Hume e o argumento do desígnio
A seção XI da Investigação sobre o Entendimento Humano inicia com uma rápida
exposição de Hume acerca do problema da influência das idéias filosóficas nos
costumes e na vida social. Em suma, os filósofos, no albor da filosofia, teriam
desfrutado do maravilhoso privilégio da liberdade intelectual (com exceção de
Protágoras e Sócrates); em seguida, no entanto, Hume adverte sub-repticiamente
o leitor para a necessidade desta atitude de tolerância intelectual que se
encontraria ausente (ao menos em parte) em seu tempo. Após o discurso inicial
entra em cena um personagem, que admite inicialmente, com Hume, que
efetivamente a filosofia não seria portadora de restrições sociais. No entanto,
argumenta que o problema levantado por Hume, a saber, o da mudança de atitude
com relação à filosofia, seria facilmente caracterizado: o núcleo da forma
argumentativa filosófica, longe de ser rejeitado, teria sido incorporado por
filósofos que, ao invés de perfilaram-se às mesmas conclusões céticas que
amiúde deveriam ser inferidas da reflexão filosófica estariam a avançar na
direção oposta; ou seja, argumentos filosóficos, via de regra destinados a
cumprir a função de severos e rigorosos censores das crenças e superstições,
estariam agora a serviço destas mesmas crenças nefandas. A resposta de Hume ao
aborrecimento de seu interlocutor é marcada por um cortante pragmatismo.
Naturalmente, afirma Hume, é legítima a adoção de tais estratégias
argumentativas da parte dos adversários dos céticos, uma vez que o não
estabelecimento de certas crenças (como a crença na existência divina),
poderiam dar margem à corrupção de certos valores sociais resultando então que
a própria vida comunitária estaria ameaçada ' pois, por qual razão outra, que
não o temor do castigo eterno divino, alguém se sujeitaria a regular seu padrão
de conduta tabulando-o com os hieráticos princípios da religião? O personagem,
após ouvir esta pequena réplica de Hume, e objetar rapidamente que na verdade
não há razões filosóficas em jogo por parte dos adversários dos filósofos, mas
sim preconceitos e paixões, transmuta-se então num orador epicuriano e procura
mostrar a Hume a eficiência de seu argumento.
Preliminarmente, admite ele que o problema da providência é o mais profundo dos
problemas filosóficos, lembrando sempre que as conseqüências da especulação a
seu respeito não devem ser tomadas como oferecendo qualquer ameaça à ordem
social. O epicurista rejeita a diligência dos pensadores que procuraram levar
às últimas conseqüências a investigação filosófica que os conduziu a demonstrar
a força do argumento a favor da existência de um planejador do universo. Em
seguida, acrescenta que esse seu argumento não poderia ser utilizado como uma
instância negativa com respeito ao funcionamento e ordenamento da vida social.
E, após admitir que não estaria a negar a existência divina, o epicurista
enfatiza que o principal ou único argumento em favor dela seria o da ordem
natural. Há ordem demais, e isto não poderia ser por acaso: a observação do
curso regular da natureza nos conduz à conclusão de que a disposição natural
percebida é produto de um planejador. Todavia, o argumento seria construído
partindo-se dos efeitos para a causa; quer dizer, da ordem natural inferimos o
planejador. Mas deve existir proporcionalidade na relação causal: não se pode
atribuir à causa nada além do que se pode perceber no efeito. E é exatamente
neste ponto que a seção começa a se tornar interessante, em virtude do problema
que se origina da questão da proporcionalidade da relação causal.
Pressuponha-se, como faz o epicurista, que efetivamente a criação seja o
produto de um criador (ou criadores). Naturalmente (se aceitamos este
pressuposto), não negamos que a ordenação do universo esteja em relação
proporcional à causa. Nesse sentido, a harmonia, o ajuste, o equilíbrio seriam
resultados de um criador extremamente inteligente. Ou seja, não se está a
negar, até aqui, que o universo seja realmente um processo articulado por um
criador.
Bem, se não se nega isto, o que se nega então? Parece tentador utilizar, neste
contexto, a chamada teoria semântica de Hume. Assim, poderíamos alegar que a
idéia que possuímos de um criador é uma entidade desprovida de qualquer
significado, uma vez que ela não poderia ser, neste caso, cópia de uma
impressão. Contudo, não é esta a linha argumentativa sugerida pelo epicurista.
