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BrBRHUHu0100-512X2012000100010

BrBRHUHu0100-512X2012000100010

variedadeBr
Country of publicationBR
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN0100-512X
ano2012
Issue0001
Article number00010

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Ao som do emaranhamento: a música e o discurso filosófico sobre as artes

1. Música como "ponto de intersecção".

Quando se acompanha a marcha que cruza e constitui a aventura das artes na história, salta aos olhos que nela vigora uma dupla tendência no que se refere ao estatuto de seus recursos expositivos. Por um lado, nota-se que, visando à sua auto-certificação, os meios de expressão terminaram por resistir uns em relação aos outros, levando os receptores a reorganizarem sua sensorialidade de um modo cada vez mais específico.1 E, fiando-se nos desempenhos perceptivos propostos pelos habituais suportes sensíveis - seja no acolhimento visual, realizado "à distância" e em sua simultaneidade; seja na audição, sentido sucessivamente envolvente e visceralmente mais recuado -, as modernas hipóteses de interpretação da sensibilidade, consideradas, em seu conjunto, como um desenvolvimento do discurso teórico sobre a autonomia da arte, não hesitaram em estabelecer hierarquias com vistas à ordenação das distintas modalidades artísticas. Implicando cotejar grandezas e quantidades desiguais, tal procedimento levou, por vezes, a sublinhar algumas confluências e parentescos entre as especificidades, mas, sob o influxo de uma certa rivalidade, induziu a ressaltar descontinuidades e distinções conceituais, hipostasiando credenciais - metafísicas, inclusive - que tornariam certos gêneros preferíveis a outros.

Por outro lado, tais processos também se acham, não raro, eivados de acepções antropológico-culturais, de sorte que, do modo como se regulam as modulações sensoriais elementares, resultam tipos históricos diversos de escuta e visualização, fazendo com que as fronteiras entre as obras, bem como entre os sujeitos de sua fruição, relativizem-se mais e mais. Uma mesma arte seria apropriada, ao longo do tempo, por forças divergentes, que a cada vez lhe confeririam um núcleo peculiar de significação. Então, pondo em perspectiva as demarcações tradicionalmente aceitas, entronizadas como referências canônicas, seríamos finalmente conduzidos a sondar alternativas inovadoras, logrando novos estímulos aos órgãos expressivos até então existentes. Com o advento da arte contemporânea, esse impulso rumo ao aglutinamento de traços distintivos, que se abre para a alteridade e para o adventício, teria uma relevância ainda maior, tanto mais quanto sua presença nos induz a redimensionar nosso campo perceptivo, descerrando, nas formas artísticas individuais, um intensivo campo de troca e criação.

A partir desse horizonte hermenêutico marcado por antagonismos, o propósito geral deste artigo consiste em pôr à prova a suposição de que é no âmbito da música que a moderna ponderação estética percebe, como num "ponto de intersecção", o sentido e o alcance desse vínculo hodierno entre as artes - forjado, em geral, nos termos da auto-compreensão das vanguardas artísticas. Em nosso entender, essa conjectura nada teria de acidental, sendo pertinente e mesmo necessária pelo fato de que é a partir do áureo debate em torno às funções representativas dos sons - o qual remonta à antiguidade, mas adquire o ápice de sua radicalidade na estética musical oitocentista - que o problema da oscilação entre os expedientes sonoros, imagéticos e verbais se mostra sem disfarces, elevando-se acima de si mesmo e assumindo, aos poucos, a maturidade reflexiva e a proficiência judicativa requeridas para balizar a lógica alusiva de certos experimentos artísticos. Não que tal problemática seja exclusiva ao âmbito da estética musical.2 Mas ocorre que, devido à sua natureza bifronte, a música manteve-se a um tempo conectada e separada dos acontecimentos sensoriais do cotidiano, colocando-se a serviço de ideais aparentemente irredutíveis uns aos outros - que ora defendiam a "pureza" da arte dos sons, ora advogavam o seu caráter heteróclito.3 Uma abordagem que levasse em conta essa ambivalência permitiria indicar, pois, não o que é avesso à música, mas também aquilo que realiza a mediação entre o não-musical e o puramente musical, revelando que a mais vigorosa condenação dos elementos extra-musicais não poderia deixar de ser, dialeticamente, uma elegia em favor das possíveis interfaces artísticas.

