"As principais forças dos pirrônicos" (La 131) e sua apropriação por Huet
La 131 é um dos longos fragmentos dos Pensamentosde Pascal. Incluído no folio
"contrariedades", ele desenvolve o argumento da verdadeira religião (La 149) ou
prova pela doutrina (La 402), cujo objetivo é apontar o valor racional da
doutrina cristã, a fim de quebrar resistências intelectuais1 e, assim, melhor
dispor o leitor para a consideração das provas escriturais.2 O argumento busca
mostrar que só a revelação sobrenatural cristã, fundamentalmente a doutrina da
queda, é capaz de explicar e solucionar as contrariedades humanas morais e
epistemológicas que são somente parcialmente apontadas pelas filosofias pagãs
desprovidas da revelação.
Pascal se vale da distinção das filosofias e dos filósofos, feita pelos céticos
pirrônicos: dogmáticos (que pretendem ter conhecimento da verdade), novos
acadêmicos (que negam que a verdade possa ser conhecida) e os próprios céticos
ou pirrônicos (que suspendem o juízo).3 Para estabelecer a contrariedade das
filosofias pagãs, Pascal reduz os três grupos de Sexto a dois. Associa
acadêmicos e pirrônicos, contrapondo-os aos dogmáticos.4 Cada grupo descreve um
aspecto verdadeiro da condição epistêmica do homem, mas desconsidera o aspecto
contrário igualmente verdadeiro. Os pirrônicos mostram bem a impossibilidade de
a razão fundamentar o conhecimento, mas se equivocam ao achar que podemos
suspender o juízo sobre tudo. Os dogmáticos mostram bem que não podemos
suspender universalmente o juízo, que algumas crenças se impõem, mas se
equivocam ao supor que estas crenças possam ser fundamentadas. A doutrina da
queda, com a dupla natureza do homem por ela implicada, explica e concilia esta
contrariedade: o conhecimento era possível no estado de inocência, não é mais
no da queda, mas restam vestígios da situação pré-lapsária que, em última
análise, explicam a impossibilidade da épochè. A filosofia pagã se destrói na
contraposição irresolúvel no terreno da mera razão entre dogmatismo e
"pirronismo" (no sentido pascaliano), cujas insuficiências conferem
credibilidade intelectual à doutrina cristã.
Com este argumento, Pascal se insere numa longa tradição de utilização
apologética do ceticismo antigo. Tal utilização começa com Santo Agostinho e os
padres fundadores, mas se amplia consideravelmente a partir do Renascimento,
quando, graças à disponibilização dos textos de Sexto Empírico, o pirronismo e
seu rico manancial de argumentos antidogmáticos passa a ser empregado
juntamente com os do ceticismo acadêmico, únicos conhecidos pela cristandade
até o século XVI.5 Entretanto, o uso do ceticismo por Pascal é mais complexo do
que o uso renascentista e do início do século XVII, que podemos caracterizar
como fideísta.6 O fideísta usa o ceticismo como uma espécie de preambulo
fideinegativo, removendo falsas doutrinas dogmáticas que estorvam o único
acesso legítimo à fé, um acesso necessariamente não racional, que pode ou não
ser sobrenatural. Em Pascal, o ceticismo não é o ponto de partida filosófico,
num certo sentido, antifilosófico, que prepara a aceitação da verdade
sobrenatural da revelação cristã. O caminho de Pascal é o inverso. Um certo
ceticismo limitado (epistemológico, mas não moral ou psicológico) é o resultado
da verdade da revelação cristã. Não se trata, portanto, de levar o interlocutor
a um ceticismo para facilitar a sua aceitação da revelação cristã, mas mostrar
ao cético que tanto o que sua posição tem de correto quanto o que ela tem de
equívoco ou deficiente explicam-se pela aceitação da revelação cristã.
Um certo ceticismo ' assim como um certo dogmatismo ' é portanto chancelado
pelo cristianismo. Se, por um lado, a apropriação pascaliana do ceticismo é
mais crítica do que a dos fideístas, na medida em que, contrariamente a estes,
o ceticismo é visto por Pascal como uma posição inconsistente e
insatisfatória;7 por outro, Pascal traz o ceticismo para o interior do
cristianismo. Por exemplo, na utilização pascaliana da divisão tripartite da
filosofia por Sexto, o cristianismo toma o lugar do pirronismo, que em Sexto
era a alternativa genuinamente não dogmática à contraposição dogmatismo versus
nova academia (entendida por Sexto como um dogmatismo negativo). Em La 109,
Pascal contrapõe dogmáticos, que afirmam uma total clareza da luz natural, aos
acadêmicos que sustentam uma total obscuridade.8 Esta contraposição, diz
Pascal, "[glorifica] a cabala pirrônica que consiste nessa ambiguidade ambígua,
e em certa obscuridade duvidosa de que as nossas dúvidas não podem tirar toda a
clareza, nem as nossas luzes naturais espantar todas as trevas". Esta mistura
de clareza e obscuridade é justamente a condição da verdade, em especial para o
homem decaído, o estatuto epistêmico da verdade cristológica e da verdade
escritural.9
A maior complexidade do uso do ceticismo por Pascal tem duas causas
fundamentais. A primeira é seu agostinismo teológico, sua concepção da natureza
corrompida, que o fez pensar o ceticismo como sintoma desta corrupção. Este
ceticismo anti-humanista de raiz teológica está ausente dos principais
filósofos e teólogos que utilizaram o ceticismo antigo para fins
apologéticos.10 Explorei este viés em outro trabalho.11 Aqui quero me debruçar
sobre alguns aspectos da segunda causa: a influência de Descartes.
