Predicação e juízo em Tomás de Aquino
Dedico este artigo a Henrique Vaz s. j., filósofo, mestre e amigo,
falecido em maio de 2002, que escreveu sobre o tema deste trabalho
dois textos magistrais: "Itinerário da Ontologia Clássica" e "Tomás
de Aquino: Pensar a Metafísica na Aurora de um Novo Século".1
A partir do século XX, o neotomismo deu especial ênfase à teoria do juízo
tomásica. Foram múltiplas e, muitas vezes divergentes, as razões dessa ênfase:
certas interpretações procuraram mostrar que o ato judicativo é o ponto de
partida da metafísica2; outras interpretações, com preocupações diferentes,
defenderam a tese de que a noção central da metafísica tomásica é o ser e não o
ente, e o ser, ao contrário do ente, é uma noção que não é captada por um
conceito qüididativo, mas apenas por um juízo3; outras ainda, oriundas do
quadro conceitual da filosofia analítica, tentaram aproximar a análise do juízo
tomásica à lógica filosófica contemporânea, dando uma inesperada atualidade a
certas reflexões semânticas de Tomás que tinham caído em desuso4.
Neste artigo, pretendemos expor sinteticamente a teoria do juízo tomásica5, o
que, sem dúvida, pode ser considerado temerário face à multiplicidade de
aspectos semânticos, epistêmicos e ontológicos por ela envolvidos. É a sutileza
dessa teoria que nos faz correr esse risco.
1. Análise lingüística: nome, verbo e enunciado
Na filosofia tomásica o termo "juízo" tem vários sentidos.6 A noção de juízo
que será analisada neste artigo é a de "juízo por composição e divisão", pois
só nesse sentido, juízo tem valor de verdade.
Juízos por composição e divisão são atos mentais. Como, então, analisá-los?
Tomás de Aquino assume a validade do célebre triângulo1 semântico formulado por
Aristóteles7 no De interpretatione: as palavras escritas significam por
convenção os sons orais, que, por sua vez, significam por convenção paixões da
alma (conceitos, segundo Tomás) que por natureza são similitudes de coisas. Se
um signo escrito ou oral é simples (sem partes significativas) e significa, por
convenção, atemporalmente, conceitos (que, por sua vez, são similitudes de
coisas), esse signo é denominado nome. Um signo simples que convencionalmente
significa, de maneira temporal, ações ou propriedades é denominado verbo.
Verbos são signos de coisas ditas de alguma outra coisa8. Por isso, são
expressões incompletas, na medida em que exigem o complemento de um nome para
formar uma oração predicativa.
As análises tomásicas sobre nomes e verbos, tal como ocorre no De
interpretatione de Aristóteles, flutuam entre uma caracterização meramente
gramatical dessas expressões9 (nome seria um signo oral convencional, sem
partes significativas etc.) e uma caracterização funcional: nomes exerceriam a
função de sujeito da oração predicativa; verbos, a de predicados; sujeitos
teriam a função de mencionar coisas; predicados, de caracterizá-las.10 Embora
sujeito e predicado sejam funções logicamente heterogêneas e complementares,
nomes podem exercer a função de predicado e verbos (ao menos no infinitivo e no
particípio) podem exercer a função de sujeito. Essas ambigüidades que surgem do
fato de que nome não pode ser identificado com a função de sujeito e verbo com
a de predicado repercutem na análise do verbo "ser" nos Comentários de Tomás ao
De interpretatione:11 ser
pode ser interpretado como nome, significando ente (o que é), portanto,
significando, coisas (objetos); pode ser interpretado como predicado
(significando propriedades de coisas): seja como parte de um predicado
complexo, exprimindo a inerência de propriedades nas coisas que foram
mencionadas pelo sujeito (ser como cópula),12 seja como um predicado simples,
significando a existência factual das coisas mencionadas pelo sujeito (ser como
existência factual);13 finalmente essas considerações semânticas sugerem uma
análise "metafísica": ser pode significar o ato pelo qual algo (o ente) é.14
Orações, diferentemente de nomes e de verbos, são expressões convencionais
complexas, pois suas partes, tomadas isoladamente, são significativas. Mas,
conectar ou aplicar um verbo a um nome é formar uma oração predicativa, pois
predicar é atribuir uma propriedade a uma coisa. Nomes e verbos são "termos
gramaticais"; mas, numa oração predicativa, nomes exercem prioritariamente a
função lógica de sujeito; verbos, a de predicado; o nome-sujeito significa
(mediante um conceito) uma coisa (objeto), que é caracterizada por uma
propriedade significada pelo verbo-predicado.15 Portanto, não há predicação
elementar sem composição do predicado com o sujeito (do verbo com nome). São
denominadas enunciados as orações predicativas que têm valor de verdade. Nome/
verbo e enunciado exprimem do ponto de vista lingüístico as operações mentais,
denominadas por Tomás, de intelecção dos indivisíveis e de juízo por composição
e divisão. Graças à correspondência entre as operações lingüísticas e as
operações do intelecto correspondentes, é possível analisar lingüisticamente o
ato judicativo sem recorrer a métodos introspectivos.
2. Termos gerais e conceitos
Segundo Tomás, conhecer é julgar: "É preciso dizer que em qualquer conhecimento
há um duplo aspecto: o princípio e o termo. Com efeito, o princípio pertence à
apreensão, o termo, porém, ao juízo; de fato aí o conhecimento é realizado
(perficitur)".
