Diegese em República 392d
A discussão sobre a léxisprópria dos poetas é introduzida, na República, pela
seguinte declaração de Sócrates: "porventura tudo quanto é dito por mitólogos
ou poetas não é diégesis sobre coisas que foram, são ou serão?"3 Essa definição
busca dar conta do não entendimento de Adimanto sobre o que seria a léxis, uma
vez que Sócrates acabara de afirmar: "Isso então, o relativo ao lógos, tenha
fim; o que respeita à léxis, como creio, depois disso é preciso examinar ' e
tanto o que se deve dizer (há lektéon), quanto como se deve dizer (hos lektéon)
estará completamente examinado por nós."4 Ora, "o que se deve dizer" referindo-
se ao que acabara de ser investigado, o lógos, é ao "como se deve dizer" ou à
léxisque se aplica agora a definição de que, em se tratando de mitólogos e
poetas, ela se configura como "diegese".5
Trata-se aparentemente de um detalhe, porém relevante, por diversas razões. A
primeira, mais imediata, por ser sobre essa base (o lógosdiegético) que Platão
procederá à distinção dos três tipos de léxis, a saber, nos próprios termos
socráticos: "porventura, então, não é com simples diegese (haplêi diégesei), ou
com a [diegese] que vem a ser através de mimese (dià miméseos gignoménei) ou
através de ambas (di' amphotéron) que eles [mitólogos e poetas] levam a cabo
[tudo quanto dizem]?"6 A segunda razão está em que se trata do gesto inaugural
da (nossa) teoria literária que, retomada por Aristóteles, se revelou capaz de
fornecer as balizas para a distinção dos gêneros numa longuíssima duração.7 Na
esteira dessa importância inaugural, é a partir do entendimento de diégesiscomo
"narrativa" e de mímesiscomo "representação" que a crítica passou a postular
que "o que chamamos de poesia lírica" e outras formas de literatura ficaram
fora do interesse de Platão ' e, já que o modelo que ele inaugura conhecerá
grande sucesso, a lírica teria permanecido, durante toda a Antigüidade, um
gênero sem teorização.8 Finalmente ' este é o ponto que aqui interessa ', a
própria palavra diégesis não se registra antes de Platão, o que poderia sugerir
que este a tivesse criado ou, pelo menos, que podia transportá-la para o núcleo
de sua teoria poética como um termo não excessivamente marcado.9
Digno de nota é ainda o fato de que o verbo diegeîsthai' donde derivam
diégesis, diégema e diegetés ' não seja atestado antes do século V a.C. Nessa
época, ele entra efetivamente em cena, passando a concorrer com outras palavras
que cobriam a mesma esfera semântica (a mais antiga das quais parece ser
mythéesthai ' mas não menos importante sendo também légein, largamente
utilizada por Heródoto). O quadro a seguir apresenta a distribuição das
primeiras ocorrências de diegeîsthaie seus derivados nos autores que utilizam
esses termos até a época de Platão (cf. o Thesaurus Linguae Graecae):
Não pretendo atribuir à estatística mais do que lhe compete: como Apolo em
Delfos, ela nem afirma nem nega, mas dá sinais. Todavia, alguns dados são
significativos: a) a concentração de usos pelos dois principais transmissores
da memória de Sócrates, a saber, Platão e Xenofonte; b) a relativa alta
incidência em oradores (Isócrates, Lísias, Andócides, Antifonte); c) a
baixíssima ocorrência nos narradores por excelência (Heródoto e Tucídides); d)
finalmente, o significativo uso dos termos em pauta no corpus hippocraticum.
Não disporei de espaço para analisar cada um desses registros, motivo por que
me restrinjo a salientar apenas os que me parecem mais significativos para
compreender o uso platônico.
Antes de todos, o que parece mais antigo (do verbo diegeûmai), no fragmento DK
22 B 1 de Heráclito, que cito na tradução de Schüler:
Embora seja este o discurso (lógos), sempre, os homens tardam, não só
antes de ouvi-lo, como logo que o ouviram; pois, mesmo que todas as
coisas aconteçam de acordo com este discurso (lógos), mostram-se
semelhantes a inexperientes ao experimentarem tais palavras e atos
que eu persigo (diegeûmai) segundo a natureza distinguindo cada coisa
e mostrando como ela é.10
Em que pese a proverbial obscuridade de Heráclito e as dificuldades que os
fragmentos levantam em termos de interpretação (e conseqüente tradução para
nossas línguas e hábitos mentais), o que interessa é que a diegeûmaise apliquem
"tanto palavras quanto obras" (kaì epéon kaì érgon) e que o mesmo verbo
implique, pelo menos da forma como leio o texto, uma associação com o
distinguir (diairéon) e com o dizer (phrázon): "eles assemelham-se a
inexperientes, experimentando tanto palavras quanto obras tais quais eu próprio
refiro, segundo a natureza, distinguindo cada uma e dizendo como é". Assim,
parece que diegeûmaisupõe que se separe coisa de coisa e que, a partir disso,
se possa detalhar o que é cada qual. Nesse contexto, a relação que a etimologia
sugere interessa, já que hegéomaisignifica "conduzir", "seguir na frente",
"guiar", "capitanear" e "governar". Quem diegeîtaide fato conduz o discurso, o
que suporia a separação das palavras e obras às quais ele se refere, a
imposição de uma distinção que torna possível delas falar ' ao contrário do que
ocorre com os outros homens, aos quais escapa quanto fazem estando acordados,
do mesmo modo que se esquecem do que fazem enquanto dormem (fr. DK 22 B 1).
Ora, sem a ação de diegeîsthai, o experimentar (palavras e obras) assemelha-se,
portanto, ao não experimentar, os contrários se confundem e, em palavras e
obras, parece faltar justamente a condução de quem capitaneia e governa. Ao
"tudo vem a ser conforme o lógos" parece corresponder o "diegeûmaiconforme a
natureza" ' ou, numa outra leitura possível, o diegeûmai sobre palavras e obras
que eu distingo conforme a natureza e declaro como cada uma é. Em qualquer das
hipóteses permanece a idéia de que diegeîsthaisupõe essa distinção e
declaração.
