou Princípio do Contexto), será então desenvolvida.
O novo enfoque do conceito de categoria ontológica é o que resulta quando se
desenvolve uma ontologia não-composicional. Será mostrado rapidamente, além
disso, que as teorias contemporâneas que rejeitam a idéia de "substância" (as
chamadas "teorias de feixe" bundle theories) apresentam a deficiência de não
serem elaboradas na base de uma semântica conspícua. A seção 3 contém algumas
observações finais.
1. O estatuto altamente problemático da categoria de substância
[1] O "conceito de substância" tem pelo menos três sentidos diferentes na
filosofia contemporânea. De acordo com o primeiro sentido, a substância é um
substratumno qual propriedades (e relações) subsistem ou ao qual inerem. Assim,
o substratum é suposto ser uma entidade distinta de outra entidade, o atributo
(i. e. propriedade e/ou relação), uma vez que o particular concreto ou
indivíduo é considerado como sendo constituido por essas duas entidades. Esse
substratum tem sido chamado de "particular puro" (bare particular), uma vez que
ele é desprovido de todos os atributos. Existem vários problemas conceituais
com essa concepção de particulares puros (cf. Denkel 2000 para uma boa
apresentação desses problemas). Apresentarei o problema fundamental desse
conceito conjuntamente com o problema fundamental relativo ao conceito do
universal tomado como aquilo que um particular puro deve instanciar.
Uma segundatendência rejeita a idéia de um particular puro, mas não a idéia de
um sujeito. O conceito-chave introduzido pelos autores que favorecem esse
enfoque, a fim de explanar o que eles entendem por substância ou particular
concreto, é o de tipo (kind). M. Loux, por exemplo, afirma:
Um particular concreto é, nesta visão, simplesmente uma instância do
seu próprio tipo; e aristotélicos argumentam que ser uma instância de
um tipo significa simplesmente exibir a forma de ser que é este tipo.
Posto que a forma de ser é irredutivelmente unificada, as coisas que
a exibem são elas mesmas entidades irredutivelmente unificadas,
coisas que não podem ser construidas a partir de entidades ainda mais
fundamentais. (Loux, 1998, p.121)
A idéia de sujeito, no entanto, não é completamente rejeitada por esses
autores. Eles afirmam que as substâncias, ou particulares concretos, elas
mesmos são os sujeitos de todos atributos associados a elas; mas eles se
apressam em dizer que se deve distinguir entre atributos que são essenciaisaos
portadores e outros que são puramente acidentais. No segundo caso, o particular
como portador de um atributo é compreendido como sujeito cuja essência ou cerne
não inclui necessariamente este atributo; mas, de acordo com tais autores, no
primeiro caso precisa ser reconhecida uma inclusão necessária de atributos,
posto que a substância ou o particular concreto é também o sujeito de um tipo.
M. Loux explica esta posição com um exemplo:
Sócrates é também um sujeito do tipo ser humano. É Sócrates, e não
algum constituinte seu, que é a coisa que é humana. Mas o tipo ser
humano é o que caracteriza Sócrates como o queele é, de tal maneira
que neste caso nosso sujeito não é algo com uma identidade
independente do universal do qual ele é sujeito. Extraindo-se de
Sócrates o ser homem não sobra nada que possa ser sujeito de algo.
(Ibid. p.120)
Não há dúvida de que os defensores dessa visão fazem um esforço considerável a
fim de eliminar a obscuridade da noção de substratum. Mas permanecem dúvidas
fundamentais acerca de se ter realmente alcançado isto. O que significa dizer
que um particular concreto é "simplesmente uma instância de seu próprio tipo"?
Se o particular concreto é simplesmente identificado com seu próprio tipo, o
conceito de instanciação deixa de ser elucidatório. Mas se se diz que "nosso
sujeito não é algo com identidade independente do universal do qual ele é
sujeito", então é difícil entender o que isto significa. Pois, como pode um
item xser sujeito de um universal U se a identidade de xnão é independente de
U? Talvez alguém possa dizer que neste caso se trata de um "caso-limite" do
conceito de instanciação. Mas em filosofia casos-limites desta espécie são
conceitos problemáticos. Eles são, em geral, indicadores da necessidade de
introduzir outro "esquema conceitual" mais adequado para articular a intuição
que se deseja expressar.
Um terceira tendência repudia o conceito de substratum(e sujeito) e introduz em
seu lugar a característica de independência como "critério" da substância (cf.
especialmente Hoffman e Rosenkrantz, 1994, cap. 4; Lowe 1998, cap. 6). Esse
enfoque encontra-se em Descartes, Espinoza e outros. Ele afirma que a
substância é independente por ser capaz de existir sozinha. Várias compreensões
divergentes do conceito de independência tem sido propostas. O problema central
dessa concepção é que independência é uma condição apenas necessária, mas não
suficiente, para ser uma substância. Ter independência é apenas um aspecto
externo, e não a estrutura interna de uma substância.
[2] Teorias ontológicas que não aceitam a idéia tradicional de substância
tratam particulares concretos (e todo tipo de entidades complexas) como feixes
(bundles) de certos tipos de entidades. Tais teorias são em geral chamadas de
teorias de feixe. No lugar da expressão "feixe", outras expressões também são
usadas como, por exemplo, "configuração", "coleção", cluster e semelhantes.
Usar-se-á, no presente artigo, a expressão "configuração" sempre que o autor se
referir à sua própria posição. Mas existem teorias de feixe muito divergentes
relativamente, em primeiro lugar, ao tipo de entidades consideradas
constituintes de um feixe e, em segundo, ao sentido mais exato associado à
expressão "feixe".
Três versões fundamentais devem ser mencionadas. A primeira versão, chamada de
teoria de tropos (trope theory)1,é uma teoria radicalmente revisionária que não
apenas rejeita a idéia de substratum e sujeito, mas também, e acima de tudo,
põe em questão o conceito de universal. Filósofos que aceitam esta teoria
admitem uma (nova) entidade ou categoria denominada de "tropo", e a
caracterizam como um particular abstrato ou como uma propriedade (e relação)
particularizada ou concretizada. De acordo com essa visão, tropos são os
elementos fundamentais do ser, a partir dos quais todos os outros podem ser
construidos. Mais precisamente, tropos são considerados a única categoria
fundamental e a ontologia construída a partir de tropos é compreendida como uma
ontologia monocategorial. Um particular concreto ou um indivíduo é explanado
como um feixe de tropos: a entidade tradicionalmente chamada "universal" é
reinterpretada como um coleção de tropos enfeixados por meio da relação de
semelhança (cf. Williams 1953, Campbell 1990).
Essa concepção representa um novo e interessante desenvolvimento do conceito de
categoria ontológica. Mas ela enfrenta várias dificuldades graves que tem sido
apontadas por vários autores (veja, entre outros, Simons 1994, Daly 1994).
Penso que a dificuldade mais saliente reside no fato de que essa teoria de
tropos não conseguiu tornar claro como ela pode dispensar a relação de
instanciação (cf. especialmente Daly 1994, pp.250-60), que é uma relação que
pressupõe o conceito de universal que a teoria de tropos pretende rejeitar.
Essa dificuldade manifesta-se até mesmo na terminologia usada pelo teóricos de
tropos, especialmente quando eles dizem, por exemplo, que tropos são
"particulares abstratos", "propriedades (e relações) particularizadas" ou até
mesmo "instâncias de propriedades (e relações)".