O primeiro ponto a se destacar é que talvez a própria classificação das
filosofias pagãs tenha origem não em Sexto, mas em Descartes.12 Na Carta
Prefácio à tradução francesa dos Princípios da Filosofia, Descartes faz uma
síntese da história da filosofia, contrapondo dogmáticos (Aristóteles e seus
discípulos peripatéticos) e céticos. Descartes inclui entre estes últimos:
Platão, interpretado por Descartes como parcialmente cético,13 os novos
acadêmicos (Arecesilau e discípulos) e os pirrônicos. Encontramos em Descartes
esta mesma síntese das posições filosóficas da história da filosofia em dois
pólos contrários, um cético e outro dogmático. Mais ainda, Descartes apresenta
a sua filosofia como a que reconcilia estas duas filosofias contrárias,
preservando e corrigindo o que cada uma possui de verdadeiro e rejeitando o que
cada uma possui de falso.14
Voltemos à estrutura do argumento de La 131 para apontarmos outros aspectos da
presença cartesiana. A idéia de Pascal é que toda filosofia poderia se reduzir
ou ao dogmatismo ou ao "pirronismo", posições contrárias entre si e ambas
igualmente inconsistentes internamente. Só assim o argumento pode conferir
credibilidade intelectual à doutrina cristã da queda, que introduz os dois
estados do homem responsáveis pelo que cada filosofia tem de verdadeiro e de
falso e que são igualmente presentes ou importantes.15 O problema é que Pascal
desenvolve muito mais as forças dos pirrônicos do que as dos dogmáticos,
estabelecendo um certo desequilíbrio favorável ao pirronismo. Esta situação
levou os editores de Port-Royal a enxertarem em La 131 o fragmento La 110, que
faz uma crítica explícita aos pirrônicos. La 110 é inserido no ponto de La 131,
no qual Pascal diz, depois de detalhar as principais forças dos pirrônicos, que
o único ponto forte dos dogmáticos é que a incapacidade da razão de fundamentar
algumas verdades não apaga o nosso sentimento de que são verdades e, portanto,
não é capaz de levar à suspensão do juízo, mostrando, ao contrário, a
impotência da razão cética. Este reforço dos dogmáticos seria justificado pelos
editores de Port-Royal, que apontam o caráter inacabado da obra pascaliana.16
Esse caráter não explica, entretanto, a menor elaboração da "principal força
dos dogmáticos". Em primeiro lugar, porque, no Entretien com Sacy ' um texto
supostamente completo ', onde o argumento da verdadeira religião é a espinha
dorsal da leitura que Pascal apresenta de Montaigne e de Epíteto ' que
representam, respectivamente, o "pirrônico" e o "dogmático" ', as forças do
pirrônico Montaigne são bem mais desenvolvidas do que a do dogmático Epíteto.