Ou por outra, não é exatamente o problema de uma "teoria do significado" que
está a incomodar o epicurista.1 Antes, o epicurista está a pensar na construção
de um argumento que guarda semelhança com o problema da indução. Senão vejamos.
Vamos admitir novamente a pressuposição antes feita: a ordenação do universo
sugere como sua causa um criador. Seria legítimo inferir como causa do universo
um criador. No entanto, não seria legítimo inferirmos que sua ação seria
permanente. Ou seja, da mesma forma que não podemos assegurar que o sol nascerá
amanhã, ainda que ele o tenha feito todos os dias até agora, não podemos
igualmente ter a certeza de que a ação do criador continuará a ser exercida. A
razão para isto é bastante simples: do efeito atual podemos inferir uma causa,
mas disto não se segue necessariamente que no futuro a mesma causa continuará a
exercer seu poder. Então, é possível que a causa cesse de produzir os efeitos
familiares. Em suma, o epicurista parece achar plausível que se admita um
criador como causa; mas, uma vez que este argumento tem seu débito de validade
com os efeitos, não se pode inferir que a causa tenha qualquer outro atributo
que não seja permitido pela observação dos efeitos (a proporcionalidade antes
admitida). O atributo da perfeição do criador pode até ser admitido, mas ele
não pode exceder aquilo que efetivamente observamos até o presente.2
Adicionalmente, o epicurista argumenta que a hipótese da ação permanente do
planejador decorre também do fato de que os seres humanos possuem a tendência
de acreditar numa semelhança de seus desígnios com o do criador. A crença na
regularidade natural nos conduz, afirma o epicurista, a crer igualmente que o
planejador optará pela continuidade da regularidade. Mais uma vez, o epicurista
rejeita esta hipótese pela fraqueza analógica que ela exibe: não se segue do
comportamento habitual dos seres humanos (e de suas crenças) o comportamento do
planejador. Além disso, os efeitos do comportamento humano poderiam ser
rastreados até suas causas (observáveis), mas os efeitos da ação do planejador
continuariam para sempre inacessíveis. Note-se bem que o epicurista nega apenas
a analogia, não o fato de que se poderia inferir o planejamento, mesmo que a
causa deste fosse (como seria neste caso) inobservável.
Apenas concluo esta reconstrução da seção XI da Investigação sobre o
Entendimento Humano, lembrando que a intervenção final de Hume na seção aponta
para sua sugestão de que o argumento combatido pelo epicurista, pelo fato de se
estruturar na passagem dos efeitos para a causa, realmente teria alguma
dificuldade em ser estabelecido. Mas é interessante perceber que, ao contrário
do que ocorre nos Diálogos, Hume adota aqui uma atitude bastante cautelosa,
pois ele não referenda o discurso do epicurista, mas limita-se a considerar que
seus argumentos estabelecem certas dificuldades para a idéia de planejador.
Até aqui, o argumento do epicurista apenas levantou a hipótese de que a
concepção de um planejador do universo não deve ser preferida a outra qualquer,
na medida em que a pressuposição da ação contínua do criador não pode ser
sustentada. Contudo, a perplexidade de Hume com relação ao argumento do
planejador não esteve adstrita ao discurso do epicurista. O problema reaparece
nos Diálogos e com uma estrutura ligeiramente modificada, uma vez que, ali,
discute-se à exaustão o célebre argumento do desígnio e, diferentemente do que
ocorrera na Investigação sobre o Entendimento Humano, Hume se empenhará em
construir uma alternativa a este argumento.3 A obra é o relato de um jovem
chamado Panfilo a um amigo seu, Hérmipo, que não comparece aos diálogos.
Panfilo é discípulo de Cleantes, que nos Diálogos defenderá o argumento a
posteriori nas questões relativas à natureza de Deus.4 O debate conta ainda com
mais dois contendores: Demea, que sustenta, ao contrário de Cleantes, a
utilização de argumentos a priori para o problema da divindade, e Filo, que
representa, ao que tudo indica, a posição do próprio Hume. É interessante
perceber que, ainda que rejeite como prova tanto o argumento a priori quanto o
argumento a posteriori, nos Diálogos Hume estabelece, creio, um debate apenas
com o argumento a posteriori. Além disso, Filo e Demea concordam com a idéia
(em oposição a Cleantes), de que a experiência não pode se constituir como uma
fonte de conhecimento da natureza de Deus. E é exatamente este o núcleo do
argumento de Cleantes; para este, a experiência revela uma harmonia e ordem
insuspeitas. A conclusão é simples: há um planejamento, um desígnio que tornou
as coisas o que elas são.
