Platão e a poesia na República
1. A "velha divergência" entre filosofia e poesia
Como compreender a alusão do Livro X da República à velha divergência (palaià
diaphorá) entre poesia e filosofia? Convém não esquecermos que, em seus
primórdios, boa parte do que virá a ser chamado de filosofia fora enunciado em
poemas. A divergência a que se refere Platão não tem pois a ver com o fato de o
pensamento ser enunciado em versos, ou seja, sob uma forma poemática, embora,
para ele, essa não possa ser mais o modo de exposição do filosofar, por não ser
congruente com a prática do
dialégesthai
1 que, a partir de Sócrates, passou a caracterizar o pensamento filosófico.
A bem dizer, ao falar de poesia, Platão não está se referindo a tudo aquilo que
se apresenta como poema. "Poesia" no contexto da República tem a ver com as
composições dos grandes poetas da tradição, e, sobretudo, com a poesia
mimética, seja ela épica ou trágica. Antecipa-se de certo modo aqui o que será
explicitamente enunciado na Poética de Aristóteles, isto é, que nem tudo o que
é exposto em verso deve ser considerado como poesia. O fato de escrever em
versos não basta para definir o "poeta".
"Costuma-se diz Aristóteles chamar assim aqueles que expõem em metros um
assunto de medecina ou de história natural; e no entanto Homero e a Empédocles
não têm nada em comum senão o metro, e por conseguinte é legítimo chamar um de
poeta e o outro de pensador da phúsis (fisiólogo), de preferência a poeta"2. Em
suma, na Poética a denominação de poesia fica de certo modo reservada às obras
de caráter mimético, como as de Homero e as dos poetas trágicos ou cômicos3.
Sabemos, no entanto, que, relativamente a Empédocles, a distinção estabelecida
por Aristóteles não foi respeitada pelos Antigos. Em sua Ars Poetica, por
exemplo, Horácio não hesita em chamar de poeta o pensador da Sicília.
Na verdade, a designação do poeta como poietés só aparece no séc. V a.C. Até
então Homero e seus companheiros eram designados como cantadores, aedos
(aoidoí), isto é, aqueles que cantam os altos feitos dos homens e dos deuses.
Por ele conferir o kléos, a fama imperecível aos heróis, Homero poderia até
receber como alcunha Phémios (de phéme)4, que foi o nome dado ao aedo da
Odisséia. Ademais, os que haveriam de ser chamados ulteriormente de poetas eram
freqüentemente qualificados de sophoí. E é, como tal, que haveriam de ser tidos
como concorrentes dos philósophoi. Disso testemunha, ironicamente, Sócrates no
Íon de Platão5.
Cabe ainda observar que uma das primeiras ocorrências de poietés se dá em
Heródoto (2, 53), justamente numa passagem onde se trata de Homero e de Hesíodo
como aqueles que em seus versos fundaram a teogonia e traçaram a figura dos
deuses.
Por outro lado, quando mencionamos o fato de que em sua origem boa parte do
pensamento "filosófico" ou "pré-filosófico" fora formulado em poemas, o nome
que primeiro nos ocorre é o de Parmênides. Mas já Xenófanes, originário de
Cólofon, cidade iônica, que emigrara para a Grande Grécia, onde Parmênides
teria sido seu discípulo6, se exprimira também em poemas, como sói acontecer
com os portadores de palavras essenciais numa comunidade onde predomina a
tradição oral.
Segundo Diógenes Laércio, Xenófanes "escreveu versos épicos, elegias e jambos
contra Hesíodo e Homero e se fez censor de suas afirmações sobre os deuses"
(IX, 18)7.
O caso de Xenófanes nos interessa particularmente, pois que, embora adotasse a
forma tradicional versificada enunciando seu pensamento em poemas, ele não se
privava de criticar os grandes poetas da tradição: Homero e Hesíodo. Conta
ainda Diógenes Laércio (ibidem) que Timão louvara Xenófanes nos seguintes
termos:
"Xenófanes, um espírito modesto e censor
das mentiras forjadas pela gente homérica".
Esses versos atribuídos a Timão são também reproduzidos por Sexto Empírico, mas
com o seguinte acréscimo:
"De Deus ele compôs uma imagem mais pura
que nada deve ao homem : um Deus em toda parte igual
<;imóvel>, de um só bloco e dotado de um intelecto
bem mais inteligente que todo pensamento" (Hyp. Pirrh. I 225)8.
Encontramos ainda em Sexto Empírico duas versões de versos atribuídos a
Xenófanes, onde podemos ler:
"Os deuses são acusados por Homero e Hesíodo
de tudo o que entre nós é vergonhoso e repreensível
vemo-los cometer roubo, adultério
e empregar entre eles a mentira".
Foi essa postura crítica de Xenófanes diante da tradição que levou G.S. Kirk e
J.E. Raven a escreverem: "He was a poet with thoughtful interests, especially
about religion and the gods, which led him to react against the archetype of
poets and the mainstay of contemporary education, Homer" 9.
Recentemente publicado, um estudo muito instrutivo sobre Xenófanes o focaliza
sob esse ângulo da teologia e da teodicéia10. Seu autor, Emese Mogyoródi,
aponta justamente semelhanças entre a preocupação de Xenófanes com a crise
ético-religiosa e a que se manifestará mais tarde em Platão, do qual nesse
sentido ele seria um precursor11.
Também em Heráclito nos deparamos com uma crítica feroz a Homero e a outros
poetas. Lemos, por exemplo, em Diógenes Laércio que o filósofo de Éfeso
costumava dizer que "Homero merecia ser afastado dos concursos a pauladas, como
também Arquíloco"12.
Tem-se aí a evidência de que na atitude dos primeiros pensadores em relação a
Homero e Hesíodo o que estava primeiramente em causa é o mesmo que virá também
à baila nas críticas de Platão : a imagem que apresentavam dos deuses.
Como notaram vários comentadores e tradutores da República (penso em Émile
Chambry13), bem como Hans-George Gadamer em sua conferência, feita em 1934,
"Platão e os poetas"14, a crítica aos poetas não era nenhuma novidade. Daí a
expressão de "velha divergência (ou disputa)" utilizada por Platão. Verifica-se
ao mesmo tempo o quanto é errôneo lhe atribuir a origem da crítica aos poetas.
E, no entanto, é o que de amiúde fazem os adversários de Platão ou melhor, de
um Platão caricatural, com o intuito de acusá-lo, seja de algum imperdoável
pendor contra a liberdade de pensamento no sentido moderno (Karl Popper), seja
de um fatal desvio de onde resultou o começo do pensamento metafísico que virou
as costas à grandeza do primeiro pensamento grego e do qual a crítica à
"poesia" seria seguramente um sintoma. (Refiro-me aqui à interpretação de
Heidegger muito marcada pelas acusações de Nietzsche15.)