Em segundo lugar, mesmo com o reforço de La 110, não fica equilibrada a
contraposição entre "pirrônicos" e dogmáticos, uma vez que o argumento de La
110 contra os pirrônicos se aplica igualmente aos dogmáticos, pois se trata de
atacar o princípio de integridade intelectual supostamente adotado por ambos os
partidos. Embora Pascal vise especificamente aos "pirrônicos", os dogmáticos
são igualmente atingidos.17 Se a razão é incapaz de fundamentar a verdade, mas
esta se impõe apesar disso, o pirrônico triunfa parcialmente, e o dogmático
fracassa totalmente, pois um assentimento não determinado pela razão é tão
contrário à atitude do filósofo dogmático como à do cético. Enfim, mesmo quando
Pascal contrapõe dogmatismo e "pirronismo", alegando que não se pode permanecer
em nenhuma das duas filosofias nem evitar uma ou outra, novamente o
"pirronismo" prepondera sobre o dogmatismo, na medida em que uma eventual
neutralidade seria, segundo Pascal, neste ponto seguindo Montaigne, uma posição
tipicamente pirrônica.18
Examinemos agora, rapidamente, as duas principais forças dos pirrônicos: o
argumento da incerteza da nossa origem e o argumento do sonho. Um e outro
cenário colocam em dúvida o sentimento da verdade dos princípios. Como os
editores e intérpretes de Pascal já indicaram, trata-se de argumentos céticos
cartesianos e não propriamente pirrônicos nem montaigneanos. O argumento da
incerteza da origem é ausente dos céticos antigos e modernos,19 e o do sonho
tem neles uma estrutura distinta, em que não é jamais questão a possibilidade
de toda nossa experiência sensível ser meramente onírica.20 O que os argumentos
colocam em dúvida é a realidade do mundo exterior, tal como ele é compreendido
pela nova ciência, notadamente a física cartesiana, pois os princípios que são
colocados em dúvida são os da filosofia natural de Descartes: espaço, tempo,
movimento, número.21 Estes princípios são colocados em dúvida tanto na Primeira
Meditação como em La 131 com os argumentos do sonho e do Deus enganador. O
argumento do sonho na Primeira Meditação tem seu cume nas "coisas mais simples
e mais universais" (do que cores e formas sensíveis): a extensão e suas
propriedades (quantidade, grandeza, número, lugar e tempo), cuja existência
exterior à mente é posta em dúvida pelo argumento do sonho. Pascal observa que
exatamente as mesmas experiências espaço-temporais da vigília ocorrem no sonho,
não havendo como distingui-las. O argumento da incerteza da nossa origem coloca
sob suspeita o nosso sentimeto de verdade dos princípios da natureza, retomando
os três cenários mencionados por Descartes: o do Deus bom, o do Deus enganador
e o do ateísmo.22 E, novamente como Descartes, é o argumento da incerteza da
origem que Pascal toma como a principal força dos pirrônicos, contrapondo-o à
"única força dos dogmáticos" acima indicada.
Pascal utiliza um "pirronismo" que não é pirrônico, mas cartesiano, para fins
alheios ao pirronismo, como o faz Descartes. Poder-se-ia perguntar por que
Pascal chama tais argumentos de pirrônicos. Em primeiro lugar, não há nenhuma
evidência de que Pascal tenha lido os textos dos céticos antigos. Montaigne, a
quem ele toma por "pirrônico perfeito" no Entretien, não utiliza, como
indicado, estes argumentos. Pascal não está interessado em apresentar posições
históricas, mas reconstruções filosóficas, seguindo também neste ponto
Descartes. Com efeito, Descartes não distingue sua dúvida da pirrônica nos
textos que Pascal pôde ler. Na terceira parte do Discurso do Método, Descartes
diferencia sua dúvida da dos céticos somente quanto ao fim (AT VI 29). Nas
Respostas às Segundas Objeções, Descartes diz ter tido que retomar, para os
seus próprios propósitos, os argumentos dos acadêmicos e céticos (AT VII
130).23 Nas Respostas às Terceiras Objeções, ele diz que utilizou os argumentos
céticos sem pretender qualquer originalidade (AT VII 171-172), como se os seus
argumentos fossem da mesma natureza da dos céticos antigos. Por fim, nas Notae
in Programa Quoddam, Descartes se refere a "dúvidas semelhantes" dos céticos
antigos (AT VIII-2 367). Somente na Entrevista com Burman, texto publicado
muito depois da morte de Pascal, Descartes diz não ter se contentado, na sua
dúvida, com as objeções habituais dos céticos (AT V 147).
Na maioria destas alusões aos céticos antigos, Descartes deixa clara a
instrumentalização que faz da dúvida cética. Ela lhe serve basicamente para
dois objetivos: preparar a distinção entre alma e corpo e permitir uma total
superação da dúvida com a fundação da nova filosofia em bases indubitáveis. A
instrumentalização da dúvida cética por Pascal é para outro fim. A exposição
das principais forças dos pirrônicos serve não para estabelecer a distinção
entre mente e corpo, e muito menos para uma fundamentação metafísica do
conhecimento, mas para a construção de um impasse filosófico que mostraria a
limitação da luz natural e a necessidade de se recorrer à Bíblia. Assim,
enquanto em Descartes estes argumentos céticos mais fortes (mais fortes que os
antigos) servem para a refutação do próprio ceticismo, em La 131 o ceticismo
permanece epistemologicamente fortalecido no campo da filosofia natural. Pascal
rebate a refutação de Descartes do argumento do sonho na Sexta Meditação,
dizendo que a incapacidade da memória de ligar os sonhos entre si e estes com o
resto de nossa experiência seria um critério confiável da distinção, alegando a
possibilidade de os sonhos concordarem e de se sonhar em companhia.24 Enfim,
quanto ao argumento da incerteza da origem, enquanto Descartes crê ser possível
afastar esta dúvida com as provas da existência de Deus, Pascal alega que só é
possível afastá-la apelando-se para a fé e a revelação. Em Pascal,
contrariamente a Descartes, o cético não pode ser vencido num terreno meramente
epistemológico. Ele é vencido no terreno psicológico e moral, na medida em que
não é possível manter a suspensão do juízo.