Essa dificuldade, por sua vez, tem suas raízes últimas no que se poderia tomar
como sendo uma deficiência sistemática da teoria de tropos: embora essa teoria
baseie-se em uma intuição de muito valor, ela carece inteiramente de uma
semântica adequada para expressar essa intuição correta. A teoria de tropos
mantém o tipo de semântica que é, em certo sentido, uma função da ontologia
tradicional de substâncias e, em outro sentido, dá origem a uma nova ontologia,
como será mostrado na seção 2. Teóricos de tropos simplesmente tomam a entidade
"tropo" como o referente de expressões como "a posição de Napoleão" e
semelhantes, mas eles não levantam a questão sobre qual tipo de ontologia é
pressuposta ou implicada pelas outras expressões da linguagem ordinária ou
natural. Os antigos conceitos de universais e particulares não são eliminados.
A fim de estabelecer uma revisão genuína da ontologia de substância, os quadros
lingüísticos ou semânticos pressupostos por ela precisam ser examinados em
primeiro lugar. O novo enfoque a ser proposto neste artigo pode ser considerado
como o resultado da tentativa de desenvolver sistematicamente o que o autor
assume ser a intuição correta que subjaz à teoria de tropos. Mas esse novo
enfoque introduz uma terminologia completamente nova derivada de uma nova
semântica, rejeitando assim outras suposições básicas e outras afirmações
feitas por teóricos dos tropos.
Uma segundaversão considera particulares concretos como feixes de
qualidadesunidos pela relação de co-presença. Finalmente, a terceiravisão
considera particulares concretos como feixes de universais imanentes, i. e.,
universais que, "em contraste com os universais platônicos, estão, tal como
seus portadores, plenamente presentes no espaço e tempo". (O'Leary-Harthorne e
Cover 1998, p. 205)2. Segundo essa versão, os universais assim compreendidos
são os únicos constituentes fundamentais do mundo.
Deve-se também notar que alguns autores admitem tropos sem considerá-los como
items ou elementos enfeixados no sentido da teoria de feixes. De acordo com
esses autores, tropos, ao invés de universais, são combinados com um substratum
a fim de constituir um particular concreto. Outra teoria, chamada teoria
nuclear, desenvolve um enfoque de dois níveis: o primeiro nível é compreendido
como um feixe de tropos reunido que forma o cerne essencial, núcleo ou natureza
essencial do particular concreto. O segundo nível é constituido de outros
tropos não essenciais, que podem ser substituidos sem que o núcleo cesse de
existir. Esse segundo nível é dependente do núcleo, na medida em que este é seu
portador. "O núcleo é assim ele mesmo um feixe coeso que serve como substrato
do feixe frouxo de tropos acidentais, garantindo assim sua coexistência."
(Simons 1994, p.568). Essa versão não rejeita, portanto, inteiramente um
substrato; ela apenas não aceita um substrato último.
[3] Segue agora a apresentação acima anunciada do problema fundamental das
concepções de substância, tanto tradicionais como revisionárias. Todos os
outros problemas são derivados de um problema fundamental, mas o espaço
restrito não permite demonstrar esse ponto aqui. O problema fundamental reside
no quadro semântico-ontológico pressuposto por todas as concepções de
substância acima mencionadas. Trata-se do quadro característico das chamadas
linguagens "naturais" ou "ordinárias" da tradição indo-européia. A sintaxe e a
semântica dessas linguagens e a "ontologia da substância" são dois lados da
mesma medalha. Mais exatamente: poder-se-ia falar do quadro semântico-
ontológico elaborado e aceito pela grande maioria de filósofos que faz uso da
linguagem natural e a teoretiza acerca dela. A linguagem natural "como tal", i.
e. enquanto existindo independentemente da compreensão filosófica dela, deve
ser diferenciada da linguagem natural usada, interpretada e teoretizada pelos
filósofos. Além disso, é fato que existem várias visões filosóficas diferentes
sobre a linguagem natural. Mas neste artigo a expressão "linguagem natural"
será utilizada no sentido de "linguagem de predicados de primeira ordem". Essa
formulação bem conhecida expressa um visão filosófica bem definida da linguagem
natural.
A fim de analisar o problema fundamentalem questão examinemos novamente as
teorias de substância descritas acima de maneira breve. Devemos explicitar em
primeiro lugar duas características do quadros semântico-ontológico subjacente
a essas teorias. (i) Mesmo se, além da categoria de substância, outras
categorias ontológicas forem introduzidas e aceitas (p. ex. evento, processo, e
outras), uma estrutura semântico-ontológica mais fundamental é ainda
pressuposta por todas essas teorias: a estrutura "diádica" sujeito-universaisl
ou sujeito-atributos (atributos são propriedades e/ou relações). Essa estrutura
categorial constitui o nível fundamental em relação a todas as outras
categorias, sendo, portanto, pressuposta por essas outras categorias. Essa
afirmação baseia-se no fato inegável de que as outras categorias ontológicas
(como eventos, processos, etc.) são compreendidas como entidades que tem
propriedades e estão em relação com outras entidades. Isso torna-se manifesto
pelo fato de serem essas categorias articuladas na estrutura sintático-
semântica da linguagem de predicados de primeira ordem. Em sua interpretação
padrão essa linguagem possui exatamente a estrutura semântica que corresponde à
estrutura diádica de sujeitos-universais (atributos).
(ii) A semântica da linguagem de predicados de primeira ordem baseia-se
completa e fundamentalmente no Princípio de Composicionalidade, que, aplicado
às sentenças, diz:
(PCPS) O significado (ou valor semântico) de uma sentença é uma função dos
significados (ou valores semânticos) da seus componentes subsentenciais.
De acordo com esse princípio, admite-se uma independência, pelo menos relativa,
dos valores semânticos dos componentes subsentenciais. Assim, o termo singular
tem como seu referente próprio o denotatum; o predicado pelo menos em uma
semântica realista o seu próprio designatum, o atributo. O referente ou
denotatum de um termo singular (e/ou nome próprio) é chamado de modo geral e
não específico de "objeto" na filosofia analítica. Mas, como essa entidade é
determinada através da atribuição de propriedades e relações, ela desempenha,
sem dúvida, o papel da antiga categoria da substância, compreendida como sendo
constituida por um sujeito (substratum) e universais.
O problema fundamental pode ser formulado agora como a questão posta pela
predicação a nível da linguagem de predicados de primeira ordem. A forma mais
fundamental e simples de predicação desse tipo é "Fa", isto é, a atibuição do
atributo F ao item a (com quantificador: ($x (Fx)). O sujeito (substratum!) aou
(o valor da variável ligada) x é pressuposto de modo permanente e fundamental.
Surge aqui o problema: uma tal entidade não é inteligível, posto que ex
hypothesi,ou por suposição, ela tem de ser o item pressuposto para atribuir ou
predicar quaisquer tipo de universais ou atributos, isto é, propriedades (e
relações), bem como qualquer outro tipo de entidade que é atribuível a ela, por
exemplo "estados de coisas" e/ou "fatos". Mas então se põe a questão de saber
que é esta entidade pressuposta. Se todosos atributos (propriedades e relações)
e todos os outros tipos de entidades como estados de coisas e/ou fatos são
extraídos destes, parece não sobrar nada. Uma vez que a entidade em questão ( o
"sujeito") é pressuposta em todo e qualquer caso de predicação, ela em si mesma
não é determinada de forma alguma. Mas então ressurge a mesma questão: o que é
esta entidade? Um tal entidade é ininteligível e deveria, então, ser rejeitada.
As tentativas de salvar a idéia de um tal sujeito fracassaram, pois se baseiam
na suposição de que o "a" ou "x" é um sujeito que, em certo sentido, já está
determinado. Mas, se for assim, em que sentido? Essa alegada
"determinabilidade" do sujeito tem, ex hypothesi,de ser predicada desse próprio
sujeito, mas, para possuir sentido, a predicação tem de pressupor um sujeito
como uma entidade (ainda) não determinada. Essa suposição não responde a nada,
pois é preciso esclarecer sob quais condições o caráter determinado a ser
atribuido ao "a" ou "x" adquire sentido. Em outras palavras: o que precisa ser
esclarecido é a constituição ontológica deste sujeito.