Para apreciarmos a posição de Platão, é bom nos tornarmos mais atentos, graças
à experiência dos antropólogos, ao que representa a palavra dos poetas dentro
de uma sociedade onde prevalece a tradição oral. Não se constitui ela como a
referência imprescindível enquanto depositária dos valores e ensinamentos
éticos? A palavra dos poetas tinha então tudo a ver com a paideía, isto é, com
a educação em sentido lato e, portanto, com a formação do êthos. Os poetas eram
verdadeiramente os mestres, os educadores da Grécia, como se dizia sobretudo de
Homero. E foi disso que souberam se servir os sofistas.
Sem tal situação em mente como ponderar a crítica que, em sua busca de uma
verdade mais elevada, os primeiros pensadores dirigiram aos poetas, e ainda
mais a posição assumida por Platão em sua luta contra a corrupção do êthos do
indivíduo e da polis, agravada pelos ensinamentos dos sofistas ?
No horizonte dessas considerações é que abordamos um diálogo como a República
(Politeía), que é um diálogo sobre a justiça, como estão a indicar os
subtítulos recebidos da tradição, e perì dikaíou, politikós. Se a questão da
justiça e do governo justo é mesmo o que o diálogo se propõe a discutir, talvez
caiba ainda perguntar: mas o governo propriamente de quê? Não somente o da
cidade, da pólis, como parece óbvio, mas, antes de tudo, o governo da alma, o
governo de si próprio. A vida individual sendo inseparável da vida da cidade,
da vida pública, como bem sublinhou Ernst Cassirer16 em defesa de Platão.
2. A discussão em torno das afirmações dos poetas nos primeiros livros do
diálogo
É deveras significativo que ao se iniciar a interrogação sobre a justiça o
pensamento veiculado pelos poetas tenha que ser reiteradamente evocado, como
vemos nos primeiros livros da República, e que a questão da poesia ressurja
ainda no último livro. Este, quase sempre, é o único em vista quando se
menciona a posição crítica de Platão relativamente aos poetas. Mas levar tão em
conta somente o Livro X, excluindo os primeiros, é comprometer a interpretação
do diálogo. Não há então como situar a verdadeira posição de Platão em relação
à poesia, que é bem mais complexa do que sugere o famoso tópico da expulsão dos
poetas.
Vejamos pois a República na ordem em que se apresenta. No primeiro Livro,
Platão esboça as circunstâncias do diálogo. Sócrates se encontra no Pireu onde
fora participar de uma festa religiosa em honra de Ártemis. Cumpridas as
obrigações rituais e pronto para retornar a Atenas, cede contudo ao pedido dos
jovens e vai à casa de Céfalo, o rico pai de um deles, que lhe oferece
hospitalidade. O religioso constitui assim o pano de fundo do diálogo. Isto
prepara o leitor para não estranhar que já de saída a questão do divino venha à
tona. Além do mais a abertura da conversa entre Sócrates e seus anfitriões é
jocosamente entremeada de expressões ou fórmulas feitas e recorrentes na
poesia. De Céfalo, o dono da casa, diz-se que devido à idade ele já não podia
percorrer, "com pé leve" o caminho até Atenas.
Desde o começo, fica patente que Platão entende confrontar o saber tradicional
forjado pelas palavras dos poetas com o pensamento dialético, que se esforça
não em repetir, por ouvir dizer, como as coisas se passaram ou se passam, mas
em determinar melhor as coisas de que se fala. Que tal confronto esteja de
saída em pauta as primeiras trocas entre Céfalo e Sócrates o confirmam. Ao
contrário do que ocorre com tantos dos seus amigos, Céfalo diz aceitar
plenamente e sem queixas a velhice. E o faz contentando-se em repetir com a
maior admiração e louvor as palavras ouvidas de Sófocles que, solicitado a se
pronunciar sobre as desvantagens da idade avançada, havia replicado :
"Nem me fale amigo, estou encantado de ter escapado ao amor, como se tivesse
escapado das mãos de um senhor furioso e selvagem" (Resp. 329 C).
Ora se Sócrates aquiesce a Céfalo quando este afirma que a maneira como a
velhice é vivida depende do caráter dos homens, talvez não aprove senão da boca
para fora as palavras de Sófocles no que diz respeito ao amor. Por quê? Porque
elas traem um pensamento que reduz o amor exclusivamente ao carnal. Tal
concepção não faz justiça a Eros. Basta pensar no ensino do Banquete sobre a
relação que une a beleza ao amor para que se compreenda o quanto a declaração
de Sófocles não podia ser assim tão grata aos ouvidos de Sócrates.
É fazendo, em seguida, referência à fortuna de Céfalo que seus amigos têm como
fator decisivo de sua aceitação sem queixumes da velhice que Sócrates relança
a conversa sobre o tema central do diálogo : a justiça.
Durante o pouco tempo em que Sócrates conversa com o dono da casa, que não vai
tardar a se retirar, vê-se que este é incapaz de pensar por conta própria.
Céfalo contenta-se em reproduzir as frases dos poetas que sabe de cor e que
entram em sintonia com suas disposições do momento. Platão caracteriza assim de
maneira magistral a cultura de seus contemporâneos, dando a ver em que consiste
o pensamento do vulgo, dos que não pensam, e como os oportunistas, os demagogos
(hoje diríamos os especialistas em comunicação) podem disso se servir. Em sua
época, essa cultura ou esse saber repousava em grande parte sobre as palavras
dos poetas, que gozavam de um imenso prestígio e que eram freqüentemente
utilizadas para nortear a vida e a ação política.
Que, por toda sorte de razões, inclusive pelo advento dessa outra forma de
pensamento que deu origem à filosofia, o saber tradicional estivesse em crise,
é o que sobressai também quando Sócrates tenta mostrar a insuficiência da
concepção da justiça defendida por Simônides. Concepção segundo a qual "é justo
restituir a cada um aquilo que se lhe deve" (Resp. 331 E) e que o justo é
"fazer o bem a seus amigos" e o "mal a seus inimigos" (Resp. 332 D).
Antes de mais nada, o propósito de Sócrates é levar os jovens a ver que não
devem admitir as palavras que lhes são transmitidas17 sem submetê-las a exame e
buscar apreciá-las em função da pertinência (ou não) do que nelas se diz. Já
nessa primeira cena, em que se constitui o Livro I, Platão evoca Homero de modo
irônico pintando a confusão que se apodera do espírito de Polemarco quando
este, não sabendo mais o que pensar, conclui, sem renegar o poeta, que, em todo
caso, ele, Polemarco, "acredita que a justiça consiste em servir seus amigos e
prejudicar seus inimigos" (Resp. 334 B).
Insatisfeitos com o rumo tomado pela conversa, os ouvintes mais exigentes vão
obrigar Sócrates a encetar uma discussão sobre bases mais sólidas a fim de que
a verdadeira natureza da justiça e da injustiça e os efeitos que cada uma
produz sobre a alma acabem se manifestando com clareza (358 B). Sem rodeios
Glauco declara que jamais ouviu uma pessoa "defender de maneira satisfatória o
partido da justiça e a superioridade dela sobre a injustiça" (358 C-D). Com
essa declaração traça ele o programa que espera ver realizado por Sócrates e
convida então este último a empregar o máximo de seu poder de refutação em
favor da tese de que a justiça é infinitamente superior à injustiça.