Com efeito, nos textos indicados na Tabela_1, diegeîsthaipode apresentar as
seguintes acepções: a) diegeîsthaium sonho (contar um sonho);11 b) diegeîsthaio
que se viu (contar o que se viu);12 c) diegeîsthaiacontecimentos,13 com
destaque para fazê-lo na Assembléia14 ou no tribunal (narrar ou descrever);15
d) diegeîsthaiuma situação (descrever);16 e) diegeîsthaio modo de ser de alguém
(descrever);17 f) diegeîsthaia beleza de alguém (descrever);18 g) diegeîsthaium
caráter, neste caso, o de Sócrates (descrever);19 h) diegeîsthai performances,
neste caso, as de Sócrates (descrever);20 i) diegeîsthaiuma vida (narrar e
descrever);21 j) diegeîsthaia natureza, o corpo, a saúde e a doença (expor);22
l) diegeîsthaias motivações de alguém num tribunal (expor);23 m) diegeîsthaium
plano (expor);24 n) diegeîsthaium argumento (expor);25 o) diegeîsthaicom
alguém, em uso intransitivo (conversar).26 Desses usos, valerá a pena destacar
três.
Primeiramente, os que se registram no corpus hippocraticum. Em Sobre os ares,
as águas e os lugares, afirma o autor que "desejo discorrer sobre o restante
das águas" (perì dè tôn loipôn hydáton boúlomai diegésasthai), esclarecendo que
tratará "tanto das que são doentias, quanto das saudáveis, de quais águas vêm a
ser naturalmente más e de quantas são boas" (7, 1). Como se vê, está em jogo o
separar e distinguir como base para o diegeîsthai, o que se repete em Da dieta,
quando se afirma que "a respeito dos sofrimentos, que tipo de poder (dýnamin)
eles têm, exporei (diegésomai)", passando-se imediatamente à exposição: "pois
se há os que são naturais, há também os que se devem à violência" (I-IV, 61,
1). Em Da inseminação, da natureza das crianças e das doenças, afirma-se: "como
vejo que é a fecundação no sexto dia, exporei (diegésomai)", dando-se início a
uma detalhada descrição (IV, 13, 4). No livro Das articulações procede-se a um
comentário de ordem metatextual bastante importante, quando se declara que
"ainda que não seja fácil relatar com precisão (atrekéos diegéesthai), por
escrito, toda a cirurgia, deve ele [o leitor] fazer dela uma idéia
(hypotopéesthai), a partir do que foi escrito" (33, 7). Assim, opõe-se, de um
lado, o que se diria de um modo preciso, através do relato, ao que não se faz
dessa forma, sendo necessário, por isso, contar com a suposição de quem lê.
Encontramo-nos, com efeito, numa esfera em que a exatidão com que se relata e
se entende é absolutamente relevante, pois o médico deve basear-se não só no
que se encontra exposto nos livros, mas, igualmente, enquanto praticante de uma
tékhne, no que lhe expõe o doente que tem diante de si. Em Das doenças do povo,
a propósito da orientação do enfermo (he perì tòn nosoûnta oikonomíe) e do que
lhe perguntar sobre a doença (es tèn noûson erótesis), arrolam-se, como
instrumentos, "as coisas que ele relata, quais são, como se deve compreendê-
las, e os discursos" (hà diegeîtai, hoîa, hos apodektéon, hoi lógoi, 6, 2, 24,
2).
É provável que a especialização de diegeîsthaicomo fazer uma narrativa de fatos
tenha se dado em uma outra esfera igualmente sensível para a exatidão das
palavras: a dos tribunais. Os exemplos são inúmeros e acabam por configurar
lugares-comuns, como em Antifonte: "a respeito dos acontecimentos tentarei
relatar-lhes a verdade" (diegésasthai tèn alétheian). Em todos os casos,
diegeîsthaisupõe um relato ordenado, no sentido da norma que Hermógenes atribui
a Isócrates: "pois também Isócrates, em sua arte retórica, diz que, na
exposição (diegései), deve ser dito o fato (prâgma), os antecedentes (tà prò
toû prágmatos), as conseqüências (tà metà tò prâgma) e os desígnios (tàs
dianoías)" (fr. 6.1, Walz) ' e, ainda, que "se deve expor o que aconteceu em
primeiro lugar, em segundo lugar e o restante seqüencialmente" (diegetéon dè tò
prôton kaì tò deúteron kaì tà loipà hepoménos, fr. 10, 12).
Ora, essa norma poderia aplicar-se às demais formas de diégesis, mesmo as que
não se aplicam à narração de acontecimentos, como no seguinte exemplo das
Memoráveisde Xenofonte, quando é o próprio Sócrates quem relata a Aristipo o
episódio da escolha de Héracles entre dois caminhos: o da virtude ou o do
vício. Após o Vício tentar convencê-lo a escolher sua via, a Virtude retruca:
Não enganarei a você com proêmios lisonjeiros, mas, como os deuses
estabeleceram-nas, exporei as coisas com verdade (tà ónta diegésomai
met'aletheías), pois do que é bom e belo nada os deuses dão aos
homens sem fadiga e preocupação: se você quer que os deuses lhe sejam
propícios, é preciso servir os deuses; se você quer ser amado pelos
amigos, é preciso beneficiar os amigos; se você deseja ser honrado
por alguma cidade, é preciso ser útil à cidade; se você deseja ser
admirado por toda a Grécia em vista de sua virtude, é preciso tentar
fazer bem à Grécia; se você quer que a terra lhe traga frutos
irrepreensíveis, é preciso cuidar da terra; se você julga dever
enriquecer com os rebanhos, é preciso preocupar-se com os rebanhos;
se você quer também pelo desejo da guerra crescer, para poder
libertar os amigos e prejudicar os inimigos, é preciso aprender a
arte da guerra com os entendidos e exercitar como deve ser utilizada;
e se você quer também ter um corpo vigoroso, para que sirva à mente,
é preciso habituar o corpo a isso e exercitá-lo com fadiga e suor.
