Antecedentes filosóficos e teológicos do conceito pascaliano de natureza humana
Segundo Bernard Tocanne, o termo physis, ou natureza, encontra-se já na língua
homérica, ligando-se, de um lado, à idéia de nascimento ou crescimento aplicada
a plantas ou produções cujo desenvolvimento lembra o de um vegetal. O ponto de
partida, portanto, é a imagem de um ser vivo que se desenvolve espontaneamente.
De outro lado, o termo liga-se ao estado ou produto final desse crescimento
espontâneo.
(...) physis designa por vezes, na língua arcaica, o nascimento, a
geração, ou então o resultado do nascimento, a progenitura, ou ainda
o resultado do crescimento, o tamanho, a estatura, ou bem o aspecto
exterior e sensível de um ser. Por sua etimologia, a idéia de
natureza é já ambivalente, encerrando a imagem de um movimento, de um
processo interno e espontâneo de desenvolvimento, estreitamente
associado à geração do ser vivo, ou então à imagem de uma
estabilidade e de um produto acabado e consistente.1
Ainda segundo Tocanne, o termo se difunde amplamente a partir do século V,
assumindo uma pluralidade de significados, organizados, contudo, em torno de
três grandes valores: 1) um valor ativo e dinâmico, ligado à imagem da geração
e do crescimento, apontando para as idéias de espontaneidade e inatidade; 2) um
valor estático, ligado à idéia de permanência diante do devir fenomênico; 3)
finalmente, um valor normativo, já que o processo de geração e crescimento se
dirige a um fim determinado. Ora, esses três valores estão presentes já na
apresentação aristotélica do conceito de natureza.
Logo no início do livro II da Física, Aristóteles destaca o caráter ativo e
espontâneo dos seres naturais, opondo natureza e arte. Os animais, as plantas e
os corpos simples (terra, fogo, água e ar) são da natureza; em contraste com
uma cama ou uma peça de roupa, que são produtos da arte. Os primeiros
distinguem-se por possuírem, em si mesmos, um princípio de movimento e parada,
seja quanto ao lugar, ao crescimento ou à alteração. Já a cama não tem nenhuma
tendência natural à mudança, a não ser na medida em que, acidentalmente, é
feita de madeira. Nessa medida, poderá apodrecer ou mesmo brotar, mas não
enquanto é cama, produto da arte, e sim enquanto, por ser de madeira, tem uma
natureza. "Pois a natureza é um princípio e uma causa de movimento e de repouso
para a coisa na qual reside imediatamente, por essência, e não por acidente."2
Enquanto cama, o referido objeto não tem uma natureza, já que o princípio de
sua fabricação está fora dela, no artesão que a construiu. Daí que a natureza
deva ser vista como um princípio de atividade não apenas não acidental, mas
também imanente.
Mas o que são esses seres que têm uma natureza? E aqui já passamos ao segundo
aspecto destacado por Tocanne. Diz Aristóteles: "Ora, todas estas coisas são
substâncias, pois são sujeitos e a natureza está sempre em um sujeito."3 O
caráter substancial dos seres naturais é um elemento fundamental da concepção
aristotélica. No capítulo 2 das Categorias, diz Aristóteles:
Quando usamos palavras sem as combinar podemos predicar algo de um
sujeito, ainda que não se achem presentes em nenhum sujeito, por
exemplo: podemos predicar homem deste ou daquele homem, mas homem não
se acha em nenhum sujeito. Outras estão em um sujeito, embora não
possam ser predicadas de qualquer sujeito (por "em um sujeito"
entendo o que, não se achando em um sujeito como as partes se acham
no todo, não pode contudo ser independentemente do sujeito em que é).
Por exemplo, algum saber gramatical existe em um sujeito, a saber, na
mente, mas não se pode dizer de nenhum sujeito; e uma certa brancura
existe em um sujeito, por exemplo no corpo, pois toda cor é em um
corpo, mas não pode afirmar-se de qualquer sujeito. Há também outras
coisas que se afirmam simultaneamente de um sujeito e em um sujeito,
por exemplo: o saber é em um sujeito, a mente, e, por outro lado,
afirma-se também de um sujeito, a gramática. Há por fim outras que
não são nem em um sujeito, nem predicadas de qualquer sujeito, por
exemplo este homem, este cavalo, pois nenhuma destas coisas se acha
em um sujeito, nem pode ser predicada a um sujeito.4
Donde decorre que Aristóteles possa definir a substância, no capítulo 5, como
aquilo que nunca se predica de um sujeito, nem em um sujeito, por exemplo,
"este homem" ou "este cavalo". Como sujeito de predicados, a substância pode
mudar, encaminhar-se de um estado a outro, atualizar suas potencialidades,
permanecendo, contudo, idêntica. Por isso, dirá Aristóteles, "a principal
propriedade da substância parece ser isto: que, apesar de permanecer idêntica,
uma, e a mesma, é capaz de receber qualificações contrárias".5 A natureza é um
princípio imanente de aquisição de predicados; princípio, portanto,
indissociável da substância que os suporta. Mas não de quaisquer predicados, e
sim apenas daqueles conformes à respectiva natureza, a saber, os atributos
essenciais. Diz Aristóteles, "por exemplo, para o fogo o transporte para o
alto; pois isto não é natureza, não tem uma natureza, mas isto é por natureza e
conforme à natureza".6
É com estes pressupostos, o caráter de princípio de movimento e a vinculação
com a substância, que Aristóteles empreenderá a complexa discussão visando a
definir a natureza como matéria ou como forma. Por um lado, é a matéria, o
sujeito imediato e informe de cada coisa natural, que permanece sob as
mudanças, garantindo a identidade da substância. Por outro lado, a matéria é
pura potencialidade, enquanto a forma é o ato da coisa. Não se pode dizer que
algo é conforme à arte ou conforme à natureza quando tratamos da pura potência.
Se a permanência do sujeito é dada pela matéria, a naturalidade dele não pode
dispensar a forma, que o atualiza segundo seu princípio interno. Sendo assim, a
palavra natureza deve ser entendida nos dois sentidos: forma e matéria, ambos
objetos do estudioso da natureza; mas, sobretudo, no de forma.
Resta ainda o último aspecto destacado por Tocanne, ao qual Aristóteles dedica
todo o capítulo oito do livro II: a finalidade contida na natureza. A esta
altura do livro, o autor já expôs sua doutrina das quatro causas e mostrou que
só de posse desse conhecimento o físico poderá ter a ciência da natureza, mas é
preciso antes de tudo refutar a objeção de que a natureza não seria uma das
coisas que agem em vista de um fim:
O que impede a natureza de agir, não em vista de um fim nem porque é
o melhor, mas como Zeus faz chover, não para aumentar a colheita, mas
por necessidade? Pois a evaporação, tendo-se elevado, deve resfriar-
se e, tendo esfriado e virado água, deve descer; quanto ao
crescimento da plantação que segue o fenômeno, é um acidente.7
São vários os argumentos que Aristóteles apresenta para defender a finalidade
contra o puro mecanicismo. O que nos importa, no entanto, é aquilo que se deixa
perceber por entre os argumentos: a causa final é constitutiva da própria idéia
de natureza. Não há um princípio de movimento e repouso sem o fim, que
representa o acabamento perfeito desse ser em movimento. Diz Aristóteles:
E uma tal tese (a necessidade mecânica) suprime, de modo geral, as
coisas naturais e a natureza; com efeito, são coisas naturais todas
aquelas que, movidas de uma maneira contínua por um princípio
interior, chegam a um fim; de cada um destes princípios deriva um
termo final diferente para cada uma e que não é ao sabor da fortuna;
e este termo é constante para cada coisa a não ser que haja
impedimentos.8
Desse modo, a exclusão da finalidade seria a exclusão da própria natureza,
diluindo completamente a distinção entre o natural (que é por essência) e o
fortuito (acidental).
O Cristianismo e Santo Agostinho
A idéia de natureza sofrerá importantes transformações ao introduzir-se, no
século II, no pensamento cristão nascente. A concepção cristã de natureza
sobrepõe-se à helênica, colocando a exigência teológica de purificar o tema de
seus elementos incompatíveis com os dados da fé. Agora é preciso distinguir
radicalmente a Natura creatrix e a Natura creata, Deus e sua obra, garantindo,
de um lado, a transcendência divina e, de outro, a realidade própria do criado.
No século IV, o pensamento de Santo Agostinho trouxe um novo ponto de vista
para a questão, opondo a natureza não mais apenas ao artificial, como em
Aristóteles, mas à graça.
É justamente através da discussão empreendida em torno da graça que
compreenderemos melhor o que é a natureza (no caso, a natureza humana) em
Agostinho. Antes de mais nada, é preciso lembrar que o deus agostiniano, sendo
o Soberano Bem, se basta. Não precisa de nada para além de si mesmo e,
portanto, nada precisa dar ou criar. Se o faz, é livremente, gratuitamente, de
modo que, em sentido lato, toda a sua obra é graça. Como diz Gilson:
Para ser, o homem não teve que merecê-lo, pois, para merecer, ter-
lhe-ia sido preciso primeiro ser; ora, não sendo, contudo ele foi
feito, e não somente feito como uma pedra ou um animal, mas feito à
imagem de seu criador. Neste sentido impróprio, a própria natureza
seria uma graça, mas uma graça por assim dizer universal e comum a
todos.9
Entretanto, como bem destaca Gilson, trata-se de um sentido impróprio de graça.
A verdadeira graça não é aquela pela qual fomos criados, mas aquela pela qual
recebemos o dom da perseverança na fé: "Além daquela graça, pela qual é criada
a natureza humana (esta, com efeito, é comum aos cristãos e aos pagãos), há uma
graça maior, não aquela pela qual somos criados homens pelo Verbo, mas pela
qual somos feitos fiéis pelo Verbo feito carne."10 É desse "acréscimo" que
distingue cristãos e pagãos que fala Agostinho ao referir-se à graça. Isso não
impediria, por outro lado, que Deus tivesse dado ao homem ou a qualquer
criatura uma natureza diversa da que tem atualmente, fosse ela melhor ou pior.
Não haveria nada de indigno para Deus em fazê-lo, visto que o ato criador é
totalmente livre. Daí que o que é graça hoje poderia ser natureza se a criação
tivesse sido outra.
É essa discussão dos limites de natureza e graça que empreende Agostinho em
seus escritos antipelagianos. Para o filósofo, o ardil de Pelágio é afirmar que
está discutindo a possibilidade das coisas, não sua existência efetiva, de modo
que, ao ser contradito pelas Escrituras, considera-se imune, já que elas falam
do que é, não do que apenas poderia ser. Por outro lado, as certezas obtidas a
respeito das possibilidades ou impossibilidades devem impor-se às coisas. Daí
às heresias, os passos são poucos. Diz Pelágio (citado por Agostinho): "Torno a
repeti-lo: Eu digo que o homem pode viver sem pecado. O que tu dizes? Que o
homem não pode viver sem pecado? Eu não digo que o homem pode viver sem pecado
nem tu o dizes. Discutimos sobre a possibilidade ou não possibilidade; não
discutimos sobre a realidade ou não-realidade."11 Para Pelágio, os contra-
exemplos bíblicos não anulam a possibilidade de não pecar, do contrário não
haveria culpa. E diante da objeção de que isso só é possível pela graça de
Deus, Pelágio não hesita em responder que tal afirmação apenas comprova sua
tese, afinal "a melhor demonstração da possibilidade de uma coisa é a
formulação de suas condições, pois a qualidade exige um suporte real".12
Para Pelágio, se o homem tem a possibilidade de não pecar inscrita em sua
natureza, o meio utilizado para alcançá-lo, seja a graça, seja o puro livre-
arbítrio humano, é parte integrante dessa propriedade. Agostinho percebe muito
bem que essa operação faz que a graça divina seja absorvida na natureza e, em
última análise, o livre-arbítrio humano, também parte da natureza, será o
responsável pela salvação. E como Pelágio responderia à acusação de que esvazia
o papel da graça divina? "Quando se diz que o homem é capaz, não o atribuímos
ao livre-arbítrio, contudo ao autor da natureza, ou seja, Deus. Haverá alguém
que entenda que se possa conseguir sem a graça de Deus o que se considera
pertencer propriamente a Deus?"13 A vontade de pecar ou não pecar, como a
vontade de falar ou não falar, pertencem a mim, mas a capacidade para não pecar
e não falar é dada por Deus na natureza. Não depende de mim não poder falar, e
sim de Deus, que me deu os órgãos da fala, com os quais eu decido falar ou não.
