O tecido quebradiço das ilusões: Nietzsche sobre a origem da arte e da
linguagem
Na "Tentativa de uma autocrítica", com a qual Nietzsche complementou sua obra
de estréia, "O Nascimento da tragédia", ele exige dos seus leitores: "vocês
deveriam (...) aprender a rir, meus jovens amigos, a menos que vocês queiram
permanecer pessimistas por inteiro; talvez vocês, enquanto sorridentes, em
algum momento mandem todo consolo metafísico para o inferno"2. Que razões há
para querer permanecer pessimista? Por que um pessimista deveria rir? Não
ocorre que um pessimista raramente está em condições de rir? Como pode alguém
imaginar um alegre, isto é, sorridente, pessimista? Por que um sorridente
pessimista deveria poder abrir mão de toda metafísica? O que Nietzsche entende
sob "consolo metafísico"?
1.
A questão sobre a característica do pessimista sorridente deixa-se responder, a
princípio, negativamente: o ponto de vista psicológico individual, segundo o
qual uma risada pessimista pode ser encontrada naquele cujas "intenções, em
cuja realização ele investe tudo, não são atingidas, ou naquele que vê toda sua
vida com todas as suas exigências se desmanchar no nada"3; Nietzsche caminha na
direção contrária de seu conceito do riso como expressão da afirmação de uma
concepção trágica do mundo. Um riso desse tipo não se origina nem no esforço
vão pela compensação de uma perda, nem na dissonância cognitiva, à qual o
sociólogo Helmut Plessner reduz antropologicamente o riso.
Na consideração trágica do mundo, para a qual o repulsivo e o absurdo formam a
constituição fundamental da vida no mundo, o riso do pessimista é, segundo
Nietzsche, expressão de uma consideração desilusionadora (desillusionierenden)
da mentira. Mas a que mentira se refere Nietzsche? Qual a relação entre mentira
e riso? De qual ilusão o riso liberta? A resposta de Nietzsche é:
Há apenas um mundo e ele é falso, cruel, contraditório, sedutor, sem
sentido. (...) Um mundo assim é o verdadeiro mundo (...). Precisamos
da mentira para triunfarmos sobre essa realidade, essa "verdade",
i.e., para viver. (...) Que a mentira seja necessária para se viver é
parte desse caráter terrível e questionável da existência4. (grifos
no original)
O homem vive num mundo impiedoso, no qual esses poderes elementares, tais como
a crueldade, a repulsa e o absurdo, predominam. É uma in-heróica necessidade de
consolo pelo homem num mundo obscuro como esse, a partir do qual a arte surge.
Nele subjaz a intuição da repulsividade da existência humana, cujo terror ela
encobre com um véu de beleza, tornando-a, desse modo, invisível. Quando
Nietzsche designa a arte como uma mentira, não é porque ela ponha uma ilusão
intencional no lugar da verdade. Sua mentira consiste no fato de que ela
apresenta um estado de coisas de um modo tal que ele não é na realidade: a
saber, sendo permanente, ordenado e belo. Oferecendo a arte o sentimento
tranqüilizador de uma pacífica permanência e de uma bela ordem, ela suaviza a
crueldade, sem eliminá-la: o véu de beleza da arte despotencializa a crueldade,
e o terror é, no entanto, suficientemente transparente para deixar entrever a
cruel, absurda e terrível existência humana. Desse modo, a mentira lembra a
bela aparência na medida em que aquilo que tomamos como realidade é um tecido
quebradiço de ilusões, isto é, mentiras. Se o fundamento dionisíaco da arte
sempre nos chama de volta à memória do doloroso caráter fundamental da
existência humana, então o apolíneo na arte faz com que o esqueçamos. A
tragédia do homem consiste no fato de estar consciente de que ele, com esse
mundo de aparências construído por ele mesmo, flutua sobre um abismo, sem que
ele recaia em resignação, já que ele, através de uma auto-ilusão consciente
para além da verdadeira natureza da vida humana, deve descobrir para si o valor
dessa vida.
Se observarmos bem nossas considerações, então constataremos um déficit: nem
está claro como devemos caracterizar o riso do pessimista, nem é compreensível
por que o pessimista sorridente pode abrir mão de toda metafísica e de seus
consolos. Tornemos presente para nós o que Nietzsche entende por "consolo
metafísico", a fim de obter uma resposta para nossas perguntas não respondidas.
