A causalidade em Deleuze: diferença interna e produção de si
Um dos pontos mais fortes da leitura de Michael Hardt em Gilles Deleuze: um
aprendizado em filosofia, diz respeito ao problema da causalidade. De acordo
com ele, o pensador francês não valoriza outro tipo de causalidade que não
aquela interna, eficiente. Determina esta posição de Deleuze já em suas
primeiras interpretações sobre Bergson, nos textos de 1956,1 e diz que ela o
acompanhará até o final de suas produções. Afirma o autor: "Eu argumentei que a
causalidade eficiente oferece, de fato, uma chave para uma abordagem coerente
de todo o discurso de Deleuze sobre a diferença."2 Em que consiste esta chave?
Ela é mesmo iluminadora quanto à compreensão do conjunto de escritos de nosso
autor?
Antes de mais nada, deixemos patente o fito maior de Deleuze, já àquela época
cristalinamente enunciado:
Para julgar acerca do mais importante, é preciso que se interrogue a
respeito do alvo da filosofia. Se a filosofia tem uma relação
positiva e direta com as coisas, isso somente ocorre na medida em que
ela pretende apreender a coisa mesma a partir daquilo que tal coisa
é, em sua diferença a respeito de tudo aquilo que não é ela, ou seja,
em sua diferença interna.3
Como pensar a pura diferença das coisas? Para Hardt, um dos cernes da
interpretação de Deleuze em A concepção da diferença em Bergson expõe as
críticas que este dirige ao mecanicismo, ao platonismo e ao hegelianismo, e
precisamente na medida em que estas três correntes teóricas apresentariam uma
noção falsa, ilusória da diferença.
Não há dúvidas de que o lance mais delicado de uma tal empreitada fará
referência a Hegel. Como atuará Deleuze para não se deixar colher pela malha
arguta e envolvente cerzida pelo trabalho do negativo? Como criticar Hegel e
escapar da negação sem que este movimento seja apenas mais um passo da própria
dialética, dando lugar à recuperação de uma oposição suposta? "Pode parecer,
portanto, que, desse ponto de vista, ser anti-hegeliano, mediante uma guinada
dialética, vem a ser, mais que nunca, uma postura dialética; com efeito, pode-
se argumentar que o esforço para ser um 'outro' para Hegel pode redundar em ser
um 'outro' em Hegel."4
Hardt indica uma das estratégias de Deleuze, qual seja, a princípio buscar não
investir diretamente contra a dialética. Isto seria outorgar imediata vantagem
ao rival: cedendo o "mando de campo", Deleuze estaria combatendo em solo
adversário. Introduzindo em cena alguns mediadores, será contra eles que as
primeiras pelejas serão travadas: no caso da leitura de Bergson, mecanicismo e
platonismo são os intercessores do negativo; no livro sobre Nietzsche, tal
papel caberá a Kant.5 De todo modo, em ambos os casos, pressentimos o inimigo
mais forte na subjacência: Hegel.
A vantagem que há em dirigir-se primeiro a esses inimigos próximos é
a de que eles fornecem uma base comum sobre a qual elabora o ataque
que pode ser subseqüentemente estendido à dialética (...) Mais
importante, ainda, esse método de triangulação nos mostra que mesmo
nessa obra inicial Deleuze tem uma relaçãoproblemática com a
oposição. É claro que Deleuze está atacando a dialética como o
inimigo fundamental, mas esse método lhe permite adotar uma postura
oblíqua com relação a Hegel, de tal forma que ele não tem que se
colocar em oposição direta.6
Tudo se passa como se Hegel elevasse ao máximo limite, potencializasse ao
extremo, o possível descaminho das demais linhas teóricas mencionadas: tanto
mais por isto, ei-lo como o mais perigoso e ardiloso dos adversários. Para
chegar a ele, Deleuze passa antes pelos seus "partidários" mas, já ao
criticá-los, é Hegel quem está na mira fina. Segundo Hardt, é apenas neste
artigo inicial que ele chega a uma crítica algo direta, em termos hegelianos
até, à dialética. A partir de então, ele sempre vai mexer com "uma extrapolação
ou derivação da dialética".7 Que crítica é esta?