Uma nova ontologia precisa ser elaborada para substituir essa ontologia
substancialista. Isso requer a construção de uma nova semântica. A nova
semântica precisa, ex hipothesi, evitar os problemas e dificuldades que
resultam das doutrinas e pressuposições da semântica das linguagens naturais.
Como podem ser construídas essa nova semântica e essa nova ontologia ontologia?
2. Um novo enfoque: estado de coisas primário (Primestado3") como a única
categoria ontológica no nível fundamental
O que se segue é um esboço ligeiro dessa nova semântica e ontologia.
[1] A fim de evitar a estrutura sujeito-predicado das sentenças (atômicas),
deve-se elaborar uma linguagem que seja isenta dos termos singulares (nomes
próprios) e predicados, que são responsáveis pela ontologia substancialista das
linguagens naturais indo-européias.
Essa idéia, porém, não é completamente desprovida de precedentes na literatura
filosófica. Quine desenvolveu uma técnica interessante para eliminar termos
singulares a fim de resolver o problema posto pelo fato de que muitos termos
singulares (por exemplo, "Pegaso") não possuem referentes na vida real. Outros
autores sustentam que predicados são completamente dispensáveis. Anteriomente a
Quine, Russell já havia desenvolvido um procedimento lógico-semântico para
clarificar as ambigüidades e perplexidades de fenômenos como as descrições
definidas. Tais desenvolvimentos lógico-semânticos são o resultado da decisão
de transformar significativamente a compreensão filosófica da linguagem
natural. Claro que isso não significa que devemos parar de usar a linguagem
natural no tocante à sua sintaxe, ou seja, não precisamos proibir a construção
de sentenças do tipo sujeito-predicado. A transformação da linguagem proposta
deve ser entendida, mais propriamente, com respeito à semântica e à ontologia
dessa linguagem. Essa transformação envolve tradução e/ou reinterpretação.
Quine não compreende sua técnica de eliminação de termos singulares como sendo
de importância semântica e ontológica. Pelo contrário, ele acentua que "os
objetos permanecem como valores das variáveis apesar de os termos singulares
terem sido postos de lado" (Quine 1960, p. 192, nota de rodapé 1). Nesse
sentido, a abordagem perseguida neste artigo diverge radicalmente da posição de
Quine. Explico melhor. Para Quine, a eliminação de termos singulares é apenas
um instrumento lógico-semântico, cuja aplicação procura clarificar o problema
colocado pelo fato de que alguns termos singulares, como "Pégaso" não possuírem
referência real. A técnica consiste essencialmente em manobrar termos
singulares para a posição padrão "= a", a qual, tomada como um todo, é um
predicado ou termo geral. Mas termos gerais não são afetados pelos problemas
que se colocam para os termos singulares. Vale citar a explicação detalhada de
Quine:
A equação "x = a" é refraseada efetivamente como uma predicação "x =
a", onde "= a" é o verbo, o "F" de "Fx". Ou então veja-se o seguinte.
O que era nas palavras "x é Sócrates" e em símbolos "x = Sócrates" é
agora em palavras ainda "x é Sócrates", mas o "é" deixa de ser
tratado como um termo separado relativo "=". O "é" é tratado agora
como cópula, que, como em "é mortal" ou "é um ser humano", serve
apenas para dar ao termo geral a forma de um verbo e assim adequá-lo
a uma posição predicativa. "Sócrates" se torna um termo geral que é
verdadeiro quando aplicado somente a um objeto, mas geral por ser de
agora em diante tratado como gramaticalmente admissível na posição
predicativa e não em posições aptas para variáveis. Ele assume o
papel do "F" de "Fa" e cessa de assumir o papel de "a". (Quine 1960,
§ 37, p.179)
Quine está concernido com a regulamentação da linguagem científica através dos
meios da lógica de predicados padrão de primeira ordem, a qual ele considera
ser "para bem ou mal, a forma adotada das teorias científicas" (Quine 1985,
p.170). E ele pensa que a lógica de predicados "ganha a rigidez requerida
através da reificação" (ibid.). Sentenças que não satisfazem as exigências da
linguagem de predicados de primeira ordem são consideradas por Quine como
sentenças sem contribução referencial. De fato, ele pensa que nós proferimos
tais sentenças "sem pretender referir a algum objeto" (ibid., p.169). Ele
mostra isto formulando a semântica e ontologia de uma "sentença observacional",
como:
Um gato branco encara um cão e bufa.
A white cat is facing a dog and bristling.
É preferível usar aqui a versão inglesa do exemplo devido à engenhosidade
linguística de Quine. Quine distingue dois "refraseamentos" dessa sentença. O
primeiro é não-referencial: ele tem o efeito de "dissimular sua função
referencial [da sentença]" (ibid.). De acordo com Quine, o refraseamento não-
referencial equivale a dizer, na presença sensível de um gato, " it's catting
[está gatando]" e a interpretar toda a sentença como:
I's catting whitely, bristlingsly, and dogwardly.
Se se afirma que o mundo é povoado por objetos, isto é, sujeitos/substâncias
que tem propriedades e que estão em relações com outros objetos (sujeitos/
subbstâncias), esse primeiro refraseamento é indubitavelmente não-referencial.
Quine parece tomar como óbvio que o mundo é estruturado dessa maneira. Assim,
sem a menor hesitação, ele adere ao que poderia ser chamado de "dogma da
ontologia objetual ou substancialista".4
Em perfeito acordo com essa pré-concepção ontológica, Quine apresenta um
segundo refraseamento que pretende articular a referência. Isso é obtido pelo
procedimento de regimentação da linguagem; com isso obtem-se que a sentença é
"adequada à lógica de predicados, a qual foi escolhida para moldar nossas
teorias científicas" (ibid.):
(x (x é um gato e x é branco e x está bufando e x está na presença de
um cão)
(x (x is a cat and x is white and x is bristling and x is dogward)
A técnica de Quine de eliminação de termos singulares mostra-se, assim, como
sendo um mero truque lógico-semântico sem qualquer contribuição ontológica. Ao
invés de considerar os "velhos" objetos como os denotados de termos singulares,
eles são tomados como valores das variáveis quantificadas (de primeira ordem).
Numa perspectiva ontológica nada mudou realmente: o truque lógico-semântico de
Quine mantém intacta a velha ontologia "substancialista". É muito importante
para o propósito do presente artigo clarificar bem essa questão, uma vez que a
nova estrutura semântico-ontológica proposta se distancia de Quine exatamente
nesse ponto. Em última análise, Quine pressupõe um x como um sujeito. Sem essa
pressuposição, a técnica, i. e. o truque lógico-semântico, de Quine não
funcionaria. Em outras palavras: a razão pela qual Quine rejeita o
refraseamento do tipo "está socratizando" é claro: esse refraseamento não
contém um sujeito/substrato x. Isso mostra que Quine permanece preso à uma
ontologia de objetos, de substâncias e, com isso, de sujeitos/substratos.5
A fim de localizar, no interior da filosofia contemporânea, a abordagem
desenvolvida neste artigo vale mencionar um outro filósofo. Em sua tentativa de
desenvolver o que ele chama de "metafísica descritiva", P.F. Strawson tem em
vista a fundação de uma teoria gramatical concebida em termos "da noção" ou "na
base do esquema de substanciação + predicação complementar" (Strawson 1974, p.