Como pudemos experienciar, a vida humana está à mercê de potências elementares,
entre as quais estão não apenas a crueldade, o terror e o absurdo, mas também a
transitoriedade e um devir permanente. A nostalgia por um mundo livre dessas
potências precede não apenas a arte, mas também o conhecimento. Na medida em
que Nietzsche equipara a vontade de verdade com a exigência por um "mundo de
permanência"5, ele parte da suposição de que o esforço em direção da verdade e
do conhecimento se baseia numa pressuposição, na qual se deve acreditar, sem,
no entanto, poder verificá-la. Pois aquilo que se bate para fundamentar o
conhecimento é resultado da força formadora, simplificadora e refiguradora do
homem e, portanto, uma ilusão6. No pensamento platônico de um mundo
"verdadeiro" revela-se para Nietzsche a projeção de um mundo retirado do devir
e da transitoriedade; a vontade metafísica de verdade é, segundo Nietzsche, em
última instância, nada além de uma "forma da vontade de ilusão"7. Uma ilusão
desse tipo é o consolo metafísico, ao qual se apega o pessimista, na medida em
que a ele seu riso não torne transparente a inveracidade de uma ilusão desse
tipo. Entretanto, mesmo o pessimista sorridente se apega à aparência da ilusão,
que ele nem condena moralmente, nem desmascara esclarecidamente (aufklårerisch)
como mentira.
Mesmo que Nietzsche fale de pessimismo, não se deve entender sob esse termo um
pessimismo ético. De Schopenhauer, Nietzsche herda o pensamento fundamental
pessimista da constituição cruel do ser, o qual ele elabora em termos de
crítica do conhecimento, sem extrair as conseqüências éticas de Schopenhauer.
Em Nietzsche as condições particulares da percepção do temor da crueldade
conhecida adquirem um efeito fenomenológico, que torna essa percepção algo
estético: ela se realiza exatamente no riso e, portanto, num temor misturado
com prazer. Enquanto a vontade de verdade, isto é, o impulso do conhecimento
teórico, se apóia na representação do esclarecimento dos homens sem qualquer
ilusão sobre as verdadeiras potências de sua existência, a filosofia deve,
segundo Nietzsche, ser tão destrutiva quanto criativa, a fim de oferecer uma
resistência efetiva ao pessimismo prático: destrutiva, na medida em que ela
libera o conflito das ilusões com as potências elementares de sua existência;
criativa, no sentido de que ela combate contra a tendência do pessimismo ético.
Essa filosofia é trágica, como Nietzsche a caracteriza, porque à exigência de
veracidade num mundo de ilusões mentirosas se contrapõe o fato de que essa
exigência é apenas relativamente possível de se realizar8. Mas como uma
exigência desse tipo é possível de se realizar? As considerações gnosiológicas
de Nietzsche não contradizem a exigência de veracidade e dão razão ao riso, no
qual se acaba a moça da anedota relatada por Aristóteles sobre a excêntrica
estranheza ao mundo (Weltfremdheit) de um dos primeiros filósofos?
Se nos lembramos do que Nietzsche, na supracitada "Tentativa de uma
autocrítica", afirma sobre o pessimista sorridente, então não encontramos de
modo algum contradição entre suas reflexões gnosiológicas e o que foi chamado
por ele de exigência de veracidade. O discurso sobre o aprender do riso,
dirigido aos amigos fictícios, relaciona-se ao fato de querer permanecer
pessimista de um outro modo. No modo diferenciado de querer ser um pessimista,
está pressuposto que é possível resistir à exigência de veracidade, mesmo que
de forma limitada. Essa possibilidade será explicada na segunda parte de minha
exposição.
2.
Na pré-história da filosofia, tal como Aristóteles a narra, encontram-se
sabidamente a filosofia e o riso, e de um modo que para a filosofia é pouco
lisonjeiro. O estupefato Tales, que, no seu maravilhamento sobre o que ele acha
que vê, cai num buraco diante dos olhos de uma moça, oferece uma imagem do
ridículo. Por trás dessa anedota, esconde-se um fenômeno que prende a atenção
de Aristóteles, a saber, a admiração como início do querer saber. O que é tão
importante na admiração, que faz com que Aristóteles a mencione enfaticamente
no início do livro 1 da "Metafísica"?
Pelo que é habitual, o homem não se admira; ele não se incomoda com o que vê na
vida cotidiana. O admirar retira o homem desse repouso da acomodação. A ele o
admirável aparece como maravilhoso, confuso, incompreensível9. Ao homem
maravilhado o mundo se mostra modificado, sem que seu saber o ponha na condição
de compreender o que o deixa maravilhado. O óbvio e familiar tornou-se
enigmático. Na apresentação de Aristóteles a experiência do não-saber constitui
o início da filosofia: para escapar do não-saber, os homens se esforçam pelo
saber exatamente pela compreensão, não em função da utilidade. O maravilhar-se
desperta a exigência de compreender, na medida em que o não-saber no homem
ensina-lhe algo; o maravilhar-se através do incompreendido é o estímulo para
procurar por explicações e princípios, os quais podem tornar compreensível o
incompreendido.
