Conteúdo não conceitual, holismo e normatividade
I
Um argumento central para a aceitação de conteúdos não conceituais (CNCs),
proposto por Gareth Evans, é a maior fineza de conteúdos perceptivos do que dos
conceitos que temos a nossa disposição. Não é difícil achar ilustrações para
esse fenômeno, por exemplo, na percepção das cores: olhando para o velho tampo
de madeira da minha mesa, vejo muito mais nuanças do que conceitos que tenho de
tonalidades de marrom. A idéia de que nossa capacidade de distinção pela
percepção seja mais fina do que nossa capacidade de distinção conceitual parece
evidente - Evans pergunta mesmo se faz sentido pensar que temos tantos
conceitos para cores quanto nuanças que somos capazes de distinguir.1
Se experimentamos a maior fineza nas distinções pela percepção do que nos
conceitos, Gareth Evans impõe condições suplementares para que algo seja parte
da experiência: para que um estado informacional com um conteúdo determinado
seja parte da experiência, ele deve servir como entrada para a atividade
racional, para a aplicação de conceitos e para o raciocínio.2 De certa forma,
em oposição à defesa de CNCs, essa caracterização da experiência aproxima Evans
do que podemos chamar de pólo conceitualista. O que leva a esse movimento é o
aparente isolamento de CNCs, isto é, eles parecem só poder fazer parte de algo
qualificável como experiência se associados a atividades que à primeira vista
só podem ser descritas em termos conceituais.
O isolamento de CNCs aparece nestes dois aspectos aspectos da atividade
racional. O primeiro deles vem do que Evans chama de Generality Constraint
sobre conceitos: S sabe aplicar um conceito F somente se, se Ssabe o que é para
a ser F e conhece um outro indivíduo b, então ele entende o que é para bser F.3
Um indivíduo pode contudo perceber a diferença entre duas nuanças ne n'de
marrom sem ser capaz de dizer se uma outra região do espaço é n ou n', o que
parece ir contra a condição de generalidade imposta a conceitos. O isolamento
de CNCs corresponde à maior fineza na capacidade de discriminação perceptual do
que a nossa capacidade de identificação. Como dizem Jerôme Dokic e Elisabeth
Pacherie,
[ ] se a posse de conceitos requer uma certa capacidade de
reconhecimento, o grau de fineza máximo de nossos conceitos
perceptivos corresponderá ao grau de fineza máximo da codificação da
memória perceptiva.4
Esse traço de CNCs corresponde à limitação na capacidade de transformar em
reconhecimento e reidentificação as distinções possíveis na percepção. Como a
Generality Constraint é uma condição para conceitos e determinadas distinções
na percepção não a preenchem, estas são distinções cujo conteúdo não pode ser
associado a conceitos, isto é, cujo conteúdo é não conceitual.
O segundo traço do isolamento vem dos raciocínios feitos sobre a experiência,
que utilizam recursos conceituais que justamente parecem não estar disponíveis.
Pelo primeiro argumento, inferências com CNCs não poderiam se estender no tempo
além do contato perceptual com aquilo de que se fala. Há uma outra limitação
para a prática inferencial. Saber que algo é um cachorro implica saber que é um
animal, pensar que é da mesma espécie que Totó etc., e nada disso está
disponível a quem não tenha o conceito de cachorro. Parece difícil entender o
que seria a organização de padrões inferenciais sem conceitos que componham as
frases que constituem tais inferências. Os dois pontos estão evidentemente
ligados: não podendo se estender no tempo, CNCs não podem ser o ponto de
agregação de diferentes crenças em torno das quais podem se organizar
inferências, e talvez nem possam durar o tempo de uma inferência - voltarei a
esses dois pontos.
Ao dizer que a experiência perceptual deve servir de entrada para a atividade
racional, Evans exige o não isolamento da percepção para que ela seja parte da
experiência: a integração daquilo que percebemos parece ser constitutivo da
experiência das coisas. O oposto disso seria um estado perceptivo que não
estivesse na origem de comportamento algum, que não se ligasse a nenhum outro
estado como sendo relativo a uma mesma coisa ou a uma coisa diferente, que não
gerasse nenhuma expectativa nem fosse avaliado, por exemplo, como igual ou
diferente de uma outra percepção: um tal estado de fato não parece fazer parte
da experiência de ver, tocar ou ouvir coisas. Evans sugere que a integração se
dá num domínio conceitual. John McDowell apresenta esta tese da seguinte forma:
Segundo Evans, um estado do sistema de informação perceptiva conta
como uma experiência apenas se seu conteúdo não-conceitual estiver
disponível como "entrada para um sistema de pensar, de aplicação
de conceitos e de raciocínios"; isto é, apenas se seu conteúdo
não-conceitual estiver disponível para uma faculdade da
espontaneidade, que pode aceitar ou recusar racionalmente julgamentos
da experiência baseada no estado perceptivo.5
A exigência de integração parece razoável, mas não é certo que ela deva nos
aproximar do pólo conceitualista. Se à primeira vista parece que a participação
de CNCs à experiência depende da sua associação a um domínio que é, de maneira
essencial, conceitual, é possível mostrar que essa integração ou pelo menos
alguma integração não depende da posse de conceitos. Com efeito, Evans nos dá
ele mesmo razões para recusar o isolamento de CNCs e nos mostra como propor uma
descrição do modo como estão conectados, de tal forma que talvez se deva
reconhecer uma experiência que, num certo sentido, pode ser dita não
conceitual.
II
A percepção de um objeto por uma dada modalidade sensorial não ocorre
isoladamente da sua percepção por outras modalidades, nem da ação do sujeito
que percebe em relação a esse objeto. A percepção não é tampouco isolada no
tempo. Essas diferentes integrações são constitutivas da experiência, como
exige Evans, e independentes de conceitos, contrariamente ao que sua descrição
de condições impostas a algo para fazer parte da experiência parece dizer.