16
Nesse texto, além de afirmar que só no juízo o conhecimento se realiza, Tomás
distingue as duas operações, já mencionadas, do intelecto: a apreensão e o
juízo. Em diversos outros textos,17 Tomás tematiza essa distinção e as denomina
de intelecção dos indivisíveis (1ª operação do intelecto) e de composição e
divisão (2ª operação do intelecto). O inteligir os indivisíveis, habitualmente
denominado pela tradição tomista de apreensão qüididativa, é condição da
realização da 2ª operação de compor e dividir que, segundo certas condições,
exprime formalmente a realização do ato cognitivo. Note-se que a 2ª operação
não é denominada juízo, pois, sob certo aspecto, os sentidos também julgam,
embora só o intelecto julgue por composição e divisão.18
A análise dessa dupla operação será o fio condutor dessa parte do artigo.
A intelecção dos indivisíveis tem um duplo aspecto: ela consiste na intelecção
do que é, qüididade (num sentido lato de qüididade ou de essência),19 e na
formação ou produção de conceitos através da apreensão do que é.
É por abstração20 que se intelige o que é, seja por abstração do universal a
partir do particular (abstração denominada por Tomás de abstração do todo ou de
abstração não-precisiva da matéria signata), seja por abstração da forma
(abstração precisiva).21 Pela primeira operação do intelecto, se apreende uma
qüididade, uma determinação inteligível. A qüididade foi extraída da imagem
sensível pela ação do intelecto agente graças a um processo abstrativo que
deixa de lado as condições individualizantes do conteúdo apresentado pela
imagem sensível. Ela é impressa no intelecto possível. Tomada nela mesma, isto
é, considerada absolutamente sem relação com a imagem da qual foi abstraída ou
com o indivíduo que a singulariza ou com o conceito que a exprime, ela não é
nem una nem múltipla, nem universal nem singular, pois o seu modo de existência
foi deixado de lado. Ela foi obtida por abstração não-precisiva da matéria
signata. Tomás no De ente denomina a qüididade assim obtida de natureza
absolutamente considerada.22
Assim, a essência ou qüididade pode também ser considerada por abstração dos
seus modos de existência. De fato, a essência existe nas coisas singulares ou é
expressa pelo conceito de modo universal na mente. Ela pode ser analisada como
essência disto ou daquilo e, nesse caso, é considerada a essência de alguma
coisa, possível ou atual. Pode também ser expressa por um conceito universal.
Mas, caso seu modo de existência tenha sido deixado de lado, ela, nela mesma,
não é nem singular nem universal.
A partir da qüididade apreendida, o intelecto forma ou produz conceitos que são
entes intencionais que existem no intelecto de modo universal. Eles são
expressos por definições, que explicitam por notas inteligíveis os diferentes
aspectos da qüididade. Assim, o conceito, ou ao menos o conceito denominado
pelos escolásticos de universal direto, exprime e contém de modo universal a
qüididade apreendida. Como o universal é o que pode ser predicado de muitos23,
o conceito qüididativo, em princípio, pode ser predicado de diferentes coisas
singulares.
Tomás afirma que é a essência absolutamente considerada que é predicada dos
indivíduos.24 uma mera determinação inteligível, uma essência absolutamente
considerada, como é possível relacioná-la com coisas singulares? Por não ser
nem una nem múltipla, nem singular nem universal, como a essência absolutamente
considerada, expressa conceitualmente, poderia ser atribuída de maneira unívoca
a entes numericamente distintos? Os enunciados Pedro é homem e João é homem
são, em princípio, verdadeiros. Mas não é a essência singular de Pedro que é
atribuída a Pedro, pois se o fosse, ela não poderia ser atribuída a João. É a
essência absolutamente considerada que é atribuída de maneira unívoca a Pedro e
a João e que, graças a essa atribuição, é considerada como instanciada em Pedro
e em João. Mas, como pode ser atribuída a entes numericamente distintos, sem
ser considerada universal, já que o universal é definido como o que pode ser
dito de muitos? Mas, se for universal, como poderia "existir" individualizada
em diferentes indivíduos?25
De fato, numa predicação afirmativa elementar, deve ser distinguido o que é
atribuído à coisa mencionada pelo sujeito (a essência absolutamente
considerada) das condições que permitem a atribuição (o fato de no intelecto a
essência absolutamente considerada ter um modo de existência universal).26 Por
existir no intelecto de modo universal, a essência absolutamente considerada
pode ser atribuída a muitos indivíduos numericamente diferentes. O predicado
"homem" nas predicações "Pedro é homem" e "João é homem" tem um sentido
unívoco, pois o que está sendo atribuído a entes numericamente diferentes
(Pedro e João) é a essência absolutamente considerada, que por fazer abstração
das características individuais de Pedro e de João, pode ter a mesma relação de
semelhança uniforme com Pedro e com João, que são indivíduos que na realidade
têm uma essência numericamente distinta. Tomado nele mesmo, independentemente
da sua ocorrência na predicação, o conceito homem não significa nem a essência
individual de João nem a de Pedro. O seu significado independe do modo pelo
qual o seu conteúdo existe no indivíduo ou na mente. Não só a universalidade do
conceito que possibilita que a essência seja predicável de muitos indivíduos,
como também a sua existência singular neste ou naquele indivíduo, são
acidentais à própria essência enquanto ela é absolutamente considerada.
Mas como a essência absolutamente considerada que não significa qualquer
essência individual pode ser a similitude da essência de um ente singular? Como
um conceito universal, que exprime uma essência absolutamente considerada, pode
representar uma coisa singular?
Essas questões repercutem na análise lingüística dos enunciados predicativos.