Trata-se de uma crítica ao processo negativo de determinação. O comentador
apresenta esta questão, lembrando que está aí em jogo a interpretação que Hegel
dá de uma frase de Espinosa, "Omnis determinatio est negatio", situando-a como
ponto de convergência de sua Ciência da Lógica e como espécie de definição do
mecanismo dialético: que toda determinação seja, de modo imediato, uma forma de
negação, processo conduzido ao cerne do ser e, portanto, implicado na
fundamentação de um estatuto ontológico para o negativismo.
Como começar o pensamento? A visada da Fenomenologia do Espírito - diante da
recomendação de eliminar qualquer pretensão incluída na ideia da aplicação de
um método, como tal, de saída exterior ao conhecimento e irrevogavelmente
alheio ao mesmo conduzia a consciência à atitude de contemplação do imediato
da certeza sensível para que aí encontrasse a forma de seu próprio
desenvolvimento autônomo. Na Lógica, tratar-se-ia de assumir postura semelhante
encontrar um começo idealmente livre de pressupostos , agora não mais diante
da experiência necessária da consciência, mas da forma conceitual necessária do
ser. Para isso, vai buscar o imediato no ser puro, o qual, por simples,
encontra-se livre de toda determinação - qualidades, categorizações, limites ,
tratando-se, enfim, do próprio indeterminado sob cuja figura o ser revela ser o
nada. Esse ser vazio de modo algum é resultado de uma determinação, uma vez que
esta pressupõe justamente a série das diferenças descartada pelo desejo de se
conferir um caráter puro ao início do processo. Ele é o não determinado,
condição da determinação: se ele é sem limites, ainda que vazio, deve conter em
si toda a série dos possíveis.
O advento de uma diferença, porém, exige que o ser negue o nada que lhe
constitui, e a determinação então gerada não pode deixar de reeditar a
contraposição essencial entre ambos: "O ser determinado subsume essa oposição,
e essa diferença entre o ser e o nada em seu próprio núcleo define a fundação
das reais diferenças e qualidades que constituem a sua realidade."8 Na verdade,
não se trata exatamente de oposição porque o nada é componente do ser, forma
com ele uma unidade que se manifesta como existência em qualquer determinidade.
Hardt explica que essa condição da determinação define-se pela negação tanto na
direção do contraste o conjunto finito das qualidades que se opõem
reciprocamente de modo automático e passivo (uma determinação difere de todas
as outras determinações) quanto na direção do conflito do combate dinâmico
praticado pelas diferenças entre si e que envolve a perspectiva de um exercício
de engajamento numa posição de atividade devido às relações causais existentes
entre os elementos constituintes da determinidade: neste nível, "a existência
de algo é a negação ativa de algo mais".9 A importância de sublinhar esse
segundo sentido da presença da negação na determinação reside no fato de que
ele torna explícito o movimento negativo que define o ser determinado,
inclusive quando considerado de modo estático: o estado "determinado" já é em
si dinâmica da negação. O processo de determinação nega o nada do ser, mas o
faz considerando-o, pois, para Hegel, sem ele, teríamos a plena unidade da
substância (Espinosa) e nenhuma diferenciação: "(...) o ser não determinado
pela negação permanecerá indiferente e abstrato e, finalmente, uma vez que não
é posto como diferente de seu oposto, desaparecerá no nada."10 Noutras
palavras, só seria possível pensar o processo lógico de produção da
determinidade mediante a negação da negação.