O caráter supra-modal da percepção se mostra no seu ajuste a sua causa
distante, e não a sua causa próxima, isto é, ao objeto independente da
percepção, e não às terminações nervosas. Se não fosse dessa forma, se a
percepção ocorresse num espaço não integrado, mas específico a uma dada
modalidade sensorial, não estaria no espaço de uma ação possível do sujeito.6 O
sujeito que ouve um som o situa no espaço definido em relação a sua própria
posição e pode identificar a direção da qual ele vem. A direção para a qual ele
deve virar a cabeça, por exemplo, se quiser olhar para o lugar de onde vem o
som, não é o resultado de um cálculo: se esse fosse o caso, duas pessoas
escutando um som vindo de uma determinada direção poderiam virar a cabeça em
diferentes direções, dependendo precisamente do cálculo feito, o que não faz
sentido.7 Podemos ainda pensar num argumento análogo a um argumento de Strawson
contra os sense data:não há algo que possa ser identificado como um dado
anterior e independente a partir do qual tal direção poderia aparecer como
resultado.8 O que a analogia com o argumento contra os sense data sugere é que
o que é percebido é o som vindo de uma determinada direção, e não um dado
auditivo não situado no espaço.
A experiência não é tampouco isolada no tempo. Reconhecer o mesmo objeto à
medida que nos movemos é parte do que é perceber. O sujeito que vê a mesa a
percebe como um objeto que está em determinada posição no espaço, de tal
maneira que o modo como ele a percebe depende da sua posição em relação a ela;
se ele se mover, vai perceber a mesa de modo diferente, ele pode se colocar
numa posição na qual não poderá mais vê-la etc. Esta organização da percepção é
chamada por Evans "teoria primitiva da percepção".9 Alva Noë observa
que alterações nos padrões de contigências sensori-motoras (patterns of
sensorimotor contingencies) afetam a capacidade de ver, mesmo se o resto do
aparato perceptual permanece intactato. Ele se refere ao famoso experimento do
uso de lentes que invertem as imagens: a pessoa volta a ver quando se situa
novamente no espaço, recupera os padrões de contigências sensori-motoras.10
Essa experiência já havia sido analisada, num outro vocabulário, por Merleau-
Ponty: não há visão que não seja a visão de um corpo que age, se move no
espaço, reconhece o mesmo objeto de diferentes pontos de vista etc.11 A ligação
entre a percepção e a ação corresponde ao que John Campbell chama de
"física primitiva".12 Essa compreensão prática do que se percebe,
definida de maneira egocêntrica, se opõe a uma representação reflexiva e
alocêntrica e pode ser atribuída, por exemplo, a esquilos e bebês, na medida em
que a localização do que percebem se faz em relação ao espaço da ação. A
integração da experiência em animais não lingüísticos ou pré-lingüísticos vai
além do que pode ser identificado de maneira egocêntrica e se estende, com uma
determinada organização, ao que não é percebido num dado momento, como mostra
José Luis Bermúdez.13
A articulação no tempo entre diferentes estados perceptivos, à medida que
aquele que percebe se move ou age, exige uma transição entre estados, ou antes
um fluir contínuo que é constitutivo da experiência. Mesmo se resistirmos à
aplicação de um vocabulário teórico ("teoria primitiva da percepção",
"física primitiva") a alguns desses casos, parece difícil recusar que
eles correspondam à exigência da integração da experiência, entre diferentes
modalidades, entre a percepção e a ação, com um grau crescente de complexidade,
de tal modo que passamos de algo que parece imediato à conexão entre a
percepção e seqüências de ações. O conteúdo perceptivo - o que é ver a mesa,
ver que ela está a tal distância etc. - está numa estrutura holística, como
sugere Evans,14 estrutura que não depende da posse de conceitos.
A integração da experiência aparece antes da posse da linguagem, tanto na
filogenia quanto na ontogenia. Desde muito cedo, a percepção de bebês se
organiza de forma supra-modal, de tal maneira que seu centro de interesse, como
diz Andrew Meltzoff, é a entidade distante (distal entity), e não o que é
próprio a uma modalidade, e isso muito antes da aquisição da linguagem.15 O
caráter supra-modal da percepção inclui também a propiocepção, o espaço
unificado de modo supra-modal é o espaço da própria ação.16 Esse enredamento de
diferentes modalidades perceptivas e da ação, como mostra a pesquisa com bebês,
não depende da posse de conceitos, não é necessário que a entidade distante que
constitui o foco de interesse e atenção caia sob algum conceito. Podemos ver
aqui um análogo da Generality Constraint: um objeto percebido por uma
determinada modalidade sensorial deve poder ser percebido por uma outra
modalidade sensorial, ou pelo menos situado no espaço que inclui objetos
percebidos por outras modalidades.17
Se a integração da experiência é independente da posse de conceitos, não parece
adequado portanto exigir a passagem a um nível conceitual para a caracterização
de algo como parte da experiência. A idéia de que algo só possa fazer parte da
experiência se puder ser utilizado como entrada para a atividade de aplicação
de conceitos e raciocínios, como diz McDowell, não parece correta, se ao menos
essa exigência corresponder à exigência de integração - a menos que a aplicação
de conceitos e o sistema de raciocínio (concept-applying,and reasoning system)
sejam independentes da aplicação de conceitos (e deveriam então ser redescritos
num vocabulário neutro). Essa integração da experiência não é a mesma que a
desejada por Evans e McDowell: CNCs parecem estar disponíveis para a integração
de um modo que não implica a introdução de uma faculdade da espontaneidade.
Pode-se pensar que estamos diante de um problema terminológico: por que não
decidir que conceitos são habilidades de reidentificação e de organização da
experiência, de tal modo que seria claro que animais e bebês os possuem? Alva
Noë aplica o vocabulário conceitual a todos os casos que Evans chamaria de
teoria primitiva da percepção: conteúdos perceptivos entram na organização da
ação, ou antes, a percepção é ela mesma parte da atividade da exploração do
mundo, envolvendo atenção, interesses etc., e por essa razão devemos admitir
pelo menos uma atividade "quase-conceitual" na organização da
percepção.18 O reconhecimento da importância desse ponto não depende da
(tímida) extensão do uso do termo "conceito". Nenhuma decisão desse
tipo resolveria o que está em jogo: a exigência de integração que levava CNCs
ao pólo conceitualista pode ser satisfeita num ponto mais primitivo da
filogenia e da ontogenia do que o que sugere a descrição de McDowell e em
situações na nossa experiência cuja descrição não exige tampouco a utilização
de um vocabulário conceitualista.