Temos aí um ensino sobre qual deve ser a maneira de proceder do filósofo :
expor as teses em jogo no seu máximo vigor e questioná-las com vistas a
determinar melhor a falha que nelas se esconde e, portanto, sua possível
inadequação ao que pode ser intuído pelo intelecto voltado para a verdade.
Sobre esses traços do método socrático falou aliás muito bem um poeta, Paul
Claudel. Após ter lido Poésie Pure e Prière et Poésie do abade Brémond, que foi
um importante crítico literário, Claudel lhe escreve uma carta elogiando seus
textos nos seguintes termos :
"São obras verdadeiramente socráticas que têm por matéria menos as
respostas do que as questões, mas questões bem colocadas das quais é
impossível se desfazer por escapatórias. Ninguém gosta de ser
questionado de uma maneira tão rigorosa e tão indiscreta e o embaraço
irritado das pessoas de quem o senhor abala o preconceito se explica
do mesmo modo que o dos interlocutores daquele velho perseguidor de
almas"18.
Mas o filosofar em Platão também pressupõe a visão, uma visão mais alta e
liberada dos enganos entretidos pela vida em comum. Ela requer a saída da
caverna, da caverna das aparências, como se verá mais adiante no diálogo. No
prolongamento destas considerações, encaremos agora alguns aspectos do Livro
II, que procura justamente mostrar a variedade de procedimentos à disposição
daquele que questiona ou se questiona. Glauco, que passou a ser o interlocutor
de Sócrates, pede que se examine a oposição justiça/injustiça. E, para pôr à
prova a capacidade dialética de Sócrates, propõe defender a tese de que "não se
pratica a justiça senão forçado e por falta de poder cometer a injustiça" (359
B). Para ilustrar esta afirmação, conta a fábula do anel de Giges. Tal fábula é
uma espécie de variação imaginativa, no sentido husserliano, sobre a oposição
entre, por um lado, ser justo e, por outro, aparecercomo justo, mesmo sendo
injusto. Nela encontramos a famosa contraposição entre o personagem da fábula e
a do homem justo que, despojado de tudo, persevera na justiça ainda que ao
preço da própria vida (361B-D).
Ora, é fazendo apelo a Ésquilo que Platão apresenta o personagem do justo.
"Coloquemos, sugere ele, diante de nós pela imaginação o homem justo
que, como diz Ésquilo, quer não aparecer mas ser um homem de bem"
(361 B).
Verifica-se por aí que a oposição entre ser e aparecer que, em sua Introdução à
Metafísica19, Heidegger afirma ser característica desta última, imputando-a a
Platão, vem de muito mais longe. Nasce da observação perspicaz da conduta
humana e transcende tanto as fronteiras culturais quanto as delimitações do que
Heidegger chama de "metafísica", tanto mais que já havia sido focalizada pelos
poetas.
Vemos outrossim que Platão não renega sistematicamente o que os poetas afirmam.
Necessário é o discernimento relativo às afirmações que fazem em suas obras.
Platão não hesita em recorrer aos poetas quando o que dizem se aproxima da
verdade que a filosofia tem por bem buscar. Além do mais, faz freqüentemente
apelo a analogias tomados do campo artístico. É assim que, no nosso diálogo,
Sócrates se serve da analogia com o trabalho do artista a fim de louvar Glauco,
já que este, como o faria um bom escultor, esboçara com grande arte a imagem de
dois tipos de homem : a do justo e a do injusto.
Voltando a Ésquilo convém que nos detenhamos sobre a nota de Emile Chambry, o
tradutor para o francês da República, na edição Les Belles Lettres.
"Platão expulsa os poetas da República, mas ele se nutriu de Homero,
de Hesíodo, de Píndaro, de Simônides e dos três grandes trágicos.
Toma-lhes emprestado muitos traços que inclui no seu raciocínio como
pérolas cheias de brilho. É um dos seus meios favoritos para
introduzir variedade e prazer nos seus desdobramentos. Tem em
particular por Ésquilo a mesma veneração que Aristófanes e como este
último não poupa Eurípides dos seus sarcasmos"20.
Essa observação tanto tem de embaraçosa quanto de significativa. Como pode
Platão admirar tanto Ésquilo e expulsar os poetas da cidade ? Não haveria já
neste paradoxo indicação suficiente para reconhecermos a necessidade de se
encarar de modo mais circunspecto a questão da expulsão dos poetas, fonte de
tantas aberrações e anacronismos na interpretação do pensamento do autor da
República ?
Deixemos por enquanto essa questão de lado para primeiramente evocarmos um
aspecto da peça Os Sete contra Tebas de Ésquilo.
Inimigo de Tebas, a cidade de seus pais, Polinices fez gravar em seu escudo "um
guerreiro em ouro sendo conduzido por uma mulher, guia de fronte serena, que
aparece como representando a justiça". Junto à figura lê-se a inscrição: "Eu
conduzirei este homem para que ele recupere sua cidade e o acesso à casa
paterna" (v. 642-648).
Da parte de Polinices isto constitui uma afronta e um sacrilégio. Preparando-se
para destruir seu país, ele não hesita em se apropriar do emblema da justiça
(Díke). Mas sua invocação a Díke, filha virgem de Zeus, é temerária e trai a
contradição na qual se encontra. Nem em seus atos nem em sua alma Polinício
honrou a Justiça. Essa insolência leva por sua vez Etéocles a perder a cabeça.
A peça de Ésquilo girava assim em torno da justiça que é precisamente a questão
do diálogo. O que espanta é que muitos dos comentadores da República não tenham
dado mais atenção ao poema trágico, tanto mais que Platão não se priva de
adotar as palavras do vidente Anfiaraos.
Examinemos agora alguns dos argumentos apresentados por Adimanto, que substitui
Glauco no diálogo com Sócrates. Ele propõe defender a tese de que a justiça é
preferível à injustiça pelo que traz de recompensas da parte dos deuses e de
vantagens juntos aos homens. Para ilustrá-la, faz apelo a dizeres, para lá de
ingênuos, "do bom Hesíodo e de Homero". Hesíodo, por exemplo, afirmara que em
favor dos justos "os deuses faziam que os carvalhos se carregassem de frutos no
seu topo e de abelhas no seu tronco", ou ainda que "para eles as ovelhas se
cobriam de espessos mantos de lã" (Resp. 363 B-C). A consideração de Homero na
Odisséia não fica atrás, pois reza que "os frutos da terra e a prolífica
abundância dos animais são presentes dos deuses aos homens que os temem e
perseveram no bom caminho" (363 C).