Por razões epistêmicas e ontológicas, Tomás afirma que não é possível inteligir
as coisas singulares, compostas de matéria e de forma, a não ser mediante
conceitos. As coisas singulares materiais não são inteligíveis diretamente pelo
intelecto em razão da matéria, que é o seu princípio da individuação, ser
apenas potencialmente inteligível. Só indiretamente, mediante uma certa
reflexão, o intelecto conhece as coisas singulares.27 É preciso abstrair, isto
é, deixar de lado as condições individualizantes das coisas singulares
materiais, para torná-las inteligíveis em ato. Em razão disso, o intelecto
humano forma conceitos, que expressam naturezas absolutamente consideradas.
Ora, como já assinalamos, numa oração predicativa, o sujeito lógico tem a
função de mencionar coisas. As expressões que exercem a função de sujeito
lógico numa oração predicativa são termos gerais, que significam conceitos,
pois se não significassem conceitos, as coisas singulares, em princípio não
seriam inteligidas, não podendo, em conseqüência, ser mencionadas. Uma
pergunta, então, se impõe: Como termos gerais, que significam conceitos
universais, podem mencionar coisas singulares, se conceitos exprimem essências
absolutamente consideradas, portanto, qüididades sem qualquer relação com
coisas singulares? Como os termos gerais significando conceitos podem mencionar
coisas singulares?
A semântica de Tomás classifica28 as orações predicativas elementares (unas e
simples29, segundo o vocabulário tomásico) do ponto de vista da sua qualidade
(afirmativas/negativas) e do ponto de vista da sua quantidade (universais/
particulares/singulares/indefinidas). Uma oração predicativa é universal, se o
seu conceito-sujeito é tomado universalmente. Note-se que o conceito é sempre
universal. Quantificá-lo significa tomar o universal (conceito) universal,
particular ou singularmente. Uma oração predicativa é particular (singular), se
o seu conceito-sujeito é tomado particularmente (singularmente). Uma oração
predicativa é indefinida, se o seu conceito-sujeito não é precedido pelos
sincategoremas "todo", "algum", "este". Nesse caso, ela é assimilada a uma
oração particular. Assim, quantificar uma oração significa quantificar o
conceito-sujeito30 da oração predicativa. Mas, qual é o sujeito lógico dessas
orações quantificadas, se o seu conceito-sujeito é sempre um universal que pode
ser tomado universal, particular ou singularmente?
Do ponto de vista tomásico, não seria equivocado afirmar que os sujeitos
lógicos (aquilo sobre o que versa a oração predicativa elementar)31 são sempre
os indivíduos singulares ora considerados enquanto singulares ora considerados
enquanto o que é comum a vários indivíduos singulares. De fato, no seu
Comentário ao De interpretatione de Aristóteles, Tomás explica que se pode
considerar numa coisa singular o que lhe é próprio (que, portanto, pertence
somente a essa coisa singular) e também o que é comum a diversas outras coisas
singulares. Pode-se atribuir a Sócrates o que pertence somente a Sócrates, como
também se pode atribuir a Sócrates o que é comum a Sócrates, a Platão e a
outros indivíduos.
Tomás, comentando Aristóteles, explica o sentido dos quantificadores da
seguinte maneira. Pode-se predicar algo do universal de duas maneiras: a) como
tendo uma existência separada dos singulares (uma existência na mente, por
exemplo) ou b) como estando nos singulares. Isso explicaria a diferença entre
os seguintes tipos de enunciado: Homem é uma espécie e
O homem é mortal32
. O caso "a" foi analisado exaustivamente pela teoria medieval da suposição que
diferenciou diversos tipos de suposição, o que, entre outras coisas, permitiu
distinguir enunciados do tipo homem tem 5 letras dos enunciados do tipo homem é
uma espécie. Mas, para Tomás, a quantificação aplica-se somente ao caso "b".
Como já assinalamos, o (conceito) universal pode ser tomado universal,
particular ou singularmente. O que significaria, por exemplo, tomar o universal
universalmente? Tomás explica:
Com efeito, algumas vezes se atribui alguma coisa a um universal [a
um conceito universal] em razão de sua natureza universal; diz-se,
então, que algo é predicado universalmente dum universal, pois este
universal convém a todos os singulares nos quais ele se encontra;
também para significá-lo nas predicações afirmativas forjou-se a
expressão "todo" que designa um predicado atribuído a um sujeito
universal para todas aquelas coisas que estão contidas sob esse
sujeito.33
O conceito universal (obtido por abstração não-precisiva), que é sujeito de uma
oração predicativa, pode significar uma única coisa. Nesse caso, o conceito
universal é tomado singularmente. Daí as orações da forma: Este homem (seja
Sócrates) é X. Mas o conceito universal pode significar também o que é comum a
todas ou a algumas coisas singulares. Daí as orações da forma: Todo homem (isto
é, Sócrates e Platão e Aristóteles e ...) é X e Algum homem (Sócrates ou Platão
ou ...) é X. Nesse caso, o conceito universal é tomado universal ou
particularmente significando uma propriedade comum a diferentes indivíduos. Daí
se segue que o sujeito lógico não é a propriedade comum expressa pelo conceito,
mas são os indivíduos que têm em comum a propriedade significada pelo conceito.
Explicar dessa maneira a função dos quantificadores pressupõe que os conceitos
universais (obtidos por abstração não-precisiva) tomados universal, particular
ou singularmente tenham uma relação com as coisas singulares. Assim, o conceito
universal significaria singulares sob uma propriedade comum. Como justificar
essa tese, uma vez que os conceitos têm como conteúdo essências absolutamente
consideradas?