Como se pode aprender do Sócrates platônico, o estar de acordo faz parte do
compreender do mundo, cujo medium é a linguagem. A descoberta da esfera dos
conceitos de linguagem por Sócrates dá origem a esse relacionamento: na
linguagem trazemos à expressão para outros nossas experiências, para torná-las
compreensíveis e explicáveis para nós mesmos. Esse esforço os diálogos
platônicos apresentam como uma necessidade que define um fim em si mesmo,
independentemente das funções pragmáticas da manutenção da vida10. Nietzsche
compartilha com Platão o ponto de vista do significado elementar da linguagem
para a compreensão humana de si mesmo e do mundo, mas duvida que a necessidade
por acordo lingüístico seja livre de todos os objetivos práticos.
A dúvida de Nietzsche é resultado da suposição de que a palavra e a coisa
designada constituem duas esferas totalmente separadas entre si. A controvérsia
introduzida no diálogo platônico "Crátilo", se a origem das designações
lingüísticas advém de uma convenção ou de uma semelhança natural com as coisas,
é, para Nietzsche, vazia, na medida em que palavra e coisa, conceito e objeto
designado constituem âmbitos diversos. Quão extensa é a suposição de Nietzsche
pode-se perceber, ainda que insatisfatoriamente, se se lembra da preocupação de
Hegel de que a esfera conceitual não está totalmente preparada para abranger a
realidade daquilo que se encontra mais próximo. A tese kantiana de que aquilo
que chamamos de conhecimento das coisas repousa sobre representações
universais, as quais os conceitos mediatizam, Hegel sabidamente radicaliza, na
Fenomenologia do espírito, na suposição de que o ser imediato em geral não pode
ser trazido lingüisticamente à expressão. Pois, em última análise, "não é de
qualquer modo possível que possamos de alguma forma dizer de um ser sensível,
que temos em mente"11, pois o conceito existe em algo outro que a realidade
sensível.
Nietzsche compartilha com Hegel o ponto de vista de que é absurdo supor que a
existência de uma palavra possa ser equiparada com a existência de um estado de
coisas que seja por ela designada. No que tange à fundamentação dessa crítica,
a concepção nietzscheana de linguagem considera uma outra possibilidade do que
a de Hegel, a saber, a indagação de que na abordagem dos estados de coisas em
geral não se trata de querer saber como as coisas são constituídas em si: um
conhecimento propriamente dito da verdade não existe. De acordo com Nietzsche,
as palavras são apenas nomes, designações das coisas, com cujo ser real elas
não têm nada a ver; palavras são convenções arbitrariamente estabelecidas, que
servem a fins práticos. A partir desse fundamento, o desempenho gnosiológico
conceitual não consiste em possibilitar um acesso às coisas tal como elas
realmente são. O homem não tem qualquer acesso às coisas tal como elas
realmente são uma dificuldade que ele, segundo Nietzsche, supera com a
linguagem, na qual, no entanto, as designações e as coisas não se recobrem.
Pois a linguagem apresenta tão pouco quanto ela afigura; o que ela designa é
apenas a relação das coisas com os homens: não as próprias coisas adentram a
consciência, mas o modo como nósnos postamos diante delas.
Essa tese não significa apenas que ao homem é negado acesso à essência das
coisas, mas ela destaca também mais um aspecto: que a linguagem é constitutiva
para o acesso humano ao mundo. A linguagem não é qualquer espelhamento do mundo
objetivo, real, verdadeiro ou factual, mas uma vocalização de nossa relação com
as coisas na forma de metáforas. Somente o esquecimento de sua metaforicidade
leva à ilusão de que a linguagem teria uma relação direta com a verdade e com a
essência das coisas. Na linguagem, trata-se, em última instância, não de
conhecimento, mas do modo mais elementar da auto-afirmação humana no mundo, ao
qual a linguagem serve na medida em que ela espelha a perspectiva na qual
percebemos as coisas e as usamos para nossos propósitos.
Nietzsche reúne essas reflexões numa anotação de aula de 1872, cuja premissa é
que na linguagem não é veiculada qualquer episteme, mas sim uma
doxa
12. Dessa premissa, Nietzsche extrai a conseqüência de sua suposição de que o
problema da verdade na linguagem é irrelevante, tendo, de qualquer modo, um
interesse estético. A conclusão nietzscheana de que a linguagem seria retórica,
compreende sob "doxa" todas aquelas opiniões gerais sobre o mundo, as quais os
homens sem levar em consideração seus pontos de vista individuais sempre
compartilham entre si, na medida em que eles tenham ratificado essas opiniões
no seio de sua práxis lingüística comunicativa.