(II, 1, 27-28)
Citei a íntegra do que a Virtude anunciou que exporia, para que se perceba como
o conteúdo, neste caso, se realiza como uma série de conselhos, articulados em
forma de hipóteses sobre desejos e os requisitos para sua realização (se você
quer..., então é preciso...), ou seja, trata-se de um discurso que, sendo
parenético, se volta para o futuro (e recorde-se como Platão admite que a
diegese de mitólogos e poetas possa ser também sobre o futuro). Que se trata de
diégesisnão parece haver dúvidas, pois, tão logo a Virtude fecha sua exposição,
"o Vício, retrucando, fala (como diz Pródico): Medite, ó Héracles, como esta
mulher expõe (diegeîtai) para você um caminho difícil e longo para a alegria;
eu, de minha parte, por um caminho fácil e rápido o conduzirei à felicidade"
(II, 1, 29).
Esses exemplos, não sendo exaustivos, são todavia suficientes para permitir-nos
ampliar a concepção do que seja diegeîsthai, termo que cobre a esfera de
relatar, contar, expor ' em suma, discorrer, que talvez fosse a escolha mais
adequada, já que o termo guarda a idéia de que se procede a um percurso
(conforme o correspondente latino discurrere). Uma vantagem de adotarmos essa
acepção geral está em que o verbo discursare, ainda em latim, significa "ir e
vir", "andar a correr por diversas partes", bem como discursus tem o
significado de "o correr ou discorrer para diversas partes", donde "discurso",
"dissertação", "conversa". Ora, hegeîsthai, de que deriva diegeîsthai,
encontra-se também no campo semântico dos deslocamentos, significando "ir à
frente", "conduzir" ' o que tem como conseqüência ressaltar que, enquanto
diegético, o discurso é um percurso, sendo o elemento mais importante de sua
constituição aquele que o conduz de modo hegemônico: o diegeta.27
Tanto em Platão como em Xenofonte pode-se constatar que o diegeîsthaitem uma
função destacada na conservação dos ensinamentos de Sócrates. Assim, por
exemplo, o Econômico constrói-se como uma série de relatos distribuídos em
vários níveis: a) o do narrador (voz autoral); b) o dos que dialogam (Sócrates
e Critobulo); c) o dos que dialogam em segundo nível, no diálogo narrado por
Sócrates a Critobulo (Sócrates e Iscômaco). O narrador de primeiro nível, que,
em princípio, se identifica como o próprio Xenofonte, manifesta-se diretamente
no breve prólogo ("eu o ouvi, um dia, conversando ' dialegoménou ' sobre
economia, nestes termos"), mantendo sua presença através dos verbos dicendi
(ele disse, disse Sócrates, disse Critobulo) até aproximadamente o primeiro
terço da obra ' quando então passa a dividir a função diegética com Sócrates,
que se manifesta entremeando às suas falas e às do interlocutor, além de
pequenos trechos descritivos, também verbos dicendi(eu disse, ele/Iscômaco
disse).28
Adiantei em outro trabalho a hipótese de que, do ponto de vista narratológico,
um dos papéis de Sócrates nos diálogos platônicos é o de representar as funções
do narrador,29 o que agora quero retomar com um pouco mais de precisão, dizendo
que, se cabe a Platão, enquanto autor, o papel hegemônico de diegeta (mesmo
naqueles diálogos que apresentam a forma da diegese mimética), o que ele deseja
transmitir a seu leitor é que a Sócrates incumbe, de fato, a condução ' e não
só da discussão representada, como também da diegese da mesma. Parece que isso
vem a ser um elemento importante (tratando-se de alguém que não deixou obra
escrita) por duas razões: a primeira, porque, pelo que se supõe a partir de
Eutidemo, Teeteto, Cármides, Lísis, República e Teeteto, Sócrates, além de
conduzir diálogos, parece ter sido também um exímio diegeta de diálogos
acontecidos e protagonizados por ele mesmo (o que a exposição de seu diálogo
com Iscômaco, no Econômico, confirma por meio de um testemunho não-platônico);
a segunda, porque, num ambiente em que vários autores transmitem, oralmente ou
por escrito, relatos dos diálogos socráticos, convém a Platão, que cuida de
registrar não ter presenciado pessoalmente nenhum deles, dar a entender que se
baseia não só na versão de pessoas bastante próximas do filósofo e fidedignas
(como Fédon, Céfalo e Euclides), como também na versão mais legítima dentre
todas, ou seja, a do próprio Sócrates.30 Essas são razões suficientes,
acredito, para justificar a tematização da própria diégesisnão apenas como
parte de um universo paralelo (o dos poetas), mas como assunto de interesse e
conseqüências filosóficas.31 Com efeito, no diálogo platônico, o que se narra
ou expõe faz parte efetiva da argumentação. É nesse sentido que, na República,
impõe-se considerar a diegese de mitólogos e poetas não como uma teorização
sobre a literatura em si e por si, mas porque integra uma etapa indispensável e
necessária para o exame e a compreensão do lógos.32
Consideremos os usos platônicos do verbo e do substantivo, a partir do número
de ocorrências nos diálogos:
A mera exposição dos registros já será suficiente para indicar que a diegese
constitui um recurso relevante, permitindo-nos, em benefício da brevidade,
apenas considerar os usos do substantivo, que, além de em Platão, só se
registra numa única passagem do corpus hipocraticum:34 a) em Eutidemo275d, a
observação de Sócrates a Críton garante que toda a seqüência do diálogo é
constituída pela diegese socrática da apresentação dos dois sofistas ["O que
aconteceu depois disso, Críton, como lhe poderia contar (diegesaímen) bem? ( ).
Assim, eu, como os poetas, devo começar a diegese invocando as Musas e a
Memória."]; b) as duas referências no Timeu indicam que o amplo discurso
cosmológico de Sócrates se entende como diegese (assim, em 38e, ele diz que, a
respeito dos "outros planetas", "talvez mais tarde, havendo tempo livre, eu
poderia fazer uma diegese adequada", do mesmo modo que, em 48d, suplica ao
"deus salvador" que os guarde de fazer uma "diegese absurda e insólita",
conduzindo-os a uma "opinião verossímil"); c) em Fedro246a, Sócrates, após
tratar dos três tipos de "loucura divina" e da imortalidade da alma, observa
que, "a respeito da sua imortalidade, é suficiente [o que foi dito]; [dizer] o
que ela é seria uma diegese em tudo e por tudo divina e longa, mas [dizer] com
o que se parece, [uma diegese] humana e menor", dando início então à exposição
sobre a parelha alada; d) em Górgias465e, no fim da longa argumentação que
acabara de fazer para demonstrar que a retórica é, para a alma, o
correspondente da culinária para o corpo, Sócrates justifica-se, declarando
que, "quando eu falava brevemente, você não entendia, nem era capaz de
aproveitar nada da resposta que eu lhe dava, mas tinha necessidade de diegese".