A 1ª operação do intelecto envolve uma relação com o sensível pelo fato de a
qüididade ter sido abstraída da imagem sensível. Mas envolve também uma outra
relação com o sensível em razão da operação denominada por Tomás de "retorno à
imagem sensível"34. A justificação da necessidade dessa operação é complexa,
pois envolve considerações epistêmicas e ontológicas. Como já assinalamos, é
tese tomásica que o intelecto apreende diretamente apenas o universal, só
indiretamente o singular, pois este só seria captado pelos sentidos35. Assim,
se o conhecimento humano tivesse como objeto próprio apenas a qüididade
expressa conceitualmente, poderiam ser conhecidas pelo intelecto humano apenas
as formas separadas da matéria, representadas pelas determinações inteligíveis
abstratas. Mas, segundo a tese hilemórfica, pertence à natureza dessas formas
existirem num indivíduo composto de matéria e de forma. É da razão da natureza
da pedra existir nessa pedra36. Portanto, se o intelecto humano tiver o poder
de conhecer, o objeto próprio de seu conhecimento não pode ser a qüididade que
é expressa conceitualmente, mas deve ser a qüididade nas coisas materiais37. A
qüididade abstrata é sempre para Tomás indeterminada; o determinado é sempre o
singular concreto38. E este só pode ser "representado ou conhecido pelo
'retorno à imagem sensível'".
É, portanto, necessário concretizar a qüididade ou fazer, segundo a expressão
de Maréchal, uma síntese concretiva, isto é, correlacionar a qüididade abstrata
com a imagem sensível que, tomada nela mesma, é uma representação subjetiva de
um conteúdo singular. Essa síntese concretiva torna inteligível a imagem e
mostra como o conceito universal pode ser considerado como uma representação
(similitude) inteligível de objetos singulares.
Mas a síntese concretiva é ainda uma operação que pertence à 1ª operação do
intelecto. Ela não é uma síntese judicativa entre o predicado e o sujeito, é
apenas uma condição para que seja efetuada uma predicação. De fato, as orações
predicativas afirmativas elementares têm a forma S é P, onde "S" está no lugar
de um termo geral, quantificado ou não. Os sujeitos das orações predicativas
são sempre termos gerais que significam conceitos universais. A relação
conceito-imagem é uma condição para que um conceito possa mencionar ou
representar objetos singulares num juízo por composição e possa, dessa maneira,
exercer a função de sujeito da oração predicativa.
Assim, a síntese concretiva permite explicar que sob uma propriedade comum,
expressa conceitualmente, estão contidas representações sensíveis de objetos
singulares. Isso tornaria uma série de definições ou de teses tomásicas
plausíveis: a definição do universal como o que pode ser dito de muitos; a tese
de que o sujeito lógico das orações predicativas elementares com termos gerais
quantificados seria as coisas singulares etc.
3. Predicação, composição e divisão
A 1ª operação da mente concerne à representação conceitual de objetos; a 2ª
operação, ao conhecimento de objetos. Habitualmente, a 2ª operação do intelecto
é denominada pelos intérpretes tomistas de operação judicativa ou de juízo. No
entanto, de certa maneira, como já assinalamos, os sentidos também julgam.39 De
fato, Tomás denomina essa 2ª operação de composição e divisão. Assim, é útil
distinguir o juízo, que pode ser um ato dos sentidos ou do intelecto, do ato
propriamente intelectual que consiste em julgar por composição e divisão que
caracteriza a 2ª operação. O intelecto humano conhece judicativamente mediante
composição ou divisão.40
A composição de que trata a 2ª operação do intelecto não é, no entanto, uma
mera união de conceitos, como seria a que uniria dois conceitos distintos; por
exemplo, a que seria expressa pelo conceito complexo homem justo. Compor e
dividir significam sintetizar conceitos por modo de predicação. Tomás explica
de maneira precisa o significado de uma composição conceitual por predicação:
"Em toda proposição, uma forma significada pelo predicado ou se aplica a alguma
coisa significada pelo sujeito ou então é da coisa removida".41 Numa oração
predicativa afirmativa, mediante o conceito-sujeito, é expressa uma propriedade
sob a qual podem cair diversas coisas (objetos) que têm em comum essa
propriedade. Mediante o conceito-predicado é expressa uma propriedade que se
aplica às coisas mencionadas pelo conceito-sujeito. Graças ao conceito-sujeito,
o conceito-predicado (que significa uma forma42) é relacionado com as coisas
mencionadas pelo sujeito da oração predicativa. Assim, vê-se que a oração
predicativa não pode ser analisada como se fosse uma relação entre duas coisas
significadas pelo conceito-sujeito e pelo conceito-predicado. Ela é analisada
por Tomás de maneira análoga à relação da forma com a matéria: o predicado
significa uma forma que determina inteligivelmente a coisa significada pelo
sujeito que, dessa maneira, exerce a função de matéria na composição
hilemórfica. "Os predicados são assumidos formalmente e o sujeito
materialmente." 43
A composição ou divisão predicativa é caracterizada pela distinção de duas
funções, ambas exercidas por conceitos: o conceito-sujeito menciona coisas (uma
determinada coisa ou algumas coisas ou todas as coisas que têm em comum uma
propriedade) e o predicado só classifica ou determina inteligivelmente as
coisas pela mediação do conceito-sujeito. Daí se compreende a tese do lógico
tomista Vincent Ferrer44 que afirmava que os predicados não supõem, pois não
mencionam diretamente as coisas; só o conceito-sujeito na predicação pode fazer
suposição de existência; os predicados apenas classificam, mediante
propriedades, as coisas mencionadas pelo conceito-sujeito.
Qual é a operação lingüística que significa a operação de composição e divisão?