Como o não pecar é submetido ao poder não pecar, que de possibilidade lógica
passou sutilmente a capacidade humana, e poder não pecarvem diretamente de
Deus, devemos atribuir nossa salvação a Deus, ainda que nosso livre-arbítrio
seja o fator determinante para ela.
Santo Agostinho não pode deixar de denunciar esta armadilha pelagiana:
Com aquelas sentenças atribui à graça de Deus a possibilidade de não
pecar, porque Deus é o autor da natureza, à qual ele declara inserida
de modo inseparável a possibilidade de não pecar. Portanto, quando o
homem quer, faz; porque não quer, não faz. Existindo esta
possibilidade inseparável, não é possível pensar em debilidade da
vontade, ou antes, em cooperação da vontade e em carência de
perfeição14
O que Pelágio consegue, com isso, é impossibilitar a idéia de natureza humana
corrompida. Qualquer que fosse a natureza humana, Deus seria bom ao criá-la,
pois nada lhe deve. No entanto, não se poderia aceitar uma natureza humana
decaída em relação a suas próprias possibilidades, ou estas deixariam de
existir e, com elas, a responsabilidade moral. Fazendo da graça parte da
natureza, Pelágio faz com que uma não possa desvincular-se da outra sem
contradição. De sua parte, Agostinho acredita no poder corrosivo do pecado
original, por isso não pode aceitar a incorporação natureza/graça ou, se
quisermos, natureza/possibilidade de realização desta mesma natureza.
Todo esforço de Agostinho no A natureza e a graça é mostrar que Pelágio, ao
elevar o poder da natureza humana, desconsidera que estamos diante de uma
natureza corrompida, doente, diversa da situação em que foi criada. Essa
natureza deve ser curada para alcançar o seu fim. De que adianta dizer, como
Pelágio, que a possibilidade de andar pertence à natureza humana se o homem
tiver as pernas quebradas? Dada a diferença de estados, a possibilidade de
realização da natureza encontra-se muito afastada dela mesma.
Santo Agostinho assume, já em Do livre arbítrio, uma duplicidade na noção de
natureza humana, ou pelo menos a existência de dois estados historicamente
delimitados da natureza humana.
(...) do mesmo modo, uma coisa entendemos pela palavra natureza
quando falamos em sentido próprio, ou seja, quando falamos da
natureza humana que Deus deu ao homem quando o criou no estado de
inocência, e outra quando falamos desta em que, como conseqüência do
pecado original, nascemos sujeitos à morte, ignorantes e escravos da
concupiscência, estado do qual fala o Apóstolo: Temos sido, como os
demais, filhos da ira por natureza.15
A concepção de Pelágio, por sua vez, parece muito mais próxima da concepção
aristotélica de natureza. A natureza humana pelagiana é sim um princípio de
movimento que constitui substâncias tendentes a um fim. Os meios para realizar
esse fim estão também nele contidos, garantindo ao conceito de natureza um
elemento de completude, o qual podemos extrair de outro texto aristotélico que
será importante para toda a tradição cristã, o livro II do De caelo: "Se a
natureza tivesse dado ao céu uma inclinação ao movimento progressivo, teria
dado também os instrumentos para tal movimento",16 de onde se extrai o axioma
"o desejo natural não pode ser vão, já que a natureza nada faz em vão". É essa
completude de princípio, fim e meios que a natureza agostiniana não pode
oferecer. E não se trata apenas de um problema posterior à queda de Adão. Ao
criticar Pelágio, Agostinho diz:
Se falasse do homem ainda dotado de natureza íntegra e pura, de que
agora estamos privados (...), se falasse com essa ressalva, repito,
mesmo assim não seria correto afirmar que não pecar depende somente
de nós, embora o ato de pecado seja nosso. Pois, nesse caso, teríamos
a ajuda de Deus a se oferecer aos de boa vontade, como a luz se
apresenta nos olhos sãos possibilitando a visão com sua ajuda.17
Mesmo Adão precisava de uma graça que transcendia sua própria natureza. Porém,
precisamente enquanto sobrenatural, a graça complementa e realiza a natureza.
Como diz Henri de Lubac, "entre a natureza e a graça não se tratava, para
Agostinho, de oposição, mas de inclusão; não de luta, mas de união. Não se
tratava para o homem de aniquilamento, mas de unificação íntima e de
transformação".18
E o que seria a natureza pura, sem a corrupção do pecado e sem o auxílio da
graça? Que tipo de realização o conceito de natureza, por si mesmo, garantiria
ao homem agostiniano? Sobre isso, Agostinho silencia: "Não se encontra em
Agostinho, ao que eu saiba, definição do que a essência metafísica do homem
pode ter implicado como pertencente de direito a sua natureza; o ponto de vista
em que ele se situa constantemente é de certo modo histórico e puramente de
fato."19 Vamos então aos estados históricos da natureza humana.
Se formos de novo ao Do livre arbítrio, texto que combate o maniqueísmo,
veremos que Santo Agostinho faz questão de destacar que a corrupção da natureza
humana não significa que esta perca totalmente a bondade. Se, contra Pelágio,
Agostinho afirmará que o mal contaminou, sim, as capacidades da natureza
humana, aqui deve ressaltar que ela mantém o caráter de substância, sem o que
não há natureza, bem como sua positividade. Afinal, aquilo que é menos bom do
que já foi continua sendo bom. Se a corrupção o privasse de todo o bem, tornar-
se-ia incorruptível, ou seja, uma criatura tornar-se-ia superior (porque
incorruptível) por meio de sua própria depravação, o que é um absurdo
manifesto. Daí que a própria duplicidade da natureza humana perderia o sentido
caso o estado atual fosse exclusivamente maligno.
Por isso se diz com razão que toda natureza, enquanto é natureza, é
boa; porque, se é incorruptível, é melhor que a corruptível, e se é
corruptível, é certamente boa porque ao corromper-se faz-se pior.
Toda natureza ou é corruptível ou incorruptível, logo toda natureza é
boa. Entendo por natureza aquilo a que podemos dar o nome de
substância. Portanto toda substância ou é Deus ou provém de Deus,
porque todo bem ou é Deus ou provém de Deus (grifos nossos).20
A natureza, como primeiro dom de Deus, enquanto criador, ao homem, não pode ser
ruim. É um dos primeiros princípios assumidos por Agostinho que de Deus só
provenham o bem e a justiça. Não poderia, portanto, conceber uma natureza
totalmente maléfica oriunda de Deus. E muito menos poderia conceber uma
natureza positivamente má oriunda de um princípio maligno oposto a Deus, sob o
risco de ver-se recair no maniqueísmo.
Agostinho pode, isto sim, ver a natureza humana de um duplo aspecto: primeiro
como uma substância boa e incorrupta, embora não incorruptível, como foi a de
Adão; depois como uma substância boa, mas corrompida por acidentes ruins, os
quais, embora acidentes, podem condená-la à morte eterna. Essa segunda,
diminuída e viciosa, é a que vemos hoje e que surgiu com o pecado original. No
entanto, a verdadeira natureza humana, o verdadeiro homem à imagem de Deus, é o
que foi criado em Adão. "Assim pois chamamos vício àquilo que vemos de falta na
perfeição da natureza, manifestando com isso louvor àquela natureza cuja
imperfeição vituperamos, precisamente porque desejaríamos que fosse
perfeita."21 A falta dos chamados dons preternaturais, que não temos hoje, mas
permitiam a Adão conseguir a salvação eterna e viver num paraíso agradável
junto a Deus, é o que nos leva às misérias físicas e morais que se seguiram ao
pecado.
A concupiscência, as misérias, a morte não são naturais, mas penais. São
decorrências do pecado original. O homem primitivo não recebeu uma graça que o
obrigasse a perseverar, mas teve uma que lhe permitia fazê-lo se o quisesse.
Adão teve todos os bens necessários, muito mais do que temos hoje, porém
preferiu se rebelar. Tinha mesmo uma vontade que se inclinava ao bem e não uma
vontade meramente neutra como queriam os pelagianos. Essa neutralidade seria
repugnante à bondade de Deus, de quem Adão era imagem. Mas o Criador deixou-lhe
ainda a possibilidade de pecar e foi este o caminho escolhido. Como castigo
justo por não ter usado o poder de não pecar, o homem perdeu esse poder.
As raízes penais de nossa condição miserável ficam claras se pensarmos que a
onipotência de Deus não permite que nada escape à ordem universal que Ele
impôs. Se o homem teve a liberdade de pecar é porque havia um castigo
correspondente que recolocava as coisas dentro do plano divino.
Os pecados e castigos correspondentes não são naturezas, mas afecções
das naturezas; os pecados são as voluntárias e os castigos são as
penais. Mas a afecção voluntária de pecado é torpe, a qual segue a
penal precisamente para colocá-lo no lugar que lhe corresponde, lugar
onde não seja uma desordem na ordem do universo, ficando assim
reparada a desonra do pecado pela pena correspondente.22
Em nossa natureza atual, o pecado gera o domínio da concupiscência, mal oposto
a todas as exigências legítimas do espírito humano. Ela pode ser assim
caracterizada: "(...) esta condição viciosa que faz que estes movimentos
desregrados, acompanhados de estímulo a um gozo sem fim nem utilidade, se
elevem em nós sem que o queiramos, ou mesmo contra a nossa vontade".23 O
movimento de nossos instintos é ruim quando se liberta de toda finalidade boa e
espiritual. Os bens materiais, que deveriam ser meios para o encaminhamento
espiritual, tornam-se bens em si mesmos. Esses impulsos se libertam da vontade
e atuam contra nossas intenções, instaurando uma guerra entre o corpo e a alma.
Essa luta, aliás, aponta para o fato de que essa não é nossa condição
primitiva, pois não há porque duvidar que a harmonia e a paz caracterizavam o
modelo original de Deus. Afinal, em hipótese, o fato de corpo e alma serem dois
opostos não impediria que se harmonizassem, assim como a umidade e a secura se
harmonizam no corpo saudável.
Mas condenar a concupiscência em si e não apenas em eventuais excessos não é
reconhecer a existência de um princípio maligno positivo, ou seja, maniqueísmo?
Não (...) porque, longe de admitir dois princípios eternos ou de
ensinar que houve algo de vicioso na origem de nossa natureza, nós
sequer ensinamos que há algum mal positivo no estado atual da
humanidade. Para nós, a concupiscência é apenas privação, uma
qualidade defeituosa, falta de energia superior ou ainda um langor da
alma.24
A concepção agostiniana do mal continua intacta: o mal não é uma criação
positiva de Deus, mas é negação, privação, nada, e o nada não pode ser criado.
O que não significa que não possa contaminar nossa natureza.
O abster-se de alimentos não é substância, contudo a substância
corporal, se se priva de alimento, de tal modo se enfraquece,
deteriora-se pelo desequilíbrio da saúde, consomem-se suas forças, se
extenua e se abate que, se continua vivendo, é obrigada a voltar ao
alimento, cuja abstenção foi causa de sua ruína.25
Analogamente, o pecado não é substância; mas, privando-nos do bem supremo
(Deus), pode nos levar à morte eterna.
Resta-nos investigar, agora, se nesse quadro ainda é possível falar de um
princípio de movimento e repouso teleologicamente orientado ou se o conceito já
rompeu totalmente com o aristotelismo. O dinamismo próprio à idéia de natureza
parece reduzido, após a queda, a um movimento de corrupção autônomo, cada vez
mais aprofundado, que nada tem a ver com a intervenção da graça, a qual o
interrompe. Isso não seria grave caso houvesse uma finalidade própria da
natureza humana, corrompida ou não, que independesse da gratuidade. Todavia,
vimos que Agostinho recusa-se a falar de uma natureza humana abstrata,
limitando-se aos dois estados históricos: o adâmico e o decaído. Sendo assim,
para falar de uma natureza humana, ainda que num sentido secundário em relação
ao estado de inocência, devemos descobrir se o fim sobrenatural do homem de
algum modo se manifesta no seio da corrupção em que o homem está inserido.