Com a premissa de que a linguagem seja retórica, o teor significativo do
conceito de aparência modifica-se em Nietzsche depois de 1872: a aparência não
é mais a expressão da nostalgia pela salvação diante de um mundo de crueldade e
dor inimagináveis, mas expressão do domínio da dificuldade constitutiva do
homem por não ter acesso à essência das coisas13. Para entender melhor esses
pensamentos, é importante indagar que razões levam Nietzsche a conceber a
linguagem como retórica.
À questão, "o que define a linguagem como retórica?", recebemos a seguinte
resposta: a passagem de opiniões a outros. Na consideração de Nietzsche, o
esforço nunca totalmente terminado da retórica de tornar algo crível, sua
origem menos no convencimento do que no dilema de que entre a opinião (doxa) e
conhecimento capaz de verdade (episteme) não há qualquer alternativa elegível.
Há apenas a doxa e esta é, em sua plausibilidade, dependente da concordância de
outros. Como na retórica, trata-se, também na linguagem, de obter a
concordância de outros através do tornar plausíveis as opiniões.
Potente para o convencimento é o modo como nos postamos diante das coisas
somente se também outros concordam com ele. Se outros ratificam nossa relação
às coisas, então ela tem algo de convincente, isto é, plausível. A alternativa
que encontramos nos diálogos platônicos: doxa ou episteme, opinião ou saber,
ponto de vista ou conhecimento, esvai-se para Nietzsche na medida em que o
homem domina com a aparência (Schein) a circunstância de não ter acesso à
verdade e à essência das coisas. O que Nietzsche entende por aparência não são
as formas de aparecimento (Erscheinungsformen) das coisas, mas a imagem
especular das opiniões humanas.
Pressupondo-se que a linguagem precede a consciência e pode ser entendida como
uma designação com o propósito de um entendimento, deve-se tirar a conclusão de
que o homem não pode ser retirado do círculo de seu horizonte de entendimentos
para se reportar a um ser em si mesmo que preceda o entendimento. Diante dessa
dependência incontornável, somente o niilista recai, segundo Nietzsche, em
resignação, mas não o pessimista sorridente, às voltas com sua exigência de
veracidade. É pensável que o pessimista sorridente de Nietzsche pode
interpretar esse saber ainda antes do renascimento da hermenêutica como
advogado de uma pretensão de verdade que defende o provável contra a pretensão
de comprovação e certeza da ciência.
Essa possibilidade, presente nas reflexões filosóficas de Nietzsche sobre a
linguagem, não é encontrada nos escritos tardios. Na década de 1880, Nietzsche
integrou em seu diagnóstico trágico-pessimista da existência humana a figura do
filósofo como um criador mais elevado de valores, que deixou para trás o riso
do pessimista. Mas o que tem valor? Aquelas verdades sem as quais o ser humano
não se sustenta, apesar de elas serem fictícias e ilusórias devido à sua
fixação lingüística. A verdade não é nenhuma tomada de consciência receptiva de
algo que seria determinado em si e que só pode, então, ser encontrado ou
descoberto, mas sim algo criado, imaginado. Fiel à sua premissa de que o que é
percebido não coincide com a palavra que usamos para um contexto, Nietzsche
compreende o "conhecimento (...), segundo sua essência, como algo posto,
imaginado, falsificado"14. A atividade do filósofo, que não é mais um
pessimista alegre, é caracterizada por essa espécie de conhecimento, devido ao
qual seu "modo de pensar amadureceu através da expressão mais elevada do
pessimismo"15, transformou-se em um criador prazeroso, um legislador sereno e
um "artista mais elevado"16 de conceitos: aquelas palavras cujo sentido e
significado os filósofos "em primeiro lugar fazem, criam, instituem e nos
convencem delas"17. Essa compreensão da filosofia é testemunhada pelo
Zaratustra de Nietzsche, no qual se faz seriamente, no âmbito da linguagem, a
exigência levantada para si mesmo de que o filósofo deve criar valores.
Não posso expor a conexão entre linguagem, valores e filosofia em Nietzsche sem
antes investigar seu conceito gnosiológico a partir do qual a afirmação na Gaia
ciência alcança significado: há algo novo na história, quer dizer, que "o
conhecimento queira ser mais do que um meio"18. O que é surpreendente nisso? E
o que é conhecimento científico se não meio para um fim?
