O Platonismo de Russell na metafísica e na matemática
1. Superação do Idealismo
Além da influência dos filósofos que dominavam o panorama intelectual britânico
no final do século XIX, como H. Joachim, G. F. Stout, Mc Taggart, T. Green, B.
Bosanquet e, especialmente, F. H. Bradley, Russell justifica sua curta passagem
pelo Idealismo por meio da convicção de que o argumento ontológico para a
existência de Deus seria correto (ABR, p. 862). Essa justificativa,
independentemente da questão de ser cogente ou não, revela dois aspectos
importantes: (1) que Russell concebia o Idealismo como a doutrina segundo a
qual o sujeito cognoscente, de algum modo, tem uma função constitutiva da
realidade; e, relacionado a isso, (2) a sua convicção de que conceitos são
entidades dependentes desse sujeito.
Mas Russell extrai do próprio Idealismo um princípio que o conduz à sua
superação. Segundo seu relato, quando havia alguma disparidade entre as
posições de Kant e de Hegel, Russell aderia preferencialmente ao segundo, pois
este conseguiu superar o subjetivismo ao qual o primeiro ainda estava
subordinado. O princípio da maior objetividade como ideal filosófico foi
aplicado na avaliação do próprio Idealismo e levou Russell e Moore ao
diagnóstico de subjetivismo e psicologismo na filosofia de Bradley. A superação
do subjetivismo idealista se dá na passagem para uma posição que poderia ser
designada como Platonismo Proposicional.
Em vários textos (por exemplo, PoM, p. xxiii; MPD, p. 42; ABR, p. 88), Russell
atribui a Moore a iniciativa de superação do idealismo. No artigo "The Nature
of Judgment" (Mind, abril de 1899), Moore propõe como objeto de análise lógico-
filosófica não mais os juízos (judgments) de Bradley, considerados
essencialmente subjetivos, mas sim as proposições, concebidas da seguinte
maneira:
Uma proposição não é composta de palavras, nem de pensamentos, mas de
conceitos. Conceitos são possíveis objetos do pensamento, mas isto
não é sua definição. Isso significa apenas que eles podem entrar numa
relação com um pensador, e para que eles possam fazer algo, eles
precisam anteriormente seralgo. É indiferente para a sua natureza que
alguém os pense ou não. Eles não são passíveis de mudança; e a
relação na qual eles entram com o sujeito cognoscente não implica
ação ou reação. Trata-se de uma relação única que pode começar ou se
encerrar com uma mudança no sujeito; mas o conceito não é causa nem
efeito de tal mudança. (1899, p. 179 grifos no original)3
Russell logo adere ao Platonismo Proposicional de Moore. A leitura cuidadosa
dos seus textos de 1898 revela uma passagem abrupta dos juízos às proposições.
O locusexato dessa reviravolta conceitual é a palestra não publicada "The
Classification of Relations", apresentada oralmente em janeiro de 1899 e
redigida provavelmente em dezembro de 1898.4 Nesse texto, Russell analisa as
diferentes características lógicas das relações (transitividade, simetria etc),
usando no início a expressão "juízos de relação" e, sem maiores explicações
para a mudança, no final, "proposições de relação". Mais do que mera transição
conceitual, essa passagem marca o início da fase platonista de Russell.
2. Platonismo Proposicional
Por Platonismo, compreende-se, em geral, a concepção filosófica que afirma a
existência de entidades abstratas, ou seja, entidades que não são materiais,
como objetos físicos, nem espaço-temporais, como eventos ou processos, nem
mentais, como representações ou sentimentos. Convém distinguir diferentes
formas de Platonismo. Os habitantes nativos do Reino Platônico são as formas
puras e os universais, no sentido da tradição metafísica escolástica. Mas este
Reino também é abrigo para entidades particulares como números, classes e
valores de verdade. O Nominalismo, por sua vez, nega a existência de tais
entidades abstratas. A rigor, Platonismo e Nominalismo não são posições
metafísicas perfeitamente demarcadas e mutuamente excludentes, mas sim
tendências estereotípicas entre as quais se alojam alternativas intermediárias,
como, por exemplo, o Conceitualismo de Aristóteles.
O fundamento do Platonismo radical de Russell entre 1898 e 1905 é a afirmação
da subsistência de proposições e conceitos. Assim como Meinong e Moore, Russell
concebe proposições como complexos não lingüísticos e não mentais,
independentes do sujeito cognitivo e lingüístico. Em Meinong's Theory of
Complexes and Assumptions(MTCA, 1904) Russell apresenta um argumento simples a
favor da subsistência de proposições. Tome-se o exemplo a seguir:
(a) Ontem eu fiz um passeio pela cidade.
(b) O meu passeio pela cidade ontem foi perigoso.
(c) Ontem eu não fiz um passeio pela cidade.
(d) O meu passeio pela cidade ontem teria sido perigoso.
Todas estas sentenças tratam da mesma proposição p. (a) afirma p; (b) pressupõe
a verdade de p e lhe atribui uma qualidade; (c) nega p; e (d) nega p e lhe
atribui uma qualidade. A proposição p não é uma entidade mental nem
lingüística, pois (b) e (d) não atribuem uma qualidade a um juízo (o juízo não
é perigoso, mas sim o passeio pela cidade) nem à sentença (a sentença não é
perigosa, mas sim o passeio). Como p tem qualidades mesmo quando não é um fato,
conclui-se que p não é nada, pois nihili nullae sunt proprietates (o nada não
tem atributos). Uma proposição não é nada, ela subsiste mesmo não sendo
atualizada como fato. Além disso, o Ser das proposições falsas é estabelecido
pela sua efetividade inferencial. Como nada se segue do nada, mas de
proposições falsas pode seguir algo (por exemplo, pelo modus tollens), elas não
são nada. Há proposições verdadeiras e falsas assim como há rosas vermelhas e
brancas. "Por todas estas razões, nós precisamos admitir que há entidades que
não existem, e dentre estas precisam ser postas as entidades que são
verdadeiras ou falsas, as quais designo proposições" (TNT, p. 496, grifo no
original).