Essa capacidade de identificar um objeto percebido em diferentes modalidades
sensoriais não depende da posse de um conceito sob o qual caia um tal objeto.
Um objeto que sinto pelo tato é também um objeto que pode em princípio pode ser
visto, que produziria um som se o tocasse de determinado modo, que deixaria de
perceber em tal e tal circunstância etc., e isso quer eu tenha conceitos para
aquilo que percebo, quer não. Existe contudo uma outra maneira de entender o
que é em geral integrado na experiência como parte da atividade racional.
III
CNCs não estão isolados, e a conexão entre eles não demanda a posse de
conceitos: a unificação supra-modal e as transições entre estados do sujeito
que unificam a experiência podem ocorrer sem a posse de conceitos para tais
conteúdos. Mas isso não significa que essa unificação, na medida em que é parte
da experiência de seres dotados de linguagem, seja fechada a exigências que só
podem aparecer num vocabulário conceitual. Voltemos ao exemplo familiar da
percepção de nuanças de cores além da distinção conceitual. Vejo alguém
pintando uma parede. Percebo que um lado está mais escuro que o outro e digo-
lhe. Ele concorda e volta a pintar o lado mais claro. Nós dois pensamos que a
parede deve ter uma cor homogênea e percebemos que esse não é o caso. Basta que
concordemos com algo do tipo "este lado está mais escuro do que
aquele", com algumas crenças e objetivos em comum, para que concordemos
com a decisão a ser tomada.
Há duas condições para a compreensão e a coordenação de ações mútuas nestes
casos: (i) que aquele que interpreta seja sensível às mesmas diferenças de cor
que aquele cujas ações ou palavras interpreta e (ii) que o intérprete perceba
aquele que interpreta como um agente racional, procurando atingir determinados
fins e adequando suas ações para tanto de acordo com o modo como pensa ser o
mundo que o cerca, tendo crenças e desejos logicamente organizados e sensíveis
ao que percebe, fazendo inferências de maneira correta etc.
Sem a primeira condição, o interpréte não poderia perceber em relação a que
traços do mundo aquele que age organiza suas ações. A razão pela qual o exemplo
das cores é tão claro é que cada um de nós simplesmente percebe essas
diferentes nuanças, e em torno de reações comuns se organizam nossas
interações. Se por alguma razão dois indivíduos não puderem perceber as mesmas
diferenças numa dada modalidade sensorial, por uma razão qualquer, e se não
houver um outro ajuste possível (por uma diferença associada a uma outra
modalidade, por exemplo), eles não podem coordenar suas ações em torno dessas
diferenças, como é possível no caso do pintor de parede mencionado. Mas a
compreensão e a coordenação mútua de ações dependem também da atribuição ao
agente de um comportamento racional, como em qualquer outro caso. Sem ver o
agente como racional, a compreensão do que ele faz não pode sequer começar: não
há como entender o gesto de um pintor de parede de retocar um lado da
superfície, senão atribuindo-lhe uma série de crenças e objetivos racionalmente
conectados, de tal maneira que seu comportamento nos seja inteligível.
Não menos necessário é ver aquele que se interpreta agindo em relação ao mundo
tal como o vemos. A percepção de diferenças entre as cores é parte do que
atribuo àquele que interpreto, se isso for relevante para a compreensão do seu
comportamento. Aqui, como em toda interpretação, o intérprete vê aquele que
interpreta como sensível de maneira geral aos mesmos traços do mundo aos quais
ele é sensível, como tendo crenças verdadeiras em relação ao mundo e como
organizando seu comportamento em função dessas crenças. A essa percepção, ou
antes às crenças cuja origem é essa percepção, aplica-se um padrão de
racionalidade como em qualquer outra situação: sem pensar que o pintor de
paredes vê as mesmas nuanças de cores que eu vejo e que suas crenças são
causadas pelo que vê, não há como entender sua ação no mundo, ou mesmo vê-lo
como agente.
O interesse de retomar esses temas davidsonianos aqui é que a crenças cujo
conteúdo é em parte formado pela percepção de cores para as quais não temos
conceitos se aplicam de maneira plena exigências de racionalidade, exigências
que se aplicam a esses conteúdos mesmos para os quais não temos conceitos. A
sensibilidade das crenças ao que se percebe e a postulação de um padrão de
percepção comum são parte do que significa ver alguém agindo numa dada
situação. Se percebo três nuanças de cores, n1, n2 e n3, vejo que n1 é mais
escura do que n2e que n2é mais escura do que n3; então sei que n1 é mais escura
do que n3 e espero que todo agente racional, em condições semelhantes às
minhas, também saiba quen1 é mais escura do que n3. Esse exemplo é de certa
forma ambíguo, permetindo tanto uma leitura na qual percebo uma superfície
contínua com essas três nuanças (e num certo sentido vejo, e não deduzo, que n1
é mais escura que n3),quanto a leitura na qual não posso comparar diretamente
n1 en3. As duas situações no entanto servem a meu propósito. O segundo ponto é
claro, a transitividade na relação "ser mais escuro que" é um
princípio racional que organiza nossas crenças perceptivas. A primeira situação
não é menos parte da compreensão da ação no mundo: as crenças são causadas
pelos mesmos objetos em mim e na pessoa que interpreto, e, se ela não fosse
sensível de maneira geral aos mesmos traços que percebo, sua ação não seria
para mim intelegível.