135, 127). Ele pensa em um tipo de linguagem cujas sentenças são da forma
sujeito-predicado. Mas, ao mesmo tempo, ele prefigura a possibilidade de uma
linguagem "sem particulares", contendo apenas "sentenças que articulam somente
localizações de traços fundamentais (feature-placing sentences)" como as
seguintes: "está chovendo agora", "neve está a cair", "tem água aí". Tal
linguagem elimina "particulares", ou seja, referentes de termos singulares como
"sujeitos" de sentenças da forma sujeito-predicado.
O conceito de Strawson de "sentenças que articulam somente localizações de
traços fundamentais ("feature-placing sentences")" é ambíguo em vários
aspectos. Em primeiro lugar, como os exemplos acima o mostram, algumas das suas
"sentenças que articulam somente localizações de traços fundamentais" [feature-
placing sentences] contém "termos designativos de substâncias", como "neve",
"água" e semelhantes. Mas tais sentenças possuem claramente a estrutura de
sujeito-predicado. Em segundo lugar, Strawson tenta mostrar que as "sentenças
que articulam somente localizações de traços fundamentais (feaure-placing
sentences)" "não apresentam forte resistência de assimilação pela gramática
substancialista" (ibid. p.136). A fim de realizar a proposta, ele propõe uma
"expansão" do seu esquema de substanciação e predicação complementar através da
introdução da "generalização do sujeito", cujo primeiro passo remove
a restrição das expressões de sujeito à função de substanciação de
i.i. [isto é, indivíduo identificado] representando esse indivíduo
como um caso especial de substanciação em geral. O passo seguinte
consiste em remover a restrição de expressões de sujeito à função de
substanciação representando esta função como um caso especial de uma
função ainda mais geral o que se podería chamar provisoriamente de
sujeição-em-geral[subjection-in-general]. (Ibid. p.125)
Em terceiro lugar, ao fazer isso, Strawson nunca abandona a idéia fundamental
de um sujeito e a idéia complementar de uma característica (um universal) que o
determina. A sua "generalização do sujeito" gera particulares de acordo com o
esquema substancialista, sendo que a única diferença em relação à posição
tradicional é o fato de que o seu procedimento o conduz a uma distinção entre
"particulares ordinários" e "particulares de um (certo) tipo".
Strawson nunca pôs em questão o conceito de sujeito. Ele ignora o que foi
chamado acima (seção 1) de problema fundamental do esquema semântico-ontológico
substancialista.
[2] Se não prestarmos atenção apenas para questões e tópicos isolados, mas
procedermos sistematicamente, teremos inevitavelmente de perguntar sobre qual/
quais princípio(s) a nova semântica deve basear-se. Mas existe uma alternativa
ao PCPS: o Princípio de Contextualidade Sentencial (PCTS) (freqüentemente
chamado de Princípio do Contexto), que foi formulado pela primeira vez por
Frege em 1884. Em uma das suas formulações, o princípio afirma:
(PCTS) "Somente no contexto de uma sentença as palavras tem um significado"
(Frege 1884/1953: 62).
(Devido às ambigüidades da expressão "significado" é preferível falar de "valor
semântico"). Mas Frege claramente mantém o PCTS também nos seus escritos
posteriores. Existe uma grande controvérsia sobre o significado exato que Frege
atribui ao PCTS e se ele continuou a mantê-lo em conexão com o PCPS. Muitos
filósofos analíticos contemporâneos mantém o PCTS, usando algumas vezes outros
nomes como "(Princípio do) Primado Semântico da Sentença" (Quine 1981, p.20).
E, em geral, eles defendem que os dois princípios são perfeitamente
compatíveis. Dessa forma, eles pressupõem o que poderia ser chamada a versão
fracado PCTS (a partir de aqui W-PCTS ["W" do inglês "weak"]). De acordo com a
versão fraca, todo constituente sub-sentencial tem o seu próprio "significado"
ou "valor semântico" somente na medida em que ele contribui para o significado
ou valor semântico da sentença como um todo. Mas isto deixa toda a questão
semântica e ontológica intocada: mudanças fundamentais na semântica e ontologia
não são requeridas ou induzidas.
Para desenvolver um novo enfoque semântico e ontológico torna-.se necessário
introduzir uma outra versão do PCTS, que poderia ser chamada de versão fortedo
PCTS (a partir de aqui S-PCTS ["S" do inglês "strong"]). Três aspectos
caracterizam o S-PCTS:
[i] S-PCTS é incompatível com o PCPS.
[ii] Termos singulares e predicados são radicalmente eliminados de sentenças no
tocante ao seu estatuto semântico. As sentenças que resultam dessa eliminação
serão chamadas sentenças primárias. São sentenças da forma "verdeja", "chove",
"leiteia", "mamãe" (tomada como abreviação de uma sentença), e semelhantes. No
português filosófico poder-se-ia dizer adequadamente: "está F-zando", "F-zar"
ou algo semelhante. (Mas "ser F" não o fará, uma vez que essa expressão designa
uma propriedade (de acordo com uma visão realista das propriedades), uma
entidade que requer uma outra entidade _ um sujeito/substrato _ da qual ela
seja predicada).
[iii] Toda sentença primária descritiva, sintaticamente bem formada e
semanticamente significativa de acordo com [i] e [ii], isto é, toda sentença
primária, tem (ou expressa) um conteúdo informacional que pode ser designado de
estado de coisas primário, ou, mais curto, primestado. Em um aspecto
importante, essa entidade é o que, em uma lógica de predicados de primeira
ordem, é, em geral, tomado como o designatum de um predicado. Apenas para
tornar claro: os "antigos" predicados não estão contidos na linguagem
reinterpretada como predicados, uma vez que predicados como tais foram
eliminados. Mas a "função expressiva" exercida por essas expressões, que na
linguagem da lógica de predicados de primeira ordem são consideradas
"predicados", reaparece ou é mantida na "nova" linguagem na forma de uma
sentença primária cuja forma geral é "está F-zando". Resumindo: o estado de
coisas primário é o conteúdo informacional compreendido no uso da expressão "F"
em sentenças primárias da forma "está F-zando".
Essa tentativa de substituir nossa linguagem ordinária ou natural por uma nova
linguagem, dotada de uma semântica e ontologia superiores, pode parecer um
exercício auto-contraditório, posto que emprega a linguagem ordinária que
deveria ser superada na construção da linguagem substituta. É como se alguém
tivesse de subir em uma escada e, então, a jogasse fora quando tivesse
alcançado o topo. Mas isso pode realmente ser feito, como o evidencia a
construção de linguagens científicas a partir da linguagem ordinária. (Até
mesmo místicos fazem uso da linguagem ordinária para construir uma linguagem
que pretende apresentar uma visão da realidade que é radicalmente diferente da
realidade correspondente à linguagem natural). O primeiro estágio no projeto
revisionário proposto neste artigo é apresentar argumentos, em linguagem
ordinária, e em primeiro lugar a objeção acima denominada de problemacentral
(cf. seção 1), a fim de motivar a construção de uma nova linguagem tornando-nos
insatisfeitos com o comprometimento da linguagem ordinária com a ontologia de
substância-atributo. O segundo estágio envolve a construção efetiva da
linguagem nova e optimalizada. No que se segue será apresentado, na linguagem
ordinária, um procedimento para construir, por meio de um processo de
substração, umasentença primária (e, consequentemente, um primestado), a partir
de sentenças com a estrutura de sujeito-predicado.