Russell assume assim uma ontologia meinonguiana baseada na distinção entre ser
e existir. Na sua teoria de objetos (Gegenstandstheorie), Meinong diferencia
três estatutos ontológicos: (1) Existência: objetos no tempo e no espaço; (2)
Subsistência: objetos abstratos, relações e proposições verdadeiras; e (3)
Objetos não subsistentes: objetos impossíveis, como o círculo quadrado e as
proposições falsas.
A omniabrangência do Reino do Ser (Realm of Being) é fundamentada no polêmico
argumento da pressuposição de existência, conhecido desde Platão e defendido
por Meinong. Qualquer proposição do tipo "A não é" é falsa ou sem sentido, pois
pretende enunciar algo sobre A, pressupondo, portanto, que A, de alguma forma,
é, e ao mesmo tempo nega o Ser de A. O mesmo não vale para "A não existe", pois
esta proposição apenas afirma que A não ocupa lugar no espaço-tempo. Assim
Meinong supera o "preconceito em favor do real". Com este argumento são
introduzidos no Reino Platônico de subsistentes não apenas os universais (eles
também podem ocorrer como sujeito de tais proposições), mas também os conceitos
e as proposições individuais.
Há um claro aroma transcendental neste argumento: qualquer proposição sobre A
tem como condição de significatividade a subsistência A. Esse argumento subjaz
o primeiro dos 3 critérios de cidadania no Reino do Ser. Recebe tal cidadania
(PoM, 1903, p. 47):
1. tudo que pode ser sujeito de uma proposição;
2. tudo que pode ser contado como um (pode ser enumerado);
3. tudo que pode ser objeto do pensamento.
O primeiro critério simplesmente explicita o resultado do argumento da
pressuposição de existência. O segundo decorre do princípio (compartilhado por
autores como Frege e Leibniz) da universalidade da aritmética e da lógica. O
terceiro critério é baseado no princípio da co-extensionalidade de pensamento e
ser, mas evita o idealismo (pelo menos em sua versão subjetivista) ao
introduzir uma categoria modal: o que pode ser pensado não é, necessariamente,
o que é efetivamente pensado. Cada um destes critérios é co-extensivo aos
outros dois. Não se pode predicar sobre algo que não é, nem enumerar algo que
não é, nem pensar em algo que não é. Para que algo possa ser sujeito de uma
proposição, ou possa ser contado, ou possa ser pensado, é necessário que esse
algo subsista.
Russell apresenta também um motivo lógico para a adesão ao Platonismo
Proposicional. O Idealismo caiu no subjetivismo ao não reconhecer a
irredutibilidade lógica dos predicados diádicos. Russell deriva da
irredutibilidade das relações a sua realidade, e desta a sua externalidade. Uma
das poucas teses constantes da filosofia de Russell é a de que o reconhecimento
da realidade e da irredutibilidade das relações conduz necessariamente à
superação do Idealismo. A externalidade das relações, em especial da relação
entre o sujeito e o objeto da percepção, da vontade ou da crença, garante a
objetividade das proposições:
Quando vejo uma árvore, o meu ver não é o mesmo que a árvore; quando
eu desejo que você concorde comigo, o meu desejo não é o mesmo que a
sua concordância; quando eu acredito que César atravessou o Rubicão,
a minha crença não é o mesmo que o evento. As coisas que são ou podem
ser objetos de crença, eu as designo proposições(...) (TNT, p. 494,
grifos no original)
Para o Platonismo Proposicionala existência da realidade material é apenas
derivada (ontologicamente dependente) da realidade conceitual. Todos os
conceitos são objetivos e categorialmente similares na medida em que são
subsistentes. A existência é apenas um conceito ao lado de outros conceitos
como vermelhoe mortal. Os conceitos são organizados em complexos assertivos
verdadeiros ou falsos, as proposições. A verdade ou falsidade de uma proposição
é uma propriedade interna e primitiva. Como as proposições Sócrates é mortal e
Sócrates existe são verdadeiras, Sócrates é mortal e existe. O Platonismo
Proposicional, devido à postulação da dependência ontológica da realidade
material em relação à dimensão conceitual, propõe uma teoria da verdade pouco
ortodoxa: a proposição Sócrates existenão é verdadeira porque Sócrates
realmente existe, mas sim, ele existe porque a proposição Sócrates existe é
verdadeira. Verdade é uma noção logicamente anterior e mais primitiva que
atualização espaço-temporal, como se percebe no caso das proposições da
matemática, que são essencialmente não existenciais e não correspondenciais. O
mundo material é constituído de proposições existenciais verdadeiras, os fatos:
As pessoas imaginam que se A existe, A é um fato; mas, na verdade, o
fato é "a existência de A" ou "que A existe". Coisas deste tipo, i.e.
"que A existe", elas próprias não existem: coisas deste tipo chamo
proposições, e coisas deste tipo são chamadas fatosquando elas são
verdadeiras. (TNT, p. 492, grifos no original)
A designação "Platonismo Proposicional" justifica-se, portanto, porque
conceitos e proposições são os filhos primogênitos do Reino do Ser russelliano
(ver argumentação semelhante em Makin, 2000, p. 56).