Como se vê, diégesispode aplicar-se tanto à narrativa propriamente dita de um
diálogo (Eutidemo) e à exposição cosmológica em forma narrativa (Timeu), quanto
à argumentação sobre a imortalidade da alma (Fedro) e a natureza da retórica
(Górgias).
A famosa abertura do Teetetodá-nos mais detalhes a esse propósito, da
perspectiva da composição não mais de um discurso, mas do próprio texto
escrito: a) Sócrates narrou (diegésato) a Euclides o diálogo (lógous hoùs
dielékhthe) com Teeteto; b) Euclides escreveu um memorial (hypómnema), que
trabalhou, consultando Sócrates cada vez que pôde; c) Euclides declara a
Terpsíon que
escrevi então o lógosnão com Sócrates narrando-me (diegoúmenon), como
narrou (hos diegeîto), mas dialogando (dialegómenon) com os que disse
ter dialogado [ ]. Assim, a fim de, no escrito, por conveniência, não
introduzir as diegeses entre os lógoi, tanto as relativas a ele
próprio ' quando dizia Sócrates: "e eu disse", ou "e eu falei" '
quanto as relativas ao que respondia ' como "ele concordou" ou "não
se pôs de acordo" ' por isso escrevi como se ele estivesse dialogando
com seus interlocutores (autòn autoîs dialegómenon), tendo eliminado
aquele tipo de coisas. (143b-c)
Além de garantir-nos que Sócrates não só dialogava, como relatava em seguida
seus próprios diálogos, o trecho mostra como se pode passar, na transmissão dos
lógoi socráticos, por vários tipos de léxis: Sócrates valeu-se da diegese mista
(como faz na República), mas Euclides escreveu uma diegese mimética (que,
contudo, dá a entender que se trata de diegese do próprio Sócrates, à qual foi
fiel).35 A oposição feita no Górgiasentre o lógos que se faz por meio de
perguntas e respostas e o diegético é esclarecedora, levando a supor que há
diegese quando um expositor assume inteira responsabilidade pelo
desenvolvimento de um discurso narrativo ou argumentativo.
Ora, ao declarar que "tudo quanto dizem mitólogos e poetas é diegese", Platão,
portanto, provê uma primeira delimitação do lógosdaqueles que parece bastante
abrangente. Esse lógosjá havia sido definido antes como o "mito", o qual é,
"como se diz, falso no todo, mas em que há também algo de verdadeiro" (pseûdos
éni dè kaì alethê, 377a), ou seja, uma terceira espécie do lógos, intermediária
entre as duas antes estabelecidas, a verdadeira e a falsa (376e). Assim, ao
lógosdessa terceira espécie é que agora se ajunta mais um traço, no nível da
léxis: o ser diegético. Podemos concluir que, enquanto diegético, o foco da
análise se desloca do discurso para o diegetés, o mitólogo ou poeta que o
conduz ' e, de fato, o que está em julgamento não é propriamente a poesia (e a
mitologia), mas o poeta (e mitólogo). Daí se entende como a distinção entre
dois tipos de diegese, a simples e a mimética, possa aplicar-se também ao
retor, como se faz em Rep.396e. Todavia, nem tudo o que diz um retor é
diégesis, pois esta constitui não mais que uma das partes de seu discurso,
conforme o esquema apresentado no Fedro,36 o que se poderia estender também ao
filósofo, como mostra o exemplo de Górgias465e, citado anteriormente, já que o
próprio Sócrates usa do "falar brevemente" tanto quanto de diegese. Assim se
entende a delimitação pretendida por Platão (e tão própria de seu método):
diferentemente de em outros casos, não é em parte, mas no todo, que o lógosde
poetas e mitólogos é diegético, o que não quer dizer que seja simplesmente
"narrativo".
Para avaliar bem as conseqüências disso é inevitável trazer à consideração as
funções da mímesis, que provê a diferenciação feita em 392d entre as três
espécies de diegese. Procedamos por partes para compreender o raciocínio de
Platão: a) não basta saber o que é o lógosde mitólogos e poetas, mas é preciso
investigar também sua léxis; b) essa léxisdefine-se única e simplesmente como
diégesis, embora esta não seja exclusiva de mitólogos e poetas (há também a
diegese própria do orador, do historiador, do médico e do filósofo, que,
todavia, utilizam também outros gêneros de discurso); c) assim, num primeiro
nível, léxise diégesis, no caso de mitólogos e poetas, são a mesma coisa,
conforme se declara em 396d: "há pois uma certa espécie (eîdos) de léxise
diégesis em que exporia (diegoîto) quem é verdadeiramente nobre (kalòs
kagathós), quando tiver necessidade de falar algo, e outra espécie diferente
(anómoion eîdos), da qual sempre se valeria e na qual exporia (diegoîto) quem
for, por natureza e educação, contrário àquele"; d) em 397c, consideram-se três
tipos de léxis(týpoi tês lexeos), que empregam "todos os poetas e os que dizem
algo" (pántes hoi poietaì kaì hoí ti légontes), isto é, os dois tipos puros
(sem mimese/através de mimese) e o tipo que mistura ambos (ex amphotéron tinì
xynkerannýntes); d) em 397d, pergunta-se qual tipo será admitido na cidade:
"dos puros, um dos dois (tôn akráton tòn héteron), ou o misturado" (tòn
kekraménon);37 e) na mesma passagem, quando Adimanto responde que deve ser "o
puro que imita alguém moderado" (tòn toû epieikoûs mimetèn ákraton),38 Sócrates
acrescenta que, contudo, "o misturado é muito mais agradável para crianças e
pedagogos"; f) anteriormente, em 396e, já se manifestara a preferência pela
espécie mista: quando se trata de mimetizar "alguém indigno" de ser imitado,
será escolhida "a diegese [ ] tal qual nós, há pouco, descrevemos a respeito
dos versos de Homero, e sua léxis[do poeta] participará de ambas, de mimese
tanto quanto da diegese simples, mas havendo, num extenso lógos, pequena parte
de mimese".