3.
O que Nietzsche enfatiza na Gaia ciênciafoi observado várias vezes por ele já
no tempo de sua atividade docente em Basel, quando então critica, na paixão da
ciência pelo conhecimento, seu desejo insaciável de sempre saber cada vez mais,
sem que o valor cognitivo de seus conhecimentos lhe pareça problemático de
alguma forma. Nietzsche é testemunha de um acúmulo explosivo do conhecimento
nas ciências na segunda metade do século XIX que nunca houve antes. Esse
acúmulo, segundo Nietzsche, torna a ciência cega em relação ao valor de seus
conhecimentos. Seu empenho a dirige indiferentemente a tudo o que seja
cognoscível, mesmo às verdades mais incipientes, ao "verdadeiro em toda forma,
seja ela a mais simplória" , mas não às "interpretações mais profundas da
vida".19 Essa tendência possui o perigo de que o progresso científico, devido à
sua enorme eficiência imanente, torne-se sem sentido.
A premissa de Aristóteles, de que o desejo de saber seria uma paixão originária
do ser humano que não teria nenhum outro fim além do discernimento20, foi já
tomada por Rousseau como inválida, quando ele chama a atenção, no Tratado sobre
a desigualdade, para os efeitos culturais das ciências. Se a ciências se
dedicam àquilo que parece ao ser humano o mais digno de ser sabido, então essa
preferência, segundo Rousseau, sucumbe à funesta falácia de que o conhecimento
científico e o saber prático-moral necessariamente derivam um do outro21.
Em Nietzsche, a suspeita de Rousseau avoluma-se na tese de que o impulso de
saber próprio da ciência não deve ser confundido com uma cultura particular,
por exemplo a sociedade do saber. Ciências florescentes seriam possíveis mesmo
em uma cultura estagnada, até mesmo barbarizada; o que demonstra que o
conhecimento científico não seria um representante da cultura. A fé na
onipotência do saber fundar-se-ia na dominação da natureza em conceitos e
números, mas fracassaria no aprofundamento do conteúdo da vida e de sua
estrutura, pois o impulso de conhecimento almeja o conhecimento como tal, em
função desse próprio conhecimento.22 A utilidade da ciência consiste no aumento
do poder de apropriação do homem sobre a natureza, no esclarecimento sobre
visões de mundo religiosas e na destruição de imagens tradicionais do mundo, em
lugar das quais a ciência nem se coloca, nem produz novas imagens de mundo. As
conseqüências niilistas que surgem disso não podem ser ultrapassadas pela
ciência, pois ela não é nenhum fundamento para uma compreensão de mundo pós-
niilista.23
Originalmente, os conhecimentos das ciências teriam sido meio para algo que
consideramos que justifica nosso esforço. O valor deles como meio começa a
tornar-se duvidoso quando se levanta a questão de para que os conhecimentos da
ciências seriam meios. A que fim correspondem os conhecimentos? Eles devem nos
servir para quê? Segundo Nietzsche, a ciência não pode responder a essas
questões, e, na verdade, por dois motivos.
Por um lado, a questão pelo valor da existência humana escapa à ciência: ela é,
segundo Nietzsche, cega para o significado da questão pelo valor, uma vez que
ela não questiona o para quê, o para onde e o de onde da existência humana, mas
sim pressupõe essa existência. Que seu esforço cognitivo não tome conhecimento
dessa pergunta é recebido por Nietzsche como espantoso, mas decide a resposta à
questão valorativa sobre se é possível ou não atribuir um sentido à existência
humana.
Por outro lado, a cognição científica não tem outro fim do que ser o fundamento
para outros conhecimentos. A tarefa da ciência é ver as coisas como elas são.
Para alcançar essa meta, a ciência é obrigada sempre de novo a refletir sobre
seus conhecimentos, se necessário corrigi-los e continuar a desenvolvê-los. Por
isso a ciência segue a lógica de seus próprios métodos e finalidades teóricas,
sem perguntar pelo sentido de sua ação na totalidade da cultura. Isso não seria
mais problemático, conquanto a paixão do desejo de saber não levasse a ciência
a constantemente querer saber mais. Seria característico da ciência moderna uma
pesquisa cega pelo conhecimento e eternamente sedenta pelo saber; triunfam os
"desejos cegos de conhecer tudo a qualquer preço"24 sem refletir sobre a
dramática conseqüência.