A aplicação de condições de racionalidade exige que pelo menos parte dos
constituintes das crenças seja conceitual, no exemplo acima, a relação
"ser mais escuro que", o que sugere que não há como aplicar tais
condições a conteúdos que seriam inteiramente não conceituais. Isso não implica
contudo que o conteúdo de crenças deva ser inteiramente conceitual para que
tais condições se apliquem. A idéia mesma de que crenças possam ser assim
constituídas, com componentes em parte conceituais, em parte não conceituais,
se aceita, mostra por que falar em conteúdos não associados a conceitos. CNCs
têm um papel análogo a conceitos em crenças inteiramente conceituais, conceitos
que não hesitaríamos dizer serem o conteúdo de tais crenças, com condições de
correção e possibilidade de erro de aplicação. O reconhecimento do caráter pelo
menos parcialmente conceitual de toda crença é uma resposta possível a Davidson
e McDowell, para quem é provavelmente sem sentido dizer que podemos aplicar
rational constraints onde não há conceitos.19
A frases nas quais figuram tais conteúdos, é possível aplicar o que Evans chama
de critério intuitivo de diferença entre pensamentos:
[ ] uma frase S tem um valor cognitivo diferente de uma frase S'
apenas se for possível entender S e S' e ter diferentes atitudes em
relação a elas.20
É possível entender "isto é F" e "aquilonão é F" onde
"isto" e "aquilo" são demonstrativos para respectivamente n
en', tendo diferentes atitudes proposicionais em relação a essas sentenças, e
isso é a indicação de que são pensamentos diferentes. Esse teste equivale a uma
exigência racional sobre pensamentos constituídos pelo menos parcialmente por
conteúdos para os quais não temos conceitos. Sentenças com CNCs participam da
explicação racional do comportamento, com todas as exigências que isso
acarreta.
A sensibilidade a diferenças entre cores é parte do papel causal da experiência
perceptiva na constituição de crenças, da mesma forma que ver um coelho, ou ver
que algo é vermelho. Pouco importa se somos capazes de reconhecer outras
instâncias de coelhos e de coisas vermelhas, mas hesitemos em dizer que vemos
exatamente a mesma nuança de vermelho que observamos ontem. Por que essa
diferença não é importante? Porque para a compreensão do comportamento deve-se
levar em conta o que percebe aquele que se interpreta no momento em que age.
Para entender o que faz um pintor de parede, devo ver o que ele vê no momento
em que está agindo, assim como devo atribuir as crenças que são relevantes para
a ação que interpreto, e não estender a atribuição de crenças a domínios
irrelevantes para a compreensão de um curso específico de ação.
Trata-se de uma conseqüência da tese de Akeel Bilgrami sobre o que chama
"Localidade do Conteúdo" (Locality of Content).21 O conceito de água
operativo na explicação do comportamento de alguém que procura água para beber
não inclui todas as crenças que se pode associar a "água". Por essa
razão, diferenças de crenças entre dois indivíduos, por exemplo, sobre a
composição química da água, não são importantes na explicação de seu
comportamento, se ambos procuram matar a sede:
A explicação da ação sempre ocorre num nível muito mais localizado do
que o nível de uma teoria do sentido.22
A extensão a outros contextos pode fazer surgir diferenças na individuação de
conceitos, mas da extensão do contexto apenas, se extensão houver, virão as
pressões que podem levar a identificar diferenças entre crenças. A razão pela
qual capacidades discriminativas que não podem ser estendidas no tempo
participam da explicação do comportamento da mesma forma que capacidades que
podem ser estendidas - e portanto podem ser associadas a conceitos - é
precisamente a localidade do conteúdo na explicação da ação.
A restrição no tempo da atribuição de conteúdos não implica a atomização
temporal dos conteúdos que se atribui às crenças daquele que se interpreta; ao
contrário, ao procurar identificar o que é relevante na explicação da ação,
somos levados a falar de ações que se desenrolam no tempo. A descrição mesma de
situações nas quais a atribuição de CNCs parece ser pertinente indica ações que
se prolongam. Se a tese da localidade do conteúdo foi proposta para bloquear a
extensão de contextos além do que é exigido pela explicação da ação, o
reconhecimento mesmo desse tipo de exigência leva à recusa da atomozição
temporal de conteúdos. Conteúdos atribuídos apenas no instante, que não
pudessem ser utilizados na explicação de uma ação que dure no tempo (isto é, de
qualquer ação, ou de quase qualquer ação), seriam tão irrelevantes para a
prática explicativa na qual se encontram quanto conteúdos individuados no nível
agregativo de uma teoria do sentido. Assim como manter a identificação de um
indivíduo em diferentes situações implica uma capacidade que se mantém ao longo
do tempo, seja ele contínuo ou não, as distinções que não são retidas pela
memória têm alguma duração temporal, senão não poderiam participar da
explicação da ação.23 Não há limites claros para a duração temporal de CNCs,
mas isso não anula a diferença entre distinções retidas na memória e recrutadas
em conceitos mais ou menos estáveis e distinções que são apresentadas apenas
por indexicais, segundo a tese de McDowell.24
Duas observações sobre CNCs se fazem necessárias. A primeira é que embora a
existência de distinções finas demais para serem retidas pela memória, que
portanto não podem ser capturadas num vocabulário conceitual, pareça evidente
(ela ser assim tratada por Evans não parece um movimento argumentativo
ilegítimo), não é necessário que elas sejam as mesmas para todos. Talvez essa
precisão seja ela mesma tão evidente quanto a que ela corrige, mas suas
conseqüências para a teoria da percepção em geral, e para CNCs em particular,
devem ser explicitadas. A experiência envolve uma atividade, requer atenção e
está conectada aos interesses e ao que sabe e acredita aquele que percebe. Essa
organização da percepção permite a exploração seletiva da miríade de detalhes
das situações nas quais nos encontramos.25 A dependência da percepção da
atividade daquele que percebe leva Alva Noë a falar do seu caráter "quase-
conceitual", como já foi dito:
[ ] o que é visto depende da atividade da parte daqueles que percebem
que é pelo menos quase-conceitual. A atenção parece ser direcionada
pelos percipientes a partir da sua compreensão do sentido ou
significado do que vêem. 26
Uma segunda observação: CNCs aparecem em práticas explicativas, não são
representações independentes do que o sujeito perceptivo toma como conteúdo de
crenças que guiam suas ações. Não há sentido em se falar do conteúdo de um
estado perceptivo, i.e., de um conteúdo que represente o mundo como sendo de
determinada forma, senão como o conteúdo de uma crença, ou de um estado que
participe da explicação da ação de um sujeito, e que, portanto, seja um
conteúdo para o sujeito da ação.