Portanto, são dois os tipos básicos (ou "puros") de léxisdos poetas: a diegese
simples e a diegese mimética. O terceiro tipo nada mais é que mescla desses
dois.39 Conclusão: do mesmo modo que nem toda diegese comporta mimese, nem toda
mimese supõe diegese (conforme 397a, alguém pode mimetizar trovões, ventos,
trombetas e flautas). Contudo, se há poesia (poíesis) há diegese40 (também,
recorde-se, se há mitologia). Mas esta não se reduz a "narrativa", no sentido
restrito como a entendemos, podendo englobar todas as formas de exposição: um
poema de Safo (por exemplo, o famoso phaínetaí moi) ou uma elegia de Sólon são
tão diegéticos quanto os poemas de Homero ou as tragédias de Sófocles, com a
diferença de que, neles, não há mimese, enquanto representação do discurso do
outro, pois é só o poeta quem fala como si mesmo, sem se "fazer semelhante a um
outro pela voz ou pelo gesto" e "jamais se ocultando" (conforme a definição de
mimese em Rep.393c). Do mesmo modo, para tomar mais um exemplo da lírica,
constitui diegese o fragmento sáfico 1 V (conhecido como "Hino a Afrodite"),
com a diferença de que comporta também mimese, pois a deusa se dirige, em
discurso direto, à própria Safo ("Quem, ó Safo, te maltratou?"), ou seja, esta,
a poeta, oculta-se nessas passagens, buscando assemelhar-se à deusa cujo
discurso mimetiza.41 Assim, não me parece correto afirmar que Platão tratou
apenas dos gêneros narrativos, deixando de lado boa parte da produção poética
grega. Pelo contrário, a afirmação de que "tudo quanto é dito por poetas e
mitólogos é diegese" deve ser tomada em sua radicalidade e amplitude, pois
parece que pretende abarcar, de fato, toda a mitologia (os mythoiem prosa) e
poesia (os mythoiem versos).42
Assim, nosso esforço para compreender de modo mais exato o pensamento e a
terminologia de Platão deve levar em conta o modo como o movimento de diérese
se processa em República376e-417b,43 o que se poderia resumir dessa forma: a) a
educação (paidéia) tradicional, a qual se adota para os guardiões, divide-se em
ginástica para o corpo e música para a alma (376e); b) a educação começa com a
música, em que se encontram também os lógoi(376e), o que leva a supor que,
nela, há dois aspectos: a música propriamente dita (compreendendo o canto e a
melodia, retomados em 398c, bem como o ritmo, que volta à cena em 399e) e os
lógoi; c) os lógoise desdobram no lógospropriamente dito, ou seja, "o que se
deve dizer" (hà lektéon), e na léxis, "como se deve dizer" (hos lektéon); d) a
léxis supõe várias espécies (a de historiadores, médicos, oradores, filósofos),
mas, no caso de poetas e mitólogos, reduz-se a diégesis; e) a diégesis,
finalmente, distingue-se em diegese propriamente dita (haplè diégesis/ákratos
diégesis) e em diegese mimética (dià miméseos/ákratos mímesis). Assim, numa
leitura superficial, parece que música se opõe a lógos, do mesmo modo que
lógosa léxis e diegese a mimese ' e, de fato, isso tem uma função na
argumentação, pois pode haver música como menos ou mais lógos(até sem
lógosalgum, ainda que não seja este o caso que interessa a Platão), do mesmo
modo que diegese com menos ou mais mimese ' até sem nenhuma mimese, embora
pareça que, com relação a mitólogos e poetas, já que seu lógos é pseûdos,
sempre haverá mimese em algum grau mínimo. Todavia, após percorrer os vários
níveis da diérese, é preciso refazer o percurso, compreendendo a mimese como um
traço que se pode ajuntar à diegese, do mesmo modo que a léxisdiegética é o
elemento que necessariamente se ajunta ao lógosde poetas e mitólogos,
definindo-o no que tem de específico.
1 Este artigo é parte de um estudo mais amplo, relativo às teorizações sobre a
literatura na Grécia antiga (as quais têm início justamente com a reflexão
platônica, na República), levado a cabo com o apoio do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico ' CNPq. Agradeço, em especial, a Maria
das Graças de Moraes Augusto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelas
discussões que me permitiram refinar minha compreensão sobre Platão.
2 Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte, Brasil. jlinsbrandao@ufmg.br
3 Ar oj panta osa upo muqologwn hpoihtwn legetai dihghsiV ousa tugcanei
hgegonontwn h ontwn h mel lontwn; República392d. Por comodidade e para evitar a
interferência de sentidos alheios, opto, na exposição, por termos os mais
transparentes possível (como "mitólogo", "diegese" etc.). A lógos(discurso) e
léxis(elocução ou estilo) me referirei sempre sem traduzir as palavras gregas,
fazendo apenas uma observação: selegeincorresponde a "dizer", então lexiV
equivale a "dicção", no sentido do modo como se diz algo. Tratei dessa questão,
de modo geral, em BRANDÃO, J. L. Arqueologia da léxis. In: PERES, Ana Maria
Clark; PEIXOTO, Sérgio Alves; OLIVEIRA, Silvana Maria Pessôa de. O estilo na
contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. p. 29-39
(embora neste trabalho ainda mantenha o entendimento dedihghsiVsimplesmente
como "narrativa", o que prejudica algumas de minhas conclusões).
4 Ta men dh logwn peri ecetw teloV: to de lexewV, wV egw oimai, meta touto
skepteon, kai hmin a te lekteon kai wV lekteon pantelwV eskeyetai.
República392c.