Essa conseqüência é dramática porque surge uma inversão fatal, que leva a que o
"orgulhoso europeu do século XIX" conheça a constituição do mundo, sem o saber
prático para viver nele.25 A partir disso, Nietzsche conclui que não há mais
nenhuma representação clara do que seja digno de esforço e de se saber. Somente
quando não existem concepções claras sobre o que deveria nos ser digno de
esforço e de se saber, a pesquisa eternamente sedenta de saber avança
irrefreável sobre tudo potencialmente conhecível. A instância à qual Nietzsche
confia a força para ajuizar legitimamente o que é digno de se saber é a
Filosofia. A questão sobre a forma em que a filosofia realiza um tal juízo
parece ter sempre colocado Nietzsche em dificuldades.
No fim de sua palestra inicial, em Basiléia, sobre "Homero e a filologia
clássica", de 28 de maio de 1869, ele apresentou a seus ouvintes a sugestão de
cercar a atividade do cientista (filólogo) com uma visão de mundo filosófica.
Dado que falta à Ciência o poder de dar a suas idéias uma forma universal,
seria tarefa da Filosofia reunir o saber múltiplo em uma totalidade
unificada.26
No âmbito do escrito sobre a tragédia, Nietzsche reflete sobre uma outra
possibilidade: a formação de uma forma de vida que sublima a ânsia pelo saber,
na medida em que, através da transposição do aprendido na práxis, o saber é
contido em limites e ajuizado segundo o valor para essa forma de vida. A forma
de vida que Platão, na Politéia, e Aristóteles, na Ética a Nicômaco,
caracterizam como a mais nobre e elevada divide-se na forma de vida do homem
teórico incorporada por Sócrates e do homem filosófico incorporada pelos
pensadores pré-socráticos, pois eles possuíam a virtude incomparável de
ajuizar, segundo o inabitual e espantoso, e de formar suas vidas para uma
existência mais elevada. Nietzsche coloca esse entendimento da Filosofia na
seguinte formulação: "eu estimo um filósofo na medida em que ele esteja em
condição de dar um exemplo"27. O filósofo é exemplar, porque ele refere a
paixão avassaladora do desejo de saber novamente à sua própria forma de vida,
ao procurar obter autoconhecimento. E nisso consiste a realização, incomparável
e digna de ser imitada, do filósofo: submeter o impulso cognitivo à vontade de
autoformação.
Evidentemente, Nietzsche tomou essa possibilidade também como insuficiente, e
reflete sobre uma outra em Para além do bem e do mal, onde se diz que a
filosofia tem que criar valores. Dado que eles se realizam como uma escolha do
valioso e significativo, Nietzsche prefere o conceito de estimativas de valor
em vez de valores. Tais estimativas de valor nos permitem conhecer uma ordem no
ser que designamos como verdade, sentido, fim e unidade. Nietzsche chega a essa
concepção de valor através de sua compreensão do ser como um devir permanente.
A "intuição originária do ser" é o devir.28 Dessa indicação surge a dificuldade
de como deve ser possível conhecer alguma coisa, se somente há um devir. O
problema é que o próprio devir não é pensável. O conhecimento não é do devir,
mas sim de um ente. A partir da impensabilidade do devir, Nietzsche tira a
conclusão de que a confiança em um ser cognoscível tem que vir antes da vontade
de saber, para que o conhecimento humano seja possível. Os fundamentos para tal
confiança formam as estimativas de valor que projetam no devir um mundo-ente
(seiende Welt), um algo duradouro e "regularmente retornante"29. A tese de
Nietzsche de que a Filosofia teria que criar valores significa, no plano da
constituição do objeto de conhecimento, que é tarefa da Filosofia construir (ou
destruir) um horizonte de interpretação no qual a Ciência pode se desenvolver
(ou se desenvolveu). O conhecimento filosófico é a criação de tal horizonte. Em
Para além do bem e do mal, Nietzsche está claramente fascinado pelo pensamento
de que a Filosofia tem que criar estimativas de valor perspectivísticas para a
Ciência, que lhe dêem uma resposta à questão pelo seu para quê e para onde.
O impacto da crítica de Nietzsche à Ciência vem do fato de ela ter uma função
sistemática em diversos planos argumentativos. Partindo das questões de em que
medida o esforço cognitivo científico em geral tem sentido e de quais são as
conseqüências de sua dinamização, a crítica científica forma o modelo para a
metafísica da arte, a partir da qual ela passa ao perspectivismo da concepção
da linguagem de Nietzsche. No plano do perspectivismo, Nietzsche atenta, com o
conceito da estimativa de valor, não apenas para a multiplicidade de valores
possíveis, mas também para um problema genuinamente teórico-cognitivo: a
constituição de objetos possíveis de conhecimento através da relação a valores.