Embora tenha sido a posição de Pascal face ao ceticismo e não a de Descartes
que prevaleceu na filosofia posterior, de Hume a Russell, o uso cartesiano do
ceticismo é mais correto historicamente do que o pascaliano. Contrariamente à
leitura de Popkin, Descartes não parece especialmente preocupado em refutar os
céticos antigos.25 Uma eventual refutação do ceticismo seria mais um ganho
suplementar decorrente do sucesso do seu projeto filosófico. A dúvida visa
fundamentalmente estabelecer a separação mente/corpo, colocando em questão as
coisas sensíveis/corpóreas e estabelecendo a realidade das inteligíveis. Embora
a separação mente/corpo seja totalmente alheia ao ceticismo antigo, como à
filosofia antiga em geral, a colocação em dúvida das coisas sensíveis é
plenamente consistente com o ceticismo antigo. O estabelecimento das
inteligíveis certamente não é consistente com o pirronismo, mas poderia ser com
a nova academia se fosse dado crédito a um suposto platonismo esotérico citado
em algumas fontes.26 Embora esta hipótese de um suposto platonismo secreto da
nova academia seja negada pela maioria dos intérpretes contemporâneos, ela é
levada a sério por Agostinho e por Simon Foucher no final do século XVII.27
Quanto à utilização pascaliana do ceticismo, como Pascal tem por projeto
refutar ou mostrar a insuficiência da posição dos dogmáticos e dos céticos,
deveria se restringir às posições dos céticos, seja a dos antigos, seja a dos
modernos (Montaigne). Entretanto, Pascal evoca somente "as principais forças
dos pirrônicos", isto é, os argumentos da dúvida hiperbólica ou metafísica de
Descartes, "deixando de considerar", como ele próprio afirma em uma parte
riscada do manuscrito dos Pensamentos, "as [forças] menos importantes, como os
discursos contra as impressões do hábito, da educação, dos costumes dos países
e outras coisas semelhantes (...) que são derrubadas pelo menor sopro dos
pirrônicos". Pascal deixa, assim, de lado os argumentos dos céticos antigos
(Sexto etc.), renascentistas (Montaigne, Charron) e seus contemporâneos (La
Mothe Le Vayer), muito embora quem "[olhasse] os seus livros (...) depressa
[ficaria persuadido] e talvez demais". Os argumentos dos pirrônicos de carne e
osso, embora certamente menos fortes do que os hiperbólicos de Descartes, são
por isso mesmo mais plausíveis e praticáveis. Parecendo favorecer os pirrônicos
ao reter somente suas principais forças, Pascal de fato retira os argumentos do
sonho e do Deus enganador do seu contexto próprio metafísico em Descartes e
aponta o fato de não serem praticáveis como evidência da inviabilidade da
posição cética. O resultado é um divórcio entre ceticismo e vida prática, o
ceticismo ficando imbatível no terreno meramente epistemológico, mas,
contrariamente à intenção cética, totalmente ineficaz do ponto de vista
moral.28
Ao retomar os argumentos da dúvida cartesiana sobre o mundo exterior e recusar
a solução cartesiana desta dúvida, Pascal contribui de forma decisiva para a
configuração do "Descartes septique malgré lui", para citar o capítulo da
História do Ceticismo no qual Richard Popkin examina a leitura cética que se
começa a fazer ' ou se derivar ' de Descartes antes mesmo de sua morte.29 Esta
apropriação cético-epistemológica da instrumentalização do ceticismo operada
por Descartes é marcante em Hume, por exemplo, que foi bastante influenciado '
positiva e reativamente ' por Pascal.30 A segunda parte deste artigo estabelece
um outro caminho pelo qual o ceticismo moderno ou cartesiano foi construído:
através de Pierre-Daniel Huet. Embora Huet tenha sido relegado às margens da
filosofia, foi bastante influente no final do século XVII e início do XVIII.31
Mostro a seguir que Pascal contribui significativamente para a elaboração do
Descartes cético huetiano.
Pierre-Daniel Huet foi provavelmente o maior erudito francês do século XVII.