Entrevemos como a questão acabará por se apresentar a Deleuze: se Hegel, para
resguardar o papel da negação, precisava considerar impossível desenvolver a
presença da determinidade diante de um ser puro, pleno e totalmente positivo,
tratar-se-á para ele de, ao contrário, buscar engendrar uma forma de pensar o
processo gerativo da diferença como ser positivo o que certamente significará
afirmar Espinosa e desvalorizar o papel da negação, eliminando a passagem por
Hegel. Mas atentemos para o encaminhamento sugerido por Hardt. Depois da
apresentação da determinação hegeliana, ele segue a sua perspectiva dizendo:
(...) Deleuze assevera que o próprio processo de determinação
ontológica solapa a fundamentação real do ser; ele afirma que a
diferença constituída pelo movimento negativo da determinação é uma
noção falsa da diferença. Por isso, o processo de determinação tanto
destrói a natureza substancial do ser quanto fracassa na apreensão da
concretude e especificidade do ser real.11
Veremos que este duplo fato a demolição da natureza do ser e o consequente
fracasso quanto à sua apreensão será atribuído precisamente ao tipo de
causalidade posta em jogo pela dialética. Hardt passa a seguir a crítica
bergsoniana de Deleuze aos mecanicistas, a Platão, para depois retornar a
Hegel. Observemos o que é dito quanto ao mecanicismo e, logo a seguir, a
hipótese que Hardt vai buscar sustentar. Para mostrar que o mecanicismo também
aniquila o ser em sua necessidade, ele se vale do seguinte fragmento do texto A
concepção da diferença em Bergson:
Contra um certo mecanicismo, Bergson mostra que a diferença vital é
uma diferença interna. Mas ele também mostra que a diferença interna
não pode ser concebida como uma simples determinação: uma
determinação pode ser acidental, ao menos ela só pode dever o seu ser
a uma causa, a um fim ou a um acaso, implicando, portanto, uma
exterioridade subsistente (...). A diferença vital não só deixa de
ser uma determinação, como é ela o contrário disso; é, se quiser, a
própria indeterminação. Bergson insiste sempre no caráter
imprevisível das formas vivas: "indeterminadas, quero dizer,
imprevisíveis"; e, para ele, o imprevisível, o indeterminado não é o
acidental, mas, ao contrário, o essencial, a negação do acidente.12
Hardt acentua que, no bergsonismo de Deleuze, a determinação mecanicista é
acidental, na medida em que ela estabelece o ser de uma diferença em função de
um "outro", seja ele uma causa, uma finalidade, um acaso. O ser não se coloca
por si, em si, essencialmente, mas depende sempre de uma exterioridade que o
provoque e disponha, e é nesta relação que ele ganha a sua determinação, a sua
previsibilidade, a sua possibilidade de cálculo. Vemos que, para Bergson e para
Deleuze, não é o imprevisível que é acidental; ao contrário, é no reino do
imprevisível que se situa a essencialidade do ser: prevê-lo, determiná-lo, é
que será um acidente. A determinação não implica uma essência, mas um acidente
provocado por uma exterioridade subsistente, não necessária, e eis que Deleuze,
com Bergson, pode falar de uma certa indeterminação.13
Hardt considera muito singular a postura deleuzeana, justamente porque ela
consiste numa espécie de inversão ontológica (como de outro modo vimos acima),
ponderando que o que está em pauta não é verificar como o ser pode ganhar algum
tipo de determinabilidade, mas como a diferença pode sustentar, prover o seu
ser.14
Observemos que há aí uma questão concernente à tradução da sentença elle ne
peut tenir son être que d'une cause, d'une fin ou d'un hasard.15 A edição
brasileira do texto de Deleuze optou corretamente por "ela só pode dever o
seu ser a uma causa, a um fim ou a um acaso", enquanto a interpretação de Hardt
quer fazer valer um outro sentido: no inglês, ele verte tenir em support,16 de
modo que ao invés do caminho mais literal tomar de, dever seu ser a, ficamos
mais perto daquele por ele empregado com sustentar seu ser através de.
Atendo-se tão somente ao fragmento peut tenir son être,17 isolando-o e
traduzindo tenir por to support, o comentador enfatiza aí o investimento do
filósofo francês: como sustentar o ser? O que pode sustentar o ser? Mas não há
um largo espaço entre dever seu ser a e sustentar seu ser? Pois bem, é neste
espaço mesmo que podemos cavar todo o caminho do pensamento de Deleuze.
Enquanto a primeira expressão apresenta uma ideia clara e direta de
subordinação externa (e certamente assim ponderou Deleuze quanto ao trecho em
questão: no mecanicismo criticado por Bergson, a determinação realmente deve
seu ser a uma exterioridade a transitividade do verbo, aliás, é
incontornável), a segunda nos joga em um contexto de mais independência:
sustentar o ser pode muito bem ser fornecê-lo por si, provê-lo
independentemente de um outro, o que imprime um sentido praticamente oposto ao
primeiro.
Ocorre porém que Deleuze não usa soutenir palavra francesa que sem dúvida
"colaria" melhor no sentido proposto por Hardt , mas tenir. De todo modo, como
dissemos, Hardt descontextualiza o fragmento ao omitir a preposição e, por
conseguinte, esvaziando a transitividade do verbo , instaurando a sua versão,
na qual to support, veremos, será conveniente e didático. A partir daí, não à
toa, inúmeras vezes, ao longo de seu escrito, ele utiliza o verbo (to support)
ou o substantivo (support).18
Até onde pudemos perceber, na leitura atenta que buscamos executar de La
conception de la différence chez Bergson, Deleuze não se vale em nenhum outro
instante de tenir nem de soutenir. Enfim, Hardt tendo ou não consciência,
pouco importa parece realizar uma pequena torção no texto de Deleuze,
perspectivando-o com base na partícula exibida.19 Fazendo-o, irá angariar
melhor apoio à sua própria ideia. Mas o que, então, nos interessa nisto tudo?