3. Platonismo Matemático
A expressão "platonismo matemático" foi cunhada por Paul Bernays no seu artigo
de 1935, "Sur le platonisme dans les mathématiques". Além de afirmar a
existência de entidades abstratas da matemática, como os números, conjuntos e
funções, o platonismo matemático caracteriza-se pela tese de que verdades
matemáticas são descobertas e não criadas por meio das provas que as
demonstram. Por isso, proposições matemáticas não demonstradas, como, por
exemplo, a suposição de Goldbach, são consideradas portadoras de um valor de
verdade definitivo, mesmo que ainda não saibamos qual, afinal, a nossa
limitação epistêmica é um fato contingente e indiferente para o fato matemático
bruto. Suspender o tertium non datur é assim a estratégia fundamental do
nominalismo matemático na sua versão construtivista.
Admitido o Platonismo Proposicional, a definição de matemática de Russell em
Principlescomo classe de proposições de implicação formal o conduz
inevitavelmente a um platonismo matemático. Pois, se por prova se entende uma
determinada seqüência de proposições com certas propriedades formais, verdades
matemáticas não são criadas, mas sim descobertas descobre-se, por assim
dizer, o "caminho" até elas: "Em suma, todo conhecimento precisa ser descoberto
exatamente no mesmo sentido em que Colombo descobriu a Índia Ocidental, e não
criamos os números, assim como não criamos os indianos" (PoM, § 427)5
O platonismo também traz vantagens técnicas para o logicismo, como por exemplo,
na definição de números. Semelhantemente a Frege, Russell define números como
conjuntos de conjuntos de mesma cardinalidade. O número 1 é definido como o
conjunto de todos os conjuntos unitários (de objetos), o número 2 como o
conjunto de todos os conjuntos de pares (de objetos) etc. Mas esse procedimento
de definição traz uma dificuldade (IMP, cap. 13). Suponhamos que o universo
contenha apenas 9 objetos primitivos. Assim, o número 9 é definido como o
conjunto cujo único elemento é o conjunto de todos os objetos que existem. Mas
o conjunto que define o número 10 (o conjunto cujos elementos são os conjuntos
com 10 elementos) é vazio, pois, como só há 9 objetos, não há nenhum conjunto
com 10 objetos. O mesmo ocorre com o 11 e os demais sucessores. Logo, todos os
números maiores que 9 seriam idênticos, pois iguais ao conjunto vazio. A
aritmética colapsa. Para evitar tal catástrofe aritmética, Russell teria de
dispor de um reservatório infinito de objetos.
Uma solução possível seria abdicar da idéia de que os conjuntos básicos só
possam conter objetos primitivos e admitir conjuntos de vários níveis
diferentes. Assim, Russell analisa uma alternativa que é hoje bem conhecida. No
pequeno texto The Axiom of Infinity, de 1904, ele define 0 como o conjunto de
coisas que satisfaz uma condição impossível, como, por exemplo, x1x. O conjunto
assim definido subsiste independentemente da existência de qualquer objeto
primitivo. Como todo conjunto com a mesma extensão é idêntico, só existe um
conjunto vazio. Logo, poder-se-ia definir o número 1 como conjunto que contém
como único elemento o conjunto vazio. Desse modo, já teríamos dois conjuntos,
que poderiam ser elementos de um terceiro conjunto, e assim ad infinitum. Ou
seja, como na definição de Von Neumann, tem-se:
0 = Æ
1 = {Æ}
2 = {Æ, {Æ}}
3 = {Æ, {Æ}, {Æ, {Æ}}}
...
Seria cumprir justiça histórica tributar tal procedimento de definição de
números originalmente a Russell, sem pretender com isso, é claro, altercar a
honestidade intelectual do redescobrimento de Von Neumann. Aliás, o
redescobrimento só foi possível devido ao esquecimento ao qual foi condenado
tal procedimento pelo próprio Russell. O seu motivo para rejeitá-lo é, como
mostro agora, técnico.
Preocupado com a antinomia, Russell introduz no apêndice de Principles uma
forma incipiente da teoria dos tipos lógicos (a forma definitiva foi
estabelecida entre 1906 e 1908). Fundamentalmente, tal teoria consiste na
distinção de diferentes níveis ou tipos lógicos nos quais se organizam os
argumentos que podem ser introduzidos em funções proposicionais, que também são
estratificadas, garantindo assim uma formação sintática significativa. Cada
função proposicional pertence a um nível lógico específico. Como conjuntos são
definidos como totalidades dos argumentos que satisfazem uma dada função
proposicional, o resultado será a distinção de diferentes níveis de conjuntos.
Se aÎC, então asatisfaz a função proposicional "... é um F" (onde F é o
conceito-classe6 correspondente a C). Um argumento que satisfaz uma função
pertence necessariamente a outro tipo lógico que a própria função. Assim, os
conjuntos que são elementos de um determinado conjunto pertencem
necessariamente a outro tipo lógico que este último. Não há para a teoria dos
tipos lógicos conjuntos mistos. Mas no procedimento de Russell e Von Neumann,
anteriormente proposto, cada número é um elemento de todos os números
subseqüentes: 1Î2, 2Î3, 3Î4... e, assim, cada número pertenceria a um outro
nível lógico. Conseqüentemente, a função proposicional "... é o número de
cadeiras desta sala" pertenceria a diferentes níveis lógicos, dependendo do
número atribuído, por exemplo:
Um é o número de cadeiras desta sala.
Dois é o número de cadeiras desta sala.