Em A vida feliz, Agostinho mostra como é infeliz aquele que carece de algo e,
mais ainda, que toda infelicidade é uma forma de carência ou indigência,
enquanto a felicidade é a saciedade. Mas de quê? Os bens passageiros e sujeitos
ao acaso não podem satisfazer o desejo humano, seja por sua própria
transitoriedade, seja pelo receio de perdê-los que obrigatoriamente toma seu
possuidor. Por isso, se alguém quiser ser feliz, deve buscar um bem permanente,
que não lhe possa ser retirado por um revés da sorte. Ora, esse bem eterno e
imutável é Deus. É feliz quem possui Deus e infeliz quem dele carece.
Não podemos, porém, dizer que Deus está em tudo e por isso tudo possui Deus? Em
certo sentido, sim, mas aquele que vive em pecado possui Deus como distante e
desfavorável. Já aquele que procura a Deus sem ter encontrado tem Deus propício
a ele (do contrário, sequer o procuraria), mas nem por isso é feliz, pois não
tem o que deseja, por mais que Deus lhe esteja presente de alguma maneira. É
preciso encontrar Deus para ser feliz, o que só pode ser feito quando é sanada
a carência suprema, aquela que contém todas as outras, a carência de Sabedoria.
Mas que sabedoria será digna desse nome, a não ser a Sabedoria de
Deus? Justamente aprendemos pela autoridade divina que o Filho de
Deus é precisamente a Sabedoria de Deus (1 Cor. 1, 24) (...) Quem é o
Filho de Deus? Já o dissemos e está escrito: "A verdade!" Quem é
aquele que não possui progenitor, a não ser a Suma Medida? Logo, todo
aquele que vier à Suma Medida pela Verdade será feliz. E isso é
possuir a Deus na alma, gozar de Deus. Quanto às outras coisas
criadas, Deus as possui, mas elas não possuem a Deus.26
Esse é o fim a que nos destinamos, mas nem por isso podemos obtê-lo nesta vida,
ainda que possamos buscá-lo com ajuda da graça. Qual é então o dinamismo
produzido em nós pelo fim sobrenatural? Dinamismo que permite falar, mesmo que
de modo precário, de uma natureza? Certamente não é o movimento da
concupiscência, que nos conduz à destruição. Este é apenas conseqüência do
pecado, levando-nos inutilmente a tentar preencher o vazio infinito de nossa
carência. O movimento natural produzido por essa finalidade inatingível vivida
como carência é outro: a inquietude. Como diz Agostinho, no início das
Confissões: "Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não
repousa em ti."27
Como explica Franklin Leopoldo e Silva,
na expressão "Fizeste-nos para ti" este para indica que, na produção
divina da criatura, está posta a aspiração ao retorno como
característica essencial da criação divina. O contato como aspiração
ao retorno está, portanto, primeiramente colocado como marca divina,
imagem de Deus, lembrança de Deus, memória do Absoluto, não apenas
impressa, mas incluída por Deus na própria dinâmica da relação, o que
faz com que a capacidade de Deus, o homo capax Dei, deva ser
entendida no modo de uma divinização característica da obra divina
quando dela resulta a criatura (grifos no original).28
Se a inquietude é imposta pela própria condição de criatura, que impõe uma
aspiração irrealizável devido à distância desproporcional que a separa do
criador infinito, por outro lado ela ganha uma nova dimensão com a corrupção do
pecado: a condição humana é agora de miséria.
Se a passagem da inquietude ao repouso inclui as duas dimensões, é
preciso ver como se ultrapassa esta oposição entre a grandeza de Deus
e a miséria do homem. A posição de humildade confessional é o
reconhecimento desta desproporção e desta oposição. Trata-se agora de
identificar a condição presente do homem como situação de pecado com
a inquietude enquanto aspiração a Deus.29
A corrupção não pode ser um caminho para o retorno, mas o mergulho na própria
miséria pode dar o verdadeiro sentimento da nossa condição que nos move a
pedir. A inquietude não nos garante o fim, mas aponta para o fim, fazendo de
nosso movimento natural menos a atualização de possibilidades intrínsecas do
que a prece ou a súplica pelo preenchimento do espaço desproporcional que nos
separa daquilo de que mais carecemos. Sem a graça, não podemos sequer suplicar,
mas isso não significa que a carência e a inquietude estejam menos presentes.
Nossa natureza também aí estará, buscando sua completude no que não tem a
mínima solidez.
São Tomás
No caso de Tomás de Aquino, a carência e inquietude agostinianas devem achar
ressonância na noção de apetite natural, por isso é através desta noção que
buscaremos compreender a concepção tomista de natureza.30
Na sua retomada cristã do pensamento de Aristóteles, Tomás opõe, de um lado,
Deus, ato puro, logo sem movimento e sendo desde sempre o que deve ser, ao
universo criado, que, de outro lado, está mergulhado no devir. Todo ser criado,
assim, deve passar da potência ao ato, ou seja, à condição de ser realizado.
Por conseguinte, o acabamento de uma natureza criada, ou melhor, seu fim, impõe
um desejo natural desse fim, uma tendência de todo o ser para seu fim, e é
precisamente isso que São Tomás denomina apetite natural. Diz o autor: "O
apetite natural nada outro é que a inclinação da coisa a seu fim natural."31
O fim, ou termo desse apetite natural, é o que define propriamente a natureza,
dado que esta, ser inacabado, é concebida em vista do termo concreto a que se
destina. É porque tem tal acabamento preciso a conquistar que a natureza é o
que é no momento. Isso ocorre porque, como explica Laporta,
o fim é a primeira das quatro causas. Tudo que se passa, com efeito,
explica-se sobretudo pelo fim que o agente persegue e que o sujeito
alcança passando da potência ao ato. Todo ser criado passa do
primeiro ato, sua natureza, ao segundo, seu fim. A natureza precede o
fim sob o aspecto do tempo; mas sob o aspecto da causalidade o fim é
o primeiro.32
Daí Tomás dizer no seu comentário da Física, 2.15.15, que o fim não é tal
porque a matéria é tal, mas, antes, a matéria é tal porque o fim é tal.
Como Tomás explica no De veritate, 27.2.c, nas coisas naturais três coisas são
pré-exigidas para a obtenção do fim: "a natureza proporcionada àquele fim, a
inclinação àquele fim, que é o apetite natural do fim, e o movimento para o
fim".33 Por isso estes quatro elementos (natureza, fim, apetite e movimento)
são inseparáveis, ainda que, como explica Laporta,
só a natureza seja, ou possa ser, uma substância, o que é. Cada um
dos três outros elementos, ao contrário, só pode ser um acidente, o
que a coisa é. A pedra ' essência ' subsiste. Ela tende para baixo,
para aí se precipita e aí repousa: tender, cair, parar são acidentes,
maneiras de ser da pedra. Mas se se distinguem estes acidentes da
essência, eles não deixam de ser acidentes inseparáveis dela, que não
podem ser modificados ou suprimidos sem que a própria coisa mude de
natureza ou desapareça.34
Isso não significa, porém, que não haja seres que não alcançam seus fins e
cujos movimentos naturais, portanto, não se completam nunca. Ao contrário, isso
ocorre freqüentemente. A não-realização do fim, no entanto, não lhe tira o
caráter de razão de ser da natureza e sua prioridade na ordem das causas, de
modo que, alcançado ou não, continua sendo constitutivo da natureza. Já o
apetite é inseparável da natureza num sentido ainda mais forte pois a natureza
é inconcebível sem ele, mesmo quando não chega ao fim. Portanto, como diz
Laporta, em termos escolásticos:"se o apetite natural é um acidente no sentido
predicamental, não o é jamais no sentido predicável; ou seja, se o apetite
natural é um acidente por oposição a uma substância, não pode ser um acidente
por oposição ao necessário".35 É claro que o apetite natural é algo "em outro",
não é "por si" como a substância, mas nem por isso será um acidente no sentido
de que podia não ter existido. Sem ele, a substância é destruída.
Tudo que até aqui foi dito vale para a totalidade da criação e não apenas para
os seres providos de intelecto:
Do mesmo modo ordenam-se para o fim as coisas que o conhecem e as que
o desconhecem; as que o conhecem para ele se dirigem por si mesmas;
as que o desconhecem, no entanto, tendem para o fim como dirigidas
por outra coisa, como se vê, por exemplo, na flecha e no flecheiro.
Além disso, as coisas que conhecem o fim sempre se ordenam para o bem
como para o seu fim, pois a vontade, que é o apetite do fim
previamente conhecido, não tende para coisa alguma senão em razão do
bem, que é o seu objeto. Logo, também as coisas que não conhecem o
fim ordenam-se para o bem, como para o seu fim.36
Tudo tem um fim e um apetite natural. A vontade, no entanto, não é o próprio
apetite natural dos seres intelectuais. O fim dela, sem dúvida, aproxima-se do
fim dos seres intelectuais, já que a razão de ser dela é justamente
experimentar a felicidade de um ser intelectual que alcançou sua destinação.
Todavia, a beatitude em si mesma é objeto do intelecto, não da vontade, por
conseguinte, o fim a que se destina o apetite natural dos seres intelectuais
será um conhecimento. Diz Tomás:
Com efeito, sendo a beatitude o bem próprio da natureza intelectual,
é necessário que esta concorde com aquilo que lhe é próprio. Ora, o
apetite não é próprio só da natureza intelectual, mas está em todas
as coisas, embora diversamente. Essa diversidade, no entanto, provém
do relacionamento diverso das coisas com o conhecimento. Com efeito,
as coisas totalmente destituídas de conhecimento têm somente apetite
natural. As que têm conhecimento intelectivo têm o seu apetite
proporcional ao conhecimento, isto é, a vontade. Por isso a vontade,
enquanto apetite, não é própria da natureza intelectual, mas somente
enquanto depende do intelecto. Ora, o intelecto considerado em si
mesmo é próprio da natureza intelectual. Logo, a beatitude, ou
felicidade, consiste primeira e essencialmente em ato do intelecto,
mais do que em ato da vontade.37
Evidentemente, isso não nos impede de dizer que um apetite natural liga a
vontade à beatitude. Esta é o fim a que se destina aquela, mas apenas na medida
em que se subordina ao intelecto:
Primeiramente e por si mesmo o intelecto move a vontade, pois a
vontade, enquanto tal, é movida pelo seu objeto, que é o bem
apreendido pelo intelecto. Ora, a vontade move o intelecto quase
acidentalmente, enquanto a intelecção é apreendida como bem e, assim,
é desejada pela vontade, resultando disto ter o intelecto
conhecimento atual. E até nisto o intelecto precede a vontade, pois
jamais a vontade desejaria o conhecimento do intelecto se o intelecto
não apreendesse o seu próprio conhecimento como um bem. Além disso, a
vontade move o intelecto para a operação atual à maneira de agente, e
o intelecto move a vontade à maneira de fim, pois o bem por ele
conhecido é o fim da vontade. E ainda, quanto ao mover, o agente é
posterior ao fim, pois ele não move senão para o fim. Depreende-se
disso que o intelecto é simplesmente superior à vontade.38
Esse fim da vontade, porém, pode passar despercebido, atraindo-a sem que haja
consciência disso, o que fere aquela definição de vontade como apetite do fim
pré-conhecido. Por isso, mostra Laporta que encontramos para a vontade um
segundo apetite natural, este sim um fato psicológico observável, para além
daquele apetite natural metafísico que é comum a todas as coisas:
Estar satisfeito e sentir sua perfeita satisfação são coisas
diferentes. As plantas são felizes sem o saber; o animal, ao
contrário, pula de alegria quando alcança seu objetivo. Isto a que a
vontade tende por natureza é experimentar o supremo apaziguamento do
ser racional. Isto supõe a beatitude já realizada, a vontade
acrescentando-lhe sua alegria suplementar. A beatitude constitui uma
realidade concreta, o termo definitivo de evolução de uma natureza
intelectual. Eis o objeto do apetite natural metafísico da vontade.
Em sua atividade consciente, ao contrário, a vontade só persegue a
beatitude através de um conceito vago, através da imaginação.39
É na medida em que a vontade é atraída, de maneira forçosamente consciente, por
esse ideal vago, que ela se enquadra na definição anterior de apetite do fim
previamente conhecido. Isso não significa, porém, que ela acerte: "Ora, a
verdadeira beatitude não se diferencia da falsa pelo ato da vontade, pois a
vontade se mostra igualmente desejando, amando, ou se deleitando, o que quer
que se lhe proponha como seu bem, seja ele verdadeiro ou falso."40 Como explica
Laporta, este sempre perseguido ideal vago cada vez se encarna em um objeto
real, no que a vontade é no mais das vezes decepcionada, permanecendo
insatisfeita. Daí a importância da seguinte distinção:
Quando se fala do apetite natural de um homem, pode-se ter em vista o
desejo natural consciente, que só pode ser seu desejo natural
sensível ou voluntário. Mas quando se fala mais corretamente do
apetite natural do ser humano, e não mais precisamente ou somente de
sua vontade, não se trata mais de uma atividade psicológica, mas da
finalidade desta natureza.41
E o que é a beatitude, o fim das substâncias intelectuais? Antes de mais nada,
é preciso explicitar qual é o fim de todas as coisas.