Mesmo que a tradução de Hardt esteja equivocada, a hipótese a ser realçada é
que ela talvez não deixe de ser esclarecedora, iluminadora, embasando a ideia
que virá a seguir. Ainda que possivelmente ele tenha forçado um pouco a mão na
tradução do fragmento, uma das questões que parecem emanar o tempo todo do
texto A concepção da diferença em Bergson é mesmo aquela relativa a uma espécie
de sustentabilidade insubordinada do ser, isto é: como o ser pode se sustentar
por si, em si, sem a dependência de causas externas? Errando a tradução, Hardt
conseguirá ainda acertar seu alvo? Façamos esta concessão e sigamos em sua
leitura. Adiante, teremos condição de realizar uma avaliação mais segura.
Embora já a tenhamos pressentido, qual é então a proposta?
Não se trata de tentar de fora capturar o ser das coisas, determiná-lo, com
a ajuda e a aplicação de esquemas conceituais variados, sempre prontos,
preconcebidos (de antemão, isto implicaria perdê-lo, encaixando-o nas paredes
da representação), mas sim buscá-lo, por si, lá onde ele se produz, na sua
origem, em suas mínimas e derrisórias colunas de apoio (para fazer valer a
fraseologia de nosso intérprete), ou seja, onde ele é em sua mais fina e
imprevisível diferença, necessariamente interna. A diferença interna, nesta
visão, é produtora do ser:
Deleuze atribui à diferença um papel radicalmente novo. A diferença
funda o ser; proporciona ao ser a sua necessidade, a sua
substancialidade. Não podemos compreender esse argumento da
supremacia da diferença interna sobre a diferença externa a menos que
reconheçamos o papel ontológico fundamental que a diferença é chamada
a representar.20
Hardt dá a entender que a melhor forma de compreender o estatuto ontológico da
diferença tal como rigorosamente a propõe Deleuze é através da remissão à
escolástica, quanto aos temas ontológicos da causalidade e da produtibilidade
do ser, e já a partir de sua primeira leitura de Bergson.21 Neste caso, ele
sugere dois detalhes que poderiam de antemão contribuir para um eco
escolástico: o próprio interesse de Deleuze pelo assunto (por Duns Scott em
particular) e o conhecimento que Bergson tinha de Aristóteles.22 Mas, de uma
maneira geral, ele acentua: "O que considero mais importante em relação à obra
de Deleuze é o modo escolástico de reflexão ontológica e os critérios que
estabelece para o ser."23 Isto nos pareceria uma contribuição fecunda para a
interpretação de Deleuze. Resta saber de seu funcionamento e de sua possível
eficácia.
O pensador americano utiliza Etienne Gilson, num comentário a Duns Scot, para
afirmar que a base da ontologia escolástica é firmada sobre a causalidade e a
produtibilidade, aptidões reversíveis, propriedades complementares do ser:
produzir e ser produzido.24 Ele aponta que, no debate escolástico sobre a
ontologia, é notável a atenção minuciosa que os pensadores depositam no trato
dos problemas que envolvem a causalidade.25 Aí, a relevância de dois princípios
é salientada: "(1) um efeito não pode ter mais perfeição ou realidade que a sua
causa; (2) uma coisa não pode ser a causa necessária de algo fora de si
mesma."26
Finalmente, outro movimento importante no raciocínio de Hardt é apontar um
certo deslocamento da relação ser-causalidade entre o escolasticismo e
Espinosa. No escolasticismo: (1) a essência divina é produtiva, atuando como
causa primeira, a causa eficiente de tudo; (2) embora a causa eficiente seja a
mais importante no que se refere às provas da existência de Deus, os
escolásticos preservam os 4 tipos de causa propostos por Aristóteles como
causas reais, ainda que lhes alterem a interpretação.27 Em Espinosa: (1) Deus
não é uma causa primeira sem causa, mas causa de si mesmo, isto é, causa sui;
(2) repelindo, especialmente contra Descartes, as causas formal e final, as
únicas causas concebidas como reais são as causas eficientes.28 Eis que
chegamos ao Deleuze de Hardt, para quem só vai interessar a causa eficiente,
interna, a única capaz de sustentar o ser em sua mínima corporeidade, em sua
mais distante e modesta materialidade.