Mas se a mesma função proposicional "... é o número de cadeiras desta sala"
pertence simultaneamente a diferentes níveis lógicos, a teoria dos tipos e a
lógica colapsam. Por isso, o reservatório de infinitos objetos primitivos
precisa ser garantido de outra maneira. Em Principles(§ 339), Russell se
utiliza de diferentes argumentos de caráter platônico para assegurar o
necessário super-povoamento de entidades. O primeiro argumento é uma herança de
Platão, no seu diálogo Parmênides: basta supor que o 1 é. Como o Ser atribuído
ao 1 não é idêntico ao 1, existem pelo menos duas coisas: o 1 e o Ser. Então,
existe o 2. Logo, existem o 1, o Ser e o 2, isso quer dizer: existem 3 coisas.
Podemos prosseguir assim ad infinitum.
Um outro argumento é herdado de Bolzano e Dedekind. Esse argumento se baseia no
fato de que somente em conjuntos infinitos podemos estabelecer uma
correspondência biunívoca entre todos os elementos do conjunto e um subconjunto
genuíno dele, como, por exemplo, entre o conjunto dos números naturais e o dos
naturais pares. A demonstração da infinitude de entidades no Reino do Ser se dá
da seguinte maneira:
Novamente, pode ser provado diretamente, por meio da correlação entre
o todo e a parte, que o número de proposições ou conceitos é
infinito. Pois para cada termo ou conceito existe uma idéia, a qual é
diferente daquilo do que ela é a idéia, mas é, novamente, um termo ou
um conceito. Por outro lado, nem todo termo ou conceito é uma idéia.
Existem mesas e idéia de mesas; existem números e idéias de números,
e assim por diante. Assim, existe uma relação biunívoca entre termos
e idéias, mas as idéias são apenas alguns dos termos. Logo, existe um
número infinito de termos e de idéias. (Não é necessário supor que as
idéias de todos os termos existem, ou que elas fazem parte de alguma
mente; basta que elas sejam entidades). (PoM, § 339)
Na verdade, para que este argumento seja válido, é necessário supor que os
elementos do contra-domínio (a idéia correspondente a cada termo do domínio)
sejam também elementos do domínio (sejam um termo) e tenham uma idéia
correspondente. Logo, é necessário supor que o domínio contenha idéias de
infinitos níveis: idéias de idéias e idéias de idéias de idéias etc. Mas, dada
essa hipótese, bastaria supor a existência de apenas um termo que não é idéia.
Claro que o recurso ao mundo do Ser, e não ao mundo de existentes, livra
Russell da acusação de que a sua aritmética seria dependente do mundo empírico.
Não surpreende, pois, que Russell cante louvores ao refúgio platônico em The
Problems of Philosophy (1912, cap. 9): "O mundo do Ser é imutável, fixo, exato,
ele é a alegria do matemático, do lógico e do construtor de sistemas
metafísicos e de todos que amam mais a perfeição do que a vida". Mas não há
paraíso sem serpentes.
4. A Teoria das Descrições
Vale para a metafísica o que vale para a sociedade: quanto maior o número de
diferentes etnias reunidas numa comunidade, tanto maior o perigo de conflitos e
contradições. Uma interpretação recorrente na literatura contemporânea sobre
Russell aponta a teoria das descrições ("On Denoting" [OD], 1905) como seu
marco pessoal de transição para o nominalismo. Dentre outros, Ayer
(Russell1972, p. 52 et seq.) e Quine (1981) são responsáveis por tal
interpretação, embora Quine seja cuidadoso e indique explicitamente traços de
platonismo em Russell após 1905 (Quine, 1981, p. 78). A força dessa linha de
interpretação reside no próprio uso sistemático que Quine faz da teoria das
descrições, ampliando-a para além da intenção original de Russell (por exemplo,
em On What There Is). Algumas passagens tardias (1959) de Russell parecem
amparar tal interpretação:
Meinong ( ) afirmou que alguém pode fazer asserções nas quais o
sujeito lógico é "a montanha de ouro", apesar de não existir nenhuma
montanha de ouro. Ele argumentou que se você diz que a montanha de
ouro não existe, é óbvio que há algo que você afirma não existir a
saber, a montanha de ouro; portanto, a montanha de ouro precisa
subsistir em algum nebuloso mundo Platônico do Ser, pois de outro
modo a sua asserção de que a montanha de ouro não existe não teria
significado. Eu confesso que até o momento em que eu cheguei à teoria
das descrições, este argumento me pareceu convincente. (MPD, p. 64)
A teoria das descrições focaliza diretamente o primeiro dos critérios de
subsistência: tudo que pode ser sujeito de uma proposição tem Ser. Esta
passagem de Russell é, porém, enganosa, pois parece sugerir que não se pode
assegurar a subsistência do sujeito lógico de uma proposição. Importa observar,
porém, que, a rigor, Russell nunca abdica desse princípio. Nomes próprios
lógicos ("isto", "aqui", ...) denotam entidades cuja certeza da existência é
garantida, ou, como diria David Pears, cuja afirmação de existência ("isto aqui
existe") é uma tautologia referencial.
A novidade de OD consiste propriamente na descoberta de que nem todo sujeito
gramatical (sujeito de uma sentença) é, de fato, sujeito lógico (sujeito de uma
proposição compreendendo a proposição como instância de explicitação da
verdadeira forma lógica de uma sentença). Embora "o atual rei da França" pareça
ser sujeito da proposição "o atual rei da França é careca", na interpretação
lógica proposta em OD $x ("y (Fy « x=y)Ù Gx) , ele ocorre como um predicado
("F"). A desconfiança da forma gramatical superficial surgida com a teoria das
descrições legitima a interpretação de que a teoria das descrições representa o
linguistic turnrusselliano, trazendo à luz a convicção de que questões
ontológicas são indissociáveis de questões lógico-semânticas.