Como, porém, tal movimento de constituição não se desdobra de uma vez, contamos agrupar a análise em torno de referenciais teóricos distintos, dividindo-a em etapas que pretendem indicar, por assim dizer, uma articulação "crescente". Trata-se, num primeiro momento, de refazer os passos argumentativos por meio dos quais a música terminou por se converter, no século XIX, num dos mais disputados veículos de ideias para, a partir de um pregnante ponto de inflexão representado pela filosofia nietzschiana da maturidade, trazer à plena luz a concepção de "emaranhamento" [Verfransung] das artes4 - palavra-chave que ganha lastro e relevo, em especial, na derradeira etapa do itinerário intelectual de Th. W. Adorno.

2. Música e linguagem: a "pré-história" do problema.

Que a música também deita raízes em meios que ultrapassam a pura sonoridade, ancorando-se, por assim dizer, em esferas que designam a dança, a fala e a obra de arte visual, eis algo que se nos torna patente quando nos detemos no sem- número de metáforas e metonímias comumente empregadas para caracterizar a expressão musical. Assim é que, na tentativa de descrever a "paleta" sonora de um compositor, por vezes somos levados a situar os "saltos" de uma dada linha melódica, cujo "desenho" ogival se destaca, digamos, por um "colorido" mais luminoso do que o habitual, como se tencionasse "falar-nos" algo único. Tais contigüidades não são, porém, tão isomórficas quanto parecem ser. Pois, se a figura imemorável do poeta-cantor-dançarino à frente da antiga tragédia ática presta testemunho da milenar reciprocidade entre diferentes instâncias artísticas, resta que as representações de conteúdo figurativo nem sempre se dão a conhecer de maneira unívoca na música. Afinal, peças que tendem a atuar mais intensivamente sobre a dimensão sensitiva, ao passo que outras parecem ser mais assimiláveis à linguagem articulada. O próprio Platão, ao atrelar a arte dos sons ao trabalho social e lingüístico de promoção de um certo tipo de homem - cuja espiritualidade seria, no limite, fruto da extirpação de "maus impulsos" -, interditava as harmonias que pudessem vampirizar a vitalidade dos guerreiros, aconselhando o uso exclusivo de instrumentos e ritmos "próprios para exprimir a vida bem regulada."5 Como a efetivação do conhecimento e da vida bem regrada despontam, aqui, como causa e efeito de uma paideia fundada num ideal discursivo de inteligibilidade, é natural que a ênfase recaia, nesse caso, sobre as palavras e o equilíbrio do registro vocal, razão pela qual seria preciso, segundo o autor d'A República, "adaptar o metro e a melodia às palavras, não o contrário, o texto ao metro e à melodia."6 Essa subordinação à linguagem verbal, no entanto, em vez de fortalecer a natureza linguística da música, terminou por recrudescer a autonomia da expressão musical, na medida mesma em que esta última passa a ser identificada, mais e mais, com uma linguagem dos afetos - assinalando, não uma proximidade entre conteúdos discursivos e intensividades emotivas, mas uma incongruência entre as funções denotativas e conotativas do som, entre a semanticidade da verbalização silenciosa e expressividade da palavra entoada. "A recitação", assevera Aristóteles, "concerne à voz e ao modo pelo qual esta deve ser usada para exprimir cada uma das emoções - quando, por exemplo, deve ser forte, fraca e média, bem como ao modo pelo qual a voz deve se servir dos tons."7 Ainda que a musicalidade ínsita à exclamação possa investir-se dos poderes denotativos da atividade enunciativa, tornando-se um suporte sonoro de significados, o contrário está longe de ser evidente. Num registro teórico apofântico, no qual os enunciados verbais são considerados verdadeiros ou falsos em virtude de descreverem corretamente ou não a estrutura "objetiva" da realidade, um texto filosófico não se tornará mais verdadeiro se for lido em voz alta, em função de suas componentes sonoras. Assim é que, para marcar a diferença entre as frases declarativas e aquelas que, em geral, existem para ser ditas, o Estagirita dirá: "Nem toda frase é declarativa, mas apenas aquela em que ocorre pretender dizer o verdadeiro ou o falso; e isso não ocorre em toda e qualquer frase; por exemplo, a prece é certamente frase, mas não é nem verdadeira nem falsa (...) Assim, portanto, sejam deixadas de lado as outras frases - pois a inspeção é mais apropriada à retórica e à poética."8 Essa "inspeção" não será, porém, sem consequências para a relação entre música e linguagem. Porque dependem da voz para dar cumprimento à eufonia e dos pés ou das mãos (ársis) para marcar as acentuações tônicas, a retórica e a poesia surgem, então, como pontos de convergência ambíguos e multifacetados, âmbitos a um tempo expressivos e figurativos, desnaturados e originais. Portadora de intensidades sensitivas, a sonoridade da frase influi na capacidade de se fazer entender, haja vista que a explicação do sentido do texto procede, em boa medida, da dicção, das sílabas breves e longas, enfim, dos altos e baixos que variam de acordo com as posições do órgão da linguagem. Se conta ser eficaz, o discurso falado não pode, pois, zelar apenas pela correção formal de suas inferências, mas observar a conectividade entre a fala e os afetos, tanto mais quanto a dimensão afetiva da voz humana vem à tona, aqui, não como uma alternativa entre outras, senão que como a efetuação de uma atividade anímica naturalmente mimética. Conforme a ponderação aristotélica, a alma seguiria a direção dos ritmos e das melodias de que se coloca à escuta: "os ritmos e as melodias contêm representações de cólera e de doçura (...) correspondentes com mais aproximação à verdadeira natureza destas qualidades (a evidência disto está nos próprios fatos, pois quando ouvimos tais representações nossa alma sofre mudanças)."9 É bem verdade que, à luz de tal tradição, o argumento meramente verbal ou retórico permanece um raciocínio que não diz respeito à "natureza" das coisas.