Não temos que nos afastar muito do texto para ler a afirmação de que
a determinação "pode apenas sustentar o seu ser através de uma causa,
uma finalidade, ou um acaso" como um ataque às três concepções da
causalidade que são inadequadas à fundação do ser: (1) material - uma
causa puramente física que ocasiona um efeito externo; (2) final -
uma causa que se refere a uma finalidade ou meta na produção de seu
efeito; (3) acidental - uma causa que tem uma relação completamente
contingente com o seu efeito. O que é central em cada caso é que a
causa permanece externa a seu efeito e assim pode apenas sustentar a
possibilidade do ser. Para que o ser seja necessário, a causa
ontológica fundamental deve ser interna ao seu efeito. Essa causa
interna é a causa eficiente que desempenha o papel central nas
fundações ontológicas da Escolástica. Além disso, somente a causa
eficiente, em razão de sua natureza interna, é que pode sustentar o
ser como substância, como causa sui.29
Tentando pensar a diferença ainda distante de sua relação com qualquer outro,
Hardt ratifica a necessidade bergsoniana de Deleuze de chegar às diferenças em
si, em sua gênese, envolvidas em seus estados dinâmicos produtivos nascentes.
De acordo com ele, "por meio dessa dinâmica produtiva interna, o ser da
diferença eficiente é causa sui."30 A estes dinamismos produtivos, Bergson
chamará diferenciação, dando a ver, segundo a expressão de Deleuze, a "força
explosiva interna que a vida traz em si."31 Talvez possamos, neste momento,
tecer algumas poucas considerações e ilações a respeito do que até aqui foi
visto, antes de prosseguirmos com o desfecho das proposições de Hardt.
Tudo se passa como se, montando o debate em torno do problema da causalidade,
Hardt, por uma outra via, nos levasse às distâncias entre a imanência e a
transcendência. Sabemos da luta de Deleuze em fazer valer uma perspectiva
imanentista quanto à decifração do real, em contraponto a todo tipo de
transcendência. Diz ele ao final do seu primeiro texto bergsoniano: "A
diferença é que é explicativa da própria coisa, e não suas causas."32 Com
Hardt, vimos justamente que Deleuze descarta todo tipo de causalidade que não
seja interna. Pois bem, estas causas que foram rejeitadas, elas o foram porque,
de uma maneira ou de outra, permanecem exteriores, ou melhor, transcendentes,
quanto à diferença que se procura apreender, quanto ao objeto que se tenciona
pensar.
Neste caso, em vez de tentar perseguir um objeto qualquer em suas linhas
complexas e próprias de desenvolvimento imanente, recorre-se a um mediador, a
uma alteridade externa e já modelada, habilitada para lhe aparar as verdades
acabadas, desde que elas possam ser conformadas, assimiladas, ao espelho que
lhes é anteposto: ideias prontas, prévias, justas. Vemos então no objeto
exatamente o que já estava previsto, vemo-lo conforme o combinado, segundo o
espelho, o plano, em que sua imagem é refletida. Deforma-se assim o objeto em
sua diferença mais preeminente, e o que se obtém é uma imagem degradada,
ilusória, categorizada, representada, do que realmente está em jogo.
A causa valorizada por Deleuze é eficiente e interna, aliás, imanente: causa
sui. Refratário às exterioridades transcendentes que tencionariam colhê-lo em
esquemas prévios, encontrar um objeto em termos de causa sui, sua essência
imanente, não poderá ser representá-lo. De outro modo, como então apreendê-lo?
Gerando-o, produzindo-o. Atingimos um ponto crucial do pensamento de nosso
autor, que o seguirá sempre, e que lhe foi amplamente confirmado por Bergson:
diferenciar é criar, diferença é criação, algo que se dá, em princípio, longe
de modelos exteriores e transcendências variadas. Avistamos toda uma inversão:
não se tratará aí de simples mimetismo do real, mera reprodução do mundo
segundo suas figuras sempre previdentes e cada vez mais disseminadas, mas sim
de criar o real e o mundo, de produzi-los na contenda da imanência, sem a plena
e característica subordinação a pontos de vista externos. Tudo isto, por sinal,
será ainda indissociável das relações com as subjetividades: na invenção do
mundo, o si também é o que se reinventa. Obviamente, estamos diante de toda uma
outra paisagem para a filosofia, com inumeráveis consequências. Esperamos
desenvolver e constatar algumas ao longo das páginas deste trabalho.