Esse providencialismo primário já tinha sido ultrapassado por Ésquilo, quando
observa, por exemplo, "que o anzol divino não distingue entre os justos e os
injustos". Apoiando-se agora em Hesíodo, Adimanto vai então defender a tese que
"o caminho da injustiça é liso, enquanto o da justiça é árduo, pois, diante da
virtude, os deuses colocaram muito suor». Invoca também Homero para quem "os
deuses se deixam dobrar pelas oferendas, mesmo daqueles que transgridem os
princípios e cometem faltas" (Resp. 364 D-E)
Todas essas evocações de Platão visam a tornar patente o quanto a fala dos
poetas é cheia de deturpações e de inconseqüências. Por que razões, apesar do
prazer que sua poesia nos proporciona, não submeter seus dizeres a
questionamento? Podem eles servir de esteio e de referência na educação dos
jovens? Que cidade é aquela que adota tais mestres por guia? Como esperar que
nela possa se instaurar uma relação justa? E que dizer da imagem que Homero e
Hesíodo veiculam dos deuses?
É em meio a considerações dessa ordem que, em 365 B, o próprio Adimanto se
interroga sobre o efeito desses discursos na alma de jovens mesmo dotados de
boa índole. Sua intervenção conclui-se por uma bela citação de Píndaro (frag.
213) sobre a alternativa com que cada um é confrontado: "Subirei até a torre
mais alta para lá me abrigar e passar minha vida pelo caminho da justiça ou do
fingimento enganador?»
O desenvolvimento do diálogo entre Adimanto e Sócrates nos instrui sobremaneira
a respeito das motivações que alimentam a desconfiança de Platão em relação aos
poetas. Elas se situam decisivamente no campo da ética e da paideía. Não se
trata de prender, em algum Goulag helênico, os grandes poetas da tradição,
mortos há muito, ou mesmo os poetas trágicos mais recentes ou quase
contemporâneos, como foi até sugerido por leitores apressados e ávidos por
traçar uma genealogia para o totalistarismo do século XX, mas sim de destroná-
los da posição que ocupam e da autoridade que gozam no âmbito da educação. Esta
é a condição para se dispensar aos jovens uma formação inseparavelmente voltada
para o transcendente e para o bem da pólis.
Daí a proposição que faz em seguida Sócrates a Glauco e a Adimanto de
examinarem a questão da justiça. Isso não significa que estejam prestes a
abandonar as considerações sobre a poesia e as artes, tanto mais que numa
cidade complexa como a pólis ateniense o papel das artes é da maior
importância. A educação dos guardiães deve repousar sobre a ginástica e a
mousiké, a arte das musas, embora a mais alta mousiké seja justamente a arte do
filósofo. Em torno da noção de imitação, cujo papel é essencial quando se
cogita de arte, surge então no diálogo a oposição entre alethés e pseûdos.
Uma simples tradução desses termos por `verdadeiro' e `falso' não é suficiente
para compreendê-los, como já sublinhara Heidegger21. Importa-nos em particular
esclarecer o sentido depseûdos e para isso não é inútil nos voltarmos para o
uso que fazem nossas línguas do grego pseûdos como prefixo. Consultando o
dicionário francês Robert encontrei uma ilustração que ajuda a pensar sobre as
nuances do termo. O exemplo proposto é o de pseudo-membrana, cuja definição é
"uma produção patológica inflamatória na superfície de uma mucosa e que se
assemelha a uma membrana e é formada pela acumulação de fibrinas".
O interessante nesta definição é ela não comportar a palavra "falso", mas
evocar as noções de produção, de semelhança e fazer referência ao material de
formação. A pseudo-membrana não deixa de ser algo que produz seus efeitos. Isto
parece se coadunar com certos empregos de "pseudos" em relação à questão da
imagem. Além do mais, quando, para surpresa de todos, Sócrates diz que a
educação dos guardiães deve começar pelo "pseudos", que quer ele dizer com
isso? Ele próprio responde a Adimanto: "Você não sabe que se começa a educação
das crianças lhes contando histórias, fábulas (mûthoi)?" (Resp. 377 A).
O problema não é que as estórias destinadas às crianças sejam ficcionais, que é
aqui o sentido que está sendo dado a "pseudos", mas sim o fato que nem todas as
estórias são boas para serem contadas às crianças. Muitas são feias, pois
"representam os deuses e os heróis de maneira errônea..." (Resp. 377 E).
Há portanto ficções boas e outras más. Feias ou más seriam aquelas cujo efeito
na educação é pernicioso, induzindo a uma visão falsa das ações a serem
imitadas. É assim que não se pode pintar o Deus note-se o singular em 380 B-C
como se fosse o autor dos males que se abatem sobre os homens. Temos aí um dos
traços determinantes do que se poderia chamar de teologia platônica,
contraposta à dos poetas. Deus não pode ser autor do mal.
O que Platão critica nas fábulas dos poetas não é de modo algum que sejam
mûthoi, mas que não sejam belas porquanto induzem a uma falsa idéia do divino e
do que é justo. A esta altura não somente o divino Homero é criticado mas até
mesmo o caro Ésquilo quando declara que "Deus implanta o crime no coração dos
homens quando quer arruinar completamente suas casas" (frag. 160].
Tríplice é o defeito, ou o dano, de tais declarações: são ímpias, não têm
utilidade e, além do mais, são incompatíveis entre si. Outro pomo de discórdia
com os poetas são as metamorfoses que imputam aos deuses. Apresentam os deuses
travestidos, enganando os homens, como se fossem fantasmas de si mesmos.
Segundo Sócrates, isso tudo é inverossímil, pois "um deus não pode mentir nem
em palavra nem em ação". Sabe-se o quanto essa conjunção entre palavra e ação
era essencial para o êthos grego no que tinha de mais elevado. Também Sófocles
a põe em relevo, como o vemos em particular no Filoctetesem torno da figura de
Ulisses22. Platão sempre a isso retorna, pois a dissociação entre palavra e
ação era aquilo mesmo que caracterizava o ensino de grande parte dos sofistas,
o que comprometia a justiça que devia reinar na pólis.
Voltemo-nos mais um pouco para o problema da metamorfose dos deuses. Há
metamorfose e metamorfose. Muitos contos apresentam um ensino moral por meio de
uma mudança na aparência dos personagens, o que à primeira vista engana, mas
que, por isso mesmo, exige um esforço interior, espiritual, de reconhecimento.
Foi o que reteve a atenção de Simone Weil. Na coletânea póstuma intitulada
Intuitions pré-chrétiennes, ela reproduz um conto escocês, O Duque da Noruega,
e dele faz um comentário do qual permito-me citar um trecho significativo:
"A aparência miserável da princesa, sua admissão no palácio como
auxiliar de cozinha indica que Deus vem a nós completamente despojado
não somente de seu poderio, mas também de sua glória. Vem a nós
escondido e a salvação consiste em reconhecê-lo"23.