Como já vimos, o discurso do epicurista na seção XI da Investigação sobre o
Entendimento Humano já pressupunha o argumento do desígnio; contudo, sua
objeção ao argumento era extraída da impossibilidade de se demonstrar que este
planejamento inicial continuaria a se exercer pelo futuro. Nos Diálogos, Hume
(por intermédio de Filo) ataca o argumento do desígnio através de outras
estratégias. Em primeiro lugar, ele mantém um acordo com Demea, no sentido de
que a natureza de Deus (pressupondo-a com seus atributos familiares, como
onipotência, onisciência e bondade infinitas), por ser inatingível a seres
providos de recursos cognitivos tão limitados como os nossos, não poderia ser
conhecida através da experiência. Em segundo lugar, a experiência seria uma
prova de um princípio ordenador, não da natureza ou de Deus, mas de nossa
própria mente. Em terceiro lugar, a experiência revela não apenas a bondade
infinita de Deus, mas também traria consigo a maldade; neste caso, ou Deus
seria também responsável pela maldade, ou então seria incapaz de detê-la ' de
qualquer modo, em um ou outro caso, faltaria a ele um ou outro atributo. Enfim,
os Diálogos fornecem novos argumentos contra a idéia do planejador e no
decorrer da discussão destes argumentos surge uma questão inteiramente distinta
da discutida na seção XI da Investigação sobre o Entendimento Humano. Mas o
mais importante, penso, é que a seção XI da Investigação sobre o Entendimento
Humano pressupunha, para fins de argumento, que seria possível a inferência da
existência de um planejador partindo-se dos efeitos para a causa. Pode-se dizer
que não ocorrera ali a perplexidade de Hume com relação ao problema ainda mais
profundo que surge com a pressuposição que foi feita pelo epicurista. E se a
seção XI da Investigação sobre o Entendimento Humano apenas opunha uma objeção
à justificação da idéia da ação permanente da providência divina, nos Diálogos,
ao contrário, a discussão avança com a postulação de uma outra hipótese para o
problema do ordenamento natural. Nesse sentido, se os argumentos do epicurista
devem ser entendidos como negativos, os Diálogos podem ser compreendidos como
um momento construtivo da filosofia de Hume no que diz respeito ao problema do
ordenamento natural. Acrescente-se a isto que a seção XI da Investigação sobre
o Entendimento Humano segue a orientação filosófica do restante da obra; ao
passo que os Diálogos inserem o problema numa outra perspectiva, que, como já
afirmei, considero, antes de cética5 e construtiva.
Lembremos que na seção XI da Investigação sobre o Entendimento Humano o
argumento do epicurista limitava-se a denunciar que, ainda que pressuposto um
planejador, não se poderia inferir daí a permanência de sua ação. É claro que o
epicurista estaria a sugerir um prenúncio do argumento do desígnio, mas ele não
o desenvolveu. Tratou do problema da continuidade da ação do planejador; tratou
de responder a objeção da analogia entre os efeitos humanos e efeitos divinos;
e tratou de assegurar que sua hipótese seria inofensiva ao senso comum. Mas ele
não tratou do argumento do desígnio. Quero deixar claro que não estou apontando
isto com o objetivo de demonstrar discrepâncias entre os dois textos; pelo
contrário, quero sugerir que, na verdade, Hume adotou duas estratégias
argumentativas distintas (embora obviamente relacionadas) para atacar o
problema. Não obstante, esta afirmação precisa ser qualificada e, ao fazê-lo,
tenho por alvo o que julgo ser o objetivo central de Hume nos Diálogos.