Retornemos a Hardt. Trata-se agora de acompanharmos a crítica que Bergson, lido
por Deleuze, dirige a Platão, procurando valorizar as recentes proposições de
nosso comentador. Em Platão, a diferença da coisa está associada, mais uma vez,
a uma exterioridade. Ora, o apoio externo, aqui, é evidente, e diz respeito às
essências transcendentes que permanecem acima de tudo, no suprassensível,
modelos metafísicos que deverão ser suficientemente introjetados, assimilados
pelas cópias sensíveis. Este mundo inteligível é causal relativamente ao
sensível. Um desses modelos é superior e reúne os demais: a Ideia de Bem
funciona como um guia maior, a plena inspiração que paira sobre o mundo
sensível. Há um finalismo em Platão: "a diferença da coisa pode apenas ser
explicada por sua destinação, o Bem. Se traduzirmos essa afirmação em um
discurso causal, podemos dizer que Platão tenta fundar o ser na causa final".33
Em função do estabelecimento destas idealidades pertencentes a um outro mundo,
idealidades que deveriam ser tão perfeitamente copiadas quanto possível pelos
seres terrenos, o platonismo é um dos exemplos mais bem acabados de causalidade
exterior e transcendente, na ótica deleuzeana.
Podemos aqui verificar um pouco mais de perto algumas das consequências de se
tentar pensar uma causalidade imanente, interna. No platonismo, o inteligível é
normativo, regulador, do sensível. Um dos resultados mais evidentes é a
desqualificação do mundo sensível: o inteligível com suas essências
perfeitas, eternas e imutáveis é primeiro, de modo que mesmo a mais bem
acabada realidade do sensível virá em segundo lugar.34 Na esteira nietzscheana,
eis aí tudo aquilo de que Deleuze quer se evadir: o mundo como um mundo
moral.35
Escapar do mundo moral, para Deleuze, será valorizar ao extremo o sensível.
Obviamente, as idealidades filosóficas não poderão deixar de ter relação com o
sensível, mas esta é considerada apenas em termos de sua condição imanente.
Seguramente, os referenciais exteriores, transcendentes, não serão apreciados.
Perpétua deriva? De modo algum. Não se trata de dispensar as referências: delas
sempre necessitaremos, não há como não estarem presentes. Porém, elas não serão
absolutizadas. As referências são geradas, utilizadas e também descartadas no
vínculo imediato com os contextos em pauta, o complexo de forças em questão:
propensão à imanência.
O contraponto entre a causalidade transcendente platônica e umacausalidade
imanente, interna, é apontado por Émile Bréhier, no livro La théorie des
incorporels dans l'ancien stoïcisme, obra muito estimada por Deleuze em sua
Lógica do sentido. Diz Bréhier, relativamente ao pensamento estoico que "la
cause est (...) véritablement l'essence de l'être, non pas un modèle idéal que
l'être s'efforce d'imiter, mais la cause productrice qui agi en lui, vit en lui
et le fait vivre."36 Eis aí, mais uma vez, a força explosiva interna que a vida
traz em si: causa produtora, causa de si, pauta que Deleuze apreende mais
efetivamente já em seu primeiro Bergson e que vai levar até o fim de sua
produção.
Hardt aproveita o ensejo da crítica bergsoniana de Deleuze a Platão para
ratificar uma das características da causalidade ora apreciada, enunciando que
aí "(...) não há separação entre a diferença e a coisa, entre a causa e o
efeito".37 Quanto a isto, prezando a imanência em filosofia e sempre tentando
desviar-se das regras da representação, das ideias gerais, recorramos
diretamente ao texto de Deleuze, no qual o veremos citando Bergson, ao marcar
que o jogo é cinzelar "pour l'objet un concept approprié à l'objet seul,
concept dont on peut à peine dire que ce soit encore un concept, puisqu'il ne
s'applique qu'à cette seule chose".38 De algum modo, vemos a travessia de
Deleuze entre sua primeira e sua última filosofia: a unidade da coisa e do
conceito39 é algo que se trama com diferenças imanentes especialmente quando
a coisa é também um conceito e o que assim se tece é o conceito de conceito.40
Dar conta cada vez mais e melhor destas diferenças, destas singularidades,
aliás, pensá-las: esta a tarefa a que as pesquisas do autor estarão
permanentemente dedicadas.