Com efeito, se nenhuma coisa tende para algo como para seu fim senão
enquanto este é bom, necessariamente o bem enquanto bem identifica-se
com o fim. Por conseguinte, o que é o sumo bem será o fim supremo de
todas as coisas. Ora, o sumo bem é um só, que é Deus, como foi
provado no livro I (cap. XVII). Logo, todas as coisas se ordenam como
para seu fim, para um só bem, que é Deus.42
Contudo, isso não significa que todas as coisas se ordenem a Deus da mesma
maneira; o farão de acordo com as respectivas naturezas. Donde se coloque a
pergunta sobre a maneira própria das substâncias intelectuais, cuja resposta
não poderia ser outra:
A operação própria de qualquer coisa é o seu fim, que é a sua segunda
perfeição. Ora, a intelecção é a operação própria da substância
intelectual e é o seu fim. Por isso, o que é perfeitíssimo nesta
operação é o fim último, sobretudo nas operações que não se ordenam a
efeitos exteriores, como são os conhecimentos sensitivo e
intelectivo. Ora, como essas operações recebem a especificação dos
objetos, pelos quais também são conhecidas, é necessário que tanto
mais perfeita seja uma delas quanto mais perfeito é o objeto. Por
isso, entender o inteligível perfeitíssimo, que é Deus, é o que há de
mais perfeito no gênero do conhecimento intelectivo. Logo, conhecer a
Deus intelectualmente é o fim último de toda substância
intelectual.43
Mas Tomás vai mais longe e se pergunta, no capítulo 38, em qual conhecimento de
Deus consistirá a felicidade última dos seres intelectuais. Não será no
conhecimento comum e confuso que quase todos os homens têm do ser supremo, nem
no conhecimento oriundo das demonstrações filosóficas que corrigem aquelas
noções elementares, e nem sequer no conhecimento que se tem pela fé, todos eles
ainda imperfeitos e incapazes de saciar completamente o desejo de conhecer do
homem, logo ineptos para ser o fim último dos seres intelectuais. O problema é
que isso aponta para a impossibilidade de o homem alcançar sua felicidade
última nesta vida:
O fim último do homem lhe põe termo ao apetite natural e, assim,
sendo ele atingido, nada mais se deseja, e se o homem tem ainda algum
desejo, é porque não atingiu o fim no qual repousa. Ora, isso é
impossível acontecer nesta vida. Com efeito, quanto mais alguém
conhece, tanto mais se lhe aumenta o desejo de conhecer, o que lhe é
natural, a não ser que casualmente houvesse alguém que conhecesse
tudo. No entanto, isso não acontece nesta vida a quem se diga
homem.44
O conhecimento capaz de satisfazer nosso desejo natural é o que nos dará nada
menos do que a visão da essência de Deus. Isso, porém, além de extrapolar os
limites desta vida, parece extrapolar os limites naturais da substância criada:
A semelhança na ordem inteligível, pela qual se conhece uma coisa
segundo a sua substância, convém que seja da mesma espécie, ou
melhor, que seja a própria espécie. Assim, por exemplo, a forma da
casa que está na idéia do construtor tem a mesma espécie da forma da
casa construída, ou melhor, é a sua própria espécie, até porque
também pela espécie de homem não se conhece a do burro ou do cavalo.
Ora, a natureza da substância separada não é da mesma espécie que a
natureza divina, nem até do mesmo gênero, como foi demonstrado (livro
I, cap. XXV). Logo, não é possível que a substância separada conheça
a substância divina pela sua própria natureza.45
Todavia, Tomás reafirma o axioma "o desejo natural não pode ser vão, já que a
natureza nada faz em vão (livro II do De caelo)", o que lhe permite afirmar não
só que teremos outra vida em que a beatitude será possível, mas de que maneira
a visão será possível: "foi acima demonstrado (cap. XLIX) que a substância
divina não pode ser vista pelo intelecto mediante uma espécie criada. Donde ser
necessário, sendo Deus visto em sua essência, que pela mesma essência divina o
intelecto a veja, de modo que nesta visão a essência divina seja o que é visto
e aquilo pelo qual é visto".46 O que exige o axioma aristotélico não é pouco:
para que o desejo natural de beatitude se realize, será preciso que a forma de
Deus se torne forma do intelecto criado que a vê. Ora, isso está muito além do
alcance da natureza criada, pois ver Deus pela essência divina é algo próprio
da natureza divina, e só dela. Diz Tomás:
Ora, ver Deus por essência transcende os limites de toda natureza
criada, pois é próprio de toda natureza intelectual criada conhecer
segundo o modo de sua substância, e a substância divina não pode ser
assim conhecida, como foi demonstrado (cap. XLIX). Logo, é impossível
a um intelecto criado chegar à visão da substância divina, a não ser
pela ação de Deus, que transcende toda criatura.47
Em outras palavras, e este é um ponto crucial para compreender a noção de
natureza humana, a criatura intelectual é definida por um fim que ela não pode
alcançar por suas próprias forças. Digo criatura intelectual, e não só o homem,
pois isso não se limita a uma natureza decaída, mas estende-se a qualquer
natureza intelectual criada. A natureza parece exigir a sobrenatureza.
A correta compreensão dessa aparente contradição passa pela noção de potência
passiva natural. Como explica Laporta,
todo movimento no universo é fundado sobre duas potencialidades:
poder sofrer o ato, tornar-se: potência passiva; poder pôr o ato,
agir: potência ativa. A potência passiva, por sua vez, ou é potência
passiva natural: poder evoluir conforme a sua natureza; ou é potência
passiva não-natural: poder sofrer uma mudança não conforme a sua
natureza. Diante da evolução normal do ser, desenvolvendo-se em vista
de seu fim, a potência passiva é natural. Mas, de fato, ocorre às
vezes e mesmo freqüentemente no mundo que o sujeito evolua como ele
não desejaria desenvolver-se, torna-se o que, por sua natureza, ele
não era chamado a tornar-se. Por acidente, por artifício, por
violência, ele passa a um estado não conforme a sua finalidade. O
cordeiro não tende por natureza a tornar-se alimento do lobo. Deste
ponto de vista, todo ser tem uma potência passiva não natural,
simples submissão ao que ele pode tornar-se contrariamente a seu
impulso espontâneo.48
Por requerer um agente natural que a atualize, a potência passiva assume um
acento diverso do apetite natural, mas ambos tendem ao mesmo fim, a plena
realização da natureza em questão, de modo que, embora sejam coisas diversas, o
ato de ambos é o mesmo. Sendo assim, a potência passiva pode abarcar um leque
bem mais amplo de possibilidades, mas a potência passiva natural é uma só,
definida estritamente pela natureza do sujeito, que comporta uma só finalidade.
O questionamento levantado por Laporta é a respeito da potência passiva natural
para o sobrenatural, que, segundo o comentador, Tomás ora afirma, ora nega.
O agente que atualiza uma potência pode ser natural ou não natural. Sendo
natural, ele será tão determinado pelo fim quanto o apetite natural, do qual
não se desvincula:
É agente natural aquele que age segundo sua natureza, realizando tal
ato concreto que constitui sua razão de ser. Ele existe em vista de
uma tarefa definida a realizar: natum facere hoc, nascido para fazer
isto. Sua maneira de ser, sua estrutura se explica por um papel
preciso a assumir. Tudo o que ele é foi concebido e moldado em vista
de uma missão determinada a cumprir. Ele é o que é em vista de um ato
a realizar.49
Ora, se tomarmos os atos naturais, aqueles que realizam um apetite natural e
são feitos por agentes naturais, Deus não pode ser o agente natural deles, pois
não é determinado naturalmente a aquele fim. Sendo assim, poderíamos ser
levados a pensar, como o tomista Cajetan, que, não havendo potência natural sem
agente natural, a potência da natureza para o sobrenatural, ou seja, para a
graça e a visão beatífica, não pode ser uma potência passiva natural, mas
apenas uma potência obediencial. Esta, para Tomás, seria:
Uma potencialidade passiva, pela qual toda criatura, enquanto tal,
pode tornar-se não aquilo a que tende por natureza, mas qualquer
outra coisa que agrade ao Criador fazer dela. Em outros termos,
capacidade comum a todos os seres criados de evoluir fora do curso
normal de seu desenvolvimento, graças a uma intervenção divina.50
Em outras palavras, trata-se de um milagre divino.
A posição de Tomás, porém, como mostra Laporta, não é tão cristalina. No
Compêndio de teologia, Tomás nega categoricamente a potência passiva natural
com relação à visão beatífica: "algo está naturalmente em potência a respeito
das coisas que podem ser reduzidas a ato pelo agente natural".51 Ou seja, se a
visão é inacessível à criatura, não há potência passiva natural. Por outro
lado, no IV Escrito sobre as sentenças e na Suma teológica, Tomás se pergunta
se a justificação do ímpio é um milagre. Para sê-lo, deveria, além de
constituir uma ação realizável apenas por Deus, cumprir um dos dois requisitos:
ou bem realizaria uma potência passiva natural do sujeito, mas com um agente
sobrenatural substituindo o agente natural, ou bem não realizaria nenhuma
potência natural do sujeito, caindo no caso da potência obediencial. Ora, Tomás
responde que a justificação dos ímpios não é milagre, pois: "1) quanto à graça,
há uma potência, de modo algum obediencial, mas natural; 2) e esta potência
natural é cumprida pelo único agente natural adequado, Deus, não substituindo,
desta vez, nenhum agente natural. Assim, nem o primeiro nem o segundo tipo de
milagre se realizam; tudo permanece normal".52
Em resumo, para manter válido o axioma "O desejo natural não pode ser vão",
Tomás precisa cindir o conceito de potência passiva natural. Como capacidade de
ser realizada por um agente natural, a potência passiva natural para o
sobrenatural não está no homem, já que só Deus a atualiza. Como capacidade de
evoluir conforme seu impulso natural, ela está presente, pois é Deus, o único
agente natural apropriado para atualizá-la, que realiza o fim que constitui a
natureza humana. Essa distinção, porém, não dissolve o desequilíbrio de fundo
da natureza humana. Como em Agostinho, é infinita a distância entre o que a
criatura intelectual necessariamente deseja e o que ela pode conquistar por si
mesma. Esse desequilíbrio, por sua vez, aponta para a grandeza da criatura
humana:
O fim último do homem consiste em um certo conhecimento da verdade
que lhe excede a capacidade natural, isto é, em ver a verdade
primeira em si mesma, como acima foi demonstrado (cap. 50 e ss). Ora,
não é próprio das criaturas inferiores atingir um fim que lhes exceda
a capacidade natural. Por isso, é conveniente que, também por causa
desse fim, sejam vistos os diversos modos de governos, referentes ao
homem e referentes às criaturas inferiores. Com efeito, as coisas
destinadas a um fim devem ser proporcionadas a ele. Se, pois, o homem
está destinado a um fim que lhe excede a capacidade natural, é
necessário que lhe seja acrescentado um auxílio sobrenatural,
mediante o qual tenda para o fim.53
Como dissemos antes, o fim é pensado em relação à natureza. Logo, se a natureza
humana se destina a um fim inalcançável por suas próprias forças e, nesse
sentido, sobrenatural, essa qualificação deve ser considerada secundária e
subordinada. O natural, no sentido forte, é a finalidade inscrita na natureza.
Mesmo que se fale de um fim natural proporcionado a nossas forças, a saber, a
contemplação da verdade tanto quanto é possível nesta vida, trata-se apenas de
um fim provisório, que, como Tomás explica (Suma contra os GentiosIII, 63),
está contido no verdadeiro fim natural, a visão beatífica. Por isso a graça,
auxílio sobrenatural necessário para merecermos a justificação, está contida na
potência passiva natural, completando a natureza. Se trouxesse um novo fim para
a natureza humana, a graça sequer seria desejável, pois mudar o fim é destruir
a natureza em questão.