Essas observações estão ligadas, pois o papel da atenção, do interesse, da
compreensão daquilo que se vê aparece precisamente na organização temporal da
experiência e da ação no mundo. Um pintor de paredes pode não apenas ser capaz
de perceber mais diferenças de nuanças de cores, ou de fazê-lo mais rapidamente
e com mais precisão, como pode também ser capaz de retê-las na memória e ter um
vocabulário para cores mais extenso (essas duas capacidades, embora ligadas,
são elas mesmas distintas). Sua capacidade de distinção de nuanças de cores é
aquela que se reflete no modo como organiza sua experiência e sua ação.
IV
Jérôme Dokic e Elisabeth Pacherie argumentam contra a tese conceitualista de
McDowell, ligando o caráter indexical de CNCs e o papel que podem (ou não
podem) desempenhar em inferências. Seu argumento central é que, distinções na
percepção sendo mais finas do que as que podem ser retidas na memória, sempre é
possível que uma dada distinção em conteúdos perceptivos se perca no tempo
mesmo de uma inferência:
Na ausência de qualquer capacidade de reconhecimento associada a
conceitos, como garantir que o mesmo conceito demonstrativo aparece
em ambas as premissas? O único caso em que tal garantia pode ser dada
é quando os conteúdos de a é colorido assim e b é colorido assim
estão simultaneamente disponíveis para o sujeito na experiência
perceptiva de tal modo que possa ter ambos presentes à atenção ao
mesmo tempo. Assim que se obtêm as duas premissas separadamente, a
garantia desaparece, pois, pela falta da capacidade de
reconhecimento, o sujeito não poderá assegurar se os conceitos
demonstrativos envolvidos nas duas premissas são os mesmos ou
diferentes. O poder inferencial de tais conceitos é assim
extremamente restrito. 27
Esses conteúdos, sem dúvida, têm um potencial inferencial muito restrito e
talvez sejam pouco úteis na construção de um conhecimento qualquer. O argumento
de Dokic e Pacherie ameaça seu papel na explicação do comportamento. Essa
restrição aponta um limite para a estratégia de McDowell, porque a estabilidade
no tempo de conteúdos perceptivos suficiente para que eles estejam disponíveis
para o raciocínio, como pressuposto por McDowell, é uma hipótese empírica,
dizem Dokic e Pacherie, e uma hipótese empírica falsa:
Para que esta tese seja falsificada, seria suficiente mostrar que
duas nuanças de cor que estão pouco acima do limiar de discriminação
perceptiva quando apresentadas simultaneamente, não seriam
discriminadas de maneira confiável, se apresentadas sucessivamente.
28
Como este é precisamente o caso, conteúdos perceptivos que estão pouco acima do
limiar da capacidade de discriminação perceptiva só podem figurar em
inferências se presentes à percepção.
Deve-se perguntar, contudo, qual é a conseqüência desse tipo de resultado para
a compreensão do modo como CNCs podem figurar em inferências. Exemplos como o
do pintor de paredes acima utilizam capacidades de reconhecimento que duram o
tempo da coordenação e da execução de uma determinada série de ações: as
distinções pertinentes dependem do uso de indexicais e talvez não possam ser
retidas além do tempo que dura essa ação, mas duram o tempo suficiente para
figurar em raciocínios e ser operatórias na execução da ação. O argumento
poderia valer para outros casos e teria seu alcance restrito: em alguns casos,
a solução de McDowell é válida, quando há uma capacidade de reconhecimento de
curta duração, em outros casos, não. Os últimos seriam os casos para os quais a
estratégia de McDowell falha.
Mas será esse o ponto da tese de McDowell? O importante na utilização de CNCs,
ou ainda, num vocabulário neutro entre a posição conceitualista e a não
conceitualista, de conteúdos indexicais, é que sejam operatórios na explicação
de uma determinada ação. Conteúdos que correspondam a distinções que não possam
ser retidas além do contato perceptivo com aquilo que se percebe simplesmente
não entram na coordenação de ações, na interpretação da ação de um agente numa
dada situação, na medida em que estas exigem o reconhecimento estendido no
tempo dessas diferenças, e por essa razão não interessam à tese segundo a qual
conteúdos indexicais podem figurar em inferências.
Mais uma vez, a tese da localidade do conteúdo nos ajuda esclarecer esse ponto.
Testes que identificam os limites entre nossa capacidade de distinção
perceptiva e nossa capacidade de reter tais distinções não são contextos nos
quais conteúdos indexicais figuram em raciocínios como parte da explicação de
cursos de ações. Pode-se conceder assim que determinadas distinções entre
tonalidades de cores não são retidas pela memória o tempo necessário para uma
inferência oupara a execução de uma ação qualquer. Mas por essa razão mesma
elas nunca figuram em contextos nos quais tais conteúdos são atribuídos.
A crítica de Dokic e Pacherie tem um dilema a resolver: ou bem ela aponta
situações nas quais conteúdos indexicais não podem participar de inferências,
por não serem retidos na memória, mas então, por esta razão mesma, eles nunca
foram parte de inferências, porque nunca participaram da explicação de ações,
ou bem ela trata dos conteúdos que figuram em inferências efetivamente
atribuídas a indivíduos, e então elas correspondem a capacidades de
reconhecimento suficientes para tanto.
Esse dilema é contudo desconfortável também para o conceitualista: ao aceitar
que existem conteúdos indexicais que não podem participar de inferências,
parece difícil entender em que sentido eles podem estar disponíveis para a
espontaneidade e, portanto, por que razão devem ser ditos conceituais. Ao
dividir assim o terreno, o adepto da posição de McDowell ganha conteúdos
indexicais relevantes para a prática explicativa, mas deve conceder que existem
conteúdos não conceituais - aqueles para os quais o argumento para a
disponibilidade para práticas inferenciais não está disponível. A vitória aqui
talvez seja para o não conceitualista: se conteúdos indexicais podem não estar
disponíveis para inferência alguma, e portanto não estar disponíveis para a
espontaneidade, não há razão para não os considerar não conceituais.