Qual seria este objetivo central? Estaria Hume interessado em desqualificar a
teologia de seu tempo, ou mesmo a teologia natural, buscando demonstrar que a
natureza de Deus não pode ser conhecida?6 Ora, fosse este o objetivo de Hume,
por que então não reeditar o argumento da seção XI da Investigação sobre o
Entendimento Humano a fim de fornecer ainda mais plausibilidade ao seu discurso
"anti-teológico"? Se a questão fosse simplesmente liquidar a possibilidade do
conhecimento da natureza de Deus, o argumento da seção XI ou seria suficiente
ou seria um movimento adicional em direção à refutação do argumento do
desígnio.7 Afinal de contas, como poderia Cleantes resistir ao discurso do
epicurista? Por tudo isso, a "limitação" da seção XI da Investigação sobre o
Entendimento Humano já é uma pista interessante para compreendermos a
necessidade dos Diálogos. Além disso, como lembra Mounce, demarcar
meridianamente a teologia de nosso sistema ordinário de crenças pelo fato de
que a primeira é sustentada pela fé e o último seria "provado" racionalmente,
pareceria algo bastante dissonante com a própria filosofia de Hume, na medida
em que mesmo nossas crenças sobre as regularidades não podem ser provadas;
argumenta que "a razão é impotente sem uma crença para sustentá-la".8 Na
verdade, creio que há uma outra hipótese, e esta possui a vantagem de que se
possa, inclusive, situar os Diálogos numa perspectiva mais ampla. Esta hipótese
postula que o argumento de Hume nos Diálogos deve ser compreendido como 1) um
argumento que se destina a problematizar a necessidade do planejador que
resultaria de nosso espanto com a harmonia natural e como 2) um argumento que
tenta explicar, sem a pressuposição do desígnio, o fato da ordenação natural.9
Não restam dúvidas quanto à existência de uma concordância entre Hume e
Cleantes no sentido de que, para ambos, o único argumento a favor da existência
do planejador que seria "digno de consideração" seria o argumento do desígnio.
Mounce (entre outros, como Ayer) também admite esta hipótese, afirmando que
Hume "reconhece a força do argumento do desígnio" (1999, p. 115). Penso que
isto deva ser ressaltado, na medida em que, se Ayer e Mounce estiverem certos,
a hipótese de que Hume redigiu os Diálogos com uma verve anti-teológica seria
tremendamente enfraquecida ou, no mínimo, deveria ser considerada bastante
desinteressante.10 Deste modo, parece tentador inferir daí que Hume,
efetivamente, estava a tratar antes do problema da harmonia natural (para o
qual sua solução apontará um caminho para uma interpretação empirista da
inferência da melhor explicação) do que propriamente de questões teológicas
pois, do contrário, sua preocupação com o argumento a priori ocuparia outra
grande parte dos Diálogos. Naturalmente, era típico de sua época que a solução
ao problema da harmonia natural fosse procurada no âmbito de um quadro
conceitual alicerçado em bases religiosas, o que obrigava Hume a se mover neste
mesmo quadro conceitual e cultural disponível e, por isso, discutir argumentos
como o argumento do desígnio.
O contra-argumento ao argumento do desígnio, fornecido por Hume, pode ser
encontrado na parte VIII dos Diálogos. No início desta seção, Filo retoma (de
forma ligeiramente modificada) o argumento de Hume acerca da impossibilidade de
demonstração de uma questão de fato. Os tópicos da razão humana são resolvidos
com base numa única conclusão; assim procedem as ciências demonstrativas. Mas
uma questão de fato (como o problema em pauta no livro) admite diversas
perspectivas que são, além disso, indecidíveis num embate teórico em termos de
sua verdade. Estabelecido isto, deveria o empirista abrir mão de poder
classificar (não em termos de verdade, mas de, digamos, razoabilidade) estas
hipóteses rivais? Filo oferece um argumento contrário a esta temível
perspectiva.
Em virtude de uma proposta de Filo acerca do sistema de Epicuro como uma
hipótese cosmogônica, Demea, bastante assustado, replica que, com a proposta de
Filo-Epicuro, a matéria poderia agir sem a intervenção da mente (ou de um
agente causal espiritual, ou de Deus). Para Filo, é exatamente esta hipótese (a
da ação material sendo explicada pela própria ação material) que deve ser
tomada a sério. Isto não significa, contudo, que uma outra hipótese, como a de
que a produção do movimento é causada pela mente (ou Deus), deva ser
desconsiderada. Ao invés, as duas devem ser tomadas como hipóteses rivais e,
mais importante, as duas devem ser consideradas legítimas. Ora, os Diálogos
oferecem uma bateria de contra-argumentos a respeito do desígnio; mas oferecem,
o que é mais importante, algumas pistas interessantes de uma hipótese que seria
construída cento e poucos anos depois: a hipótese darwinista. Neste sentido,
concordo integralmente com Oppy, para quem Hume (ainda que num sentido apenas
teórico) tenha oferecido, sim, uma antecipação de uma idéia central em Darwin;
ou seja, Hume não estava simplesmente demonstrando que o argumento do desígnio
era um argumento estruturalmente desqualificado ou mesmo paroquial: de fato,
Hume estava a propor uma alternativa.11 Esta seria a seguinte: suponhamos que a
ação na matéria não seja causada por um agente espiritual, mas pela própria
matéria. Como esta ação não foi planejada pode-se dizer que, num "primeiro
momento", tal ação é bastante desorganizada. Contudo, o caos inicial pretérito
seria seguido por um movimento que impusesse ordem à matéria. De acordo com a
hipótese de Filo, isto é um fato. Ora, o que é, neste caso, um fato? A ordem
natural. Assim, pareceria desapontador que, diante deste fato, pudesse
redargüir o defensor do argumento do desígnio: sim, e é a esta ordem que apelo
a fim de sustentar meu argumento de que, a não ser que se postule um designer,
a ordem permanecerá inexplicada. No entanto, a performance de Filo nem sempre é
reconhecida pelos comentadores como um momento construtivo da filosofia de
Hume. Vejamos então alguns comentários que não aceitam a inserção de Hume no
quadro explicativista que estou a delinear.