Presente também na maioria das tragédias, o tema do reconhecimento foi meditado
por Simone Weil com grande acuidade espiritual. Ela tinha uma predileção pela
cena da Electra de Sófocles onde, de início, a heroína não reconhece o irmão
Orestes. Ao explicitar o que se dá em tais ocasiões, escreve: "Crê-se ter
diante de si um estrangeiro e é o ser mais amado", acrescentando adiante: "Foi
também o que ocorreu no caso de Maria Madalena e de um certo jardineiro" (p.
16).
Com essa digressão em companhia de Simone Weil, estou procurando dizer que nem
toda metamorfose é repreensível. Pode ser um meio de ultrapassar as aparências
e de fazer descobrir uma realidade superior em relação ao divino. Todavia,
quando Sócrates adverte o poeta insistindo para que "não venha nos representar
os deuses com os traços de viajantes estrangeiros percorrendo as cidades com
travestimentos de toda a espécie" (Resp. 381 D), tem em vista um contexto
narrativo onde os deuses se transformam com o fito de cometer ações vis,
enganando os homens. É sobre essa reprentação dos deuses que recai sua crítica.
Passemos agora ao Livro III, onde o que se questiona não é mais a representação
dos deuses mas a dos heróis que em princípio deveriam servir de modelo para os
guardiães, dos quais se espera que sejam corajosos e capazes de sacrificar a
própria vida pela cidade. Para preencher tal objetivo seria preciso coibir os
discursos suscetíveis de fazer temer a morte e preferir a derrota e a
escravidão. O diálogo envereda então por aquelas representações dos poetas que
dão uma imagem terrível da mansão dos mortos. São reveladoras, aliás, das
crenças sobre o que nos aguarda depois da morte. Dentre as várias afirmações
que constam do florilégio reunido por Platão, encontramos os versos 103-104 do
Canto XXIII da Ilíada:
"Grandes deuses! ainda há de nós na mansão dos mortos uma alma
(psukhé) e uma sombra (eídolon), mas ela não tem sentimento algum".
O termo traduzido aqui por `sombra' é eídolon, que se costuma traduzir por
`imagem'. É recorrente em Platão. No Sofista adquire um sentido mais genérico,
pois se trata então de distinguir entre duas espécies de imitação : a que
produz o phántasma e a que produz uma imagem verdadeira, eikón. Mas eidolon
pode se opor a eikón. Daí `ídolo' e `ícone'. Nos versos de Homero que acabamos
de citar, eídolon é o que subsiste do morto, o seu fantasma ou sua sombra, uma
vez que sua alma não tem mais vida e é portanto desprovida de sentimento. Porém
a tradução por sombra deixa bastante a desejar, já que nos versos seguintes
aparece o termo skiaí, plural de skiá (sombra). Foi aliás sobre skia que se
construiu o termo de skiagraphía, para designar a pintura que cria por meio de
sombras a ilusão de uma certa profundidade e que portanto é enganosa por nos
fazer tomar a imagem, o fantasma pela realidade24.
Esse desdobramento do diálogo nos leva a ver que a censura de alguns versos ou
passagens dos poemas homéricos incide sobre o que neles é afirmado e portanto
coloca em questão o pensamento (diánoia)que lhes é subjacente e que enganam
aqueles que pretendem por ele pautar suas crenças e ações. Não é a vertente
poética dos poemas que está em causa, apesar de Sócrates sugerir em 287B que
quanto mais eles forem poéticos tanto menos devem ser ouvidos por homens que se
destinam a viver como homens livres, isso porque o que é expresso poeticamente
é mais fácil de ser memorizado e goza de um maior poder de persuasão. Em outras
palavras, graças "à medida, ao ritmo e à harmonia"25 o poeta confere às
histórias transmitidas uma promoção poética que as torna ainda mais persuasivas
e eficazes.
O exame seguinte volta-se para as representações que mostram os heróis
chorando, se lamentando ou ainda se conduzindo com avidez, intemperança e
manifestando portanto uma ausência de autocontrole e de harmonia interior. Daí
chega-se à alternativa, expressa em 391E, segundo a qual os heróis, tidos por
semi-deuses, ou não cometeram os atos que lhes são imputados pelos poetas ou
não foram engendrados por deuses de acordo com a genealogia lendária comumente
admitida. Impossível seria manter as duas afirmações por serem incompatíveis
entre si. Na base dessa crítica encontramos pressuposta uma das fortes
exigências do lógos filosófico, a da coerência.
Dos heróis passa-se aos homens e ao que deles se diz. Trata-se então de se
retirar aos poetas e aos fazedores de discursos em geral o direito a afirmações
segundo as quais haveria justos infelizes ou mesmo fazendo acreditar que a
injustiça, caso escondida, disfarçada, seria mais vantajosa que a justiça. Essa
questão já tendo sido abordada no Livro II, Sócrates prefere considerar a
distinção, situada no plano da expressão, da léxis, entre diégesis e mímesis,
isto é, entre a narração simples, feita na terceira pessoa, e a narração
mimética. Delineia-se aqui a desconfiança que vai pesar sobre a poesia
mimética. Como se sabe, Sócrates acabará declarando, não sem uma boa dose de
ironia, que é preciso conduzir o poeta mimético a uma outra cidade depois de
lhe ter prestado todas as honras.
Isso, porém, não quer dizer que toda mímesis, toda imitação, seja por si
própria condenada. É preciso conservar para os jovens a possibilidade de imitar
aqueles heróis que se distinguem pela beleza de seu caráter e de sua conduta.
Esboça-se a distinção que se delineará mais claramente nos diálogos ulteriores
e, em particular no Sofista, entre uma boa mímesis e uma má mímesis26, embora o
traço dominante da República, em contraste com o Fedro, o Banquete e o Sofista,
seja ainda uma grande desconfiança em relação à poesia e à arte mimética.
Sócrates traz ainda à baila o canto como modo próprio da enunciação poética.
Notemos que inicialmente a palavra mélos (de onde vem melodia) não era
empregada senão no plural mélea e queria dizer os membros do corpo
considerados na sua articulação. Mélos é uma articulação de tons considerados
em sua disposição global.
Em 398D, Sócrates declara que um mélos se compõe de três elementos: as
palavras, a harmonia e o ritmo. Quanto às palavras (lógoi), o fato de serem ou
não cantadas não altera seu sentido. Não há pois nada mais a acrescentar ao que
já foi dito a esse respeito. É a harmonia e o ritmo que devem ser agora levados
em conta do ponto de vista ético-pedagógico. Do mesmo modo que, quando foi
abordada a representação dos heróis, Sócrates teve por bem interditar as
lamentações (thrênoi) e as queixas (odurmoí), também aqui pretende eliminar dos
cantos as harmonias melancólicas ou lascivas. Cita como exemplos de harmonias a
serem rejeitadas, a fim de se evitar um enfraquecimento geral do caráter, a
harmonia lídia mista ou aguda assim como a harmonia jônica. Importa que sejam
preservadas as harmonias mais viris e também aquelas que encorajam a sabedoria
e a moderação. Tais qualidades são inerentes às harmonias dórica e frígia
evocadas por Glauco.