Foi também cientista experimental, tendo estabelecido a primeira academia de
ciências no interior da França (em Caen). Embora inicialmente influenciado por
Descartes, veio a se tornar o mais eminente e influente crítico desse filósofo
no final do século XVII, reagindo contra os cartesianos de sua época e, em
particular, ao desprezo que estes, especialmente Malebranche, manifestavam pela
erudição.32 O livro que Huet escreveu contra Descartes, a Censura Philosophiae
Cartesianae (Paris, 1689), fazia parte de uma obra maior, que foi fatiada em
decorrência da oposição sofrida por Huet ao ceticismo da sua primeira parte,
que por esta razão só veio a ser publicada postumamente sob o título de Traité
Philosophique de la Foiblesse de l'E sprit Humain (Amsterdam, 1723).33
O Traité Philosophique apresenta, na sua primeira parte, treze provas da
fraqueza do entendimento humano, isto é, da impossibilidade, como afirma o
título desta parte, "da razão poder conhecer a verdade com uma certeza inteira
e perfeita". A nona prova, que compõe o capítulo 10 do livro I, é a "razão de
duvidar de todas as coisas, proposta por Descartes, a saber, que ignoramos se
Deus não nos criou com uma natureza tal que nos enganamos sempre" (p. 85).
Podemos dizer que este argumento é para Huet, como para Pascal, uma "das
principais forças dos pirrônicos". Com efeito, Huet diz que, dentre todas as
provas citadas, é "principalmente esta razão de duvidar de todas das coisas que
Descartes propôs" (p. 87) que liquida com o último recurso dos dogmáticos, ao
qual recorrem para evitar o dilema imposto pelos pirrônicos entre um regresso
ao infinito e um círculo vicioso, a saber, a alegação da auto-evidência de
princípios ou noções.34
O manuscrito de uma versão primitiva do Traité que encontrei na Biblioteca
Nacional em Paris, ainda figurando como a primeira parte da grande obra
abortada, permite estabelecer as modificações que Huet fez no texto, muitas das
quais em função de críticas de amigos íntimos a quem mostrou o manuscrito. O
capítulo nove com a dúvida cartesiana do Deus enganador foi um dos mais
alterados, tendo Huet feito o seguinte acréscimo no ponto em que afirma ser tal
dúvida "digna de um filósofo". "Quando digo que ela é digna de um Filósofo, não
quero dizer um Filósofo Cristão, que sabe que Deus esclarece todos os homens
que vêm a este mundo (Job I.9). Mas Descartes falava então como Filósofo, e não
como Cristão" (p. 85-86, o itálico indica o acréscimo feito por Huet no
manuscrito).
Esta surpreendente defesa de Descartes por Huet, mas notem bem, de um Descartes
cético, pode ser esclarecida graças à recente publicação de duas cartas de dois
destes amigos a quem Huet mostrou o manuscrito e solicitou críticas: o jesuíta
Louis Le Valois e Jean-Baptiste du Hamel.35 Le Valois é um anticartesiano
ferrenho, que publicou sob o pseudônimo de Louis de La Ville o livro Sentimens
de M. Descartes touchant l'essence et les proprietez du corps, opposez a la
doctrine de l'E glise, et conforme aux erreurs de Calvin, sur le sujet de l'E
ucharistie (Paris, 1680). Le Valois é curto e grosso a propósito da retomada
por Huet do argumento cartesiano do Deus enganador: "O nono argumento, que é de
Descartes, me parece chocante. Meu espírito não o domestica."36 Du Hamel, ex-
membro da Oratória, também crítico, mas bem mais receptivo do que Le Valois a
Descartes e ao cartesianismo,37 rejeita igualmente o argumento. Sua crítica foi
provavelmente o que levou Huet a acrescentar a defesa de Descartes acima
citada. Segundo Du Hamel,
Isto que diz Descartes não pode concordar com a verdadeira idéia de
Deus, que é a verdade mesma, e quem não pode nos ter criado nesta
necessidade de nos enganar. Você acrescenta que esta é uma dúvida
digna de um filósofo. Não sei se esta dúvida é digna de um filósofo:
mas não creio que um Cristão possa ter esta dúvida, [a saber] se Deus
não nos criou com o desígnio de sempre nos enganarmos, e até nas
coisas que nos parecem as mais evidentes. Ele [Descartes] deveria ao
menos resolver suas dúvidas e assim eu não gostaria de aprovar esta
ficção de Descartes.38
Du Hamel começa o seu comentário citando um manuscrito de um doutor não
especificado, que teria mostrado que "este princípio do senhor Descartes, que é
necessário uma vez na vida duvidar de tudo, é perigoso, pois ele desvia nosso
espírito da visão de Deus, para ocupá-lo da investigação das criaturas" (p.
173), ou seja, o contrário do que afirma Descartes na dedicatória das
Meditações à Faculdade de Teologia da Sorbonne. A posição de Huet segundo Du
Hamel é ainda mais perigosa do que a de Descartes, "pois, isto que diz
Descartes, que para o exame da verdade é bom colocar tudo em dúvida uma vez na
vida, os Céticos, que você defende, gostariam que o fizéssemos sempre" (p.