De acordo com Dennett, em A Perigosa Idéia de Darwin, Hume, ao rejeitar o
argumento do desígnio, estaria a liquidar a noção metafísica de que somente um
ser inteligente poderia ser responsável pelo planejamento da natureza. O
itinerário de Dennett começa em John Locke,12 para quem a matéria,
espontaneamente, nada pode produzir ' não pode produzir seu próprio movimento.
É necessário um princípio que coloque a matéria em movimento, e este princípio
seria a Mente. Assim, é a Mente que causa o surgimento da matéria e seu
movimento. Esta Mente é uma propriedade de um ser inteligente com capacidade
para o planejamento. Para Dennett, o argumento de Hume nos Diálogos seria uma
réplica a Locke; no entanto, o argumento não passaria disso. Na perspectiva de
Dennett, Hume estaria a adiantar algumas idéias de Darwin apenas como forma de
desestabilizar o argumento do desígnio.13 Além disso, argumenta Dennett que, na
parte XII dos Diálogos, Filo admite que mesmo que abandonássemos a hipótese de
Cleantes ainda assim teríamos de nos contentar com a Mente como princípio
originário. Ora, é exatamente esta noção, de acordo ainda com Dennett, que
deveria ser abandonada! Mas como podia Hume abandonar esta idéia, afirma
Dennett, se ele não dispunha de nenhuma alternativa para o problema em pauta?
Enfim, não teria ocorrido a Hume, conquanto sua perplexidade seja de fato um
brilhante insight, que o planejamento seria possível sem um planejador. Parece
então, seguindo em parte a trilha de Dennett, que é razoável que se coloque a
questão de por que não teria ocorrido a Hume uma hipótese como a sugerida
ulteriormente por Darwin. Dennett não se preocupa em resolver este problema, e
nem é seu objetivo fazê-lo no livro mencionado; mas eu gostaria de mencionar
sua leitura da parte XII dos Diálogos, pois penso que a citação dessa parte
onde Hume, a partir da segunda intervenção de Filo, adota a noção de "mente"
como uma alternativa a "Deus", não capta o verdadeiro significado por ele
atribuído a "mente". Examinemos essa passagem onde Filo admitira a Mente como
princípio originário:
A conclusão legítima desta investigação é que (...) se não nos
contentarmos em atribuir à causa primeira e suprema o nome de Deus,
ou Divindade, mas se quisermos variar a designação, que nos restaria
senão chamá-la Mente ou Pensamento, dado que se supõe com justiça que
ela guarda uma considerável semelhança com essas coisas? (Hume, 1992,
p. 170)
Ora, nesta parte XII, Filo está exatamente (como o trecho citado por Dennett
também comprova) empenhado em mostrar que seu argumento contra o desígnio seria
válido para a suposição da causa primeira como "Deus" ou "Mente" ou
"Inteligência". Agora, estaria Hume a capitular nesta parte final dos Diálogos?
Todo o problema é demonstrar que esta conclusão (seja "Deus" ou "Mente") se
segue dos efeitos que observamos, e alterar os termos não auxilia na solução da
questão.