Tomemos como ponto de partida a sentença ordinária com a estrutura de sujeito-
predicado "S é F (ou Fs)". O conteúdo informacional expresso por essa sentença
é que algum substância S instancia o atributo abstrato ou universalser F(ou ser
um F-zando). A seguir, subtrai-seo substrato S deste conteúdo informacional. O
que sobra? Não pode ser o abstrato universal. A razão é que o universal está
conceitualmente ligado ao conceito de substância no sentido de que um universal
abstrato tem de admitir a possibilidade conceitual de o universal ser
instanciado por uma substância, mesmo se não existir realmente nenhuma
substância. Assim, se o conceito de uma substãncia é impossível, como foi
sustentado pela objeção central, então também o é o conceito de um universal
abstrato. O que permanece é, portanto, não a propriedade abstrata de ser F(ou
ser um F-zando), mas um estado (ocorrência, evento ou processo) de F (ou F-
zando), sem haver nenhuma substância que seja o sujeito de ou participante
nesse estado ou evento.
Já foi mostrado que tanto os termos singulares(e nomes próprios) como os
predicados propriamente ditos devem ser eliminados relativamente ao seu
estatuto semântico. Mas não se requer que eles sejam eliminados da dimensão
sintática da linguagem. Eles podem perfeitamente permanecer como items
sintáticos, sob a condição que sejam reinterpretados semanticamente.
Existem duasmaneiras de realizar e expressar tal reinterpretação. Uma maneira é
tomar termos singulares (e nomes próprios) como abreviações de um grande número
de sentenças primárias, mais exatamente, como abreviações de sentenças
primárias que expressam primestados, os quais, como será mostrado, constituem
configurações que costumamos chamar de "indivíduos" ("particulares concretos",
"coisas", "objetos"). Predicados propriamente ditos (no sentido sintático), por
sua vez, devem ser entendidos como abreviações de sentenças primárias que
expressam um primestado (e eventualmente um primofato) pertencente a uma
configuração de primestados. A outra maneira de formular a reinterpretação é
introduzir uma sentença (não usual, artificial) que expressa um primestado
complexo, isto é, uma configuração de primestados. A aplicação da forma
profundamente modificada da técnica de Quine elaborada acima resultaria em uma
sentença da forma: "está Socratizando filosoficamente". "Está Socratizando" é
uma sentença primária complexa que expressa um primestado complexo (primofato).
O advérbio "filosoficamente", por sua vez, deve ser interpretado como uma
abreviação da sentença primária "está filosofando", que expressa o primestado
singular correspondente.
Esse exemplo ilustra a reinterpretação semântica pretendida. A sentença
"Sócrates é um filósofo" tem a forma sintática de sujeito-predicado. Uma das
análises semi-formais possíveis da reinterpretação desta sentença, de acordo
com a semântica e ontologia aqui esboçada, poderia ser essa:
Existe um x de tal modo que x é ("é" no sentido de "deve ser
interpretado semantica e ontologicamente como") a configuração S dos
primestados p1, p2,...,pr e existe um estado primário pi tal que pi é
o estado primário de coisas expresso pela sentença primária 'está
filosofando' e pi é um componente constituinte de S.
[3] Tendo alcançado este ponto, o enfoque proposto toma uma direção claramente
ontológica. A entidade que aqui chamamos de primestado é o que uma sentença
primária descritiva expressa. De acordo com a semântica aqui delineada,
sentenças primárias são as únicas expressões lingüísticas enganchadas no (ou
dotadas de uma conexão com o) mundo. Disto se segue que a dimensão ontológica
dentro do quadro semântico-ontológico escolhido pode ser clarificada apenas a
partir dessa base. Claro que a passagem da dimensão semântica para a ontológica
precisa ser explicitamente considerada e esclarecida. Em uma semântica
composicional, essa passagem é vista como tendo de ser realida em dois passos:
primeiro como a relação de referência ao mundo, sendo essa relação tomada como
uma característica semântica de termos singulares (e, dependendo de premissas
ulteriores, de predicados); e segundo como a característica da verdadeatribuida
às sentenças compreendidas composicionalmente (e às proposições ou estados de
coisas que elas expressam).
Mas, de acordo com a semântica não-composicional perseguida aqui, a única
espécie de "referência" semântica (ao mundo) pressupondo que se queira manter
e usar a expressão 'referência' neste contexto é uma característica
unicamente das sentenças, mais exatamente, das sentenças primárias. E essa
relação de referência das sentenças à dimensão ontológica também se revela como
sendo também um direcionamento à dimensão ontológica que contém dois passos
diferentes: primeiro, a sentença (primária)expressa um estado (primário) de
coisas; segundo, o estado primário de coisas ocorre, isto é, é verdadeiro.
O passo decisivo em direção à ontologia é feito quando se esclarece o que
significa dizer que um estado primário ocorre ou é verdadeiro. Trata-se aqui de
um tema muito central que pertence à teoria da verdade, mas que não pode ser
tratado adequadamente neste ensaio (cf. Puntel 1993 e 2001). Basta afirmar, sem
apresentar argumentos, que a explanação mais consonante com a abordagem que vem
sendo desenvolvida aqui consiste em dizer que um primestadoverdadeiro ou que
ocorreésimplesmente um fato primário (ou, mais breve, um primofato), sendo que
o "é" aqui deve ser compreendido como o "é" de identidade. Essa é a tese
central propugnada pela chamada Teoria da Verdade como Identidade (cf. Baldwin
1991, Dodd/Hornsby 1992; Puntel 1999; Puntel 2001). Frege formulou a conhecida
questão "O que é um fato?" e sua resposta foi: "um fato é um pensamento que é
verdadeiro" (Frege 1967, p.35). A identidade entre um estado de coisas
(primário) e um fato pode ser vista como um caso limite da relação de
correspondência (cf. Baldwin 1991, p.36; Brandom 1994, p.330).
Importa ressaltar aqui que a expressão "fato primário (primofato)" não é
adequada porque tem quase exclusivamente conotações empíricas. Mas, de acordo
com a concepção proposta aqui, essa categoria não deveria designar somente algo
exclusivamente empírico, mas sim, ela penetra e trespassa todos os domínios do
ser e do conhecimento, tanto empíricos quanto não-empíricos. Seria melhor
introduzir outra expressão mais adequada. Ainda assim, é interessante notar que
a expressão 'fato' na filosofia contemporânea é algumas vezes usada num sentido
muito vasto e compreensivo para nomear algo semelhante a um fator. Esse é o
caso quando se usa essa expressão em formulações como "fatos lógicos", "fatos
matemáticos" e assim por diante. Claro que nestas formulações "fato" não
designa nada de empírico. Porém, por falta de uma expressão mais adequada, será
usada aqui a expressão "fato (primofato)".
[4] A estrutura semântica que acaba de ser esboçada conduz a uma importante
conclusão: as únicas entidades (ou tipo de entidade) admissível são os
primestados (e, levando em conta o estatuto completamente determinado dos
primestados, os primofatos. Por razões de brevidade, em geral será usada
somente a expressão "primestado"). Em outras palavras: estados primários não
são apenas uma categoria ontológica entre outras, eles são a única categoria
ontológica em um nível mais fundamental. Se a estrutura semântica delineada é
aceita, a ontologia adequada é uma ontologia monocategorial (cf. Campbell
1990)6.
Mas seria errado inferir dessa afirmação que o mundo é algo como a totalidade
de (um tipo de) primestados (primofatos) atômicos isolados e indiferenciados.
De fato, a admissão de apenas uma única categoria ontológica no nível
fundamental não impede que se reconheça três especificações centrais desta
categoria. De acordo com o conceito de categoria ontológica elaborado neste
ensaio, é possível conceber uma ontologia categorial altamente diferenciada e
detalhada explanando todos os "dados ou fenômenos ontológicos" primeiramente
como sendo (ou pertencendo a) sub-espécies ou tipos diferentes da categoria
ontológica fundamental primestado. Em segundo lugar, através da redução de
(certos) tipos de primestados a outros tipos de primestados. Em terceiro lugar,
mostrando que primestados "simples" são membros de alguma configuração (de
subespécies) primestados, sendo que a configuração, por sua vez, também é um
primestado, mas neste caso um primestado complexo. Evidentemente, essa
sistematização de uma ontologia categorial sobre a base da categoria
fundamental de primestado representa uma enorme tarefa que não pode ser
executada adequadamente neste artigo. Mas algumas pistas de como ela deveria
ser concebida e elaborada podem ser apresentadas aqui. Voltamo-nos agora mais
detalhadamente para cada uma dessas especificações.