5 Em 392b, como sorte de conclusão do percurso relativo ao lógos, Sócrates
declara:kai ta men toiauta aperein legein, ta d' enantia toutwn prostaxein
adein te kai muqologein ("e coisas desse tipo proibiremos que digam, mas o
contrário disso determinaremos que tanto cantem, quanto contem"). Observe-se
que o mythologeîn está sempre em causa, neste caso em complementaridade com
"cantar". Não tratarei aqui do problema que levanta o uso de mythológosem 392d,
restringindo-me a dar apenas duas indicações esclarecedoras: a) em
República380c, na conclusão do exame que conduzirá à primeira lei relativa a
como se devem representar os deuses ("deus não é causa de tudo, mas só dos
bens"), Sócrates declara que, do modo como o fazem geralmente os poetas, não se
permitirá que, dentre outras coisas, qualquer pessoa, "nem com metros, nem sem
metros, conte mitos" (mht' en metrw mhte aneu metrou muqologounta); b) em
Fédon61b, Sócrates, instado pelo sonho a dedicar-se à música, afirma que,
"considerando que o poeta deve, se quer ser poeta, criar (ou versificar) mitos
(poiein muqouV) e não lógoi, e não sendo eu próprio mitólogo (muqologikoV), por
isso então os mitos que tinha à mão e conhecia, os de Esopo, desses pus em
versos (epoihsa) os primeiros que me ocorreram". Assim, a mythologíaou o
mythologeînpode ser tanto em verso quanto em prosa ' embora o exemplo de
mythológos, por excelência, seja Esopo, que compôs mythoiem prosa. Dizendo de
outro modo: como a mimese à diegese, o verso é um traço que se pode acrescentar
ao mythos, sendo, portanto, o poeta um tipo específico do mythológos.
Conclusão: todo poeta é mitólogo, mas nem todo mitólogo é poeta.
6 Ar' oun ouci htoi aplh dihghsei h dia mimhsewV gignomenh h di' amfoterwn
perainousin; República392d.
7 A retomada por Aristóteles procede a uma mudança no modelo platônico de
grandes conseqüências, ao deslocar seu ponto de referência: não mais a diegese,
mas a mimese. Isso embora o resultado para a classificação dos gêneros não
deixe de permanecer o mesmo: a) uma apangelía(narração) que se pode fazer "como
si mesmo e não mudando" (a "diegese simples" de Platão); b) a que se faz
"tornando-se em algo outro", como Homero (a diegese que, em Platão, usa tanto
de "diegese simples" quanto de mimese); c) finalmente, com todos "os
mimetizados agindo e atuando", ou seja, o drama (a diegese que vem a ser
através de mimese).
8 Cf. GENETTE, G. Géneros, "tipos", modos. In: GARRIDO GALLARDO, M. A. Teoría
de los géneros literarios. Madrid: Arco, 1988. p. 188-189: "Platão só considera
aqui as formas de poesia narrativa', no mais amplo sentido da palavra. A
tradição posterior, depois de Aristóteles, ao inverter os termos, preferirá
dizer mimética' ou representativa: aquela que conta' sucessos, reais ou
fictícios. Platão exclui deliberadamente toda poesia não representativa,
sobretudo o que chamamos de poesia lírica, e, com maior razão, qualquer outra
forma de literatura (incluída ainda toda possível representação' em prosa,
como nosso romance ou nosso teatro moderno)."
9 Além de no corpus platonicum, o único outro registro de diégesis encontra-se
no corpus hippocraticum (Da dieta na enfermidade aguda 14). O caráter aberto de
diégesisna República impõe, aos tradutores, uma tarefa difícil: Émile Chambry
verte o termo como "récit" (PLATON. La République. Paris: Les Belles Lettres,
1932); Maria Helena da Rocha Pereira adota, em português, "narrativa" (PLATÃO.
A República. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980), o que é também a opção de Anna
Lia Amaral de Almeida Prado (PLATÃO. A República. São Paulo: Martins Fontes,
2006), bem como (em espanhol, "narración") de Antonio Camarero (PLATÓN.
República. Buenos Aires: Editorial Universitaria, 1998). Carlos Alberto Nunes
opta por mais de um correspondente em português: "relato", "exposição",
"narrativa", "narração" ' destaca-se, especialmente, o uso de "simples
exposição" e "exposição simples" para haplè diégesis, em 392d e 393d,
respectivamente (PLATÃO. A República. Belém: EDUFPA, 2000). Y Y Y Y
10 SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2000.
p. 14-15. O tradutor explica assim sua opção ao verter diegeûmai: "A forma
verbal diegeûmai ou diegéomai(persigo), derivada de hegémon, chefe de tropas,
tem ressonância militar. Isso não surpreende num autor para quem o conflito é o
pai de todas as coisas. Adversário de Homero, Heráclito apresenta-se como
diegeta, narrador épico de uma campanha de que ele próprio é protagonista." Por
seu lado, Souza prefere o verbo "discorrer", escrevendo: "pois tornando-se
todas (as coisas) segundo esse logos, a inexperientes se assemelham embora
experimentando-se em palavras e ações tais quais eu discorro segundo (a)
natureza distinguindo cada (coisa) e explicando como se comporta" (SOUZA, José
Cavalcante. Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia, comentários. São Paulo:
Abril Cultural, 1978. p. 79). Y
11 EPIMÊNIDES 1, 18; XENOFONTE. AnábaseIV, 3, 8. Recorde-se que este uso está
em relação com o seguinte, pois o sonho se encontra na esfera das coisas
vistas: literalmente, diz-se, em grego, que "Xenofonte viu um sonho" (ónar
eîden) e depois o contou.
12 XENOFONTE. Anábase IV, 3, 11-13.
13 ARISTÓFANES. Vespas 1996; ESOPO 183, 1-3, 254; HERÓDOTO IV, 145; TUCÍDIDES
VI, 54; XENOFONTE. HelênicasIV, 8, 1.
14 XENOFONTE. HelênicasI, 7, 3-5.
15 ANDÓCIDES. Sobre seu retorno14; Contra Alcibíades 25; ANTIFONTE. Contra a
madrasta 13, 8; Do dançarino8, 2; LÍSIAS I, 9, 2; I, 22, 3; III, 3, 6; XIII, 4,
7; ISÓCRATES. Egineta IV, 10; EutinoII, 2. Um torneio comum, que poderia ser
classificado no âmbito dos recursos retóricos, é afirmar que seria longo
diegeîsthaialgo (cf. LÍSIAS 23, 11; ANDÓCIDES. Sobre a paz 9).