Existe um outro tipo de argumento contra a tese de McDowell, o argumento da não
transitividade. Imaginemos que Sperceba dois objetos a1e a2num mesmo instante e
os julgue da mesma nuança de marrom:
[ ] parece sempre possível a um sujeito racional acreditar que tudo
que assima1 é assima1, e duvidar se tudo o que é assima1 é assima2.
Por tudo o que sabe, baseado na aparência perceptiva, pode haver uma
amostra que é indistinguível de a2 mas distinguível de a1.29
Esse raciocínio vale para quaisquer duas amostras de cores numericamente
distintas (qualquer que seja o critério de distinção numérica entre duas
amostras de cores), porque conteúdos indexicais são individuados pelas amostras
às quais estão ligados. Se aceitarmos esse argumento e a tese conceitualista, a
conseqüência é que há tantos conceitos para cores quanto amostras de cores.
Distinções conceituais mais finas do que as diferenças fenomenológicas parecem
ser uma conseqüência inaceitável da tese conceitualista. A resposta a esse
argumento é de certa forma análoga à resposta anterior, mas explicita um ponto
importante relativo à individuação de conteúdos. Segundo Dokic e Pacherie
[ ] há um número infinito de CDCs para uma dada nuança, pois eles
estão necessariamente ligados a amostras particulares. 30
Conteúdos indexicais estão necessariamente ligados a amostras, porque, para
quaisquer duas amostras, sempre é possível imaginar situações nas quais, pelo
critério intuitivo de diferença, frases nas quais eles figuram tenham valor
cognitivo diferente. Isso equivale a individuar conteúdos indexicais por aquilo
que é designado, para caracterização mesma do que McDowell chama da
"estrutura psicológica racionalmente organizada".31
Mas por que razão devemos aceitar essa individuação tão fina de pensamentos?
Pela extensão ilimitada do contexto de atribuição de crenças, de tal modo que
podemos conceber que o que não distinguimos numa dada situação poderia ser
distinto numa outra situação. Mas justamente não há razão para essa extensão
ilimitada de contextos, nem para a projeção de uma distinção encontrada numa
dada situação sobre a atribuição de conteúdos numa outra situação. A atribuição
de conceitos é sempre local, relativa à compreensão do comportamento racional
de um agente numa determinada situação. Podemos, de certa forma, repetir a
resposta anterior: conteúdos indexicais são potencialmente tão numerosos quanto
as amostras às quais estão ligados, mas eles só são de fato conteúdos para um
sujeito se aparecerem na explicação do comportamento racional de um agente, e
não há razão para pensar que tais situações nos levem sempre, ou mesmo nos
levem alguma vez, a uma individuação tão fina de conteúdos. Os resultados
empíricos que Dokic e Pacherie utilizam para individuar finamente conteúdos
indexicais podem ser utilizados no sentido oposto ao que eles pretendem: quanto
mais próxima a distinção entre duas nuanças de cores estiver dos limites da
nossa capacidade perceptiva, menor a chance de ela ser operativa em contextos
nos quais se atribui de fato conteúdos indexicais a crenças de indivíduos.
Distinções que só podemos capturar por indexicais podem figurar nas nossas
razões para agir, mesmo se não for possível estendê-las além de uma dada
situação - de qualquer modo, a atribuição de conteúdos é sempre local, e nada
impede que parte do que nela figura seja apenas local, isto é, não seja parte
de um agregado de crenças que apareça em outras situações, em outro tipo de
contexto. A diferença entre CNCs e conceitos é uma diferença de
grau;Conceptuality comes in degrees, diz Alva Noë.32
V
CNCs figuram em inferências que explicam o comportamento e são eles mesmos
dependentes da atividade cognitiva daquele que percebe, da sua atenção, do
significado que atribui à experiência. Essas correções não levam de volta ao
pólo conceitualista? Se à atribuição de CNCs se aplicam princípios normativos
da racionalidade, se eles se estendem no tempo e são parte da atividade de
compreensão da experiência e de atividades inferenciais, não devemos abandonar
o expressão «não conceitual»? Dito de outra forma, se conteúdos perceptivos
estão disponíveis à espontaneidade, não devemos considerá-los, por essa mesma
razão, como plenamente conceituais, à maneira de McDowell?33
Se o argumento da fineza de individuação de conteúdos parece indicar uma
diferença real entre conteúdos perceptivos, não é certo que ele não possa ser
respondido pela solução de McDowell, que Michel Luntley chama da estratégia do
seqüestro (kidnapping strategy).34 Além disso, não é claro se estamos diante de
uma verdadeira questão filosófica, ou se se trata de um problema terminológico,
acerca daquilo a que se pretende aplicar o epíteto «conceitual».35
Mas assim como a teoria de McDowell não consiste apenas em uma reforma
terminológica, a recusa em adotá-la também repousa em escolhas teóricas
relevantes. Uma breve retomada do caminho feito até aqui, em torno das posições
de McDowell e Evans, vai esclarecer minha posição. Para McDowell, todo conteúdo
é conceitual, porque não existe nada na experiência que seja independente do
exercício da faculdade de espontaneidade, ao passo que, para Evans, o conteúdo
perceptivo é produzido independentemente de qualquer atividade da
espontaneidade e, portanto, é não conceitual.36 O conteúdo perceptivo
independente da atividade da espontaneidade é, para Evans, comum a seres que
têm linguagem e a seres que não a têm, ao passo que, para McDowell, existe uma
ruptura já nos conteúdos perceptivos - parece só ter sentido aplicar o
vocabulário kantiano da espontaneidade para os primeiros.37 Essa diferença
inicial esclarece um ponto de acordo posterior entre os dois. Se para Evans o
conteúdo da experiência é produzido independentemente dos conceitos que temos a
nossa disposição, da nossa capacidade julgar e de fazer inferências, sua
integração parece dever recorrer a um vocabulário que se aproxima do pólo
conceitualista. McDowell concorda com a exigência de integração da experiência
pela faculdade da espontaneidade - seu argumento contra CNCs é precisamente que
nada pode ser assim integrado se não for conceitual desde o início.