[4.1] Com respeito à primeira especificação, deveríamos começar com a afirmação
de que a categoria de primestado (primofato) é universal, sendo a única
categoria no nível fundamental. Mas com isso se coloca a questão de como essa
categoria pode fazer justiça à grande variedade de fenônemos ontológicos que as
teorias de categorias examinadas na seção 1 procuram capturar. A maioria das
categorias alistadas não podem ser integradas na concepção que está sendo
desenvolvida aqui pela simples razão de que elas são o resultado direto de um
esquema semântico-ontológico sem suficiente inteligibilidade. A esse grupo de
categorias pertence, por exemplo, à parte a categoria de substância, a
categoria de propriedade (relação). Mas o que fazer com "categorias" como
eventos e processos? (Deve-se assinalar que, surpreendentemente, a maioria das
"tabelas de categorias" propostas e defendidas na filosofia contemporânea nem
mesmo menciona "processo"). Tais "categorias" não parecem ser simplesmente o
resultado de uma estrutura linguística pré-fabricada. Elas parecem, mais
propriamente, indicar algo ontológico que não combina bem com a estrutura
lingüística natural cuja categoria central é a de substância.
Observemos primeiramente que não há primestados "universais" e/ou
"particulares", se se compreende "particular" como "particularizado", pois isso
pressuporia a aceitação de um universal. Essa é uma conseqüência direta da
posição semântico-ontológica defendida neste artigo. Primestados são o que eles
são "originalmente": eles são entidades singulares, não sendo o resultado de
uma "instanciação", de uma "exemplificação", de uma "individuação", ou de algo
de semelhante. Questões sobre "instanciação", "exemplificação" e "individuação"
e outras semelhantes simplesmente não se colocam no esquema semântico-
ontológico seguido aqui, posto que as pressuposições subjacentes a essas
questões, a saber a aceitação de universais, não tem lugar no presente esquema.
Se a expressão "(entidade) particular" é tomada no sentido de "entidade
singular", então primestados podem ser chamados de "particulares primários".
No nível puramente descritivo podem ser facilmente distinguidos diferentes
tipos de primestados. Por exemplo, as seguintes distinções entre tipos de
primestados parecem impor-se por si mesmas: primestados abstratos e primestados
concretos (mas existe um sério problema acerca da compreensão de um sentido
exato _ ou, ao menos, não-ambígüo de "concreto" e "abstrato"); primestados
uni-configuracionais: primestados que ocorrem em uma configuração de um modo
tal que eles não conectam essa configuração com outras configurações (isto é,
propriedades como reinterpretadas) e primestados pluri-configuracionais ou
conectivos (isto é, relações como reinterpretadas, por exemplo, primestados
causais); primestados estáticos e dinâmicos (por exemplo, eventos, processos,
etc.); e em um nível ontológico mais determinado: primestados constituidores do
espaço e do tempo, primestados físicos, primestados biológicos, primestados
mentais, primestados sociais; em um nível ontológico ainda mais problemático:
primestados primários morais, primestados estéticos; além disso: primestados
lingüísticos (primestados sintáticos, semânticos, pragmáticos); primestados
ideais como conceitos, e todos os tipos de estruturas formais (regras),
conjuntos, teorias, etc.
Se todas as entidades mencionadas forem consideradas tipos de uma única
categoria de primestados, então surge a questão de saber se eles podem ser
classificados de maneira sistemática. Esse é um problema distinto, uma tarefa
imensa e extremamente árdua. Uma classificação sistemática de todos (e mesmo
somente dos mais fundamentais) tipos de primestados somente pode ser atingida
como como resultado de uma ontologia desenvolvida sistematicamente. Há muito
trabalho teórico a ser realizado antes de se poder dizer que esta tarefa tenha
sido cumprida, mesmo que só parcialmente. Mas para empreender esta tarefa de
modo efetivo, é da maior importância considerar e clarificar duas questões ou
tópicos centrais, que serão chamadas de questão reducionista e questão da
configuração.
[4.2] A questão do reducionismo surge de considerações acerca diferentes níveis
de análise, sendo que pelo menos dois níveis precisam ser reconhecidos, o nível
da superfíciel e o nível daestrutura profunda. Análises do nível superficial
são, em geral, puras descrições de um fenômeno, do significado de uma
expressão, de um conceito e de coisas semelhantes tal como tais items
apresentam-se ou aparecem sem (ou antes de) terem sido submetidos a uma análise
exata da sua constituição interna. Análises da estrutura profunda, por outro
lado, são o resultado de uma análise detalhada que vai além do nível da pura
aparência ou auto-apresentação. Mas estrutura superficial e estrutura profunda
não são necessariamente mutuamente excludentes. Elas apenas não devem ser
confundidas uma com a outra, isto é, uma não pode ser tomada como sendo
simplesmente idêntica à outra. O conceito de redução tem a função de evitar
sistematicamente tal confusão, ou, para colocar em termos afirmativos: o
conceito de redução articula a relação entre o nível da estrutura superficial e
o nível da estrutura profunda. Para deixar claro: o nível da estrutura
superficial tem claramente uma conotação negativa: isso significa que as
entidades localizadas nesse nível precisam ser removidas ou radicalmente
reinterpretadas.
Os tipos de primestados descritos acima situam-se no nível da estrutura
superficial. Uma ontologia conspícua tem de articular os tipos de primestados
perspícuos alcançados depois de aplicar o conceito e o processo de redução aos
tipos de primestados acima mencionados. Não seria exagero dizer que esta
questão atravessa todas as áreas da filosofia. Ilustremos esse ponto com um
exemplo. Poder-se-ia considerar o que acima foi chamado de primestados mentais
como não sendo primestados genuinamente ontológicos reduzindo-os, digamos, a
primestados puramente físicos. Na terminologia usada neste artigo, essa tese
seria um fisicalismo redutivista (ou teoria da identidade) na área da Filosofia
da Mente.
[4.3] A terceira especificação diz respeito ao tópico fundamental da
configuração de primestados. Esse tópico precisa ser tratado considerando três
questões.
[4.3.1] A primeira questão é motivada por uma leitura interna de uma forma
especial de reducionismo: veladamente não são alguns, ou muitos, ou até mesmo a
maioria dos primestados em realidade não meras entidades simples, isto é,
primestados em sentido absolutamente estrito, mas sim entidades complexas, isto
é, configurações (feixes) de primestados? Essa questão é extremamente
importante. Se colocarmos as questões terminológicas de lado por um momento,
exemplos de reducionismos de entidades aparentemente simples a entidades
compostas ou complexas configurações de alguma espécie são abundantes na
história da filosofia e da ciência. O exemplo talvez mais famoso seja a
história do conceito de átomo. Como a palavra conota, um átomo é uma entidade
indivisível (simples), mas o progresso da ciência revelou que o que a ciência
por muito tempo considerou ser um átomo no sentido estrito é, em realidade, uma
entidade composta. (Não obstante, a ciência e a filosofia continuam a usar a
expressão "átomo" para designar o tipo de entidade composta originalmente
tomada por um "átomo" propriamente dito). Durante vários séculos, a água foi
considerada um "elemento", uma entidade simples, não- composta. Hoje ninguém
duvida que a água seja H2O: uma molécula de água é uma configuração de dois
átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio, sendo que cada um dos átomos de
hidrogênio é ligado quimicamente ao átomo de oxigênio.