Dessa preferência em matéria de harmonia decorre ainda a escolha dos
instrumentos a serem privilegiados. Dentre eles a lira, a cítara ou mesmo uma
espécie de flauta de Pan, enquanto outras flautas devem ser preteridas. Na
verdade constata-se aqui a preferência pelos instrumentos apolíneos em
detrimento dos associados ao culto dionisíaco. Feitas essas recomendações no
campo da harmonia, há que se considerar a questão do ritmo. Intimamente ligado
ao sopro vital, o ritmo coloca o canto e a música em geral em relação com os
movimentos corporais, como atesta o fato de que a unidade rítmica receba o nome
de "pé". Glauco confessa que, embora saiba quais são as espécies de ritmo,
ignora a correspondência de cada uma delas com o caráter, que é o que deve ser
levado em conta na escolha dos ritmos a serem encorajados. Sócrates replica que
sobre esse ponto eles consultarão Dámon para ficarem mais cientes de quais as
medidas rítmicas associadas à baixeza, à violência, ao desregramento e quais as
inerentes às qualidades opostas (400B). Em tudo isso, acrescenta Platão, a
excelência decorre da simplicidade da alma, que não é a simplicidade dos tolos
mas daqueles cujo caráter alia bondade e beleza.
O que já nos faz ver esse desenvolvimento em torno da poesia nos primeiros
livros do diálogo é a unidade profunda que abraça todos os aspectos da vida e
como, na busca da sabedoria, cada um deve tender a se unificar. Notável é
também por nos mostrar um filósofo levando em conta todos os aspectos das artes
e não apenas aqueles que têm a ver com as significações expressas pela
linguagem. Por outro lado, o diálogo assume a relevância da arte para a vida e
o seu efeito sobre a alma. A arte (o que chamamos de "arte") pode ou não
contribuir para a conquista da harmonia que segundo Platão caracteriza a alma
justa.
3. A "expulsão dos poetas" e o necessário recurso ao mito no Livro X
É somente levando-se em conta esse horizonte de considerações que se pode
proceder a uma leitura do Livro X, não o tomando, sem mais, ao pé da letra.
Antes de abordá-lo, seria conveniente recordar as inúmeras referências à poesia
e às artes em geral que comportam os livros centrais do diálogo. Como esquecer
o papel privilegiado da música na educação? É, no entanto, à pintura que
recorre Platão ao forjar suas comparações, como é o caso quando Sócrates
replica à objeção de Adimanto segundo a qual os guardiães podem não se sentir
felizes com as interdições que lhe são feitas (somente a eles e não a todos,
note-se). Ao declarar que o que deve primar na cidade é a felicidade do todo e
não a de cada uma de suas partes, Sócrates se serve da comparação com a pintura
de uma estátua. Não há por que reservar as mais belas cores às mais belas
partes do corpo teríamos então o olho pintado de vermelho; o que importa é a
beleza e a perfeição do todo. (A questão que caberia levantar aqui é uma das
mais essenciais em filosofia moral: qual a relação entre o singular, o
universal e o todo?)
No Livro VI temos uma comparação magnífica entre o pintor e o filósofo, pois
aí, em 500E, o filósofo é dito ser como um pintor fazendo sua obra com os olhos
voltados para um modelo divino. Esta comparação vem logo depois de uma
interpelação de Sócrates a Adimanto: "Acredita você que, quando se vive com
aquilo que se admira, seja possível não imitá-lo?". O verbo mimeîsthai,
`imitar', é aqui empregado de maneira totalmente positiva.
Ora, essas nuances parecem desaparecer no Livro X. Foi baseando-se nessa
diferença que Julia Annas em seu livro sobre a República27 sugere que com o
Livro IX se encerra a argumentação do diálogo e que o Livro X teria sido
redigido anteriormente e não passaria de um adendo bem inferior ao que precede.
Ela divide o Livro X em duas partes: a primeira relativa à "expulsão da poesia"
(595A-608C) ; a segunda (608C-621D) seria uma espécie de fourre-tout onde se
retoma o tema das recompensas da justiça. Creio que Julia Annas simplifica
demais as coisas sobretudo por não conceder a atenção devida ao mito de Er, que
termina o diálogo. O que se precisa compreender são as razões de Platão para
manter o Livro X como fecho da República.
Na passagem onde se lê que a poesia mimética deve ser expulsa da cidade, a
cidade de que metaforicamente se trata é antes de mais nada a da nossa própria
alma. Para que ela seja bem governada, convém liberá-la das crenças e dos
apegos incompatíveis com a justiça. Platão está sendo irônico quando inverte os
termos da denúncia da qual foi vítima seu mestre: "vocês não vão me denunciar
aos poetas trágicos e aos outros artistas que praticam a imitação".
Além disso, o efeito negativo da poesia mimética só parece atingir aqueles que
não têm um antídoto, que ainda não estão imunizados contra as aparências. Não
se pode também excluir que Platão seja crítico em relação sobretudo a Eurípides
pelos excessos de seu teatro. E se dele remonta até Homero, que é o poeta dos
poetas e tido por pai dos trágicos, não o faz antes de lhe prestar uma bela e
enfática homenagem, confessando a ternura e a admiração que por ele nutria
desde de sua mais tenra infância (595B 9- 595C 3). Só que o amor à poesia não
deve impedir o filósofo de ser lúcido28 e de banir de sua alma aquilo que no
pensamento de Homero e dos outros poetas fica muito aquém da verdade ou mesmo a
deforma, como é o caso da imagem que os poemas de Homero, de Hesíodo e dos
trágicos propõem dos deuses.
Ao poeta dos poetas e aos seus herdeiros falta aquilo que cabe ao filósofo
instaurar e que, com o filósofo francês Jean Nabert, poderíamos chamar de
"criteriologia do divino"29. Para Nabert é a idéia do divino (imanente ao
nossso espírito) e a evidência do testemunho que dele se dá, que permite julgar
se é deveras divino aquele que está sendo invocado como deus. À luz dessa
observação, que leva a concluir que os deuses dos poetas ficavam freqüentemente
aquém da idéia do divino, examinemos a sugestão feita por Julia Annas de que o
Livro IX poderia muito bem encerrar o diálogo.
Tivesse Platão tomado tal decisão, não apresentaria o diálogo algo de inacabado
e de inconseqüente? Havendo começado pelo exame de afirmações poéticas,
verdadeiros lugares-comuns do discurso vigente em sua época, Platão teve por
bem considerar os ensinamentos dos poetas, suas "sentenças", suas afirmações no
que tinham de insatisfatório para a formação da alma. Sua volta ao caso dos
poetas (ou à sua causa) se revela essencial, do mesmo modo que a volta à
caverna na alegoria do mesmo nome. Reitera-se assim o esquema de saída da
caverna e do necessário retorno a ela, com a obrigação de instruir os que lá
estão. Vai daí o recurso final ao mûthos, do qual o lógos se distingue, mas que
ao mesmo tempo ele requer. Platão, o filósofo, não hesita asssim a se
apresentar como um filómito30, ou mesmo um muthopoiós, quando isso se faz
necessário.