Vimos, contudo, que a exigência da integração da experiência - o reconhecimento
de um mesmo objeto percebido por diferentes modalidades e em diferentes
ocasiões, a utilização do que é percebido na condução da ação etc. - pode ser
satisfeita, independentemente da posse de conceitos, por criaturas que não
possuem a linguagem. O que nos afasta do pólo conceitualista é o caráter mais
primitivo, tanto na ontogenia quanto na filogenia, da integração da
experiência. Uma tal posição quanto à constituição da experiência leva
naturalmente à aceitação de CNCs, por um argumento que parece o inverso do de
McDowell: se a experiência pode ser integrada independentemente da posse de
conceitos, ela deve integrar conteúdos que são precisamente não conceituais.
Esse mesmo argumento é novamente revertido, se considerarmos que à integração
da experiência humana, e apenas a ela, se aplicam condições de racionalidade;
talvez haja uma forma de integração que seja própria a seres com linguagem, e
essa integração deve contar, desde início, com constituintes que lhe são
próprios. Não é certo, no entanto, que o abandono de qualquer continuidade
entre a experiência cuja compreensão é constitutivamente racional e outras
formas de experiência e o isolamento da experiência humana de seus antecedentes
filogenéticos e ontogenéticos sejam um bom resultado.
Existe, contudo, uma outra forma de descrever conteúdos não conceituais que
evita pelo menos em parte essa oscilação e permite apresentar de maneira
positiva o resultado desse percurso. À guisa de conclusão, vou apresentar duas
teses e uma observação geral, que espero serem pelo menos parcialmente
justificadas pelo que apresentei até aqui.
1. CNCs são apenas locais, não podem ser atribuídos senão por indexicais. Como
já procurei argumentar, isso não implica a atomização temporal de CNCs. A
contrapartida negativa dessa tese é a seguinte: dois CNCs distintos - por
exemplo, designando nuanças distintas de cores - não podem ser associados a
conceitos de cores sem que se perca o critério intuitivo de diferença entre
pensamentos. Se n1e n2são duas nuanças de cores que correspondem a CNCs, não
existe nenhum conceito F(F pertencendo ao vocabulário das cores) que possa ser
associado a uma sem ser associado a outra, de forma que S pode pensar que n1é
G, mas que n2não é G, mas não pode pensar que F é G, 'F' designando n1, e
entender esta frase, sem pensar, de n2, que ele é G, aceitando que Fé G, 'F'
designando n2.38
Essa é uma retomada da tese de McDowell para a defesa de CNCs. Por que manter o
epíteto «não conceitual»? A razão é que conceitos permitem a agregação de
crenças ao longo da experiência, independentemente do contato perceptivo com a
coisa designada pelo indexical. Crenças acerca de CNCs não são independentes da
experiência do objeto designado. Isso não significa que ela seja isolada no
tempo - esta é de qualquer forma uma imagem errônea da experiência -, nem que
ela não possa ser designada depois, por expressões que remetem à experiência
(«aquele vermelho», «aquele perfume» etc.). Conceitos não funcionam dessa
forma, eles podem se separar da experiência do objeto designado. O interesse de
se manter a expressão «CNC» é o de reconhecer a diferença de papéis entre tais
conteúdos e o de conceitos na organização da experiência ao longo do tempo, e
em particular a capacidade de agregação de crenças acerca de traços
reconhecíveis da experiência. A conseqüência do argumento de Dokic e Pacherie -
aceitar CNCs onde conteúdos indexicais não estão disponíveis para práticas
inferenciais - deixa de ser um problema. Essa indicação geral sobre diferentes
dinâmicas cognitivas permite apontar por que se manter o epíteto não
conceitual. 39
Uma conseqüência dessa definição é que há uma distinção de grau entre CNCs e
conteúdos conceituais. Não há uma linha clara de quando uma determinada
distinção se torna suficientemente estável para ser separada da experiência
imediata, ou da lembrança de tal experiência. Ao longo da vida de um mesmo
indivíduo conceitos podem surgir, ou desaparecer e se dissociar das palavras,
podemos hesitar acerca do caráter conceitual ou não de conteúdos. Isso é parte
do que Alva Noë tem em mente, ao dizer que o caráter conceitual vem
gradativamente.
Esse não é, contudo, o único interesse do comentário de Noë. Um outro ponto
também é contemplado por esta definição: se conceitos (ou aquilo cuja dinâmica
cognitiva é diferente de CNCs) são o que permite a organização de expectativas
e valorações acerca de traços da experiência independentes do contato
perceptivo com aquilo em relação a que se tem expectativas e que se avalia de
tal ou tal modo, certos traços de conceitos não são exclusivos do homem. Algo
pelo menos análogo à distinção entre CNCs e conteúdos conceituais deve passar a
barreira das espécies e das idades, da maneira já sugerida pelas diferentes
formas de integração da experiência. Essa continuidade é contrabalançada pela
minha segunda tese.
2. A ruptura entre a experiência humana e a experiência animal não se situa
primariamente em componentes isolados, mas no tipo de organização que existe
entre tais componentes. Condições de racionalidade impostas à compreensão do
comportamento aparecem na integração da experiência. Isso não quer dizer que a
única forma de constituição da experiência seja aquela que encontramos em seres
dotados de linguagem, mas que o modo como rational constraints guiam a
compreensão do comportamento humano é a origem da sua especificidade.
A imposição de critérios racionais para a compreensão da dinâmica é apresentada
da seguinte forma por Davidson, ao argumentar pela irredutibilidade do mental a
leis físicas:
[ ] quando utilizamos os conceitos de crença, desejo etc., devemos
estar preparados, à medida que se acumulam os dados, a ajustar nossa
teoria à luz de considerações gerais (overall cogency): a idéia
constitutiva de racionalidade controla parcialmente cada fase no
desenvolvimento do que deve ser uma teoria em evolução. 40
Reencontramos aqui a importância da faculdade da espontaneidade defendida por
McDowell. Na medida em que CNCs participam da experiência humana, eles devem
ser integrados em teorias guiadas pelo ideal constitutivo de racionalidade.