Na sequência, Hardt busca se valer, mais uma vez, da tradição escolástica para,
numa linha muito próxima da questão causal, estabelecer as distâncias entre
diferenças de natureza e diferenças de grau, terminologias bergsonianas que são
caras a Deleuze, na medida em que são definidoras da distinção entre o campo do
necessário e o campo do casual: "'As diferenças de natureza' aparecem como
aquelas diferenças que implicam necessidades e substância, correspondendo à
causae per se escolástica; assim, 'diferenças de grau' são aquelas que implicam
acidentes, causae per accidens".41 Adicionando novas nomenclaturas, vemos na
realidade que a relação básica inicial permanece: a causae per se diz respeito
à causalidade interna, imanente, enquanto a causae per accidens refere a
externa, transcendente. Assim, mecanicismo e platonismo atingem apenas
diferenças contingentes (per accidens), ao passo que o ponto de vista
bergsoniano nos conduz às diferenças essenciais (per se).42
Chegamos mais fortemente à crítica que Deleuze dirige a Hegel, a partir de sua
leitura de Bergson, ápice de todo o processo, uma vez que o hegelianismo é o
alvo maior que há nas demais críticas: Hegel firma a diferença numa relação com
uma exterioridade absoluta.43 Eis o fragmento, aqui mais completo, que é citado
por Hardt:
(...) a partir de alguns textos de Bergson, pode-se prever as
objeções que ele faria a uma dialética de tipo hegeliano, da qual,
aliás, ele está muito mais longe do que daquela de Platão. Em Bergson
(...) a coisa, inicialmente, difere imediatamente de si mesma.
Segundo Hegel, a coisa difere de si mesma porque ela, primeiramente,
difere de tudo o que ela não é, de tal maneira que a diferença vai
até à contradição.44
Ou seja, Deleuze retoma o problema da determinação e o movimento negativo da
dialética. A interpretação de Hardt alinhava este diferir imediatamente de si à
diferença da coisa em sua condição de produção imanente, interna, enquanto
mecanicismo e platonismo comprometeriam este pilar eficiente do ser na
proporção em que o recolheriam já rebatido em suportes externos um objeto ou
fato empíricos no primeiro, uma finalidade no segundo.45 De todo modo, em ambos
os casos, a exterioridade da diferença ainda é limitada, o que já não é o caso
de Hegel, que a dirigirá ao seu limite radical: "A dialética apresenta a coisa
diferindo de uma outra ilimitada, 'com tudo que não é' isso é exterioridade
absoluta."46
Podemos aqui, dentro deste tema, apontar também a posição de François
Zourabichvili. Este adverte que, em Hegel, a diferença é afirmada a partir de
uma identidade pressuposta a identidade de um Todo é um pressuposto
implícito.47 Ao levar a diferença até a contradição, Hegel a subordina ao
idêntico: quando a determinação, na negação que a constitui, é descrita pela
oposição ao conjunto absoluto dos possíveis, a consequência é a colocação da
diferença na dependência da identidade deste conjunto.48
Hardt passa então a dispor o assunto, em se tratando agora de Hegel, segundo a
perspectiva da causalidade. Vai colocar que, na dialética da contradição, a
causa é necessariamente externa ao seu efeito: o processo de mediação baseado
na oposição é o que se dá tão só e exclusivamente em função de um outro sempre
externo, e essa externalidade é, em si, incapaz de dar conta do caráter
necessário daquilo que se passa no processo gerativo do ser. Eis, segundo
Hardt, tudo aquilo que não pode ser avalizado por Deleuze. Ele sentencia:
uma concepção do ser fundada em uma causa externa não pode sustentar
a necessidade ou a substancialidade do ser porque uma causa externa
ao seu efeito não pode ser necessária; as sucessivas mediações
externas que fundam o ser dialético não podem constituir causae per
se, mas devem, ao invés disso, ser reconhecidas como causae per
accidens.49
Além disto, quando o trabalho do negativo torna o ser um acidente, faz dele
aquilo que Hegel mais queria evitar: uma abstração. Se a causa de uma oposição
a ela permanece externa, a malha assim operada é demasiado larga, folgada: o
real é extremamente complexo e nuançado a ponto mesmo de não caber em roupas
que não sejam as suas ele sobra, ele vaza pela indumentária dos opostos. "O
que não comporta nem graus nem nuanças é uma abstração", diz Deleuze.50 Mesmo a
síntese dialética seria uma falsa síntese, pois diria respeito apenas à
combinação, à reunião entre dois termos, que, ao fim e ao cabo, continuariam
externos entre si, sem portanto apresentarem o matizado necessário concernente
às cores múltiplas do real.51
Finalmente, o que ganhamos com tudo isto? Terá Hardt nos ajudado a compreender
um pouco melhor um sentido mais forte das ideias de Deleuze?