Isso não significa, porém, que todos devam chegar à visão beatífica. Como já
dissemos, muitos são os seres que não realizam seu fim; mas o irrealizado não é
o irrealizável. Com o auxílio apropriado, o homem pode salvar-se, todavia, se
esse lhe for negado, nem por isso sua natureza será destruída. Sem a graça, o
homem permanece com o mesmo apetite e o mesmo fim naturais, por mais
irrealizados que sejam, e pode até ser feliz (de uma maneira bastante
imperfeita). Mesmo incapaz de merecer a graça (Suma contra os GentiosIII,149),
o homem não está condenado à miséria, só à imperfeição. Mais uma razão para
constatarmos que o deus tomista não deve a salvação a ninguém; mesmo assim, e
até por isso, a natureza humana persiste intocada. Nas palavras de Laporta,
criando uma natureza intelectual, Deus não é obrigado a dotá-la das
forças necessárias para realizar seu destino? Evidentemente não. Deus
não é obrigado a realizar contradições. Ele não pode produzir uma
criatura com atributos divinos. Não pode criar um ser capaz por
natureza de ver Deus. Não pode também produzir uma criatura que
possuiria por natureza, ou poderia adquirir por sua atividade
natural, um direito qualquer de ir viver com ele.54
Como em Agostinho, a gratuidade é necessária ao pensamento tomista da natureza.
A teologia moderna
Apresentadas as doutrinas de Agostinho e Tomás, as matrizes maiores do
pensamento cristão, podemos passar à teologia moderna e à maneira como ela
lidou com a idéia de natureza humana. O primeiro nome a destacar, este
tradicionalmente ligado ao agostinismo, é o de Baius. Como Agostinho, Baius
também afirma que é necessário ao homem o socorro externo de Deus para que
possa realizar seu destino. Também como Agostinho, não concebe um estado em que
o homem, reduzido a suas próprias forças, chegaria a sua perfeição como pura
natureza, sem intervenção da graça. A maneira como os dois autores vêem a graça
e a relação do homem com ela é, contudo, bastante diversa. Nas palavras de
Lubac:
De uma tese que, sob sua forma negativa, parecia totalmente idêntica,
Agostinho concluiu que nada no homem escapa à graça; Baius, que a
graça nada tem a ver, senão em um sentido impróprio, com o homem
inocente: pela própria lei da natureza, o homem tem sobre Deus
direitos estritos, de modo que o indispensável socorro divino não é
mais a iniciativa ditada por um transbordamento gratuito de bondade,
mas o pagamento de uma dívida de justiça. Segundo Agostinho, este
socorro tem por efeito nos elevar, nos alçar a uma condição feliz que
de modo algum é merecida por um esforço criado; segundo Baius, ele é
apenas um meio necessário posto à nossa disposição para nos permitir
merecer humanamente com um mérito que, por sua vez, exige sua
recompensa.55
A proximidade com Pelágio é evidente, mas ao mesmo tempo surpreendente para um
teólogo agostiniano. Se Pelágio naturalizava os instrumentos necessários para
concretizar a natureza, e portanto naturalizava a graça, Baius faz desse
instrumento o objeto de uma dívida de Deus para com a natureza humana, que
sequer merece o nome de natureza sem o pagamento:
O que Deus lhe dá não é recebido como um benefício: é-lhe ainda algo
de natural; não, sem dúvida, natural por constituição, como teria
dito Pelágio, mas natural por exigência. Não é, falando
rigorosamente, uma parte integrante de sua natureza, mas não é menos
algo indispensável à integridade desta natureza e, por conseguinte,
essencialmente requerido por ela.56
Sem a graça, não haveria integridade na natureza humana (o que não seria
diferente em Agostinho ou Tomás), mas o resultante não seria um bem menor, e
sim um mal, algo contra a natureza. Desse modo, a graça não é apenas um
aperfeiçoamento da natureza, mas um complemento lógico e necessário da criação.
Baius busca mostrar, como vimos em Tomás, que não é incompatível falar de um
fim sobrenatural para a natureza humana; o que faz desse sobrenatural, no
limite, um fim natural. Todavia, Baius vai diretamente contra a letra de Tomás
ao fazer da obtenção desse fim uma obrigação divina. Tomás diz:
Por sua primeira instituição a natureza humana foi ordenada ao fim da
beatitude, não como a um fim devido ao homem segundo sua natureza,
mas apenas pela liberalidade divina; e por isso não cabe que os
princípios da natureza bastem para obter o fim, exceto se forem
acrescidos de dons adicionais pela liberalidade divina.57
Para Baius, a carência do fim não se apresenta como inquietude (à maneira de
Agostinho) ou apetite (São Tomás), mas como a cobrança de um direito (aos
meios).
Mesmo após o pecado, a dependência da graça divina tem em Baius um caráter bem
diverso do de Agostinho. Para o moderno, no homem corrompido a intervenção
divina em vista do ato salutar não é mais devida, mas essa gratuidade não
incide sobre a essência mesma do ato:
O que constitui este ato sendo, segundo ele, como se viu, apenas o
fato da obediência à lei, fato que acarreta como recompensa a glória
celeste, segue-se que o socorro e a presença mesma do Espírito Santo,
obtidos pela redenção de Cristo, são apenas uma pura condição deste
ato ou, no máximo, um puro instrumento.58
Como instrumento, a graça é, sim, condição necessária do ato meritório, mas não
constitui este mérito, não transfere ao homem uma dignidade sem a qual não há
mérito. Portanto, mesmo após o pecado, não se pode dizer que o mérito seja dom
divino, o que afasta Baius do mestre Agostinho. Como diz Lubac, "quaisquer que
sejam as colaborações divinas, o resultado permanece inteiramente humano. A
graça precede o ato do justo, mas não se poderia dizer que o informa; ela o
torna possível de fora, ela não o sustenta por dentro".59
Foi em grande parte no intuito de rejeitar a heresia baiana que a escolástica
tardia desenvolveu um conceito que, se talvez já estivesse implícito, ao menos
não era evidente na tradição teológica: a pura natureza. Essa idéia, cuja
perfeita formulação só se dará em Suarez, visava antes de tudo impugnar a
ilação de que, se a graça é necessária para realizar plenamente a natureza
humana, ela é devida por Deus ao homem. Este pode, ao contrário, realizar de
maneira puramente natural os seus desejos naturais, com instrumentos naturais,
chegando por fim a uma felicidade puramente natural que não depende da
intervenção gratuita. Perde completamente o sentido, portanto, a idéia de
dívida.
Sigamos Lubac, mais uma vez, na sua tentativa de rastrear as origens do
conceito de pura natureza: a primeira fonte apontada pelo comentador para tal
idéia foram as especulações medievais em torno da potência absoluta de Deus, a
qual poderia perfeitamente produzir um semelhante estado. Tais especulações,
contudo, não questionavam de fato a tese tradicional sobre o fim último do
homem. A segunda fonte para a idéia vinha de um problema teológico bastante
concreto:
O caso das crianças mortas sem o batismo, às quais não se podia
conceder a visão beatífica, e que não se aceitava danar como os
pecadores, devia levar a pôr a hipótese, esta concreta, mas no
interior de nosso mundo atual, de um estado intermediário. Por
analogia, visava-se o caso, não realizado, em que o primeiro homem
teria morrido antes de ter recebido a infusão da graça santificante,
e por conseguinte antes de ter feito a opção moral que foi, de fato,
o pecado original.60
Tratava-se, no entanto, de um caso excepcional, que por isso não podia servir
de modelo para a condição humana em geral. A última fonte, segundo Lubac,
seriam as especulações dos humanistas do século XV que elaboraram a idéia de
religião natural. A partir daí, vários teólogos do início do século XVI
começaram a tratar do tema, mas sempre como uma "ficção útil" e sem criar uma
dualidade de fins últimos. Mesmo que considerassem a possibilidade de um fim
puramente humano, este estava sempre subordinado ao verdadeiro fim, a visão
beatífica, no que os teólogos modernos nada diferiam de Agostinho e Tomás.
Pode-se constatar isso no próprio Catecismo do Concílio de Trento, publicado em
1566.
Belarmino, na sua refutação a Baius, traz algo novo. À objeção de que ao homem,
cujo fim natural é ver Deus, são-lhe devidos os meios para isso, o autor
responde com uma argumentação de cunho tomista:
Digo que este devido, qualquer que seja, não é natural, mas
sobrenatural, pois Deus quis criar o homem para um fim tão sublime
que não se poderia atingir senão por meios sobrenaturais. Com efeito,
deve-se observar que a visão de Deus não é dita fim natural do homem
de tal modo que o homem possa alcançá-la naturalmente, mas somente
que a natureza seja capaz da visão de Deus e que o homem apeteça
naturalmente ver Deus.61
Em outras palavras, o fim é natural quanto ao apetite, mas sobrenatural quanto
à consecução, o que não indica a miséria da condição humana e sim sua grandeza,
o fato de ser à imagem de Deus. Até aqui, nada de novo. Mas então Belarmino
aprofunda, ainda com argumentos tomistas, a objeção de Baius:
O homem não pôde ser criado para um fim inferior à visão de Deus,
logo eram-lhe simplesmente devidos os meios para tal fim. Prova-se o
antecedente: pois o intelecto humano naturalmente é capaz da visão de
Deus e a apetece naturalmente, e não pode ocorrer que não seja capaz
dela, do contrário não seria intelecto, mas algo inferior.62
Ou seja, se o homem tivesse outro fim, sua própria natureza mudaria.
Curiosamente, aí onde parece nada restar para a idéia de uma pura natureza,
desvinculada dos fins sobrenaturais, Belarmino vê a ocasião para introduzir a
idéia:
Teria sido equânime que Deus, tendo ordenado o homem a tal fim tão
elevado, não lhe negasse os meios necessários; porém nada absurdo
seguiria se negasse. Pois embora aquela suma beatitude seja o fim
natural do homem, é um fim desproporcionado e, além dele, tem outro
fim natural inteiramente proporcionado a si, o qual é investigar a
verdade pelo raciocínio. Por isso pôde Deus conduzir o homem pelos
meios naturais ao fim proporcionado a sua natureza e não elevá-lo
mais. Temos exemplo disso no pássaro da noite, que tem a capacidade
natural e o apetite de ver o sol, e contudo é crível que nunca
ocorrerá que veja o sol, mas só aquela luz débil e obscura que é
objeto dos olhos, não apenas natural mas também proporcionado.63
O pássaro da noite não vê o sol, como estaria em sua capacidade e seu apetite,
mas nem por isso é uma potência vã. Ele tem uma atualização proporcionada a
suas capacidades, pela qual vê muitas outras coisas. Do mesmo modo, o homem,
por seu intelecto, está destinado à visão de Deus, mas nem por isso é uma
potência vã, pois pode ver o que está ao seu alcance. Não se trata,
evidentemente, de Beatitude, palavra que Belarmino não usa para esse fim
puramente natural, mas é sim uma realização suficiente para impedir a conclusão
do raciocínio de Baius. O instrumental de Belarmino vem todo de Tomás, mas o
acento deve mudar, já que Tomás não tinha um adversário tão perigoso quanto
Baius. Por isso o que era um fim secundário e subordinado deve agora adquirir
relativa autonomia, dando espaço para a idéia de pura natureza.
É somente com Suarez que a nova teoria se delineia mais perfeitamente. Ele
sistematiza a idéia de pura natureza, integrando-a à doutrina dos estados da
natureza humana.64 Além do estado adâmico e do estado de natureza decaída,
temos agora o estado de pura natureza, embora esse não corresponda a nenhum
momento de fato existente na história humana, sendo apenas um modelo teórico
para pensar o homem enquanto tal, ponto de partida necessário de qualquer dos
chamados estados históricos:
O estado da natureza humana é dividido pelos teólogos em dois
gêneros, a saber, o de via e o de termo, isto é, o estado desta vida,
que é o da beatitude a ser adquirida, e o estado da pátria, que é o
da beatitude já possuída. (...) Não falaremos do segundo (...).