Outro defensor da idéia de que Hume não ofereceu alternativa ao argumento do
desígnio é Richard Dawkins. Para ele,14 Hume teria apenas liquidado o argumento
do desígnio, mas teria "subestimado a complexidade e a beleza do desígnio
biológico".15 O problema com essa hipótese é que ela não parece levar em conta
as similaridades entre o contra-argumento de Filo antes apresentado (da parte
VIII dos Diálogos), a interpretação do próprio Dawkins do argumento de Darwin e
sua "descrição" (hipotética, é claro) do surgimento da estabilidade no
universo. Para Dawkins (1989, p. 12), a idéia darwinista de "sobrevivência do
mais apto" deveria ser substituída (sem prejuízo para Darwin) pela noção mais
ampla de "sobrevivência do estável" (onde o fittest seria um caso especial da
sobrevivência do mais estável). E, quando Dawkins "descreve" o surgimento da
estabilidade, o faz em termos bastante humeanos (como Filo o fez na parte
VIII), da seguinte forma: no meio de todas as moléculas que lutavam pela
sobrevivência, uma delas teria conseguido, por acaso, fazer uma réplica de si
própria. Com o surgimento desta replicadora, começou a surgir a estabilidade.16
Ora, não era exatamente este o núcleo do argumento Filo-Hume, a passagem do
caos para a ordem sem a orientação de um planejador?
Contudo, nem todos os pensadores se "limitam" a conceder a Hume algo mais do
que os méritos de uma boa crítica; há aqueles que percebem, na crítica humeana
ao argumento do desígnio, um momento construtivo da história da filosofia. Para
este trabalho, a orientação geral de perceber em Hume um momento construtivo da
história da filosofia ilumina meu objetivo mais modesto de percebê-lo,
igualmente, como um filósofo que se preocupou em construir uma alternativa ao
argumento do desígnio. Neste caso, é importante revelar algumas fontes
decisivas para a minha proposta.
Além do já citado Oppy (que abaixo será novamente considerado), a hipótese de
Hume como um precursor de Darwin é defendida também por João Paulo Monteiro.
Para Monteiro, Filo insiste na idéia de que uma explicação deve seguir o
princípio da eliminação de causas desnecessárias, de modo que não se inflacione
metafisicamente a própria explicação. Nesse caso, haveria duas opções: o
argumento do desígnio e a disposição interna da natureza, que não permitiria o
desajuste (excessivo) entre ela mesma e os seres vivos. Ora, é evidente que a
segunda opção é metafisicamente recessiva, e é por isso que deve ser preferida.
Ela não corta o mundo em suas juntas (para usar uma expressão tipicamente
realista), mas é preferível a suas rivais inflacionárias e adiposas. Talvez
esta idéia fosse corroborada pela atitude metodológica adotada por Hume, pois
se é possível a explicação através de expedientes pouco onerosos, por que
acrescentar entidades que poderiam ser eliminadas sem nenhuma perda epistêmica?
Na avaliação de Monteiro, Hume não estaria a considerar o argumento do desígnio
como uma boa alternativa, pois a adaptação é uma condição necessária para a
sobrevivência dos seres vivos. A verdade é que não há mistério, e a questão que
o argumento do desígnio se propõe solucionar não se coloca, pois "(...)
significa simplesmente que nenhum ser vivo não adaptado ao seu meio ambiente é
capaz de sobreviver, de modo que não tem sentido algum insistir na sua
admirável adaptação" (MONTEIRO, 1984, p. 121). Monteiro ainda argumenta, contra
as alternativas que alegam o caráter apenas negativo da exposição de Filo no
debate, que a única hipótese formulada por Filo que restaria nos Diálogos seria
a da adaptação na natureza. Como sabemos, esta adaptação seria conduzida pelo
hábito, "(...) um instrumento viável de adaptação ao ambiente que a nossa
espécie partilha com as outras espécies animais" (MONTEIRO, 1984, p. 133).