16 XENOFONTE. HelênicasIV, 2, 2.
17 XENOFONTE. AnábaseVII, 4, 7-8.
18 XENOFONTE. MemoráveisIII, 11, 1-2.
19 XENOFONTE. MemoráveisIV, 8, 11.
20 XENOFONTE. MemoráveisIV, 3, 2-3.
21 XENOFONTE. CiropediaI, 1.
22 HIPÓCRATES. Sobre os ares, as águas e os lugares 7, 1; Da dieta I-IV, 61, 1;
Da inseminação, da natureza das crianças e das doenças IV, 13, 4; Das
articulações 33, 7; Das doenças do povo 6, 2, 24, 2.
23 ANDÓCIDES. Sobre os mistérios 117.
24 ARISTÓFANES. Aves198.
25 XENOFONTE. MemoráveisIII, 1, 1.
26 ESOPO 301. Trata-se de ocorrência excepcional, a que se acresce a
dificuldade de datar com precisão o texto que recebemos das fábulas.
27 Esses sentidos estão presentes também em outras palavras que compartilham o
mesmo espaço semântico de diegéomai, como diérkhomai, diexérkhomai, díeimi,
"percorrer", "percorrer com a palavra", "expor", "explicar", e diéxodos,
"trajeto", "exposição", "descrição" (cf. FOURNIER, H. Les verbes de "dire" en
Grec ancien (exemple de conjugaison supplétive). Paris: Librairie C.
Klincksieck, 1946. p. 51, 59).
28 No interior do diálogo, as ocorrências de diegeîsthaipodem ser
esclarecedoras: em IV, 20, o que Lisandro contou sobre Ciro a um hóspede; em V,
1, com referência ao episódio anterior, afirma Sócrates: "esses fatos,
Critobulo, eu conto porque "; em VI, 12, Sócrates pergunta a Critobulo se quer
que ele lhe conte seu encontro com Iscômaco; em VII, 9, Sócrates pede a
Iscômaco que lhe conte o que ensinara a sua mulher.
29 BRANDÃO, J. L. A invenção do romance. Brasília: Ed. UnB, 2005. p. 106-110.
30 Não se trata aqui de considerar a existência ou não de diegese nos diálogos,
já que a maior parte deles comporta esse recurso, mas de ter em vista apenas os
diálogos narrados, que se distribuem por dois grupos: a) aqueles em que, após
um prólogo dialógico destinado a apresentar o narrador e o narratário (ou
narratários), passa-se ao relato de um diálogo socrático acontecido no passado,
categoria em que se incluem, com características próprias, Protágoras,
Eutidemo, Banquete, Fédone Teeteto; b) e um segundo grupo, integrado pelo
Parmênides(narrativa de Céfalo), bem como por Cármides, Lísis e República
(narrativas de Sócrates), em que se dispensa qualquer prólogo dialógico, a
narrativa oferecendo-se sem outros enquadramentos, embora, no seu curso, se
conheçam quem são os narradores, o narratário permanecendo não identificado (e,
por isso, podendo identificar-se com o leitor).
31 Nesse sentido, tendo em vista as passagens diegéticas presentes nos prólogos
dos diálogos, Desclos afirma que sua função é "contribuir para a elaboração de
uma ficção, a de uma biografia histórica de Sócrates, ou seja, a primeira
história filosófica da filosofia" (DESCLOS, Marie-Laurence. La fonction des
prologues dans les dialogues de Platon. Recherches sur la philosophie et le
langage, n. 14, p. 15-29).
32 Essa necessidade parece especialmente relevante para o estabelecimento do
tipo de lógos a ser admitido na cidade, quando se tratar de falar não mais
sobre deuses e heróis, mas sobre os homens, o que exige que se perfaça o
percurso completo para saber-se o que é a justiça, a saber: a) resta tratar
apenas de mais uma lei, a que diz respeito a como deve ser o lógos sobre os
homens (392a); b) no momento, contudo, é impossível dizer quais serão as normas
relativas a isso, porque os poetas e prosadores (logopoioí) cometem os maiores
erros (kakôs légousin) exatamente nessa esfera, dizendo que "há muitos felizes
que são injustos e infelizes que são justos", o que lhes será proibido afirmar
(392a-b); c) assim, sobre os homens, já que se deve falar deles como se deve,
será preciso esperar, antes de expressar as regras, até "quando descubramos o
que é a justiça e como ela é, por natureza, vantajosa para o que a tem,
parecendo ou não parecendo ele ser justo" (392c). É exatamente neste momento
que Sócrates interrompe a discussão sobre o lógos, passando a tratar da léxis.
Não será necessário ressaltar que o problema que fica em suspenso é o tema de
toda a República, a cuja conclusão só se chegará ao fim do diálogo. (Agradeço a
Maria das Graças de Moraes Augusto ter-me alertado para esse aspecto.)
33 Parmênides, Lísis, Protágoras, Górgias, Sofista, Menéxeno, Crítias, Leis;
diálogo de atribuição duvidosa: Alcibíades 2; espúrio: Clitofonte.
34 Da dieta nas enfermidades agudas, 14: depois de ter discorrido sobre os
benefícios do uso de vários tipos de vinho no tratamento das enfermidades
agudas, o autor observa que "o vinho branco e encorpado foi louvado e
criticado, freqüentemente e muitíssimo, já na descrição (dihghsiV) do vinho
suave".
35 Não é apenas de um diálogo para outro que a técnica diegética pode sofrer
mudanças. Em Parmênides137c, observa-se uma transformação da diegese mista para
a mimética, quando, depois de referir a resposta de Aristóteles à indagação de
Parmênides sobre quem responderia a suas questões, os verbos dicendi são
totalmente abandonados, e o diálogo em estilo direto prossegue até o final.
Convém reproduzir a passagem de um tipo de léxisao outro, salientando como os
"ele disse ele ter dito" preservam, até este ponto, os três níveis diegéticos,
a saber: a) o de Aristóteles, que contou a Antifonte; b) o de Antifonte, que
relata a Céfalo; c) e o de Céfalo, que é o narrador de primeiro nível e se
dirige ao leitor: " ' Quem então responderá a mim? [ele disse ele ter dito
(eipeîn)]. O mais jovem? Pois é quem menos ergueria dificuldades, e o que mais
responderia aquilo que pensa. E, ao mesmo tempo, sua resposta seria para mim
uma pausa. ' Estou às tuas ordens para isso, Parmênides [disse ele Aristóteles
ter dito (phánai tòn Aristotéle)]. Pois te referes a mim, dizendo o mais jovem.