Tratemos então do estado de via, que os teólogos antigos distinguiram
em apenas dois, o estado de natureza íntegra e o de natureza decaída,
como vemos por ex. em S. Tomás 1. 2, q. 109 inteira, Gabriel in 4,
dist. 1, q. 2, entre outros. Contudo esta divisão é dada sobre os
estados que, em diversos tempos, a natureza humana de fato teve; ora,
supomos que nenhum deles é o estado de pura natureza. Pois, como
abaixo mostraremos aos heréticos e a alguns católicos, ambos
acrescentam algo ao que a natureza humana por si mesma postula; e por
isso Cajetan e os teólogos modernos consideraram um terceiro estado,
que chamaram puramente natural e que, embora não tenha existido, como
suponho e abaixo mostrarei por uma sã doutrina, contudo pode ser
pensado como possível, e a consideração dele é necessária para a
inteligência dos outros, já que na verdade este estado é como que o
fundamento deles.65
Quanto ao conteúdo propriamente dito desse estado, ele inclui todas as
faculdades naturais, corporais ou materiais, contidas na potência humana, bem
como o concurso e a providência de Deus naturalmente devidos, ou seja,
necessários para a atualização das potencialidades naturais. Por outro lado,
ele exclui tudo o que seja acrescido à natureza, a ela não devido, seja mal ou
bem, a saber, nem o pecado, nem a culpabilidade dele decorrente, nem o dom da
graça ou outras perfeições não devidas à natureza. A parte positiva, segundo
Suarez, não gera disputa, por isso discutirá com mais atenção as coisas que o
estado de natureza exclui. Diz o autor: "Deus não pode ser o autor do pecado, e
por isso deve-se conceder que a natureza não infunde culpa, mas é necessário
que ela se derive de outra raiz infecta, como ocorre no pecado original, ou
nasça da própria vontade criada."66 Portanto, independentemente do que hoje
ocorre, não há contradição em pensar o homem sem pecado ou culpa. Desde que o
consideremos criado imediatamente por Deus, tal possibilidade está garantida, e
isso basta para a constituição de uma hipótese como é o estado de pura
natureza.
Quanto a pensar o homem sem a graça, a situação é mais complexa, porque de fato
Adão a recebeu imediatamente de Deus na criação:
Além de todas as faculdades naturais, o homem tem uma perfeição
especial, que consiste na ausência de impulso e desenfreada
concupiscência, ou seja, na perfeita submissão do apetite sensível ao
racional.67 Por outro lado, quando perdeu esta graça, não ficou em
situação neutra, mas caiu em pecado: nenhuma criatura, uma vez tendo
a graça, pode ser dela privada por Deus se não privar-se dela
pecando. Donde vem aquele axioma católico: o justo não é abandonado
por Deus se primeiro ele próprio não abandona Deus. Logo não pode ter
passado do estado de graça ao estado de pura natureza, mas só ao
estado de culpa. E, inversamente, também não pode passar do estado de
culpa ao estado de pura natureza.68
Quanto à ausência simultânea de graça e pecado, não há nem pode haver suporte
de fato para a hipótese da pura natureza. Como sustentá-la de direito?
Para garantir a possibilidade da pura natureza, Suarez precisa, antes de mais
nada, desfazer o equívoco em torno do termo "natural":
Costuma-se às vezes chamar natural a tudo que o homem tenha junto com
a natureza, como na sentença "Éramos filhos da ira por natureza", e
assim pode ser dito que a integridade da natureza foi conatural a
Adão, dado que foi concriada com ele. Contudo agora não falamos
assim, pois deste modo também a graça pode ser dita conatural aos
anjos e ao primeiro homem. Propriamente falando, chama-se natural não
a tudo que seja dado no instante da criação, mas ao que de algum modo
é dado pela força da própria natureza.69
Além disso, como a própria noção de estado é vista pelo autor como uma certa
proporção da natureza humana em ordem a um fim último, é preciso demonstrar que
o fim último do homem, sua beatitude, não implica necessariamente a noção de
graça. Sem isso, o conteúdo do estado de pura natureza se reduz ao de natureza
íntegra e Baius será irrefutável.
Como explica Lubac, Suarez parte da idéia de que o homem, como substância
natural, deve tender a um fim nos limites da natureza, ou seja, um fim último
conatural:
O fim de um ser natural é sempre rigorosamente mesurado aos seus
meios. Eis aí, para Suarez, um princípio absoluto, e não menos
absoluta, não menos indiscutível é a aplicação deste princípio ao
caso do homem. Em virtude de sua criação, o homem é portanto feito
para uma beatitude de essência natural.70
Como Belarmino, Suarez sente a força da argumentação de Baius, por isso aceita
partir do mesmo ponto que ambos: "toda potência inclina-se naturalmente ao ato
a si conatural, sobretudo ao perfeitíssimo, pois todo perfectível apetece sua
perfeição. Ora, a beatitude, como se diz freqüentemente, é a máxima perfeição,
e se é natural, é também proporcionada".71 O que marca a diferença de Suarez é
o destaque dado à idéia de proporcionalidade entre o ser natural e seu fim e,
sobretudo, o fato de não temer o uso do termo "beatitude" para caracterizar
esse fim natural, o que não ocorria em Belarmino.
Evidentemente, o homem pode, e no caso dos eleitos vai, ser chamado a um fim
superior, mas, desproporcionado aos meios naturais. Tal fim é acrescentado sem
alterar a natureza do ser em questão, permanecendo a mesma a beatitude natural,
por si mesma suficiente para realizar o homem enquanto tal. E o que ela é?
"Deve-se dizer que ela consiste na perfeitíssima conjunção natural com Deus
pelo intelecto e pela vontade, tanto quanto pode ser conhecido pela luz natural
do intelecto da criatura."72 Mas tal beatitude natural não é a visão beatífica
prometida aos eleitos. Esta última não é a felicidade própria do homem, não é
constitutiva de sua natureza e por isso não pode sequer ser naturalmente
desejada. Desse modo, a idéia de que a visão beatífica é o fim natural quanto
ao apetite, ainda que sobrenatural quanto à consecução (chave da solução
tradicional), não podia ser aceita, pois abriria uma brecha para
descaracterizar a beatitude natural como verdadeira beatitude. Daí dizer
Suarez:
O apetite inato é fundado na potência natural, mas no homem não há
potência natural para a beatitude sobrenatural. Logo não há apetite
inato, o que pode ser confirmado pelo que decorre dos princípios
acima postos, já que mostramos haver no homem outra beatitude,
natural, além desta sobrenatural, e conseqüentemente ele apetece
aquela pelo apetite inato. Apetece portanto aquela como sua perfeição
última, do contrário não a apeteceria como beatitude. Logo não
apetece a beatitude ulterior com aquele apetite, já que, assim como é
impossível haver dois fins últimos a respeito do mesmo, assim também
é impossível apetecer naturalmente duas perfeições como últimas, ou
seja, o que é o mesmo, como beatitude.73
Suarez sabe que sua teoria rompe com Agostinho (Fizeste-nos para ti, e inquieto
está o nosso coração, enquanto não repousa em ti.) e Tomás, ou pelo menos com
uma certa tradição interpretativa deste último. Por isso deve destacar em Tomás
alguma ambigüidade que ao menos permita a leitura favorável à pura natureza:
"S. Tomás não parece ter falado assaz claramente sobre esta matéria, mas
favorece muito a esta opinião, pois quando distingue a beatitude do homem,
distingue duas, uma natural, outra sobrenatural."74 Por outro lado, Suarez e
seus seguidores também não podem negar qualquer desejo de ver a Deus. Como diz
Lubac, fazê-lo
seria rejeitar de modo bem manifesto uma tradição há muito tempo
unânime. Contudo, o desejo admitido difere totalmente do da tradição.
Não poderia tratar-se, explicam, senão de um desejo puramente elícito
e condicionado, de um certo desejo imperfeito, análogo a um vago
agrado. É uma "veleidade", é um anseio (souhait), como vem
espontaneamente ao espírito a propósito de todos os tipos de coisas
impossíveis, e aliás sem interesse essencial... Desejo incapaz de
engendrar uma verdadeira "inquietude" quanto a seu objeto, o qual, no
estado natural, a supor que este pudesse ser conhecido, seria visto
como pura quimera.75
Desse modo, Suarez aparenta fazer uma reconciliação com a tradição quando, na
verdade, rompe com ela, e assim pavimenta um caminho novo para o tomismo.
Segundo Lubac, "doravante existe uma corrente tomista, uma escola tomista, para
professar, contrariamente a S. Tomás, que a natureza racional é um todo fechado
no qual tendências e capacidades ativas se correspondem rigorosamente".76
O famoso Jansenius, cuja influência posterior dispensa apresentações, pode ser
visto, sob alguns aspectos, como seguidor de Baius, mas as diferenças são
importantes. Ambos partem de uma visão bastante otimista do estado adâmico, que
acaba resultando em uma visão assaz pessimista da condição atual do homem. No
entanto, Jansenius está melhor resguardado que Baius de aproximações com
Pelágio a respeito da natureza íntegra. Para o autor, a justiça original não
era natural ao primeiro homem como a saúde é para o animal. Trata-se não de um
elemento constitutivo da natureza humana, mas de um dom acrescido a ela sem
ser-lhe devido. "O magnífico 'equilíbrio' da condição primeira não era obtido
sem uma graça suficiente. Enquanto Baius, mesmo falando de graça, confessava
que era em um sentido impróprio, Jansenius precisa que se deve entendê-la de
uma 'verdadeira graça', de uma 'graça sobrenatural'."77
Apesar de sobrenatural e necessária a Adão para que este fizesse o bem, a graça
suficiente era apenas um instrumento a ser usado pelo livre-arbítrio, de modo
que este último mantinha-se como a causa principal da boa ação; relação que se
inverterá após o pecado, quando a vontade cativa não terá méritos. É de notar
que, embora Jansenius garanta que a vontade adâmica era indiferente ao bem e ao
mal, e por isso teria guardado os méritos de manter-se no estado de natureza
íntegra, diz também que, sem a graça, o livre-arbítrio bastaria somente para o
mal. É nessa ambigüidade que Lubac se baseia para afirmar que, como em Baius,
Jansenius traria um "naturalismo" latente a sua apresentação do estado de
natureza íntegra:
Sem dúvida, insiste ele ainda, a graça não era devida aos méritos de
Adão, e a glória final não estava mais ao alcance dos esforços
naturais; mas uma e outra não eram contudo postuladas por exigências
essenciais? Ele está bem perto de o afirmar quando, após ter dito que
Deus deve a si mesmo conceder seu socorro ao ser que acaba de criar,
assinala como razão disso menos a sublimidade do fim a que Deus o
destina do que a fraqueza da criatura que, tirada do nada, conserva
sempre um pendor ao nada.78
Como em Agostinho e Tomás, a beatitude do homem janseniano se encontra em Deus.
Nesse sentido, ele tende naturalmente a Deus. O amor a Deus, entretanto, é
sobrenatural no sentido de depender de um socorro sobrenatural. A idéia de
dívida não surge em função da necessidade de completar uma noção que, sem o
auxílio, sequer seria uma natureza. Ao contrário, se há dívida, não é para com
a criatura, que não tem direitos, mas para com a bondade e justiça do criador,
que sem dar a graça não poderia condenar os homens inocentes que se afastassem
dele. Estes, na verdade, estariam cumprindo uma tendência natural de toda
criatura:
É uma ordem da Natureza e da Providência divina que tudo o que é
segue as leis delas e, encerrado nos limites delas, retorna a sua
origem por um movimento perpétuo... Pois é daí que vem este grande
peso que arrasta todas as criaturas para a destruição de seu ser e
que as faria cair no abismo do nada se elas não fossem sustentadas
pela palavra que sustenta todo o Universo. E esta inclinação geral é
como um traço marcado pela mão da Natureza, que faz ver a todos os
que têm olhos suficientemente bons para reconhecê-lo qual é a origem
de todas as coisas criadas.79
Mesmo Adão e os anjos tendiam ao nada de onde haviam saído mais do que a Deus,
onde se encontra sua beatitude. Por isso caíram:
É o que fez com que os anjos e o primeiro homem não tenham
permanecido na glória em que Deus os havia posto no início; mas,
tendo-se achado como em um país estrangeiro, abandonaram Deus e
caíram para baixo como para sua pátria natural; e teriam passado até
o nada se Deus não os tivesse segurado na queda por uma bondade
onipotente.80
O nada é a pátria natural da criatura, enquanto Deus é o país estrangeiro. Como
criatura, o homem tendia ao nada, mas foi posto, de maneira sobrenatural, ou
mesmo antinatural, em uma posição de felicidade extrema, sem carências, junto
de sua finalidade última, Deus. Ora, foi essa beatitude, a qual é o fim último
do homem em toda a tradição já examinada, que precipitou o movimento de
desagregação:
Esta união e esta inteligência produziam uma alegria e um prazer
inefáveis em seu espírito, devido à posse de um tão grande bem, e o
vigor da imortalidade em seu corpo; e estas duas graças supremas
conservavam uma profunda paz nas duas partes de que ele era composto;
davam a seu espírito o meio de seguir Deus sem nenhuma resistência e
a seu corpo de seguir seu espírito sem dificuldade.