Mais uma vez, pode-se ter a impressão de que se trata apenas de uma
reformulação terminológica da tese de McDowell. Não obstante a proximidade,
acredito que há uma diferença importante, já apontada anteriormente. O
reconhecimento de uma integração da experiência independente da faculdade da
espontaneidade, assim como uma organização interna de seus elementos que, sob
certos aspectos, é análoga para seres dotados de linguagem e para seres que não
o são, permite o reconhecimento de um espaço conceitual para a continuidade
natural entre o comportamento humano e outros tipos de comportamento. Parte do
que deve entrar em teorias que preparam o terreno para a compreensão da
emergência do pensamento, retomando o título de um importante texto de
Davidson, é precisamente a integração da experiência antes da aplicação de um
vocabulário racional.41
Donald Davidson aponta algumas condições para a conceitualização que estão
presentes em animais sem linguagem e em bebês:
1) Com duas criaturas respondendo geralmente de maneira
característica aos estímulos distais (distal stimuli), podemos falar
do foco de suas respostas, a causa comum nos casos mais freqüentes.
2) Se pensamento houvesse, isto forneceria uma indicação óbvia para o
conteúdo do pensamento.
3) Há espaço para o conceito de erro, que aparece quando existe
divergência entre reações normalmente similares.
4) Finalmente, e talvez o mais importante, pois é o que mais
facilmente deixamos de ver: transportamos a confiança na nossa noção
de similaridade relevante para dentro do reino de interesses animais,
reino ao qual ela seguramente pertence.42
Se essas condições não são suficientes para o pensamento, elas já fizeram parte
do caminho, e a organização de expectativas acerca da experiência e da reação
dos outros, assim como o foco da ação comum de dois indivíduos, são em parte
explicadas por algo que, cruzando a barreira das espécies e fases do
desenvolvimento, é análogo à distinção entre o conceitual e o não conceitual
para o homem. Talvez seja melhor guardar essas qualificações para a experiência
humana, mas não me parece aconselhável criar um tal sistema de conceitos que
torne difícil, senão impossível, ver semelhanças destas com outras formas de
experiência.
O tom davidsoniano da conclusão pode parecer um tanto paradoxal para um texto
que defenda CNCs. Seria muito longo defender essa posição, mas farei duas
observações que talvez ajudem a diminuir essa sensação de estranhamento.43 A
primeira é que o que falta a essas quatro condições para que possamos falar de
pensamento, as idéias conectadas de crença e de erro, que surgem na
triangulação, pode ser acomodado no quadro proposto, na construção de evolving
theoriesàs quais se impõem condições de racionalidade. A segunda é que falar de
CNCs não implica a separação entre forma e esquema conceitual: não apenas não é
o caso que a experiência seja massivamente não conceitual, mas apenas parte
dela o é,44 como não há situação alguma na qual algum conteúdo possa ser
atribuído à crença de um sujeito sem ser pelo menos parcialmente conceitual e,
por essa razão, sem que a ele se apliquem condições de racionalidade. Não há
espaço para uma experiência não interpretada, à qual se aplicaria em seguida um
vocabulário sensível a tais condições.
3. Se a idéia de que podemos entender o que é o pensamento cortando
completamente a ligação entre aquele que pensa e o mundo deve ser abandonada,
isto é, se o internalismo não é uma opção viável, um movimento teórico similar
deve nos levar a considerar com atenção o que é realmente externo em diferentes
posições externalistas. Vou me limitar a uma breve observação sobre um ponto
teórico subjacente a algumas discussões do texto. O contexto em que uma ação é
compreendida não é determinado de maneira independente daquilo que é pertinente
para aquele que age e do que pode ser percebido por aquele que interpreta.
Este princípio já era operativo na recusa da individuação de CNCs designando
nuanças de cores pelas amostras: o conteúdo atribuído a um indivíduo S na
explicação de um determinado curso de ação não é tudo o que pode distinguido
por S, isto é, tudo que é biologicamente possível que S distingua, ou tudo que
se encontra nos limites da sua capacidade distintiva, detectada em situações
experimentais determinadas, ou tudo o que um «agente onisciente» poderia
distinguir, mas aquilo que é parte do que é para S um constituinte da situação
na qual se encontra. Claro que à medida que a ação progride, tais constituintes
podem mudar, e não é necessário pensar que tudo que é parte da situação para S
é aquilo a que ele tem acesso conscientemente, ou no nível pessoal (em oposição
ao que pode funcionar no nível subpessoal). Nada disso significa contudo que o
contexto deva ser partido tão finamente quanto é possível, independentemente do
curso de ações que se interprete. O que prentedo sugerir é que o contexto é
determinado pela ação de S, pelo que ele faz e pelo que lhe acontece, e se não
há limites predefinidos para o que pode entrar aqui, o contexto não funciona
tampouco de maneira indefinida. Encontramos aqui uma motivação para a posição
conhecida como neofregeana - a proximidade com Gareth Evans e John McDowell não
é acidental.45 Vou terminar recorrendo a um outro neofregeano, Michael Luntley.
Esta compreensão do externalismo está em consonância, acredito, com o que
Luntley chama de tese da mente vazia:
Tese da Mente Vazia: não precisamos de representações para pensar,
pois pensar não é uma operação definida a partir de representações; é
uma operação definida a partir de nossos encontros com o mundo. 46
O que se compreende, aquilo sobre o que se impõem condições de racionalidade,
para o que se requer conteúdos individuados de diferentes maneiras, não são
representações, mas o comportamento. Cito mais uma vez Luntley:
[ ] a conhecida composicionalidade da nossa inteligência não é uma
propriedade de um conjunto de entidades quase-lingüísticas, a
composicionalidade da inteligência é uma propriedade de nossas ações.
47
O que ele diz sobre a composicionalidade pode ser estendido às razões que
existem para a atribuição de conteúdos, à sua organização e ao papel que
desempenham na explicação da ação. Uma contrapartida dessa tese é a idéia de
que contextos operativos para a compreensão de uma dada ação são o que
encontramos no mundo no curso dessa ação. Se não podemos esperar entender o que
é pensar e agir fazendo abstração dos contextos nos quais pensamos e agimos,
não há tampouco compreensão do que são contextos fora do que é para nós pensar
e agir.