Acrescente-se que Monteiro vincula o argumento de Filo ao princípio da indução,
de modo que tornaria significativa a adoção da hipótese do hábito. Além disso,
insiste em que o princípio da parcimônia ou simplicidade (cuja inspiração
deriva do modelo de explicação newtoniano) é suficiente para Hume rejeitar o
argumento do desígnio, isto é, a natureza se comporta de forma a preservar o
equilíbrio das partes, eliminando violentamente as formas de vida caóticas;
desta forma, o seu princípio de seleção é tudo o que precisamos para dar conta
do fenômeno da adaptação.17
Outro filósofo alinhado com esta hipótese é Gaskin (1993). De acordo com ele,
mesmo sem dispor de algo como a teoria do big bang, Hume já teria antevisto uma
alternativa que ao mesmo tempo mostrava que o argumento do desígnio seria
defeituoso.18 Gaskin aponta a hipótese de Filo-Hume (da parte VIII), em que a
ordem emergiria do caos, como um processo "aparentado" com o da seleção
natural.19
Subscrevo inteiramente as hipóteses de Oppy, de Monteiro e de Gaskin. Além
disso, o que era a hipótese de Filo senão um watershed20 na história do
argumento do desígnio? E o era, não apenas por demonstrar inconsistências
internas ao argumento (como toda parte X dos Diálogos se dedicava a mostrar);
mas, sobretudo, por apresentar (ainda que do ponto de vista meramente teórico)
insights que seriam depois "materializados" numa admirável teoria científica, a
teoria da evolução pela seleção natural. Esta, como se sabe, tende a preservar
formas de vida que eliminem condições desfavoráveis (como a desordem) e
preservar formas de vida que agrupem ao máximo condições úteis e favoráveis; e
nela, como argumenta Monteiro, não há mistério. Mas, se não há mistério, há ao
menos dois problemas com esta linha argumentativa. Em primeiro lugar, para John
Mackie,21 o argumento de que não há mistério poderia incorrer numa petição de
princípio: as coisas são assim porque, afinal de contas, de outro modo, não
seriam como são (e isto tornaria a sobrevivência inviável). O próprio Cleantes
argumenta neste sentido (ainda na parte VIII), e a resposta de Filo é decisiva
para o que pretendo demonstrar mais abaixo neste artigo, qual seja, que essa é
uma questão que não pode ser respondida em termos de sim ou não. Em segundo
lugar, a própria noção de "mistério" parece aqui residir num nível diferente
daquele em que deveria. Na verdade, há mistério, e muito. Quando Monteiro
utiliza a idéia de "disposição interna da natureza", ele está a pensar numa
questão genuinamente epistemológica: é preferível crer na disposição interna da
natureza, do que no argumento do desígnio. O problema é que, para o problema da
explicação, o argumento de Filo-Hume-Darwin parece ser menos simples do que o
argumento do desígnio. Eu penso que estamos diante de uma ilusão ontológica: a
explicação de Hume apela apenas à disposição interna da natureza que é,
decididamente, menos inflacionada (ontologicamente) do que o argumento do
desígnio. No primeiro caso, temos de aceitar apenas a existência de certos
fatos observáveis e algumas hipóteses (o que não vem ao caso agora), enquanto,
no segundo, apelamos (para além destes fatos observáveis) à existência de uma
entidade para a qual não possuímos acesso epistêmico. Ou seja, a ontologia
inclusa no argumento do desígnio é decididamente mais obesa. No entanto, penso
que Hume não estava a tratar de ontologia quando da discussão do argumento do
desígnio. E, para aqueles que percebem em Hume um precursor do darwinismo (como
Monteiro, Oppy e Gaskin), o ponto em questão, creio, reside na explicação, ao
invés, por exemplo, de residir na ontologia. Assim, assumir uma alternativa ao
argumento do desígnio, na forma proposta por Hume e, além disso, argumentar
contra a hipótese de que ele seria apenas um contendor anti-teológico,
significa assumir um risco de que sua explicação talvez não seja mais simples
do que a proposta no argumento do desígnio, ainda que certamente seja a mais
viável para uma epistemologia empirista (o grau de crença parece ser menor) e
para a ontologia (postulam-se entidades em menor número).
Deixo aqui em aberto, conquanto tenha todas as simpatias por esta leitura, se
Hume capacitou-se a ser um precursor de Darwin. De fato, interessa-me outra
questão, que nasce da tréplica de Filo a Cleantes, quando este contra-argumenta
à idéia pré-darwinista de Hume já referida. Filo, em sua tréplica, não rejeita
a réplica de Cleantes; inclusive, festeja o fato de que seu oponente inferiu a
imperfeição da hipótese anti-desígnio. Mas, com isso, não se segue que Filo
tenha concedido o argumento a Cleantes; antes, está a conceder que sua
alternativa não está livre de problemas. Ora, mas então perguntemos a Hume por
que deveríamos aceitar seu argumento e rejeitar o argumento do desígnio. Creio
que há quatro níveis de análise para o encaminhamento de uma resposta.