Não lhe faltava nada de tudo o que ele podia desejar e possuir
legitimamente e não havia nada que pudesse abalar sua felicidade
interior e exterior; entretanto ele ainda não estava firme neste
estado por aquela última firmeza que lhe teria feito amar esta
sabedoria divina a ponto de esquecer-se a si mesmo, de esquecer sua
própria grandeza comparando-a com a grandeza infinita. De modo que,
tendo começado a perceber sua felicidade e a reconhecer qual era, foi
arrebatado e seduzido por sua própria beleza; começou a olhar-se com
prazer e por este olhar que o transformou no objeto de seus próprios
olhos e desviou sua visão de Deus para voltá-la inteira para si
mesmo, caiu na desobediência.81
A felicidade adâmica não se sustentou porque o homem não estava pronto para
perder-se na felicidade divina, renunciando à sua própria natureza. Buscando
fazer de si uma natureza autônoma, cuja realização maior seria uma felicidade
causada por si mesmo, o homem perdeu a felicidade sobrenatural que a graça
suficiente lhe propiciava, caindo no único movimento próprio da natureza
criada, o movimento para o nada. Por isso, por ser esse o seu movimento
natural, após o pecado o homem só pode ser salvo por uma graça eficaz, que, ao
libertar a vontade, determina-a. Sem essa violência antinatural, a desagregação
prevalece:
De modo que assim como as árvores dobradas com grande esforço
recolocam-se com tanto mais violência em seu estado natural, tão logo
a mão que as retinha deixa-as ir; do mesmo modo, em sentido
contrário, desde que a natureza humana foi corrompida, e como que
entortada pelo pecado, ela não pode mais ser reendireitada senão por
uma força extrema; e assim que é deixada a si mesma e abandonada,
precipita-se por seu próprio peso no vício de sua origem.82
Nesse quadro fica difícil ver como o pensamento de Jansenius possa esconder,
ainda que latente (como crê Lubac), um naturalismo similar ao de Baius. O que
ocorre, aparentemente, é uma ruptura com o conceito tradicional de natureza, na
medida em que a plena realização da criatura depende de uma intervenção
sobrenatural que não satisfaz as carências puramente naturais, mas sobrepõe-se
à natureza.
A natureza humana em Pascal
É no contexto jansenista que se desenvolve o pensamento de Pascal, o qual, em
meados do século XVII, escreve à sombra da ainda poderosa idéia de pura
natureza. Os defensores dela partem daqueles elementos (substância, dinamismo
interno e finalidade) já presentes na concepção aristotélica de natureza para
então constituir uma idéia de natureza que, deixando à parte a beatitude
sobrenatural cristã, se vincula indissoluvelmente às noções de completude e
suficiência, ou seja, à condição de um ser que tem em si seu princípio e o
poder de alcançar seu fim. Após vermos as críticas de Jansenius, seria de crer
que Pascal renunciaria ao uso do termo natureza (pelo menos fora do estado
adâmico), mas não é isso que ocorre. Como explicá-lo?
A partir do que foi visto até agora, não é difícil imaginar por que a aplicação
do termo natureza ao homem pascaliano sofre de sérias dificuldades. Um elemento
fundamental do campo semântico desse termo é, como vimos longamente, a
substancialidade. Em alguns textos, é nesse sentido que Pascal usa o termo para
o homem, sob nítida inspiração da união substancial cartesiana: Fr. 72/199: "
(...) nós somos compostos por duas naturezas antagônicas e de gêneros diversos,
alma e corpo".83 Será, então, que Pascal encontra no eu, como Descartes, uma
substância pensante?
Vejamos o que nosso filósofo diz a respeito: no Fr. 455/597, Pascal mostra a
inutilidade do esforço daqueles que, como Miton, tentam afastar o aspecto
odioso do eu humano. Isso ocorre porque este não é um aspecto, mas o aspecto
característico do eu. A aparência agradável não pode ter outro efeito além de
ser uma cortina de fumaça, Fr. 455/597:"Vós Miton, vós o cobris, não o tirais
por isso, continuais portanto sendo odioso".84 O eu não é odioso apenas
relativamente, enquanto causa de desprazer para os outros sujeitos. Nesse nível
mais superficial, a amabilidade seria um remédio eficiente. Contudo, o eu é
odioso na sua realidade própria, ele é injusto em si.
No segundo parágrafo desse fragmento, Pascal explicita os dois níveis do
sujeito: "Numa palavra, o eu tem duas qualidades: é injusto em si, fazendo-se
centro de tudo; é incômodo aos outros, querendo sujeitá-los, pois cada eu é o
inimigo e desejaria ser o tirano de todos os outros."85 A máscara de gentileza
que esconde o desprazer relativo nada pode contra o desprazer em si do eu, sua
causa. Ou melhor, o incômodo do eu, disfarçável, é menos grave que aquilo que o
provoca: o fato de o eu se fazer centro de tudo. O egocentrismo e o amor
próprio constituem tão intrinsecamente o eu que não podem mais ser excluídos.
Partindo do pressuposto pascaliano de que todo homem busca a felicidade, talvez
possamos esclarecer as razões desse ódio. Se o homem faz uma coisa é porque lhe
parece que isso o fará feliz. O mundo material não basta, porém, para saciar
sua sede de bens. É preciso que ele domine seus iguais e, ainda assim, não se
satisfará, sendo obrigado a tiranizar cada vez mais os outros. Essa
insatisfação, dado fundamental do homem pascaliano, é razão da incomodidade que
o eu produz. Mas por que é insaciável?
A verdade que abre este mistério é que Deus criou o Homem com dois
amores, um por Deus, outro por si mesmo; mas com esta lei, que o amor
por Deus seria infinito, isto é, sem nenhum outro fim além de Deus
mesmo, e que o amor por si mesmo seria finito, ligando-se a Deus.
(...) O pecado tendo chegado, o homem perdeu o primeiro destes
amores; e o amor por si ficou nesta grande alma capaz de um amor
infinito; este amor próprio se estendeu e inundou o vazio deixado
pelo amor de Deus; e assim ele se amou por si e todas as coisas por
si, isto é, infinitamente.86
A expressão "eu odioso" representa o homem que não enxerga quão insuperável é
sua pequenez. Ele pensa que pode, reunindo o mundo finito em torno de si, sanar
sua carência inconsciente de infinitude. A descontinuidade entre o finito e o
infinito não permite, porém, que a carne preencha um espaço que só Deus pode
ocupar. Assim, a concupiscência se ilude com sua capacidade e tenta tiranizar
os outros, sem contudo remediar a angústia humana.
O amor-próprio desmedido (devido ao deslocamento do centro para a
concupiscência, o transitório) fez que o homem mentisse, se mascarasse e se
revestisse de qualidades ilusórias para obter poder e estima. Sua essência
verdadeira, o que há de infinito no ser humano, lhe foi tirada através de Adão.
Agora só existe enquanto ausência incompreensível.
As qualidades maléficas dominam, portanto, a natureza atual do homem e é por
isso que a amabilidade não pode destruir o eu odioso. Se lhe tirarmos o que tem
de odioso, nada restará. Ele é injusto em si, tirano por natureza e inimigo de
todos. Contudo, Pascal não chega a formular o eu como uma substância cuja
natureza é ser injusta. O caráter insuperável da injustiça do eu não faz dela
um atributo essencial, pois continua sendo uma qualidade negativa. Portanto, o
que há de mais palpável no eu é negatividade extrema, sem consistência
ontológica.
Tendo-se afastado de Deus, ou seja, de si mesma, de sua essência, a substância
do homem se pulverizou em inúmeras qualidades passageiras, incapazes por si
mesmas de se reconstituírem como acidentes de uma substância. Fr. 323/688:
Que é o eu? Um homem que se põe à janela para ver os passantes, se eu
estiver passando, posso dizer que se pôs à janela para ver-me? Não,
pois não pensa em mim em particular. Quem gosta de uma pessoa por
causa de sua beleza, gostará dela? Não, pois a varíola, que tirará a
beleza sem matar a pessoa, fará que não goste mais dela; e, quando se
gosta de mim por meu juízo ou por minha memória, gosta-se de mim?
Não; pois posso perder essas qualidades sem me perder. Onde está pois
esse eu, se não se encontra no corpo nem na alma? E como amar o corpo
ou a alma, senão por essas qualidades, que não são o que faz o eu, de
vez que são perecíveis? Com efeito, amaríamos a substância da alma de
uma pessoa abstratamente, e algumas qualidades que nela existissem?
Isso não é possível, e seria injusto. Portanto, não amamos nunca a
pessoa, mas somente as qualidades.87
A natureza humana se reduz então a uma sucessão de estados desligados entre si:
Fr. 109/638:
Quando nos sentimos bem dispostos, mal sabemos como faríamos se
estivéssemos doentes; quando ficamos doentes, tomamos o remédio de
bom grado: o mal nos convence a fazê-lo. Não temos mais paixões nem
desejos de divertimentos e passeios, que a saúde nos dava e que são
incompatíveis com as necessidades da doença. A natureza proporciona
então paixões e desejos de conformidade com o estado presente...88
Da mesma forma, a idéia de corpo também perde o valor de ordenação e unidade e
reduz-se a uma denominação convencional. Substância corpórea? Pascal responde
com ironia: Fr. 115/65:
(...) Um homem é uma substância; mas, se o anatomizarmos, será ele a
cabeça, o coração, as veias, o estômago, cada veia, cada porção de
veia, o sangue, cada humor do sangue? Uma cidade, um campo, de longe,
são uma cidade e um campo; mas, à medida que nos aproximamos, são
casas, árvores, telhados, folhas, plantas, formigas, pernas de
formigas, até o infinito. Tudo isso se inclui na palavra campo.89
A corrupção decorrente do pecado original implodiu a substância humana. Em
Pascal, ontologia e ética se encontram para fazer a desgraça (ou a salvação) do
homem. No paraíso, Adão vivia em comunhão com Deus, uma união perfeita onde a
participação na essência divina garantia a congregação dos acidentes humanos. O
pecado destruiu essa ordenação. Embora faça parte do universo ético, a ação
pecaminosa teve conseqüências metafísicas. A punição do homem foi o afastamento
de Deus, da sua verdadeira essência, aquilo que há de mais profundo no homem
("mais eu do que eu mesmo"):Fr 555/929:
Não te compares aos outros, mas a mim. Se não me encontras naqueles a
quem te comparas, tu te comparas a um abominável. Se me encontras
neles, tu te comparas a mim. Mas o que há de comparar? Tu? Ou eu em
ti? Se é a ti que comparas, comparas um abominável. Se sou eu, então,
comparas-me comigo mesmo. Ora, eu sou Deus em tudo.90
Assim sendo, dado o pecado, em que sentido se pode ainda falar de natureza
humana?
A palavra natureza, ou a variação luz natural, também aparece na epistemologia
pascaliana. O método de conhecimento absolutamente racional exigiria que todas
as proposições e todos os termos fossem definidos. Entretanto, isso não passa
de um ideal impossível, já que implicaria uma regressão ao infinito. Descartado
esse método, devido a nossa finitude, Pascal propõe um sucedâneo:
Pois há um, e é o da geometria, que é em verdade inferior por ser
menos convincente, mas não menos certo. Ele não define tudo nem prova
tudo, e esta é sua falha; mas ele não supõe senão coisas claras e
constantes para a luz natural, e é por isso que ele é perfeitamente
verdadeiro, sendo sustentado pela natureza quando o discurso não o
pode (grifos nossos).91
Pascal acredita na validade desse método, mas ao mesmo tempo conhece sua
fragilidade. O sentimento do coração que garante os primeiros princípios é
facilmente confundido com a imaginação, potência enganadora, e nada impede que
o hábito consolide princípios falsos. Diz o autor: Fr. 92/125:"Que são nossos
princípios naturais senão princípios de hábito?"92 Sem o auxílio da graça
divina, é apenas o hábito que garante a força das verdades básicas da ciência,
e esta "natureza" que as sustenta pode muito bem ser apenas hábito. Fr. 233/
418:"Nossa alma é lançada no corpo, onde encontra número, tempo, dimensões.