173).39 Du Hamel afirma ainda que o remédio de Huet contra a arrogância da
razão é excessivo ' bastaria limitá-la para conciliá-la com a fé ' e
contraproducente, pois tal ataque à razão atinge também a própria fé.
Certamente estas reações de Le Valois e, sobretudo, de Du Hamel pesaram
bastante na decisão de Huet de não publicar o Traité philosophique em vida e
motivaram várias das modificações que fez nesta obra, por exemplo, o acréscimo
no capitulo 10 já citado e um semelhante, no capítulo 15 do livro III, livro em
que responde a objeções levantadas aos argumentos céticos do livro I. No caso
da objeção contra o argumento do Deus enganador, Huet acrescenta ao manuscrito
original: "caberia a Descartes responder a esta Objeção (que a hipótese é
ímpia), pois é o Autor do argumento, que somente relatei, sem aprová-lo, uma
vez que nossa santa Religião nos ensina outra coisa" (p. 269). Entretanto, Huet
não só relata como aprova o argumento. Diz que Descartes poderia replicar,
entre outras coisas, que Deus nos deixou um meio de evitar todo o erro, mesmo
nos criando naturalmente incapazes da verdade: o poder de suspendermos o juízo
(p. 269-272). Huet apresenta um Descartes cético, desenvolvendo justamente a
alternativa cética somente aludida por Descartes no início da Segunda
Meditação,40 e justificando a legitimidade filosófica da dúvida cartesiana
mesmo por um cristão.41 Huet aparece assim quase um cartesiano frente a estes
críticos, mas um cartesiano cético, que rejeita a parte construtiva metafísica
de Descartes, ficando somente com a dúvida e outras doutrinas cartesianas
passíveis de desdobramentos céticos.42
Este Descartes cético não deriva somente da leitura que Huet fez do corpus
cartesiano. Embora cite os principais textos de Descartes sobre a dúvida
hiperbólica,43 é de Pascal ' especialmente de La 131 (o fragmento sobre as
principais forças dos pirrônicos) e La 110, este contra os pirrônicos que os
editores de Port-Royal inseriram em La 131 na tentativa de balancear as forças
de pirrônicos e dogmáticos ' que Huet retira sua apropriação cética da dúvida
cartesiana. É possível comprovar que coincidências textuais entre o capítulo 10
do livro I do Traité philosophiquee os fragmentos La 131 e 110 dos Penséestêm
origem na leitura anotada por Huet em um exemplar da edição de 1670 de Port-
Royal, leitura feita pouco antes ou na ocasião mesma em que trabalhou na
composição do que veio a ser o Traité.44
Como indicado acima, Huet articula o argumento da incerteza da nossa origem com
os cinco modos do pirronismo antigo. O argumento cartesiano seria o golpe final
que atingiria a última trincheira na qual se refugia o dogmático quando
pressionado pelo pirrônico a justificar sua doutrina, ao tentar evitar tanto um
regresso ao infinito (segundo modo) quanto um círculo vicioso (quinto modo). A
única alternativa a este dilema segundo o pirrônico é a alegação pelo dogmático
de que a doutrina em exame precisa ser aceita sem justificação ulterior, ao que
o pirrônico responde com o modo da hipótese (quarto modo), alegando seu igual
direito de afirmar, sem justificar, a doutrina contrária e assim reestabelecer
a eqüipolência.45 O modo da hipótese é tratado no pirronismo antigo somente
como um problema de autoridade, sem que o pirrônico apresente uma resposta à
pretensão por parte dos dogmáticos de que as proposições não justificadas por
outras proposições são princípios auto-justificáveis ou evidentes. Huet se vale
do argumento da incerteza da origem para responder a esta alegação,
justificando o modo pirrônico da hipótese. Embora Pascal não faça esta
articulação, ao menos de forma explícita, entre o argumento da incerteza da
origem e os cinco modos do pirronismo, não deixa de preparar o terreno para o
reforço huetiano do modo da hipótese. Em primeiro lugar, ao indicar que o que o
argumento busca colocar em dúvida é justamente a verdade dos principios.46 Em
segundo lugar, ao fazer a evidência destes princípios depender de um sentimento
de uma natureza cuja veracidade depende da determinação de sua origem. Enfim, e
principalmente, pois aqui temos a inovação cética que Pascal introduz no
argumento cartesiano, a convicção de que a determinação da origem não pode ser
feita, como diz Huet no Traité "se a Razão não se vale do auxílio da fé" (p.