A ausência de um critério de identidade para entidades meramente possíveis
leva-nos a supor que tais entidades também não satisfaçam os outros dois
critérios de cidadania no Reino do Ser: poder ser contado como um (afinal,
quantos possíveis atuais reis da França existem?) e poder ser objeto do
pensamento (em qual possível atual rei da França se pensa, no careca ou no
cabeludo?). A ausência da unicidade de tais entidades traz consigo o ferimento
do princípio do tertium non datur: Para todo x, ou x é um F ou x é um não-F.
Correspondentemente, na teoria dos conjuntos, que é construída a partir da
teoria lógica, ou um objeto pertence a um conjunto, ou ao seu complemento. A
questão é então: o objeto o atual rei da Françapertence ao conjunto dos carecas
ou ao seu complemento? Na verdade, tanto a proposição O atual rei da França é
carecacomo O atual rei da França não é careca(correspondente a aÎC e aÏC) são
falsas. Logo, a expressão "o atual rei da França" não pode denotar um objeto
primitivo.7
Um segundo motivo apontado por Quine para a rejeição de tais entidades é a
indistinção do estatuto ontológico entre 2 e o maior número natural. Como
números não são objetos espaço-temporais, ambos têm o mesmo estatuto
ontológico: são subsistentes não existentes (também o maior número natural
satisfaz, aparentemente, o critério triplo de cidadania no Reino do Ser).
Assim, a distinção entre sere existir não é suficiente para dar conta de um
fato fundamental que qualquer matemático precisa reconhecer: não há o maior
número natural no mesmo sentido que há o 2. Como a teoria das descrições
definidas aponta justamente para o fato de que nem toda descrição realmente
denota algo, o maior número natural perde seu asilo no Reino Platônico do Ser.
Um terceiro motivo, que Russell não menciona explicitamente, mas que
corresponde às suas investigações naquele tempo, está relacionado à redução da
teoria de conjuntos à lógica. Como a teoria dos tipos lógicos é parte da
lógica, Russell tinha de determinar exatamente o tipo lógico correspondente a
cada expressão lingüística. A expressão "rei da França" pode ocorrer como
função proposicional do primeiro nível (... é rei da França) ou como objeto
primitivo, quando acompanhado do artigo definido ("o rei da França é ...").
Para superar essa ambigüidade, Russell opta por atribuir a esta expressão o
estatuto de função proposicional de primeira ordem, afinal, uma proposição do
tipo "Luiz XIV é o rei da França" tem, apesar da sua forma aparente de
proposição de identidade, um caráter atributivo, na medida em que "ser rei da
França" é uma expressão predicativa. Descrições definidas vazias denotam o
conjunto vazio, e não um suposto elemento de algum conjunto.
Vários intérpretes têm salientado nos últimos anos que seria enganoso supor que
Russell adere a um nominalismo radical depois de 1905. Hager (Continuity and
Change in the Development of Russell's Philosophy, 1994, p. 37) defende que
Russell continua platonista até The Problems of Philosophy (1912), dentre
outros motivos, devido a passagens como a anteriormente citada. O engano de
Hager é supor que com a teoria das descrições só há uma mudança na teoria da
linguagem, sem nenhuma implicação para a ontologia. Makin (The Metaphysicians
of Meaning, 2000, p. 52 et seq.), por sua vez, também pretende combater a
interpretação tradicional, mas ataca a outra fronte. Segundo Makin, já antes de
1905 Russell negava a subsistência do rei da França, por exemplo no artigo "The
Existencial Import of Propositions". De fato, nesse artigo transparece uma
rejeição de entidades como o atual rei da França e a diferença entre A e B,
quando estes forem idênticos. Mas esse artigo foi escrito em julho de 1905
(algumas semanas antes da publicação de "On Denoting"), sendo, portanto, apenas
inferível dele que a mudança de Russell não foi uma súbita conversão, mas sim
resultado de um processo um pouco mais longo. Aliás, já no fim de 1904, em MTCA
ele nega o Ser de uma entidade como a diferença entre A e B, quando A e B são
idênticos. No meio do ano de 1905, ele diz explicitamente:
Seja nossa proposição da forma "A é diferente de B"; então se essa
proposição for verdadeira, existe uma diferença entre A e B, enquanto
se ela for falsa não há diferença. Assim, a diferença entre A e B é
uma entidade quando a proposição é verdadeira, mas não no caso
contrário. Existem dificuldades acerca deste ponto de vista; pois o
conceito "a diferença entre A e B" pode parecer ter um significado
perfeitamente claro e definido, mesmo quando não há tal diferença.
Mas eu penso que isso pode ser negado, de modo que podemos dizer que
quando a proposição é verdadeira, este conceito denota um objeto, o
qual éa diferenca entre A e B, e quando a proposição é falsa, o
conceito não denota um objeto. (TNT, p. 505, grifos meus).
Embora a interpretação de Quine seja correta no geral, ela é imprecisa na
medida em que considera Russell fundamentalmente preocupado com as entidades
impossíveis de Meinong: "(...) o Russell de On Denoting(1905) elimina os
objetos impossíveis de Meinong" (1981, p. 75) e "(...) nesta ocasião (1905) ele
foi motivado pela impossibilidade dos objetos impossíveis de Meinong" (1981, p.