Tomás de Aquino distinguiu no
Peryermeneias45
as orações denominadas de orações perfeitas (como as orações interrogativas,
imperativas, deprecativas etc.), que se caracterizam por serem orações que não
têm valor de verdade, das orações perfeitas que têm valor de verdade e que são
denominadas de enunciados. Assim, enunciados seriam orações cujo gênero seriam
as orações perfeitas. As orações que Tomás denomina de orações perfeitas são as
que denominamos de orações predicativas. Estas se caracterizariam pela
aplicação ou exclusão de uma propriedade à coisa significada pelo sujeito.
Dessa maneira, fica determinado o que está sendo atribuído ao que está sendo
mencionado. Assim, por exemplo, por satisfazer as condições da predicação, uma
oração interrogativa seria uma oração predicativa, mas não seria um enunciado,
pois interrogações não são nem verdadeiras nem falsas.
Uma conseqüência dessa distinção é a de que as orações predicativas, embora
nelas o predicado esteja unido ao sujeito pela cópula, não envolvem uma
descrição do real, pois não dizem ou afirmam que algo é ou não é o caso. No
entanto, a síntese do predicado com o sujeito na predicação se realiza mediante
o verbo ser. Qual é o significado desse verbo nas orações predicativas? Ao lado
de sua função de síntese, ele não teria também uma função existencial? Ele não
significaria (ou co-significaria, segundo a expressão de Tomás) que algo seria
o caso? Nesse caso, as orações predicativas não teriam, nelas mesmas, uma
função apofântica? Em conseqüência, elas não deveriam ser assimiladas a
enunciados?
Ao lado da distinção entre as orações perfeitas que têm e as que não têm valor
de verdade, Tomás introduziu também uma outra distinção que se aplica às
orações predicativas e, conseqüentemente, aos enunciados. Trata-se da diferença
entre orações predicativas de segundo e de terceiro adjacente. Essa distinção
esclarece a função desempenhada pelo verbo ser e diferencia a função atributiva
da função existencial dos enunciados.
Uma oração de terceiro adjacente é composta de um termo-sujeito e de um
predicado formado por duas palavras: o verbo ser e uma outra expressão (termo-
nome que significa um conceito). A forma desse enunciado é S é P, onde é P é
uma expressão complexa, formada por dois termos, sendo que um deles é um nome.
(...) é é predicado como adjacente ao principal predicado. E diz-se
que é terceiro, não porque seja um terceiro predicado, mas porque é
uma terceira expressão colocada no enunciado que, simultaneamente,
com um nome-predicado forma um único predicado, de tal maneira que o
enunciado é divido em duas e não em três partes46 (grifos nossos).
Assim, o verbo ser, enquanto exerce a função de cópula, tem o sentido do verbo
inesse: a forma significada pelo sujeito está (ou não) na coisa significada
pelo sujeito.47
Uma oração de segundo adjacente é formada por dois termos: termo-sujeito e um
termo simples, que é um verbo, pois não há oração predicativa sem verbo.48 Se o
verbo da oração de segundo adjacente é o verbo ser, a oração predicativa
significa que o que é significado pelo termo-sujeito existe. Note-se que essa
predicação "existencial" poderia ser usada numa pergunta, numa prece, poderia
ser usada, portanto, sem função apofântica.
Quando aplicada aos enunciados, a distinção entre orações de segundo adjacente
e de terceiro adjacente permite diferenciar lingüisticamente a função
existencial da função atributiva dessas orações. O enunciado de segundo
adjacente da forma S é é um enunciado existencial e significa que existe o
objeto mencionado pelo sujeito: "(...) quando se diz que Sócrates é (existe):
através disso nada de outro pretendemos significar senão que Sócrates existe na
natureza (sit in rerum natura)".49 Mas, num enunciado de terceiro adjacente (da
forma S é P), não é afirmada diretamente a existência efetiva do que é expresso
pelo termo-sujeito, mas é dito que a coisa indicada pelo sujeito satisfaz à
propriedade significada pelo predicado. Assim, num enunciado de terceiro
adjacente, a existência da coisa mencionada não é afirmada, embora possa ser
suposta. Obviamente, supor a existência de uma coisa não equivale afirmar sua
existência.
Mas, algumas vezes é não é predicado por si, como predicado
principal, mas como unido ao predicado principal para conectá-lo ao
sujeito, assim como quando se diz Sócrates é branco. Não é intenção
do locutor afirmar que Sócrates existe na natureza, mas de atribuir a
ele a brancura mediante este verbo é (grifos no original).50
Dessa maneira, Tomás parece rejeitar a análise do enunciado predicativo da
forma S é P como significando S existe enquanto P51, pois nos enunciados de
terceiro adjacente, a existência não é posta, mas é apenas suposta. Isso
mostra, que a forma predicativa ou categórica do enunciado não é suficiente
para determinar o gênero de suposição de existência que deve ser feito para que
o enunciado seja verdadeiro. Assim, por exemplo, enunciados predicativos
elementares negativos, ao contrário dos enunciados predicativos afirmativos,
podem ser verdadeiros mesmo que não existam as coisas mencionadas pelo termo-
sujeito.
4. Enunciado e juízo por composição e divisão
Tomás de Aquino afirma que, dentre as orações predicativas, só os enunciados
têm valor de verdade. Daí se segue que só os termos complexos da 2ª operação do
intelecto, isto é, os juízos por composição e divisão, podem ter valor de
verdade. Termos incomplexos, os conceitos, não seriam nem verdadeiros nem
falsos. No entanto, certos textos de Tomás contrariam essa tese, pois dizem que
as faculdades cognoscitivas não podem errar e são sempre verdadeiras em relação
aos seus objetos próprios. Há, portanto, verdade nas operações dos sentidos e
na 1ª operação do intelecto52. Ora, como o objeto próprio da faculdade
intelectiva é a qüididade das coisas materiais, só acidentalmente o intelecto
se enganaria nas definições que explicitam as características das qüididades.