É difícil negar que algumas das entidades mencionadas acima como sendo
primestados no nível da estrutura superficial, especialmente eventos e
processos, são, em realidade, isto é, quando considerados no nível da estrutura
profunda, não entidades simples, mas entidades muito complexas. Em nossa
terminologia: configurações de muitos tipos significativamente distintos de
primestados. Tome-se como exemplo de um evento a morte de um cavalo e como
exemplo de um processo a evolução de um ser humano. Tais exemplos mostram como
morte e evolução são entidades altamente complexas ou compostas. Em outras
palavras, essas entidades são configurações de muitos primestados
diversificados.
[4.3.2] Essas considerações dão origem a uma segunda questão concernente à
idéia de configuração: como devem ser caracterizados esse conceito e essa
entidade?
Esse problema é notório para todas as versões da assim chamada teoria de
feixes. Apesar das dificuldades colocadas para as teorias opostas à teoria de
feixes, muitos filósofos evitam assumir uma versão da teoria de feixes porque
eles não vêem como conceber o conceito de um feixe ou configuração de maneira
que nossas intuições concernentes a indivíduos, especialmente pessoas humanas,
sejam captadas de modo adequado. Por outro lado, os argumentos contra todas as
teorias que admitem a substância como categoria fundamental parecem carregar
tanto peso que é preferível assumir alguma versão da teoria de feixes ou
configurações, mesmo que o conceito de feixe/configuração ainda não tenha sido
satisfatoriamente clarificado.
Observemos apenas nesse contexto que vários filósofos têm procurado esclarecer
o conceito de feixe/configuração, dentre outras coisas, recorrendo a
instrumentos formais como a mereologia, a teoria de conjuntos e até mesmo a
topologia matemática, muitas vezes combinando estes recursos a fim de explanar
esse conceito (veja, por exemplo, Simons 1987 e 1994, Bacon 1995, Mormann
1995). Mas deve-se notar que todas estas tentativas padecem do fato de
permanecer na obscuridade o caráter das entidades que compõem uma configuração.
Alguns autores admitem universais, outros rejeitam universais e introduzem, em
seu lugar, "tropos" (particulares abstratos), ainda outros falam simplesmente
de "qualidades", e assim por diante. Uma vez que o conceito de feixe ou
configuração torna explícita a conexão entre os items no feixe ou configuração,
é óbvio que a clarificação do conceito depende fundamentalmente da questão
acerca dos tipos de entidades a serem admitidos. A principal motivação para
desenvolver o novo enfoque neste ensaio reside precisamente na convicção de que
o primeiro passo sistemático a ser feito por uma ontologia conspícua tem de ser
a clarificação sistemática da questão acerca do tipo de entidade que deve ser
admitido.
[4.3.3] Finalmente, a terceira questão a se colocar no tocante ao conceito de
configuração é essa: qual o lugar do conceito de um feixe/configuração em uma
ontologia sistemática? Essa questão surge do fato de que até este momento um
tópico central ainda não foi tratado (e mesmo nem foi mencionado).
Em primeiro lugar, a exposição até agora apresentada cria a impressão de que a
concepção examinada deveria ser considerada uma espécie de atomismo semântico e
ontológico. A estrutura categorial do mundo a que se chegou parece, no mínimo,
estar no espírito do atomismo lógico, desde que, no lugar de "lógico", se diga
"semântico-ontológico". Não se pretendeu afirmar que o mundo é constituído a
partir de entidades pertencentes somente a uma única categoria ontológica
chamada primestados (primofatos), mesmo se essa categoria é compreendida como
sendo diversificada em muitos tipos diferentes? Não são estes primestados
simples e tipos de primestados os átomos últimos a partir dos quais o mundo é
estruturado? E não é uma consequência inelutável dessa base "atomística" que as
conexões entre primestados possam ser conexões puramente externas (não-
essenciais) de um tipo claramente secundário ou derivado? Esse último ponto
concerne tanto às conexões entre os primestados simples numericamente distintos
que constituem um único feixe (ou configuração) complexo quanto às conexões
entre feixes (ou configurações) distintos. Isso não parece ser uma forma
perfeita de um atomismo ontológico baseado em primestados (primofatos)?
A resposta é: não necessariamente. A impressão de que a nova concepção proposta
implica alguma versão de atomismo ontológico deve-se ao fato de que a
apresentação do quadro semântico-ontológico teve de ser restringida à
elaboração de apenas alguns aspectos da concepção semântico-ontológica
tencionada. E não se pode negar que, com base somente nesses poucos aspectos,
uma versão de atomismo ontológico não pode ser excluída de modo peremptório.
Mas de uma elaboração integral do quadro semântico-ontológico parcialmente
esboçado acima resulta uma visão completamente diferente: uma visão
marcadamente holística. Essa afirmação será esclarecida e justificada na parte
final deste ensaio.
Primeiramente, uma configuração de primestados pertence à mesma categoria
semântico-ontológica que tem sido chamada de "primestado" ("primofato"): uma
configuração de de primestados é também um primestado, mas um primestado
complexo. Esse ponto é exatamente análogo ao bem conhecido fato da lógica
sentencial (ou lógica proposicional) de que uma conjunção de sentenças (ou
proposições) é também uma sentença (proposição), mas uma sentença (proposição)
complexa.
A expressão "primário" foi introduzida para caracterizar o novo sentido
específico que tem de ser atribuído às expressões "sentença" e "estado de
coisas". "Primário" não significa "atômico" , "simples" (isto é, não-complexo).
"Primário" significa, mais propriamente, que nenhum "sujeito" (termo singular,
nome próprio, e assemelhados) ocorre como um fator semanticamente relevante na
sentança e que, consequentemente, o estado de coisas expresso por uma tal
sentença não contém nada como um "sujeito", uma "substância" no sentido de uma
entidade x possuindo propriedades F e/ou mantendo relações com outras
substâncias (frequentemente chamadas "objetos"). Colocando em termos
afirmativos: "primário" é usado para caracterizar sentenças/estados de coisas
da forma "está F-zando". Desse significado atribuído a "primário" segue-se que
sentenças primárias e estados primários de coisas ("primestados" e
"primofatos") podem ser primestados/sentenças primárias simples (atômicos, não-
complexos) assim como configurações desses, isto é, sentenças primárias
complexas e primestados (primofatos) complexos.
Sem desenvolver detalhadamente uma ontologia sistemática é difícil, ou talvez
mesmo impossível, dar exemplos de primestados absoluta e irredutivelmente
simples ("atômicos" em sentido estrito). Tal como foi feito acima, pode-se dar
exemplos de primestados "simples" relativamente a um quadro semântico-
ontológico dado (aceito ou utilizado). Por exemplo, dentro do quadro
lingüístico natural, um ponto colorido seria considerado como um primestado
simples (atômico), mas as coisas mudam completamente se localizamos um "ponto
colorido" no interior de um quadro científico.
A metafísica tradicional cristã (pré-kantiana) sustentava que a mente ou alma é
uma entidade imaterial (espiritual) simples. Suponhamos agora que um filósofo
que aceita o quadro ontológico proposto no presente ensaio está preparado para
endossar a afirmação de que a mente (o espírito) é uma entidade imaterial. Ele
teria, então, de dizer que a mente não é uma substância, mas um primestado
(primofato). Teria ele de dizer além disso que a mente é um primestado simples
(não-complexo)? Não é difícil mostrar que o conceito de simplicidade
pressuposto pela metafísica tradicional revela-se ser, nesse caso,
profundamente problemático. Com efeito, a metafísica cristã pré-kantiana havia
assumido que a alma ou mente é dotada de duas "faculdades essenciais": o
intelecto e a vontade. Ora, como conciliar essa tese com a afirmação de que a
mente é uma entidade simples? Fica evidente aqui que essa metafísica tinha um
conceito muito superficial e inadequado de simplicidade: esse conceito era
definido de modo exclusivamente negativo e parcial, a saber como
indivisibilidade, sendo que divisibilidade era considerada uma característica
de entidades com partes ou componentes materiais. Mas componentes materiais não
são de modo nenhum a única espécie de "componentes" que podem ser concebidos.