79). Russell menciona, de fato, tais objetos impossíveis em On Denoting, mas
eles ocorrem somente na sua argumentação com a função de explicitar por que, de
modo geral, objetos não existentes são indesejáveis numa ontologia consistente.
A sua teoria lida, em primeira linha, com possíveis não atualizados, como ele
expressa explicitamente dois anos mais tarde: "Minhas objeções se aplicam
igualmente a objetos como 'a montanha de ouro', que não são impossíveis, mas
meramente não existentes. Isso, naturalmente, eu admito; de fato, o objeto que
eu particularmente pretendia abolir era 'o atual rei da França', que está no
mesmo nível que a montanha de ouro" (EA, 1907, p. 93).
Por isso, Makin (2000, p. 59) conclui com razão que "ele teria mantido o seu
caso contra os objetos não subsistentes de Meinong mesmo se Meinong não tivesse
admitido objetos impossíveis". Acerta também Pinto (2001, p. 87) quando diz que
"o grande adversário de Russell em On Denoting não é Meinong, mas Frege"
(voltaremos a isso mais adiante). Em nenhum momento, nem mesmo no Platonismo
radical de Principles ou na fase de transição em An Analysis of Mathematical
Reasoning (meados de 1898), há espaço para objetos impossíveis na ontologia de
Russell (comparar Makin, 2000, p. 61).
A teoria das descrições não representa, portanto, a derrocada do Reino do Ser,
mas sim o início de um controle de imigração. Permanece, pois, a questão: até
que ponto a teoria das descrições implica uma adesão ao nominalismo?
Inicialmente, vale salientar que a teoria das descrições implica um
eliminacionismo de entidades e não propriamente um reducionismo de categorias.
Por reducionismo entendo o ímpeto de redução (eliminação) de uma categoria
ontológica a outra mais elementar (lógica, ontológica ou epistemologicamente),
como, por exemplo, a redução da (categoria de) substância a um feixe de
propriedades (teoria de feixes) ou a redução de universais a um conjunto de
tropos similares. Por eliminacionismo compreendo o ímpeto de eliminação de
entidades particulares supérfluas, sem que isso implique a redução de toda a
categoria da entidade particular eliminada. Pode-se eliminar um particular
subsistente como o maior número natural, sem com isso abdicar totalmente de
toda categoria de números enquanto objetos abstratos.
Vejamos agora o que ocorre com os números na nova ontologia de Russell. Para
isso, observemos, primeiramente, um exemplo mais simples de como reduções
definicionais implicam reduções teóricas. Se um termo t pode ser definido com
recurso aos termos t1, t2, ..., tn, então, em toda proposição na qual t ocorre
como sujeito, este pode ser substituído por uma expressão que contém apenas t1,
t2, ..., tn. Se a proposição "minha prima é bela" é parafraseada corretamente
com "a filha de um(a) irmão(ã) de um de meus progenitores é bela" então a noção
de prima pode ser eliminada em função das noções mais elementares filho, irmão
e progenitor. É claro também que os dois primeiros termos relacionais (xFy = x
é filho de y, e xIy = x é irmão de y) podem ser reduzidos ao último (xPy = x é
progenitor de y): xFy º yPx, e xIy º $z (zPx Ù zPy Ù x¹y). A proposição acima
teria assim a forma (onde a é a constante para o "eu" e B é o predicado "ser
bela"): $x$y$z$w (xPa Ù yPx Ù yPz Ù x¹z Ù zPwÙ Bw).
Algo semelhante ocorre na matemática. Todos os números podem ser definidos como
conjuntos de conjuntos equinuméricos. Logo, os números podem ser eliminados em
termos de conjuntos e da correspondência biunívoca entre conjuntos. Como
conjuntos, por sua vez, podem ser reduzidos a funções proposicionais
extensionalmente equivalentes, eles também podem ser eliminados. Mais do que
uma "teoria sem classes" (no class theory), Russell estabelece nos Principia
Mathematica (1910-13) uma teoria sem classes e sem números. A redução da
aritmética à teoria de conjuntos e esta à lógica, adicionada ao fato de que, em
geral, não se assume algo como a existência de objetos lógicos, favorece a
suposição de Dummett (1991, p. 301) de que o logicismo é, em seu caráter, mais
nominalista que platonista.
O parágrafo anterior contém uma contaminação modal. Números e conjuntos podem
mas não precisam ser definidos dessa maneira. Como uma mera possibilidade
teórica pode ter implicações ontológicas tão fortes como um holocausto de
entidades subsistentes? A justificativa de Russell para a aplicação da navalha
de Ockham é de caráter lógico-metodológico. Em Logical Atomism(LA, 1924, p.
326) ele explica:
Quando algum conjunto de supostas entidades tem propriedades lógicas
adequadas, revela-se, em muitos casos, que as supostas entidades
podem ser substituídas por estruturas puramente lógicas compostas de
entidades que não têm tais propriedades. Neste caso, ao interpretar
um corpo de proposições que até o momento se cria ser sobre as
supostas entidades, podemos substituir as estruturas lógicas sem
alterar qualquer detalhe do corpo de proposições em questão. Isso
significa uma economia, pois entidades com propriedades lógicas
adequadas sempre são inferidas, e se as proposições nas quais elas
ocorrem podem ser interpretadas sem fazer tais inferências, a razão
para a inferência falha, e nosso corpo de proposições é assegurado
contra a necessidade de um passo duvidoso. O princípio pode ser posto
da seguinte forma: "sempre que possível, substitua inferências de
entidades desconhecidas por construções de entidades conhecidas".