Haveria uma inconsistência nas afirmações de Tomás de Aquino: de um lado só os
termos complexos por composição e divisão seriam verdadeiros ou falsos. Por
outro lado, os sentidos e o intelecto (enquanto apreende as qüididades das
coisas materiais) são verdadeiros em relação aos seus objetos próprios.
Portanto, o que resulta das operações que precedem o ato judicativo por
composição e divisão seria verdadeiro. Como, então, compatibilizar as
afirmações tomásicas: de um lado só há verdade no juízo por composição e
divisão, por outro lado, o termo de algumas das operações pré-judicativas pode
ser considerado verdadeiro?
O esclarecimento dessa questão nos remete à análise da noção de verdade.
Tomás de Aquino analisa a verdade sob três aspectos53: 1) o fundamento da
verdade (o ente), aquilo que torna um enunciado verdadeiro, 2) a definição
formal da verdade, que é a conformidade do intelecto à coisa e 3) a
conseqüência da verdade, que é o conhecimento.
Os dois primeiros aspectos não são problemáticos quando formulados num contexto
realista. Se a verdade é definida formalmente como conformidade do intelecto à
coisa, é a coisa real que torna o enunciado verdadeiro, "(...) assim, a
entidade da coisa precede a razão da verdade, mas a cognição é certamente o
efeito da verdade".54 Qual o significado preciso desse terceiro aspecto da
análise da verdade?
Tomás parece ter sido levado a formular essa tese em razão dos seguintes
argumentos: as species sensíveis55, e, particularmente, a species sensível da
imaginação56 são representações (similitudes) das coisas sentidas. Os conceitos
qüididativos são também similitudes de propriedades de coisas. Em relação aos
seus objetos, os sensíveis próprios só acidentalmente57 podem ser falsos. Tal
ocorre também em relação aos conceitos na medida em que a qüididade das coisas
materiais é o objeto próprio do intelecto humano e que conceitos significam
qüididades58. Pode-se, então, afirmar que, sob esse aspecto, "descobre-se que
os sentidos são verdadeiros de alguma coisa ou que o intelecto também o é
quando conhece aquilo que é. Mas não que conheça ou diga a verdade".59 Assim,
se os objetos próprios dos sentidos e as qüididades, expressas pelos conceitos,
podem ser considerados verdadeiros, segundo Tomás, as faculdades que apreendem
esses objetos não conhecem nem dizem a verdade60 (grifos no original). Só o
intelecto no juízo por composição e divisão pode conhecer sua conformidade à
coisa conhecida, isto é, só no juízo a verdade é conhecida.61 Por quê?
Os atos mentais das faculdades cognoscitivas envolvem reflexão.62 Refletir é a
consciência (cognitio) que se tem do exercício de um ato mental,63 é conhecer
que se conhece; é, portanto, a consciência do ato exercido. O ato de predicar,
enquanto ato do intelecto, envolve reflexão. Mas a reflexão envolvida no ato de
predicar é a consciência da relação (proportio) da atribuição da forma
intencional significada pelo predicado à coisa significada pelo sujeito; é,
portanto, consciência da relação da atribuição da forma (expressa pela species
inteligível) ao objeto/coisa. Portanto, o ato de predicar é um ato exercido com
consciência e, nesse caso, a consciência é a consciência da relação da
representação intencional, expressa pelo predicado, ao objeto significado pelo
sujeito. Nesse caso, a consciência não é algo que se superpõe ao ato, mas algo
que constitui (e não apenas acompanha) o ato de predicar, isto é, o ato de
predicar depende da consciência do ato porque é por ela constituído. Por quê?
O ato de predicar tem o intelecto como seu princípio. Em razão disso, a
consciência do ato de predicar envolve a consciência desse princípio. A
consciência desse princípio é a consciência da finalidade (ou função) do
intelecto. Tomás exprime a consciência dessa "função" como sendo a consciência
da "natureza" do intelecto. Não se trata, no entanto, da consciência
qüididativa da essência do intelecto na medida em que o intelecto é uma
faculdade imaterial, independente do corpo, que tem a alma humana como seu
sujeito, pois, em caso contrário, só os filósofos metafísicos poderiam
predicar. Trata-se, nesse caso, da consciência de que a finalidade do intelecto
é a de visar às coisas ou "a de se conformar às coisas"64. O intelecto seria,
então, uma faculdade que se caracterizaria por um dinamismo intrínseco, o de
visar às coisas65.
Assim, segundo o texto do De veritate, a atribuição de uma propriedade,
expressa pelo predicado, a uma coisa, mencionada pelo sujeito, tem por
condição: a) a consciência (cognitio) da relação (proportio) do ato à coisa, b)
que, por sua vez, tem como condição a consciência de que o intelecto é o
princípio do ato de predicar e c) que finalmente tem como condição a
consciência da "natureza" do intelecto, isto é, a consciência de sua função ou
de seu dinamismo, que é o de se conformar às coisas. A reflexão (consciência ou
cognição) que constitui o ato de predicar e que envolve a consciência da
"natureza" do intelecto é denominada de reflexão completa.
Ter uma species inteligível, como ocorre, por exemplo, quando se apreende uma
qüididade, pode envolver consciência na medida em que o ato de formar um
conceito qüididativo é um ato intelectual; mas a consciência desse ato não
envolve a consciência da relação de atribuição entre a forma e a coisa, pois é
essa relação que caracteriza o ato de predicar e o distingue do ato de formar
conceitos. Não envolvendo essa consciência da relação, não pode envolver a
consciência do dinamismo do intelecto, que é o de se conformar às coisas.