Raciocina sobre isso e a isso chama natureza, necessidade, e não pode crer em
outra coisa."93
Pascal aponta que a força dos céticos está na impossibilidade de provar esses
princípios e no desconhecimento de nossa origem. Como não sabemos se fomos
criados por um Deus enganador, nada garante nosso sentimento natural. A força
dos dogmáticos está em que essa dúvida é artificial, ou mesmo metódica (no
sentido cartesiano), mas não sincera. Em nossa vida real, não nos é possível
questionar os princípios, pois o coração, instrumento da natureza, nos impede:
Fr. 282/110:
Sabemos que não sonhamos; por maior que seja a nossa impotência em
prová-lo pela razão, essa impotência mostra-nos apenas a fraqueza da
nossa razão, mas não a incerteza de todos os nossos conhecimentos,
como pretendem. Pois o conhecimento dos princípios, como o da
existência de espaço, tempo, movimento, números, é tão firme como
nenhum dos que nos proporcionam os nossos raciocínios. E sobre esses
conhecimentos do coração e do instinto é que a razão deve apoiar-se e
basear todo o seu discurso.94
Todavia, essa vitória dos dogmáticos só mostra que a razão reluta em destruir a
si mesma. É verdade que Pascal destaca a humilhação da razão ao ver-se
submetida a algo externo a ela, o coração, mas, no fim das contas, é a uma
exigência racional que o coração atende ao sentir os princípios. A incapacidade
da razão, limitada a raciocinar, leva a natureza a buscar algo outro que
garanta o funcionamento pleno da própria razão, humilhada sim, morta não. A
natureza que atua agora é a totalidade do universo racional. Este só se
sustenta tendo princípios como ponto de partida. Se se abrisse para o infinito
através das definições infindáveis do método ideal, a razão implodiria a si
mesma e se decretaria inútil. Se isso ocorresse, a existência do ser humano
caminharia para o insuportável e, ainda mais, sem possibilidades de compreender
sua situação. Por isso, o hábito, vilão do conhecimento, torna-se necessário.
"Renversement du pour au contre." A natureza é aqui aquilo que impõe as
condições de possibilidade do trabalho racional, as quais em si mesmas não
devem ser questionadas. O sábio, porém, nunca é alheio a esse processo. Fr. 93/
126:"(...) O hábito é uma segunda natureza que destrói a primeira. Mas que é a
natureza? Por que não é o hábito natural? Receio muito que essa natureza não
seja ela própria senão um primeiro hábito, assim como o hábito uma segunda
natureza."95 Assim como as definições da geometria, nada impede que os hábitos
se sucedam ao infinito e que não haja uma natureza original. Mais uma vez,
portanto, o ser humano se acha perdido e o conceito de natureza, a rigor, se
mostra dificilmente aplicável ao homem.
Sempre, porém, que o ceticismo parece prestes a triunfar, a natureza reage e o
dogmatismo sobrevive, mesmo acima da capacidade racional de argumentar. Os
argumentos dos erros dos sentidos, a impossibilidade de distinção racional
entre o sono e a vigília, e mesmo a hipótese de que nossos princípios sejam
meramente habituais, nada disso elimina a força dos dogmáticos. De fato,
sinceramente, continuamos sem poder duvidar de tudo, sem poder duvidar que
estamos despertos, sem poder duvidar que duvidamos, logo nunca houve um
pirronismo perfeito. Tal adversário, o pirrônico perfeito, certamente venceria
os dogmáticos apontando nossa incapacidade de provar a boa origem de nossa
natureza. Mas apenas hipoteticamente "venceria", porque tal adversário não
existe de fato. A razão confunde os dogmáticos e a natureza confunde os
pirrônicos.
Como seria bom e coerente suspender o juízo e não optar entre esses dois
caminhos! Infelizmente, porém, não há essa possibilidade: Fr. 434/131: "(...)
Eis aberta entre os homens a guerra em que todos devem tomar partido,
enfileirando-se, necessariamente, ou no dogmatismo ou no pirronismo; pois quem
pensar em permanecer neutro será pirrônico por excelência. Essa neutralidade é
a essência da cabala pirrônica: quem não é contra eles é excelentemente por
eles..."96 Pascal nos põe aqui numa situação similar à da Aposta. Lá também,
diante da impossibilidade de assentir ou recusar fundamentadamente à proposição
"Deus existe", a suspensão do juízo se apresentava tentadora. No entanto,
suspender o juízo seria viver como se Deus não existisse, de modo que a escolha
estaria já consumada. Em nosso caso ocorre o mesmo: o homem deve escolher entre
ceticismo e dogmatismo. A razão, que também é parte da natureza, nos obriga a
ceder aos argumentos céticos. A natureza, a mesma que garante os princípios dos
quais a razão depende, nos impede. A suspensão do juízo, por sua vez,
representa já assumir uma posição cética. Não podemos evitar um dos dois
caminhos, nem subsistir em nenhum deles. Mergulhado no paradoxo, o que resta ao
homem?
Perdido entre essas duas seitas, ele é obrigado a submeter-se a uma hipótese
externa à racionalidade, mas que a razão, mesmo em choque, percebe ser a única
capaz de explicar sua situação miserável. Não se trata, é bom destacar, de uma
saída do paradoxo (o dilema persiste) mas da busca de tornar a situação do
homem compreensível: Fr. 434/131:
(...) se o homem nunca tivesse sido corrompido, gozaria com
segurança, em sua inocência, tanto da verdade quanto da felicidade. E
se o homem só tivesse sido corrompido, não teria qualquer idéia da
verdade ou da beatitude. Mas, infelizes que somos, e mais do que se
não houvesse grandeza em nossa condição, temos uma idéia da
felicidade, e não podemos alcançá-la; sentimos uma imagem da verdade
e só possuímos a mentira: somos incapazes de ignorar em absoluto e de
saber com certeza, de tal maneira é manifesto que estivemos num grau
de perfeição de que infelizmente caímos!97
É neste ponto que vemos como, para Pascal, o reencontro do conceito de natureza
se faz enquanto exigência de totalidade. Como diz Magnard,
invencivelmente hipostasiamos nossos conceitos, para ver neles a
expressão de realidades que transcendem a experiência. O fato de
estas realidades não existirem nos autoriza a negar aos conceitos o
valor objetivo, não toda a significação. O homem pode não realizar
ele próprio uma natureza, não constatar ordem no mundo nem sentido na
história; estas não são simples negações, mas privações, que não
deixam de constituir problema. A intemperança metafísica de que o
homem é prova não é o estigma de um desequilíbrio, uma ausência?98
Se Pascal, junto com Jansenius, combate os defensores da pura natureza, não
pode, por outro lado, ser insensível ao modelo de completude natural delimitado
por esses teóricos. A diferença é que Pascal, como bom agostiniano, não admite
ver a beatitude como um acréscimo desnecessário à natureza: a união com Deus é
a única fonte de satisfação. Logo, deve haver, como apontam aqueles teóricos,
uma natureza proporcionada a tal fim. Se não há tal proporção, nem por isso
teríamos de concluir ou bem por uma dívida do criador (como Baius), ou bem pela
existência de um fim puramente humano (como os defensores da pura natureza). Ao
contrário, a desproporção aponta para a idéia de decadência. Mas aqui
protestará o leitor: não há novidade pois toda a tradição teológica lida com o
conceito de queda. É verdade, mas, de um lado, escapou a boa parte da tradição
o alcance e o peso metafísico da queda, os quais Pascal experimenta de maneira
radical; de outro, é preciso lembrar que Pascal não busca, como a tradição,
suprimir o paradoxo. Por isso, nosso filósofo vê na decadência do homem um
poder explicativo diverso do que viam seus antecessores. O homem é rei
destronado, por isso sua situação é tão insuportável, diferentemente, por
exemplo, de todos os animais: Fr. 409/117:"A grandeza do homem é tão visível
que se tira mesmo de sua miséria. Porque ao que é natureza nos animais nós
chamamos miséria no homem; por onde reconhecemos que, como a natureza é hoje
semelhante à dos animais, ele caiu de uma natureza melhor, que lhe era
própria."99
O homem está perdido em agitações e divertimentos fúteis e não pode evitar
fazê-lo devido à corrupção de sua natureza, mas tem um instinto secreto, resto
da primeira natureza, que o faz conhecer que a felicidade está no repouso. Esse
repouso pode ser lido como o reencontro da totalidade, da verdadeira natureza.
Desse modo, a idéia de natureza não apenas faz a crítica da situação do homem
como aponta para uma exigência radical da felicidade.
O repouso só virá quando a capacidade do homem para o infinito for preenchida
novamente, ou seja, quando o homem se reunir a Deus. O pecado foi uma tentativa
de o homem constituir-se em totalidade própria, abandonando seu verdadeiro
centro, que é Deus. Isso subverteu totalmente os valores do homem e o levou a
vagar às cegas pelo mundo, perdendo-se em coisas materiais enquanto o soberano
bem se afastava. Mas, apesar de tudo, o vazio deixado por Deus no homem é algo
muito mais real e presente que todo o resto, e é por isso que a natureza,
enquanto exigência de totalidade, continua apontando para o infinito.Fr. 415/
127:"A natureza do homem considera-se de duas maneiras: uma segundo seu fim, e
então é incomparável; outra segundo a multidão, como se julga a natureza do
cavalo e do cão, ao ver sua corrida e seu animum arcendi; e então o homem é
abjeto e vil..."100 Não é difícil ver nesse fragmento uma retomada da discussão
teológica do fim último do homem. Diria Tomás que o fim é sobrenatural quanto à
consecução (dada a desproporcionalidade dos meios humanos), mas natural quanto
ao apetite, o que sinaliza a grandeza do homem. Suarez mostrou a fragilidade
dessa solução e exilou a visão beatífica na pura sobrenaturalidade. Pascal, por
sua vez, mergulha no paradoxo, vendo na elevação do fim e na precariedade dos
meios manifestações da mesma natureza irrealizável do homem, simultaneamente
signo de grandeza e miséria. Os animais são felizes, satisfeitos consigo
mesmos, sua natureza não demanda mais do que a animalidade pode fornecer. Já
para o homem, reduzir-se à animalidade é o desespero total. O desejo de ser
feliz, próprio de toda criatura, fica sem princípios adequados e oscila de um
bem para outro, incapaz de se satisfazer. A natureza pede muito mais do que a
ordem das coisas pode dar.
Tal irrealização é vivida como carência, uma carência absoluta, por ser a
privação de Deus, e tanto mais opressiva por ser tudo que restou de uma
natureza que um dia teve um substrato metafísico e o perdeu. Por outro lado,
como imagem de Deus, a natureza humana exige por si mesma o sobrenatural para
reconstituir-se como totalidade. A situação miserável conjugada à
impossibilidade interna de recuperação aponta para a necessidade de o homem
superar o próprio homem, apelando para a ordem da caridade, já que as ordens
das matérias e dos espíritos se mostraram incapazes de reconfortá-lo.
Por fim, o que há de mais paradoxal na idéia de natureza humana em Pascal é que
ela atua como a exigência radical de uma realização que, de certo modo, a
suprime. Como diz Magnard, "não há natureza própria ao homem; o pecado foi ter
querido ter uma; esta pretensão verificou-se decepcionante; a salvação estará
apenas na renúncia total a si".101 Assim como a razão se submete diante do
incompreensível quando julga racionalmente necessário, também a natureza humana
aceitará suprimir sua auto-suficiência (a qual já foi perdida pelo pecado),
quando vir que não pode satisfazer suas próprias exigências. Não se tratará,
então, como bem observou Magnard, de recuperar um estado de pura natureza, mas
de colocar-se nos braços do infinito, aceitando ser membro de um todo que a
supera.
Embora pouco adequada à nossa condição atual (desagregação) e à dos bem-
aventurados (adesão a Deus), a idéia de natureza humana permanece como um valor
essencial para o pensamento pascaliano. Ela funciona como um referencial para
julgar nossa condição, referencial que não teria a mesma força se Pascal não
tivesse conhecido o combate aos defensores da pura natureza. Como idéia
reguladora, ela denuncia a incompletude e aponta para a recuperação. Em outras
palavras, a natureza é o conceito que, por meio da idéia de carência, faz a
ponte entre a miséria humana e o anseio pela graça divina.