A regra metodológica é: quanto menor o número de entidades supostas, menor a
possibilidade de enganos. A teoria das descrições é um artifício lógico que
pode ser usado em favor da economia ontológica. Mas aderir a tal teoria não
implica necessariamente uma conversão a um nominalismo radical. Dentre outros,
Russell continua admitindo a intuição imediata de formas lógicas.
Mas o que ocorre com os habitantes primogênitos do Reino do Ser, os conceitos e
as proposições? Surpreende a escassez das referências de Russell após On
denotinga tais entidades, antes tão fundamentais na sua ontologia. Em todo
caso, fica claro que ele prefere nesta fase expressões nominalistas como
"funções proposicionais" em vez de "conceitos-classes" (Quine 1981, p. 77). De
fato, embora a expressão "proposição" ocorra em textos posteriores, ela já não
tem mais o sentido platônico de antes. Russell não aponta mais para a
subsistência de entidades não mentais e não lingüísticas. Uma ação
metafisicamente correta exigiria, no mínimo, uma explicação para a extradição
destas entidades, antes tão proeminentes.
Na verdade, Russell apresenta uma justificativa para o seu desaparecimento.
Esta justificativa, parece-me, é exatamente o motivo da passagem considerada
tão obscura na segunda parte de OD, onde ele critica a teoria de Frege.
Proposições e conceitos, no sentido do Platonismo Proposicional, são eliminados
conjuntamente com o sentido de Frege, alvo explícito do texto. A inclusão de
uma crítica a Frege é estranha se a intenção de Russell fosse apenas a de
combater a ontologia meinonguiana. De fato, Russell percebe que a tese da
subsistência de entidades não existentes exercia na sua ontologia pré-OD uma
função semelhante a uma das funções do sentido na teoria semântica de Frege.
Ambas as teorias funcionam como garantia da significatividade de expressões sem
referência. Para Frege, a expressão "o atual rei da França" tem sentido, mesmo
não havendo uma denotação correspondente; para Russell o atual rei da França
tem Ser, mesmo que não tenha existência. Em uma correspondência de Russell a
Meinong, de 15 de dezembro de 1904, o próprio Russel identifica a sua noção de
subsistência com a noção de sentido em Frege:
Até o presente momento acreditava que todo objeto precisaria, num
certo sentido, ser, e achava difícil reconhecer objetos sem-Ser. Num
caso como o da montanha de ouro ou do quadrado redondo é preciso
distinguir entre sentido e referência (de acordo com a distinção de
Frege). O sentido é um objeto e tem Ser, enquanto a referência, por
outro lado, não é um objeto. (Citado por Smith 1985, p. 348, grifo
meu)
Além disso, na passagem acima citada de TNT, a subsistência de não existentes é
justificada a partir da noção de significação: "Existem dificuldades acerca
deste ponto de vista; pois o conceito 'a diferença entre A e B' pode parecer
ter um significado perfeitamente claro e definido, mesmo quando não há tal
diferença." (TNT, p. 505, grifo meu)
A rejeição do sentido fregiano representa, a rigor, a superação da teoria da
subsistência de conceitos e proposições. Mas a rejeição da subsistência de
conceitos traz uma dificuldade técnica para a filosofia da matemática. Os
conceitos subsistentes foram usados nos argumentos que garantiam o reservatório
de infinitas entidades necessário para a definição dos números. A sua supressão
torna os argumentos obsoletos, forçando Russell, assim, a tomar a existência de
infinitos objetos como um axioma lógico, que permanece o "calcanhar de Aquiles"
do logicismo maduro de Russell.
5. Russell Maduro: entre Platonismo e Nominalismo
Em vários momentos após 1905 Russell faz concessões ao platonismo. Em The
Problems of Philosophy(1912) Russell atribui aos universais diádicos (as
relações) um tipo de ser diferente do ser atribuído às coisas materiais e do
ser da consciência e dos sense data, e afirma que a doutrina das idéias de
Platão é uma das teorias com maior sucesso para explicar tal tipo de ser. A
posição madura de Russell é, pois, intermediária entre o platonismo e o
nominalismo. Em 1943, ao elaborar a resposta às objeções de Feiblemann na
coletânea de Schilpp (1986, p. 686), Russell declara: "Eu deprecio slogans. Eu
não me descreveria como um nominalista ou como um realista; em relação a
qualquer universal proposto, eu o examinaria, e esperaria algumas vezes admiti-
lo, outras vezes rejeitá-lo."
A decisão sobre a subsistência ou não de um determinado universal se dá numa
análise lógico-semântica. O princípio metodológico fundamental neste
procedimento é o de estabelecimento do mínimo vocabulário. Um vocabulário para
uma determinada teoria é dito mínimo quando ele satisfaz duas condições: (1)
nenhum termo do vocabulário pode ser definido com auxílio dos outros termos do
vocabulário; e (2) todas as proposições da teoria podem ser formuladas com
todos os termos do vocabulário, mas não com apenas um subconjunto dele. No
exemplo citado, um vocabulário com os termos pai,filho,tio,primo etc. poderia
ser reduzido ao vocabulário progenitor. Na filosofia da matemática a teoria das
descrições torna possível construir um vocabulário mínimo lógico que não
contenha os termos "classe", "o" ou os numerais. A existência de uma entidade x
não pode ser consistentemente negada por uma determinada teoria se o termo que
denota x pertence ao vocabulário mínimo desta teoria. Em Russell está,
portanto, a origem do famoso princípio de comprometimento ontológico de uma
teoria, reafirmado por Quine.