O princípio filosófico-vital das reflexões de Nietzsche exprime que o intelecto
humano está direcionado à percepção perspectivística, isto é, para a criação
interpretativa de seu mundo. Dado que o intelecto humano consegue vislumbrar
esse perspectivismo, ele tem que acreditar na realidade e conceber essa crença
como uma limitação perspectivística.
Sobrestima Nietzsche a filosofia quando exige dela que crie valores? Nietzsche
vê claramente que nenhum conteúdo formativo obrigatório é derivável do caráter
cognitivo das ciências modernas. Entretanto, suas análises perspicazes parecem
não aprisioná-lo na crença de enfrentar essa dificuldade ligando a formação
somente ao conteúdo cognitivo de uma disciplina, a saber, da filosofia. O
exemplo do neokantismo deixou claro para Nietzsche que o desenvolvimento da
filosofia diminui tal esperança. A filosofia não pode se furtar ao processo da
especialização, mesmo se ela não se submete a este processo da mesma forma como
outras ciências. O ímpeto para cada vez mais saber não se interrompe nem
perante a filosofia e a impele para uma fuga naquele tipo de história que
Nietzsche condena tão energicamente como a atração do ponto de vista histórico
antiquário: perceber todo o passado de modo igualitário como totalmente igual
em valor e digno de ser conhecido.
Novamente a questão: Nietzsche sobrestima a filosofia? Poder-se-ia responder
rapidamente a essa questão com um "sim", se se permanecesse nas diversas
indicações de Nietzsche sobre o problema da relação da filosofia com a ciência,
sem considerar suas reflexões sobre a linguagem, nas quais ele tira a
conseqüência de seu pessimismo teórico-gnosiológico e sua ontologia do devir.
Nietzsche não sobrestima a filosofia quando exige dela que crie valores.
Recordemos: se a linguagem é anterior à consciência e deve ser entendida como
uma designação para fins de entendimento, então o ser humano não pode sair do
círculo de seu horizonte de intelecção, a fim de se relacionar com um ente
anterior à compreensão, em si mesmo. Nietzsche conclui, a partir disso, que a
retórica é significativa na medida em que renova o caráter metafórico da
linguagem e rompe convenções pragmáticas do significado e do sentido dos
conceitos. As representações com que o ser humano faz para si, através da
linguagem, uma representação do mundo e então as ratifica como opinião sobre
ele com a ajuda da linguagem dirigida para outro mundo devem ser substituídas
pela retórica por outras representações. Se o homem faz para si uma imagem do
mundo através da linguagem, por meio da qual, por assim dizer, tem previamente
confiança nesse mundo, então as opiniões lingüisticamente sedimentadas sobre o
mundo devem ser transmutadas.
O filósofo que, como pessimista que ri, renunciou a todos os consolos
metafísicos, sabe do caráter modulável da linguagem. Seu riso não é de
menosprezo ou de desrespeito, mas sim a expressão da alegria no jogo com a
linguagem eda admiração da crença ingênua na identidade do conceito, da palavra
e do estado de coisas designado. Possivelmente, o pessimista capaz de rir
pressente que a dependência da natureza de nossas limitadas possibilidades
cognitivas abrange o aspecto de que se trata, em última instância, nas opiniões
e intuições trazidas à linguagem, de formas específicas de saber que são
herdadas em formas lingüísticas e que podem, assim, ser designadas como "saber
prático".
Quando Nietzsche, nos anos 1880, integra, em sua diagnose trágico-pessimista da
existência humana, a figura do filósofo que não pode prescindir da retórica
para a transvaloração dos valores, ele o faz porque para ele a retórica não é
uma disciplina auxiliar para transmissão de verdades, mas sim algo através do
qual chega à linguagem o que necessita da aprovação de outrem, a saber: aquilo
que tomamos como provável e verdadeiro, mas que somente na aprovação ou recusa
de outrem se mostra como convincente ou implausível, improvável ou provável.
Avaliações polêmicas, obscuridades e eventualidades caracterizam, segundo
Nietzsche, a retórica, através da qual ocorre uma influência decisiva sobre a
estimativa de valores e, na verdade, através da tentativa de alcançar a
aprovação de outros pela intuitividade, compreensibilidade e evidência da
exposição. A possibilidade de alcançar o verdadeiro é uma suposição sem a qual
não seria possível nenhum acordo. À pergunta sobre o que é a verdade, Nietzsche
responderia: uma convenção, um acordo, no fundo uma mentira em sentido extra-
moral. Para que a verdade? Com Nietzsche, pode-se responder: para podermos nos
orientar no mundo. E o que torna a verdade tão significativa? Precisamos dela a
fim de nos comunicar com os outros, fazê-los entender nossos pontos de vista. E
por que temos que nos comunicar com os outros? Porque sem eles não sabemos se
isso que nós tomamos como verdadeiro o é também efetivamente. Verdade é um
acordo, do qual nós nos certificamos involuntariamente quando nos comunicamos
com os outros através de nossos pontos de vista e opiniões. Como se poderia
caracterizar melhor essa espécie de compreensão da verdade do que como "alegre
pessimismo"?