A questão centralizada pelo comentador foi a da natureza da causalidade a
partir da crítica bergsoniana de Deleuze ao mecanicismo, ao platonismo e ao
hegelianismo. No caso do mecanicismo, dada a sobrevalorização de aspectos
factuais, uma determinação é o que surge sempre em função de uma exterioridade
empírica e de uma relação acidental, de modo que temos uma perspectiva causal
pobre, material, que define o ser apenas como contingente. No platonismo, a
diferença não é fundada segundo uma causa material, mas final, na proporção em
que ela é produzida segundo um finalismo rigorosamente externo e absoluto.
Quanto ao hegelianismo o jogo da determinação que quer definir o que a
diferença é opondo-a a tudo o que ela não é, ou seja, segundo um movimento
negativo absoluto e externo , vimos que a causalidade resta acidental e
abstrata. Deleuze, com Bergson, defende tão somente a causa interna, eficiente,
na medida em que ela é, efetivamente, capaz de constituir o ser como
necessário.
Constituí-lo a partir de onde, do que? Não a partir de alteridades externas,
mas a partir de diferenças de si, em si, de um contexto interno e enredado
capaz de conduzir, em seus dinamismos primeiros, a diferenciação das
diferenças. "O movimento do ser é uma progressão de diferenças internas na
medida em que a causa é sempre inerente ao seu efeito."52
Foi assim que fizemos uma relação entre os tipos de causalidade e o par
imanência/transcendência. Se ficam desvalorizadas as instâncias causais
exteriores, ou melhor, os transcendentes variados, o que resta é uma produção
imanente das coisas. E, aí, trata-se mesmo de produção não de re-produção ,
uma vez que há o convite a um desarmamento ativo: sem ideias prontas ou
preconcebidas, os objetos, o mundo, são "desenquadrados" e liberados de suas
fixações representativas, de modo talvez a se deixarem perceber sob novos
ângulos e perspectivas, podendo assim ser novamente criados, gerados de uma
outra maneira.
Essa produção interna, imanente, não espera por nada que venha de fora, é o que
se faz por si, a partir de si, o que já está sendo feito, que não há como não
fazer, causa sui, segundo os movimentos obscuros desta força interna e
explosiva que a vida carrega em si. Eis tudo o que Deleuze quer sublinhar.
Ainda numa tal direção podemos voltar a realçar a controvérsia de tradução que
há pouco vislumbrávamos. Com a descontextualização do fragmento peut tenir son
être e a procedente opção por to support como tenir, Hardt certamente
tencionava acentuar o jogo da causalidade interna, aliás, o jogo da imanência.
A contrapelo de uma versão mais literal e correta, sua escolha, ratificada
diversas vezes ao longo do texto de sua tese, vai dispor a questão da
causalidade interna segundo a sustentabilidade do ser. O que efetivamente pode
sustentar o ser? Não há como fazê-lo se aquilo que o ampara são suportes
externos: estes são sempre acidentais, limitados. Sustentar o ser será provê-lo
desde que sem a plena dependência de guias externos: autoprovimento. Assim, a
sustentabilidade ontológica solicitada pelos escritos de Deleuze e apontada por
Hardt é insubordinada e implicará o ser como autoposição.53
De outra maneira, verificamos que as distâncias entre sustentar seu ser e tomar
ou dever seu ser a expõem uma fenda na qual podemos, talvez, depositarboa parte
do novo das proposições deleuzeanas. É que a segunda expressão requer a
transitividade, uma alteridade complementar, já mesmo em termos de linguagem,
ao passo que a primeira enfeixa melhor um sentido positivo de suficiência, de
autocriação. Conduzindo sua tradução por esta via, é provável que Hardt esteja
cometendo uma pequena falta. Entretanto, notavelmente, temos a impressão de que
se trata de um equívoco fértil, produtivo: ele dá bem a ver um tecido
importante situado no coração do pensamento de Deleuze, clarificando-o.