87). A incapacidade da razão de resolver esta dúvida e a necessidade do recurso
à revelação cristã corrobora a tese fundamental de Huet sobre a fraqueza do
entendimento humano e a necessidade da fé para se obter uma certeza mais do que
apenas moral, uma certeza metafísica. O Traité philosophique, que estabelece
afaiblesse de l'esprit humain, se complementa, em Huet, com o estabelecimento
da força da fé, como consta no título de um manuscrito autógrafo do Traité
descoberto por Popkin na Holanda.47
No exemplar dos Pensées anotado por Huet, podemos verificar que ele assinala
todas as ocasiões em que Pascal afirma a impossibilidade de determinar a nossa
origem ' e, portanto, a certeza dos princípios ' "hors la foi" ("fora da
fé").48 Vai neste mesmo sentido o interesse particular que Huet demonstra por
duas passagens do fragmento La 110 que os editores incorporaram ao La 131. Onde
Pascal diz que "Nous savons que nous ne revons point, quelque impuissance où
nous soyons de le prouver par la raison", Huet grifa a continuidade da
passagem: "Cette impuissance ne conclut autre chose que la faiblesse de notre
raison" [Esta impotência não conclui outra coisa exceto a fraqueza da nossa
razão], sem grifar a conclusão antipirrônica do parágrafo: "mais non pas
l'incertitude de toutes nos connaissances, comme ils [os pirrônicos] le
prétendent" [mas não a incerteza de todos os nossos conhecimentos, como eles
[os pirrônicos] pretendem] (p. 161, grifos de Huet). Um pouco adiante, no texto
de Pascal, Huet assinala: "Cette impuissance ne peut donc servir qu'à humilier
la raison qui voudrait juger de tout" [Esta impotência só pode portanto servir
para humilhar a razão que gostaria de tudo julgar] (ênfase de Huet), sem
assinalar a continuação da frase de Pascal: "mais non pas à combattre notre
certitude, comme s'il n'y avait que la raison capable de nous instruire" [mas
não para combater nossa certeza, como se só a razão fosse capaz de nos
instruir] (p. 162). Em ambos os casos, Huet assinala as frases de Pascal sobre
a fraqueza da razão, mas não as que afirmam, contra os pirrônicos, a certeza
das verdades. Se Pascal já faz uma utilização mais cética da dúvida cartesiana
do que Descartes, Huet faz uma utilização ainda mais cética desta mesma dúvida
por Pascal, sobretudo mais cética do que a utilização mais dogmática do Pascal
da edição de Port-Royal.49
Huet rejeita a única força que Pascal concede aos dogmáticos, a saber, que,
embora a razão seja incapaz de justificar racionalmente os princípios, não é
possível apagar o sentimento de verdade e, por conseguinte, suspender o juízo
de boa-fé. Isto para Pascal é evidência da fraqueza da razão, e neste ponto
Huet é ' como os céticos antigos ' mais racionalista do que Pascal. A razão é
fraca para estabelecer princípios (como em Pascal), mas ela é forte o
suficiente para colocá-los em dúvida. Uma das únicas notas marginais desta
seção (fora notas de referência) é outra surpreendente defesa de Descartes,
mas, como no caso da anterior, de um Descartes cético, mais cético do que o
próprio Pascal. No ponto culminante da contraposição entre o dogmático e o
"pirrônico", em que Pascal mostra a fraqueza deste último, incapaz de exercer
uma dúvida radical, "Doutera-t-il de tout? Doutera-t-il s'il veille, si on le
pince, si on le brûle? Doutera-t-il s'il doute? Doutera-t-il s'il est? On n'en
saurait venir là: et je mets en fait qu'il n'y a jamais eu de Pyrronien
effectif et perfait" [Duvidará ele de tudo? Duvidará que está acordado se o
picamos ou queimamos? Duvidará se duvida? Duvidará se existe? Não se pode
chegar a tal extremo. Jamais existiu um pirrônico efetivo e perfeito] (p. 163),
Huet assinala a frase em itálico e anota na margem: "M. Des Cartes, tout
dogmatique qu'il est, a enseigné qu'il fallait commencer par ce dou(te)
philosoph(ique)" [Descartes, embora dogmático, ensinou que era preciso começar
por esta dúvida filosófica] (p. 163). O quê? Descartes pirrônico efetivo e
perfeito para Huet? Sim, o Descartes da Primeira Meditação. Foi através de
Descartes que Huet conheceu a dúvida (ele conheceu os céticos antigos bem
depois).50
Huet deu continuidade ao caminho filosófico da dúvida inciado por Descartes
(mas como vimos, com intenções bem diferentes das de Descartes), mas
lamentavelmente, segundo Huet, abandonado já na Segunda Meditação.51
Evidentemente Huet desconsidera, propositadamente ou não, que a dúvida
cartesiana é hiperbólica, que Descartes sabe bem que tal dúvida radical é
insustentável na prática. Pascal se vale justamente deste caráter hiperbólico
da dúvida cartesiana para argumentar que os "pirrônicos" não conseguem se
sustentar no ponto em que são mais fortes. A leitura huetiana do Descartes
cético passa pela desconsideração dos propósitos da dúvida cartesiana '
estabelecer a distinção real entre a alma e o corpo e produzir um fundamento
certo do conhecimento ', assim como a leitura cartesiana da dúvida cética passa
pela desconsideração dos propósitos próprios desta dúvida. O propósito de
Pascal é diferente tanto do de Descartes como do de Huet. O seu propósito é
estabelecer a insuficiência do dogmatismo (destruído pela dúvida cartesiana) e
do pirronismo (destruído pela inviabilidade prática desta dúvida) para
demonstrar a fraqueza e insuficiência de toda filosofia, por um lado (inclusive
a cética), e a força e excelência cognitiva da revelação cristã, por outro. O
propósito de Huet é bem diferente do de Pascal. É mostrar a fraqueza da razão
humana no que concerne ao estabelecimento de verdades, inclusive da verdade da
própria doutrina revelada. Este é um ponto de discordância fundamental de Huet
em relação a Pascal, certamente uma das razões por que rejeita qualquer força
dos dogmáticos e qualquer fraqueza dos céticos.