Em primeiro lugar, o nível epistemológico. Certamente, há menos crença
envolvida na alternativa humeana do que no argumento do desígnio. Contudo, esta
solução é insatisfatória, pois se o problema fosse apenas uma questão de
crença, uma alternativa ao argumento do desígnio seria o agnosticismo. Mas, uma
vez que decidimos encarar Hume não apenas como um desafeto do argumento do
desígnio, mas igualmente como um filósofo interessado em fornecer uma
alternativa ao problema em pauta, parece, então, que o nível epistemológico não
é suficiente para nos convencermos da hipótese humeana. Em segundo lugar, o
nível ontológico. Como já mostrei, o argumento do desígnio é, do ponto de vista
ontológico, efetivamente perturbador para filósofos empiristas. Mas o próprio
debate (dos Diálogos) é assentado em algumas regras. Uma delas, estatuída na
parte II, aceita ao menos por Filo e por seu proponente Demea ' talvez não seja
por Cleantes, mas é suficiente, para meu argumento, que seja aceita por Filo '
é de que a discussão é referente à natureza de Deus, e não à sua existência.
Desse modo, o que está em jogo é a possibilidade da inferência à existência de
Deus, antes de um argumento ontológico.22 Em terceiro lugar, o nível semântico.
Penso que, neste domínio, uma leitura menos restritiva do parágrafo 17 da
Investigação sobre o Entendimento Humano, em conjunto com o argumento de
Monteiro sobre a conexão entre o hábito (um mecanismo teórico para Hume) e a
adaptação, são suficientes para mostrar que Hume não está a reivindicar seu
argumento com base numa teoria do significado. De resto, o uso de uma teoria
semântica por parte de Hume serviria, neste contexto, apenas para
desestabilizar (se de forma coerente ou não, isto não vem ao caso agora) o
argumento do desígnio, e não para fornecer um novo argumento. Resta, em quarto
lugar, o nível explicativo. Penso que é neste nível que se encontra a força do
argumento humeano; além de ser a partir dele, acredito, que o defensor da
hipótese de Hume como um pré-darwinista deva se manifestar. Para Hume, as
evidências factuais apontam para uma explicação que simplifica, com base na
uniformidade ou ordem, a hipótese da adaptação dos meios aos fins. Ora, o
ordenamento é um fato, tanto para Hume quanto para o defensor do argumento do
desígnio. Mas ele pode ser explicado de forma que não necessitemos apelar a um
princípio regulador do ordenamento, entendendo aqui tal princípio como
residindo fora daquilo que se quer explicar, no caso, um agente causal não
material. Contudo, esta explicação não será mais simples pelo fato de, por
exemplo, evitar o regresso ao infinito; ou ainda, por não postular causas
desnecessárias. Ademais, isto seria insuficiente para caracterizarmos Hume como
um precursor de Darwin. A explicação de Darwin, até onde sei, não é mais
simples do que a explicação pela ação do designer que, por meio de um mero
fiat, tudo resolveria. A hipótese de Hume-Darwin, ao invés, é bastante
problemática em termos de explicação alternativa ao argumento do desígnio.23
Contudo, ela explica mais. Ela explica, por exemplo, o fato de a espécie humana
ser constituída organicamente de uma certa forma, mas, ao fazê-lo, constrói uma
longa cadeia argumentativa decididamente mais complicada do que aquela
encontrada na afirmação da criação divina. Portanto, há um ganho explicativo,
mas com o preço da perda da simplicidade oferecida pelo argumento do desígnio.
É óbvio que as considerações de ordem epistemológica e ontológica estão
presentes na avaliação de Hume, pois não consigo compreender os Diálogos como
deslocados das teses humeanas acerca dos limites do entendimento humano.
Contudo, tenho a impressão de que há uma inegável precedência do problema da
explicação; do contrário, por que simplesmente não excluir este problema a
partir da adoção de uma semântica mais severa, ancorada numa ontologia
beligerante com relação à admissão de inoberváveis? E, como lembra Gaskin
(1993, p. 326), Hume também estava a questionar a razão pela qual haveria
necessidade de explicar a ordem do universo pressupondo um ordenamento inicial.
Naturalmente, se desde o início dos tempos houvesse ordem, não haveria
igualmente necessidade de explicação. É exatamente a hipótese (audaciosa, na
época de Hume, e mesmo depois, e talvez até hoje em circuitos não acadêmicos)
de que seria o caos do início que dramatiza a questão, ou melhor, que a torna
um problema genuíno.