E se o diálogo se encerra pelo mito de Er, não seria pelo fato de que o mito
permite oferecer uma narração simples, diegética, e não mimética, ao mesmo
tempo cheia ensinamentos e não eivada de afirmações contraproducentes como as
encontradas na narração mimética dos trágicos?
O lugar ocupado pelo mito ao fim do diálogo confirmaria então a hipótese que é
a compreensão do divino e de sua relação com a felicidade ou infelicidade dos
homens que está em jogo e que justifica o afastamento dos poetas do seu papel
de educadores da cidade e de sua juventude. Em suma, se as palavras dos poetas
devem ser banidas, isso decorre da visão distorcida que elas oferecem do que é
bom e justo para a alma e para a cidade.
Num capítulo intitulado "O Deus mau e a visão trágica da existência" de um
livro já antigo de Paul Ricur, La Symbolique du Mal, onde a crítica de Platão
aos poetas não é esquecida, encontramos uma reflexão deveras esclarecedora do
que está aqui em jogo:
"É na tragédia grega que o tema do homem tornado cego e conduzido à
sua perda pelos deuses atingiu de uma só vez o extremo de sua
virulência, de tal maneira que todas as imitações do trágico grego
talvez não sejam mais que expressões atenuadas dessa mesma revelação
insuportável"31.
Ora, é aos olhos do filósofo que essa revelação do divino se manifesta como
insuportável ou melhor como exigindo ser ultrapassada. Ela o é, em todo caso,
para um pensamento que exclui todo mal do divino por assimilá-lo ao Bem ou ao
absoluto do Amor.
Isso não impede porém, como também o sublinha Paul Ricur, que o filósofo veja
na representação trágica um convite "a tentar uma hermenêutica do símbolo
trágico". Num parágrafo, cujo título é uma interrogação "Délivrance du tragique
ou délivrance dans le tragique?", ele evoca a Orestéia de Ésquilo. As três
peças que compõem a trilogia Agamemnon, As Coéforas e as Eumênides constituem
uma progressão que leva da divindade malévola, cuja contrapartida é a cegueira
do homem, à divindade benévola que, em última análise, converge com a afirmação
da responsabilidade humana.
Ricur destaca ainda Édipo em Colono, onde Sófocles trata do fim da vida do
herói tebano. Nesta peça os deuses aparecem primeiro como injustos, protegendo
os homens vis, até se manifestarem de modo inverso aos olhos do herói sofredor,
que pode então morrer em paz. A tragédia se conclui por um hino de
reconhecimento a Zeus.
Em outras palavras, a concepção de um Deus mau dar-se-ia como pólo intencional
de uma visão deturpada, a do homem tornado cego por sua própria injustiça ou
por um excesso de infelicidade. Dizendo isso estou, é claro, defendendo a
dimensão ética da tragédia. Não há como negar que Ésquilo e Sófocles
contribuíram grandemente para promover uma visão menos rudimentar do divino.
Estaria eu por minha vez agravando o caso de Platão em sua condenação da
tragédia? Acredito que não. O que ele denunciou foi a ambivalência relativa ao
divino que subsistia nos trágicos e sobretudo o uso que faziam dos poetas tanto
a opinião comum quanto os sofistas.
Se Platão preconizava uma regulação do uso da produção poética como hoje são
chamados a fazer os comitês de ética em relação às produções tecnico-
científicas ou às produções da mídia no setor da comunicação, não instituía um
tribunal para condenar desvios relativos a uma ortodoxia, a um corpo de
definições dogmáticas, como aquele que condenara seu mestre Sócrates. O que ele
queria traçar eram as coordenadas de uma educação capaz de implantar na alma
uma harmonia e uma aspiração ao Belo e ao Bom.
A pergunta crucial a ser endereçada ao Livro X da República seria então a
seguinte: será que a educação pode ser feita a partir somente de bons exemplos,
quando inevitavelmente em nosssa experiência da realidade confrontamos toda
espécie de conduta? Platão parece não ter podido entrever os efeitos, muito
diversos, que produzem as fábulas sobre a alma de cada um. Nem tampouco foi de
todo capaz de avaliar o que a alma humana comporta de meandros, de desvios e de
inclinações perversas. Donde sua confiança na educação. Talvez não tivesse como
vislumbrar a profundidade do mal, da húbris que nos ameaça e, portanto, o que
as nossas ações podem ter de injustificável já que em cada alma tende a
prevalecer o amor injusto ou ilusório de cada um por si mesmo ou pelos seus,
mesmo ao preço do bem devido aos outros.
O trágico resiste assim à filosofia, ao amor do filósofo pela sabedoria, porque
corresponde à experiência, por um lado, da húbris, por outro, da infelicidade
que pode se abater sobre o ser humano, mesmo inocente. Esta última é que faz
brotar do peito o grito ou o murmúrio: "Por quê? Por que tal coisa me
acontece?". Também no livro de Job encontramos um equivalente dessa
interrogação, que atinge seu clímax no "Por que me abandonaste?" da Cruz.
Em outras palavras, a tragédia enfrenta o enigma, ou melhor, o mistério da
existência que a busca da sabedoria pelo filósofo não consegue de todo
eliminar. Daí sua contribuição para o auto-conhecimento do homem e seu poder
terapêutico, como o reconheceu Aristóteles. Só que quando o autor da Poética
nela aborda a tragédia, não o faz em termos dialéticos. Não está aí, como
Platão na República, à procura de uma melhor definição do "justo".
Em resumo, o que se pode dizer é que se a poesia mimética oferece um espelho
majestoso da condição humana, nem por isso dispensa o filósofo de clarificar e
retificar a diánoia dos poemas, com vistas às noções que norteiam e, de certo
modo, moldam a existência dos homens, a começar pelas idéias que se fazem do
divino. Foi o que Platão, o discípulo de Sócrates, tão bem compreendeu32.
Texto recebido em abril e aprovado em maio de 2003.
* Ele reproduz uma conferência apresentada em 20 de agosto de 2002 na UFMG.
** Pesquisadora do CNRS, «Archives Husserl» (Paris, França), e Professora de
Estética do Institut Catholique de Paris.
1 Sobre o dialégesthai em Platão, ver DIXSAUT, Monique, Métamorphoses de la
dialectique dans les dialogues de Platon, Vrin 2001.
2 Aristóteles, Poética 1447 b 16-19. Edição usada: DUPONT-ROC, Roselyne e
LALLOT, Jean (texte, traduction et notes par), Aristote. La Poétique, Éditons
du Seuil, Paris 1980.
3 O que não exclui que tivesse também levado em conta a poesia lírica em seus
outros livros que não nos foram transmitidos.
4 Sobre phéme em Platão, ver BRISSON, Luc, Platon, les mots et les mythes,
François Maspero, Paris 1982, em particular p. 39-45.