Tradução:Rodrigo Duarte e Verlaine Freitas
1 Partes deste artigo foram apresentadas, em 2004, no Congresso GSA em
Washington (EUA), e em 2005, na UFMG, na Universidad Nacional La Plata
(Argentina) e na Universidad Católica Valparaíso (Chile).
2 NIETZSCHE, Friedrich. Die Geburt der Tragödie. In: COLLI, V. G.; MONTINARI,
M. (Hrsg.). Kritische Studienausgabe. (designado aqui por KSA"). München,
1988, v. 1, p. 22.
3 LIPPS, Theodor. Ästhetik. Psychologie des Schönen und der Kunst. Erster Teil:
Grundlegung der Ästhetik. Hamburg und Leipzig, 1903, p. 578.
4 NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1887-1889, KSA 13, 11 [415 93;, p. 193.
5 NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1885-1887, KSA 12, 9 [60], p. 365.
6 NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1884-1885, KSA 11, 25 [505], p. 146.
7 NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1887-1889, KSA 13, 14 [24], p. 229.
8 NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1869-1874, KSA 7, 19 [104], p. 453.
9 BRÖCKER, Walter. Aristoteles. Frankfurt/M, 1935, p. 18.
10 ANGEHRN, Emil. Interpretation und Dekonstruktion. Weilerswist, 2003, p. 25.
11 HEGEL. Phånomenologie des Geistes. Werkausgabe, Edição de E. Moldenhauer e
K. M. Michel. Frankfurt/M., 1973, v. 3, p. 85.
12 KOPPERSCHMIDT, Josef. Nietzsches Entdeckung der Rhetorik. Rhetorik im
Dienste der unreinen Vernunft. In: KOPPERSCHMIDT, Josef et al. (Hrsg.).
Nietzsche oder Die Sprache ist Rhetorik". München, 1994, p. 39-62 (aqui, p.
42).
13 KOPPERSCHMIDT. Nietzches Entdeckung der Rhetorik..., p. 43.
14 NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1884-1885, KSA 11, 26 [226], p. 209.
15 Ibidem, 34 [204], p. 489.
16 Ibidem, 26 [298], p. 489.
17 Ibidem, 34 [195], p. 486 et seq.
18 NIETZSCHE. Die fröhliche Wissenschaft, KSA 3, p. 480 (123).
19 NIETZSCHE. Menschliches, Allzumenschliches, KSA 2, p. 142.
20 ARISTOTELES. Metaphysik. 982 b, 20f.
21 ROUSSEAU, Jean-Jaques. Abhandlung über den Ursprung und die Grundlagen der
Ungleichheit unter den Menschen. Leipzig, 1970, p. 46; Emil oder über die
Erziehung. Leipzig, 1910, p. 8.
22 NIETZSCHE. Morgenröte, KSA 3, p. 264.
23 ABEL, Günter. Wissenschaft und Kunst. In: DJURIC, Mihailo; SIMON, Josef
(Hg.). Kunst und Wissenschaft bei Nietzsche. Würzburg, 1986, p. 9-25 (aqui, p.
11 et seq.).
24 NIETZSCHE. Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen, KSA 1, p.
816.
25 NIETZSCHE. Von Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben, KSA 1, p.
313.
26 NIETZSCHE. Homer und die klassische Philologie. (Palestra inicial na
Universitåt Basel, em 28 de maio de 1869). In: Philologische Schriften (1867-
1873), KSA 2.1, p. 247-270 (aqui, p. 268). Nesse programa,
orienta-se a Filosofia que não quer ser nem pura teoria do conhecimento nem
psicologia, na primeira metade do século XX. Cf. MENZER, Paul. Persönlichkeit
und Philosophie. (Palestra proferida na assunção do cargo de reitor da
Vereinigten Friedrichs-Universitåt Halle-Wittenberg, em 12 de junho de 1920).
Max Niemeyer Halle, 1920, p. 5.
27 NIETZSCHE. Schopenhauer als Erzieher, KSA 1, p. 350.
28 JASPERS, Karl. Nietzsche. Berlin/New York, 1981, p. 347.
29 NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1885-1887, KSA 12, 9 [91], p. 385.