Segue-se que o ato de produzir conceitos não envolve uma reflexão completa.66
Já assinalamos que "orações predicativas" significam composição e divisão
pressuposta por todo juízo intelectual; "enunciados" significam juízos por
composição e divisão, que se caracterizam por terem valor de verdade. Mas se
"predicar" significa compor ou dividir e se a noção de juízo por composição e
divisão não é assimilada à noção de predicação, é legítimo perguntar se as
condições acima indicadas são condições necessárias e suficientes para a
realização do ato predicativo (ou do ato de composição e divisão) ou se são
condições necessárias e suficientes para a realização do ato judicativo por
composição e divisão.
O texto do De veritate concerne o conhecimento da verdade, isto é, o
conhecimento da conformidade do juízo com a coisa, que só o juízo por
composição e divisão (e não a mera predicação) é capaz de exprimir. Mas, se é
assim, a mera predicação (ou composição e divisão) não contém uma condição que
só o juízo por composição e divisão pode conter e que o torna suscetível de ser
efetivamente verdadeiro ou falso. Qual seria essa condição?
No Comentário à metafísica, Tomás escreve: "Com efeito, os termos simples não
significam nem a verdade nem a falsidade. Mas os termos complexos têm verdade
ou falsidade através da afirmação e da negação"67 (grifo nosso).
Qual o significado das expressões afirmação e negação?
Comentando um texto do De interpretatione68 de Aristóteles e algumas de suas
interpretações medievais, Tomás assume a análise de Amônio e afirma: "(...) ele
[Ammonius] acrescenta (subdit) que a afirmação é a enunciação de algo sobre
algo pela qual é significado o ser e a negação é a enunciação de algo separado
de algo, o que significa o não-ser" (grifos no original).69
Qual o sentido desse texto?
Habitualmente, uma predicação é denominada afirmativa se a função da cópula é a
de compor o predicado com o sujeito. Para realizar essa função, é usado o verbo
ser. A predicação é denominada negativa se a função da cópula é a de dividir ou
a de separar o predicado do sujeito. Obviamente, essa função é realizada quando
a cópula é precedida pelo operador "não". Mas a afirmação referida pelo texto
de Tomás não é uma afirmação ou negação predicativa, é uma afirmação ou negação
apofântica, pois a sua função não é apenas a de compor ou separar o predicado
do sujeito, mas é, através dessa composição ou divisão, pôr como real a
composição ou separação; é, assim, afirmar (ou negar) que algo é ou não o caso.
A afirmação e a negação apofânticas são operadores que exercem suas funções
através da afirmação ou da negação predicativa, transformando a predicação
afirmativa num enunciado afirmativo ou transformando uma predicação negativa
num enunciado negativo. Enunciar uma predicação afirmativa significa considerar
que a propriedade expressa pelo predicado está efetivamente na coisa mencionada
pelo conceito-sujeito; enunciar uma predicação negativa significa, por sua vez,
excluir uma propriedade (expressa pelo conceito-predicado) de algo efetivamente
real ou significa considerar não-existente a coisa mencionada pelo conceito-
sujeito. Por isso, ao afirmar ou ao negar uma predicação, é significado o ser
ou o não-ser. Mas, significar o ser ou o não-ser através de uma composição ou
divisão não é algo que a predicação faça por si mesma, mas é algo que o
enunciado faz graças à afirmação ou à negação apofântica. Assim, afirmação e
negação são operadores apofânticos e predicativos, pois, de um lado,
transformam uma predicação numa enunciação, pondo a predicação como real
(objetiva); por outro lado, são também operadores predicativos que exprimem ou
bem a união ou bem a separação do predicado com o sujeito.
Tendo em vista a definição formal da verdade (concordância do intelecto com a
coisa) e a função dos enunciados afirmativos ou negativos, é possível analisar
suas condições de verdade. Surge, então, uma questão preliminar que despertou
um certo interesse na semântica medieval: Qual a relação da negação com o valor
de verdade falso? O falso, assim como a negação, significa o não-ser?
Tomás distingue claramente na Suma teológica70 os sentidos das noções de
negação, de privação e do valor de verdade falso. A negação não põe algo como
efetivamente real [non ponit aliquid], pois não põe o predicado como
pertencendo a um sujeito ou não "supõe" o sujeito como existente. A privação
põe o sujeito como existente, mas não atribui ao sujeito algo de efetivamente
real [non ponit aliquid]. É o que ocorre, por exemplo, com o enunciado a
cegueira existe, que significa há algo que é cego. Esse enunciado "põe" a
existência do sujeito, embora a pretensa "propriedade" (cegueira), atribuída ao
sujeito, não seja, nela mesma, um ente, algo de efetivamente real, mas apenas a
privação de uma propriedade ou de uma faculdade. O falso, assim como o
verdadeiro, tem como "norma" o real (o ente) e, sob esse aspecto, ele "supõe"
algo de real, falsum autem aliquid ponit. Mas, ao contrário do verdadeiro, o
falso exprime uma concepção inadequada da realidade.