5 Cf. Platão, íon 532D. Edição usada: MÉRIDIER, Louis (texte établi et traduit
par), Platon. uvres complètes, t. V, p. I , Les Belles Lettres, Paris 1978.
6 Veja-se a menção que a isso faz Aristóteles, Met. A 5 986, b, 18.
7 Em DUMONT, Jean-Paul (édition établie par), Les Présocratiques, Pléiade,
Gallimard, Paris 1988.
8 Em DUMONT [1988].
9 KIRK, G.S. e RAVEN, J.E., The Presocratics Philosophers, Cambridge University
Press, 1977 [1963], p.167.
10 Cf. MOGYORODI, Emese «Xenophanes as a philosopher : theology and theodicy»,
em LAKS, André e LOUGUET, Claire (éd. par), Qu'est-ce que la philosophie
présocratique?What is presocratic philosophy ?, Septentrion, Presses
Universitaires, Lille 2002, p. 253- 286.
11 Mogyoródi [2002] (p. 284) escreve: «Xenophanes reflected upon the religious-
moral crisis and challenges of his time and with remarkable intellectual
freedom, valour and consistency redefined the divine in a way that seemed to
him to comply both with piety and the demands of a new moral sensitivity. In
that attempt he was a precursor of no smaller a philosopher than Plato».
12 Héraclite, frag. 42, em Diógenes Laércio IX, I. Ver também em BOLLACK, Jean,
e WISMAN, Heinz, Héraclite ou la séparation, Editions de Minuit, Paris 1972,
p.159.
13 CHAMBRY, Émile (texte établi et traduit par), Platon. uvres, t. VII, 3
vol., Les Belles Lettres, Paris 1975.
14 Cf. GADAMER, Hans-George, «Plato und die Dichter», em Gesammelte Werke 5,
Griechische Philosophie I, J.C.B. Mohr, Tübingen 1985, p. 190.
15 Na Genealogia da Moral, por exemplo, Nietzsche declara com grande veemência:
« Platão, o maior inimigo da arte que a Europa jamais conheceu. Platão contra
Homero: eis o verdadeiro, o total antagonismo _de um lado, o caluniador da
vida, de outro, aquele que só podia ser seu adorador, a natureza de ouro»
NIETZSCHE, Friedrich, La Généalogie de la Morale, em uvres complètes, vol.
VII, trad. fr. par Isabelle Hildebrand et Jean Gratientextes et variantes
établis par Giorgi Colli et Massimo Montinari, Gallimard, Paris 1971. No entanto, não se pode passar sob silêncio a ambivalência da posição
de Nietzsche relativamente a Platão. Cf. DIXSAUT, Monique, «De Platon vers
Nietzsche: l'autre manière de philosopher», Bulletin de la Société Française de
Philosophie, séance du 23 janvier 1999, avril-juin (1999).
16 Cf. CASSIRER, Ernst, Le Mythe de l'État, trad. fr. de Bertrand Vergely,
Gallimard, Paris 1993, p. 91.
17 Na Poética (1451 b-24), Aristóteles menciona também as histórias
transmitidas (paradedoménoi mûthoi), como uma das fontes para os poemas
trágicos cuja composição, porém, é da alçada do poeta.
18 CLAUDEL, Paul, «Lettre à l'abbé Brémond sur l'inspiration poétique», em
uvres en prose, Pléiade, Gallimard, Paris 1965, p.45.
19 Cf. HEIDEGGER Martin, Einführung in die Metaphysik[1935], Niemeyer,
Tübingen, 1966; Introduction à la Métaphysique, trad. fr. de
Gilbert Khan, PUF, Paris 1958.
20 Cf. CHAMBRY, Émile, Platon. uvres complètes, vol. VI, Les Belles Lettres,
Paris 1981, ad Resp. 362 B (p. 55).
21 Ver HEIDEGGER, M., Parmenides, GA 54, V. Klostermann 1982.
22 Ver meu artigo «L'enjeu des voix dans le Philoctète de Sophocle», Études
Philosophiques (juillet-septembre 1991).
23 WEIL, Simone, Intuitions Pré-chrétiennes, Fayard, Paris 1985, p. 14.
24 O emprego desse vocabulário (homérico), que fazia agora parte também do
vocabulário da pintura, é freqüente no Livro IX da República. Temos, por
exemplo, algumas ocorrências de eídolon com o sentido de `fantasma' em 586B-C
(Helénes eídolon), 587C. Nas mesmas passagens, encontramos ainda skia, ou
melhor, vários de seus derivados. (Cf. 583B, 585B).
25 Cf. República X 601 A.
26 Cf. VILLELA-PETIT, Maria, «La question de l'image artistique dans le
Sophiste», AUBENQUE, P., (sous la direction de) e NARCY, M. (textes recueillis
par), Études sur leSophiste, Bibliopolis, Napoli 1991.
27 ANNAS, Julia, Introduction à la République de Platon, trad. fr. de Béatrice
Han, PUF, Paris 1994.
28 Cf. VILLELA-PETIT, Maria, «<;Le poème est poésie et autre chose encore>», em
GREISCH, J. (présentation de), Philosophie, Poésie, Mystique, coll. Institut
Catholique de Paris 18, Beauchesne 1999.
29 Cf. NABERT, Jean, Le Désir de Dieu, Préface de Paul Ricoeur, Cerf, Paris
1996.
30 Cf. REY PUENTE, Fernando, «O philómuthos e o philósophos», Kritérion 102
(2000), p. 128-135.
31 RICUR, Paul, Finitude et Culpabilité II, em La Symbolique du Mal, Aubier-
Montaigne, 1964, p. 200.
32 Nota Bene: Não foram abordadas, neste artigo, dois dos principais temas
relativos à questão da poesia em Platão: o que se refere à inspiração e o que
concerne à distância damímesispoética à verdade. O primeiro só poder ser
tratado com base em outros diálogos (íon, Fedro, Banquete), e não na República.
Quanto ao segundo, que remete a uma comparação, estabelecida justamente nesse
diálogo, entre a mímesis artesanal e a mímesis artística, ele tem a ver não
somente com a poesia, mas com a mímesis artística enquanto tal. Tema cuja
interpretação requer também o concurso de outros diálogos e que estudamos
alhures com relação ao Sofista (nota 26). Gostaria ainda de deixar bem claro
que não pertenço à área acadêmica da Filosofia Antiga. Afora a admiração que,
como filósofa, tenho naturalmente por Platão, minhas incursões no domínio grego
foram muitas vezes ditadas pelo meu ensino de Estética no Institut Catholique
de Paris, onde tive ocasião de dar cursos sobre «Filosofia e Poesia», «Poesia e
Pintura» ou «Arte e Verdade». As considerações desenvolvidas neste artigo são
em parte oriundas de um curso sobre «Filosofia e Poesia», onde, indo de Platão
a Heidegger, procurei pensar as variações, ao longo da história, das atitudes
filosóficas em relação à poesia.