Consequentemente, se se afirma que a mente é uma entidade imaterial e se, em
consonância com a concepção esboçada neste ensaio, caracteriza-se a mente como
sendo um primestado (primofato), não se segue que a mente seja um primestado
simples; ao contrário, a mente é uma configuração de um certo tipo de
primestados (imateriais).
Não é difícil dar exemplos quanto à outra espécie de primestados, os
primestados complexos, isto é, as configurações de primestados. Um exemplo
eloquente foi examinado acima: "Sócrates é um filósofo". O nome "Sócrates" pode
ser tomado como uma abreviação de um grande número de sentenças primárias, cada
uma das quais expressando um primestado primário. Os primestados primários,
considerados conjuntamente, constituem uma primestado complexo, uma
configuração de primestados. Ou pode-se introduzir uma nova sentença, uma
sentença artificial: "está Socratizando filosoficamente" (ver acima [2]). Essa
segunda maneria de expressar a reinterpretação é mais congenial à concepção
defendida neste ensaio, dado que ela articula explicitamente a configuração
como um todo.
Tendo notado que primestados podem ser simples ou complexos, podemos agora
tentar dar uma resposta à terceira questão mencionada acima, quer dizer, a
questão de saber que lugar sistemático deveria ser atribuido a cada um desses
tipos de primestados, especialmente aos primestados complexos, isto é, às
configurações de primestados. Um tratamento adequado dessa questão vai muito
além do que pode ser tratado neste ensaio. Falando em termos mais exatos,
trata-se da seguinte questão: devem os primestados complexos ser considerados
como sendo constituídos a partir de primestados simples ao modo como o atomismo
lógico (e ontológico) tradicional caracterizava entidades complexas de todo
tipo e em todos os domínios? Ou deveriam primestados complexos, isto é,
configurações de primestados, serem vistos em uma perspectiva holística como
sendo os "pontos" ou "lugares" sistemáticos propriamente ditos que constituem
as conexões entre os primestados?
Uma consideração final será apresentada para mostrar que uma concepção
holística deveria ser favorecida. O enfoque proposto para uma nova concepção do
conceito de categoria ontológica apoia-se fundamentalmente em considerações de
caráter semântico. Mas como deveria ser concebida uma semântica sistemática,
uma filosofia sistemática da linguagem? A perspectiva holística parece ser
essencial para esse projeto. Foi mostrado que as sentenças são as unidades
semânticas centrais de acordo com a Versão Forte do Princípio de
Contextualidade Sentencial. Mas sentenças não ocorrem isoladamente. Elas
constituem o todo que chamamos de linguagem. Parece que essa intuição somente
pode ser levada a sério se se introduz um princípio ulterior, mais
compreensivo, o Princípio da Contextualidade Holística:
(PCTH) Somente no contexto da linguagem como um todo as sentenças adquirem um
valor semânticos.
Mas, se a concepção atomística da linguagem é rejeitada, então isso tem
consequências importantes para a ontologia derivada da semântica não-holística.
A idéia de configuração revelar-se-ia como absolutamente central tanto na área
da semântica quanto na área da ontologia. Mas esse tópico não pode ser
desenvolvido mais detalhadamente neste ensaio.
3. Observaçôes finais
A finalidade deste ensaio foi a elaboração do conceito de categoria ontológica
a partir de um novo enfoque. As posições contemporâneas mais proeminentes nessa
área foram sucintamente apresentadas e submetidas a uma crítica concisa. O novo
enfoque emergiu daquilo que a crítica revelou: uma nova ontologia deveria ser
considerada como o resultado de se levar a sério a tese de que semântica e
ontologia são dois lados da mesma moeda. De acordo com isso, para evitar as
dificuldades que afetam a ontologia da substância e suas diversas formas, a
semântica subjacente à ontologia da substância, que se baseia no Princípio de
Composicionalidade Semântica deveria ser rejeitada em favor de uma nova
semântica baseada no Princípio de Contextualidade Semântica. Essa nova
semântica produz uma nova ontologia cuja única categoria no nível fundamental é
a categoria de estado de coisas primário (primestado) ou, no nível ontológico
próprio, a categoria de fato primário (primofato).
Esse resultado representa somente o primeiro passo na elaboração de uma nova
ontologia compreensiva. Na última parte do ensaio foram dadas algumas
indicações acerca de algumas das mais importantes questões com as quais essa
nova ontologia deverá enfrentar. Ainda assim, a concepção proposta permanece
ainda muito vaga e abstrata. Muitos tópicos centrais nem chegaram a ser
mencionados, por exemplo o tópico central do espaço e do tempo. Resta ainda
fazer uma grande parte de trabalho filosófico diversificado. Mas, sem haver
primeiramente elaborado os fundamentos, uma nova ontologia não é digna de ser
desenvolvida, pois ela repousaria sobre pressuposições básicas não-
esclarecidas.
O leitor que simpatiza com o novo enfoque delineado neste artigo está convocado
a consultar a literatura sobre a teoria de tropos (cf. especialmente Campbell
1990, Bacon 1995, Mormann 1995). Com respeito à perspectiva geral e a muitos
tópicos específicos importantes, essa ontologia aproxima-se muito da nova
ontologia desenvolvida no presente ensaio.
1 Esta expressão foi introduzida por Williams, 1953, e é hoje comumente usada
na ontologia analítica. A expressão é derivada do grego trópoV segundo a
significação de "modo, espécie". "Tropo" como categoria
gramátical é o emprego de uma palavra em sentido figurado.
2 O'Leary-Hawthorne/Cover chamam a sua teoria "a teoria de feixes da
substância" (ibid., p. 205). Esses autores tomam simplesmente a expressão
"substância" como sinônima de "particular concreto" ou
"individual". Deve-se dizer, no mínimo, que esta terminologia é
ambígüa.
3 Puntel cunha um neologismo ("pristate") como abreviação para
"prime state of affairs". Optamos por traduzir esse neologismo por
"primestado", apesar da ordem dos vocábulos na expressão em português
"estado de coisas primário" nâo corresponder à ordem presente na
expressão da lingua inglesa. [Nota do revisor da tradução].
4 A expressão objetual' é empregada por Quine para caracterizar uma leitura ou
interpretação dos quantificadores (a "leitura objetual" por oposição
à "leitura substitucional").
5 Deve-se notar, todavia, que em outras passagens dos seus escritos Quine
esboça uma dupla revisão ou reinterpretação da ontologia (cf. Quine 1981, cap.
1). Isto motiva a questão se (e como) tal revisão é compatível com a ontologia
baseada na reificação. Mas esta questão não pode ser tratada neste ensaio.
6 Para tornar mais precisa a concepção delineada algumas questões deveriam ser
colocadas, especialmente a questão: quais são as condições de identidade para
introduzir a entidade nomeada "primestado" (ou
"primafato")? O autor aceita o slogan de Quine de que não há entidade
sem identidade e, então, isso o obriga a pronunciar critérios de identidade
adequados para essa entidade em virtude dos quais ela possa ser sortida,
reidentificada e contada. Limitações de espaço o impedem de fazê-lo neste
artigo.