Num célebre texto do Peryermenias71 onde é formulada a conhecida tese da
bipolaridade do enunciado que caracteriza a interpretação realista da verdade,
Tomás pretende, de um lado, evitar qualquer ambigüidade na interpretação da
negação, por outro lado, pretende mostrar que enunciados afirmativos e
negativos, quando mencionam as mesmas coisas e atribuem a elas as mesmas
propriedades, estão numa relação de oposição contraditória. Para evitar
ambigüidades sobre a interpretação da negação, ao invés de definir o valor de
verdade do enunciado negativo em função do valor de verdade do enunciado
afirmativo, Tomás mostra que as condições de verdade desses enunciados devem
ser formuladas de maneira independente, pois cada um deles, além de exprimir a
afirmação ou negação predicativa, correlaciona, a seu modo, o que é significado
pela oração predicativa com a realidade. Assim, por exemplo, um enunciado
afirmativo é verdadeiro se enuncia que é o que é; um enunciado negativo é falso
se enuncia que não é o que é; um enunciado afirmativo é falso se enuncia que é
o que não é, um enunciado negativo é verdadeiro se enuncia que não é o que não
é. Fixadas as condições de verdade dos enunciados afirmativos e negativos, fica
evidenciada não só a função apofântica e predicativa deles, como também a
relação de oposição contraditória entre eles.
Mas a afirmação de que um enunciado negativo verdadeiro significa que não é o
que não é compromete a ontologia de Tomás de Aquino com o que foi denominado de
fatos negativos? O que não é, o não-ser, seria o que tornaria verdadeiro o
enunciado negativo?
Através do enunciado negativo verdadeiro não é significado que o que foi
separado pela predicação corresponde ao não-ser, como se o não-ser fosse uma
realidade tal como é o ser, mas é significado que na realidade não se encontra
a composição da propriedade (expressa pelo predicado) com a coisa (mencionada
pelo sujeito) ou que a própria coisa, mencionada pelo sujeito, inexiste Por
isso, graças à negação, pode-se "dizer o não-ser" sem se comprometer com uma
ontologia de fatos negativos.
5. Conclusão
São conhecidas as disputas entre intérpretes tomistas do passado e do presente
sobre o papel que as noções de essência (ou qüididade), ente, ser e existência
desempenham na metafísica tomásica. Essas noções apareceram na exposição da
teoria judicativa tomásica quando foram analisadas as noções de conceito, de
juízo por composição e divisão e de enunciado existencial de segundo adjacente.
As diferentes funções que essas noções exercem na teoria do juízo são indícios
de certas teses da metafísica tomásicas que afirmam, por exemplo, a distinção
ou composição real entre ser e essência no ente finito.
Conceitos conectados às imagens são representações (similitudes) do que são as
coisas singulares. Exprimem de modo universal qüididades que, tomadas nelas
mesmas, não são nem singulares nem universais, embora existam de modo singular
nas coisas materiais e de modo universal/abstrato no intelecto72.
A formação de conceitos é uma etapa da produção de juízos. Conceitos exercem no
juízo o papel de sujeito e de predicado permitindo que "algo seja dito de
algo". Mas a predicação não é ainda uma instanciação de qüididades num sujeito
singular existente. Tomás escreve no De ente et essentia73: "(...) toda
essência ou qüididade pode ser pensada sem que nada seja pensado do seu ser:
posso com efeito inteligir o que [quid est] é homem ou o que é fênix e contudo
ignorar se existe um tal ser na natureza; é claro que o ser é outra coisa que a
essência ou qüididade". Esse argumento parece se apoiar na diferença entre
conceito e juízo e demonstra a distinção lógica (que não é ainda uma distinção
real) entre essência e ser.
Todos os enunciados afirmativos ou negativos, verdadeiros ou falsos, significam
o ser ou o não-ser, pois correlacionam a qüididade, expressa conceitualmente,
com o real. Na teoria do juízo, a noção de ser ainda não tem o seu significado
metafísico de "ato de todos os atos, perfeição de todas as perfeições"74 No
juízo, ser é a realidade tomada nela mesma, que se opõe à realidade
representativa ou intencional. O ser é assim a "norma" da verdade.
Mas, sob esse aspecto, na teoria do juízo, a noção de ser não seria
identificada com a noção de ente, "o que tem ser"? Sem analisar essa difícil
questão, objeto de inúmeros livros e artigos, assinalamos apenas que, do ponto
de vista do juízo, é necessário distinguir o que o conceito apreende e aquilo
que o juízo, por composição e divisão, significa. Tudo o que é apreendido
conceitualmente pelo intelecto envolve a noção de ente75. O ser não é expresso
qüididativamente, mas é "apreendido" ou significado pelo juízo76, cuja função é
a de "pôr" como real (possível ou atual) o que ele significa ou representa.
Alguns enunciados são existenciais (como os de segundo adjacente da forma S é),
afirmando ou negando que de fato algo existe. Outros enunciados verdadeiros
supõem a existência de algo sem, contudo, afirmá-la (como os enunciados
afirmativos de terceiro adjacente da forma S é P); outros enunciados são
verdadeiros e não afirmam nem supõem a existência (como alguns enunciados
negativos de terceiro adjacente). Enunciados afirmativos ou negativos são
caracterizados pela noção de ser ou de não-ser, enunciados existenciais são
caracterizados pela afirmação ou negação da existência ou da atualidade factual
do que é mencionado pelo conceito-sujeito. Assim, produzir um enunciado ou
significar o ser mediante a produção de um enunciado afirmativo não equivale a
afirmar que algo existe. Do ponto de vista da teoria do juízo, ser não tem o
mesmo significado de existência.
As distinções de ser, de ente, de essência e de existência que estão envolvidas
na análise do juízo tomásica são sugestivas e remetem sua justificação à
análise metafísica. Seguindo, assim, certa tradição filosófica, vê-se que a
teoria do juízo tomásica pode ser a ante-sala ou "o ponto de partida" da
metafísica.