Duas razões impedem Huet de aceitar o argumento da verdadeira religião de
Pascal. A primeira diz respeito às diferentes maneiras pelas quais Huet e
Pascal concebem a relação entre razão e fé. Embora Pascal considere, como Huet,
que o cristianismo não pode ser provado pela razão, embora ambos mantenham um
distanciamento crítico da teologia natural, Pascal não é fideísta como Huet. Os
argumentos pascalianos não se reduzem às provas históricas baseadas nas
profecias e milagres. Pascal elabora também o argumento da verdadeira religião
ou prova pela doutrina, que, embora não demonstre a verdade do cristianismo,
atribui-lhe um poder explicativo racional. Huet nega esta atribuição de poder
explicativo à revelação, considerando, contrariamente à visão bem mais
sofisticada de Pascal sobre a relação da razão com a fé, que tal atribuição
implica a submissão da fé à razão.52 Em suas anotações nas margens dos Pensées,
Huet recusa a afirmação de Pascal de que o cristianismo com a doutrina da queda
é a única religião capaz de explicar e conciliar as contradições humanas.53
Huet rejeita o argumento da verdadeira religião, pois não vê na doutrina do
pecado original nada de original, no sentido de não encontrável em outras
religiões e filosofias, embora veja nela originalidade, no sentido de ser a
origem histórica de todas as outras. Mas aí, neste caso, a tarefa apologética é
provar esta disseminação do Velho Testamento pelas demais religiões e
filosofias através de um trabalho histórico e erudito, até mesmo arqueológico,
de escavação do conteúdo original judaico por trás de manifestações pagãs. Para
Huet, o cristianismo é verdadeiro não por ser a única verdadeira religião, mas
ao contrário, porque se reproduz ' embora imperfeitamente ' em todas as outras
religiões.
A segunda razão da rejeição por Huet do argumento pascaliano da verdadeira
religião está no fato de não conceber o ceticismo como o aspecto epistemológico
da depravação humana em decorrência do pecado original,54 tanto por que veria
nesta concepção uma intrusão indevida da razão no terreno da fé, como por não
compartilhar do anti-humanismo jansenista.55 Huet é um humanista, tanto no
sentido do trabalho erudito que desenvolveu ao longo de sua vida, como no
sentido da antropologia filosófica. Com efeito, Huet poderia ter dito de Pascal
o que diz de La Rochefoucould. "Esta busca dos defeitos do homem corrompido,
que [La Rochefoucould] fez com tanta sagacidade, não é feita com suficiente
eqüidade. Ele às vezes não faz justiça a este homem que ele condena e que faz
passar por mais corrompido do que de fato é (...) tomando como más inclinações
e ações inocentes."56 Este mesmo humanismo (nos dois sentidos do termo), aliado
à incapacidade de Huet de perceber a genialidade científica e filosófica de
Pascal (compreensível para alguém do século XVII), explicaria a avaliação geral
que Huet fez dos Pensamentos: "Dans tout cet ouvrage il n'y a presque rien de
nouveau que l'expression, le tour, et la disposition." [Em toda esta obra quase
não há novidade, exceto a expressão, a forma e a disposição]. Avaliação
injusta, considerando que La 131, sobre as principais forças dos pirrônicos, é
uma fonte crucial da leitura cética da dúvida cartesiana, a começar pela
leitura feita pelo próprio Huet.