Pois bem! Pergunta, que eu responderei. ' Seja pois, [disse ele que ele disse
(eîen dé, phánai)]. Se um é, não é verdade que o um não seria múltiplas coisas?
' Como poderia ser? ' Logo, é preciso nem haver parte dele, nem ser ele um
todo. ' Por quê? ' A parte, penso, é parte de um todo. ' Sim. ' Mas e o todo? "
(Tradução de Maura Iglésias e Fernando Rodrigues: PLATÃO. Parmênides. Rio de
Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003. p. 53. Os trechos postos entre
colchetes recuperam as expressões dicendi abandonadas pelos tradutores.)
36 Cf. Fedro266d-267 a, em que se relacionam as seguintes partes: a) exórdio;
b) exposição (diégesis) e testemunhos que lhe dizem respeito; c) indícios; d)
probabilidades; e) prova e contraprova; f) refutação e refutação complementar;
g) insinuação e elogio indireto. Adoto a terminologia em português de José
Ribeiro Ferreira (PLATÃO. Fedro. Lisboa: Edições 70, 1997. p. 102).
37 Os termos e a noção de "puro" (akratoV) e "misturado" (kekramenoV), Platão
os toma do vinho que se bebe puro ou temperado com água, cf. República562c-e
(akratoV eleuqeria). Tratei da retomada da imagem platônica por Luciano em: A
"pura liberdade" do poeta e o historiador. Ágora: Estudos Clássicos em debate,
n. 9, p. 9-40, 2007.
38 A formulação de que se deve preferir "o [tipo] puro [de léxis] que imita o
homem moderado" é curiosa, pelas seguintes razões: a) em princípio,
considerando-se o que foi dito em 397b-c, tudo levaria a crer que se trata da
"diegese simples", já que relacionada com alguém moderado (epieikhV), que não
se valeria, portanto, de todo tipo de harmonia e ritmo, nem adotaria toda sorte
de variações (como pareceria próprio da "diegese mimética"); b) contudo,
afirma-se que esse tipo de léxisé "imitador" (mimhthV) do homem sensato,
admitindo-se, em conseqüência, que há nele algum grau de mimese. A contradição
parece-me que só se resolve se tivermos em conta que o lógos de mitólogos e
poetas, de que agora se discute a léxis, já fora definido como "ficção em que
há algo de verdadeiro" (yeudoV eni kai alhqh), o que tornaria mitólogos e
poetas sempre e em qualquer situação mimhtai (como também o é o pintor em 595b-
598d). Em resumo: o poeta, se poeta, mesmo quando utiliza a "diegese simples",
mimetiza um diegeta que pode ser moderado ou não (e diegetas imoderados
poderiam ser encontrados em outras esferas, por exemplo, nas assembléias e nos
tribunais). Isso porque, mesmo quando fala como si mesmo, seu lógosconstitui um
pseûdos em que há sim algo de verdadeiro, mas permanece, no todo, pseûdos.
Deveríamos então admitir que há uma léxisde poetas e mitólogos que mimetiza o
caráter moderado (em princípio, a diegese simples), bem como outra que o faz
com relação ao imoderado (a diegese mimética). Todavia, é preciso também
admitir que essa opção pela diegese simples não se faz taxativamente (na
verdade, a opção ' de Adminanto, recorde-se, não de Sócrates ' é pelo "tipo
puro" de léxis que mimetiza o moderado), deixando aberta a possibilidade, no
meu modo de entender, de que esse "tipo puro" pudesse ser também a diegese
mimética que mimetizasse o caráter do homem moderado (como faz Platão ao
apresentar a diegese socrática que é a própria República). Essa questão,
todavia, merece um exame mais detalhado, impossível de ser levado a cabo neste
artigo.
39 Sem dúvida, esse terceiro tipo é o preferido por Sócrates, conforme se
declara em 396c-e: "o cidadão comedido (metrioV anhr), quando chegar, na
diegese, em algum discurso (lexin) ou ação (praxin) de um bom cidadão (androV
agaqou), haverá de querer, como se ele próprio fosse aquele, discorrer
(apaggevl lein) e não se envergonhará desse tipo de mimese. [ ] Portanto, usará
da diegese como nós há pouco descrevemos a respeito dos poemas de Homero (ta
Omhrou eph) ' e seu discurso (lexiV) participará de ambas, tanto da mimese,
quanto da diegese simples".
40 Em 393c afirma-se que, "se o poeta jamais se ocultasse a si mesmo, toda sua
poesia e diegese (poihsiV te kai dihghsiV) seria feita sem mimese".
41 A afirmação de Sócrates, em 379a, sugere que a lírica não está excluída do
interesse platônico, pelo menos no que concerne ao lógos: "Como é o deus, é
assim que sempre se deve reproduzir, tanto caso alguém o poetize em versos
épicos, quanto em cantos, quanto na tragédia" (oioV tugcanei o qeoV wn, jei
dhpou apodoteon, eante tiV auton en epesin poih eante en melesin eante en
tragwdia). A oposição parece ser entre a poesia apenas metrificada, como na
épica, e a cantada, como nas diversas espécies de lírica ' a tragédia supondo
os dois recursos. Devo essa observação criteriosa também a Maria das Graças de
Moraes Augusto.
42 Restaria examinar as conseqüências da referência a "diegese de coisas que
foram, são ou serão", o que não me parece indicar que se trate de narrativa de
feitos passados, como é o entendimento comum. A expressão remete à fórmula de
Hesíodo, Teogonia38, ta t' eonta ta t' essomena pro t' eonta. O exame dessa
questão fica, contudo, para outro trabalho.
43 Ressalte-se que a própria exposição que se inicia é definida, em 376d, como
se Sócrates e seus interlocutores estivessem en muqw muqologounteV, ou seja,
compondo um relato em prosa. Ora, se, do ponto de vista do lógos, o mito é
yeudoV eni kai alhqh, e, no que respeita à léxis, é dihghsiV, então todo esse
trecho da Repúblicase caracteriza como uma diegese ficcional (não sobre coisas
que são ou foram, mas como serão ou, melhor, poderão vir ser), não poética, por
não ser em versos, mas em prosa (como a dos mitólogos).