Aplicando esse princípio ao problema dos universais, temos a seguinte situação:
os universais são sempre expressos por termos que não são nomes próprios
lógicos. De modo geral, em qualquer enunciado ocorre pelo menos um termo
universal. Não somente adjetivos e substantivos, mas também verbos como "ver",
"amar" e preposições como "em" expressam universais. Logo, universais são
presentes em quaisquer proposições. Segundo Russell, Hume e Berkeley não
perceberam isso porque ignoraram em suas análises os universais diádicos ou
relacionais. Em RUP ("On the Relations of Universals and Particulars", 1911),
Russell distingue entre universais que estão em vários lugares ao mesmo tempo
(qualidades como vermelho ou quente) e universais que não ocupam nenhum lugar
no espaço (as relações). Os universais relacionais explicitam melhor a
necessidade da sua subsistência na medida em que não podem ser interpretados
como objetos particulares descontínuos como os universais monádicos empíricos.
Em a fica ao norte de b, a expressão "ficar ao norte" denota um universal que
subsiste independentemente do pensamento, que não está em nenhum lugar no tempo
e no espaço e que não é material nem intencional. Universais não existem, eles
"subsistem" ou "têm ser". Pensamentos, sentimentos e objetos materiais existem.
O ser, diferentemente do existir, é atemporal.
Russell defende a impossibilidade de uma rejeição definitiva e absoluta de todo
e qualquer universal fazendo uso de um argumento comum aos chamados "filósofos
da semelhança" (Price, 1953). A tese nominalista de que os universais são meros
nomes não é sustentável, afinal, se um termo geral é aplicável a x e a y,
então, mesmo ignorando o fato de que x e y devem partilhar um universal comum,
deve subsistir entre x e y uma relação de semelhança, e, então, no mínimo, esta
relação é um universal (RUP, p. 107). A relação de semelhança não é mais uma
dentre outras relações, mas, sim, mais fundamental, posto que as outras
relações como "ter a mesma cor que" ou "estar dentro de" só são aplicáveis
(como universais) na medida em que diferentes pares de objetos se relacionam de
tal e tal modo.
Este argumento, porém, não permaneceu isento de críticas. Quine rejeita-o, pois
enquanto o termo "é similar" não aparecer como valor de uma variável
quantificada, não há nenhum comprometimento ontológico com uma entidade
abstrata correspondente. Pode-se dizer que x e y são semelhantes sem se
comprometer com a existência da semelhança de x com y. Para um nominalista como
Quine, o argumento comumente usado para a reificação de entidades é falacioso:
pode-se dizer "Helena é bela" sem se comprometer com a reificação da entidade
abstrata a beleza de Helena. Penso que Russell, ainda que tenha "semantizado" a
ontologia com seu princípio do mínimo vocabulário, não concordaria com a
semantização radical proposta por Quine. Mesmo sem quantificar existencialmente
sobre o predicado diádico da semelhança, a predicabilidade verdadeira de um
termo geral aos termos que denotam a e b só pode ser justificada se ae b forem
ontologicamente similares. A similaridade tem um fundamento in re.
Price apresenta uma outra crítica em Universals and Resemblance (1953,
reimpresso em 1998): do fato de que em qualquer enunciado sempre ocorre pelo
menos um termo universal, não podemos inferir que "existam" universais. Seria
necessário, para se chegar a tal conclusão, uma premissa adicional, a saber,
que todo termo geral denota necessariamente uma entidade universal. "A
filosofia dos universais tem simplesmente repetido sempre novamente o princípio
que deveria ser provado, o princípio de que toda palavra geral representa um
universal; adicionando, então, que o que é óbvio seeste princípio é
verdadeiro, a palavra 'semelhança' é um caso deste" (Price, 1953, p. 35, grifo
no original)
Para mostrar que a tese de que todo termo geral denota um universal não é
correta, Price introduz a distinção entre diferentes níveis de semelhança:
existem diferentes semelhanças (de primeira ordem), por exemplo, entre dois
objetos vermelhos (digamos S1) e entre dois objetos redondos (digamos S2). Se
S1 e S2 são ambas relações de semelhança, então existe entre elas também uma
relação de semelhança, porém de segunda ordem. Com outras palavras, a própria
universalidade é um universal. Assim, a universalidade é uma instância de si
mesma. Mas isso é contraditório, pois uma instância de um universal é ipso
factoum particular. Tal crítica é, parece-me, falaciosa. Se admitimos, como
Price, que existem diferentes níveis de semelhança, como ele faz, então não é
correto afirmar que a universalidade é uma instância de si mesma. Na verdade, a
universalidade de primeira ordemseria, então, uma instância da universalidade
de segunda ordem. Um particular é uma instância de um universal de primeira
ordem, e não há nada de contraditório em se supor que uma universalidade de
primeira ordem seja uma instância de um universal de segunda ordem.
Em suma, orientado pelo princípio de economia ontológica, Russell procura
avançar em direção ao Nominalismo, tomado como ideal regulativo epistemológico:
quanto menor o número de entidades pressupostas, mais segura é uma teoria. A
decisão entre Platonismo e Nominalismo permanece, nesse sentido, aberta. A
convicção de Russell, de que a lógica é mais fundamental do que a metafísica,
justifica-se, dentre outros motivos, porque o avanço em direção ao Nominalismo
é resultado do desenvolvimento dos procedimentos eliminativos na lógica: "até
que ponto é possível seguir na direção do nominalismo, isso é, para mim, uma
questão não resolvida que, se pode ou não ser completamente resolvida, de
qualquer forma, só pode ser investigada com uso da lógica matemática". (PoM,
introdução à 2. ed., p. Xix).