Mas isso não trará, ao poeta e ao orador, os mesmos efeitos corrosivos que tendem a apresentar àquele que, para descrever os atributos lógicos dos objetos, tem que se livrar dos condicionamentos subjetivos, de caráter pessoal, impostos pelos afetos. A descarga afetiva vocalizada seria, , uma exteriorização por parte de alguém que, de algum modo, não encontrou palavras para suas vivências internas mais singulares. Aliás, sob tal ótica, a transição da esfera sensitiva rumo ao domínio da articulação representaria uma espécie de deturpação da instância que designa a afetividade, que desloca para uma dimensão figurativa algo que, na prática, é haurido de um universo indelineável, motivo pelo qual a história posterior da música será marcada por tentativas reiteradas de superar tal distanciamento. No século XVI, por exemplo, com o advento da "Camerata florentina",10 a ideia de expressar o conteúdo do texto mediante determinadas sonoridades, de sorte a estimular as emoções do ouvinte, terminou por conduzir à elaboração de recursos musicais absorvíveis pelas próprias regras retóricas, convertendo a arte dos sons numa espécie de ars dicendi.11 E, embalados pelas potencialidades "evocativas" da música, os compositores não hesitaram, no século XVII, em aplicar ornamentos que até então eram comuns à pintura, como, por exemplo, o groppo.12 Tanto é assim que, ao defini-lo, Johann Mattheson, patrono da retórica musical barroca, recorre a um "motivo" bastante comum à arte pictórica: "a palavra indica tudo o que vem em cachos, ou seja, pequenas frutas ou outras coisas amontoadas, como nesta figura. Estes groppipodem aparecer por acaso, como simples ornamentos, ou podem ser usados para estruturar substancialmente a melodia, formando passagens inteiras."13 Especulativamente pródigo, o problema acerca da conectividade entre sons e movimentos anímicos adquire, porém, uma outra envergadura quando atinge o século XVIII, servindo de pivô ao debate, tornado célebre por Rameau e Rousseau, acerca do estatuto teórico a ser atribuído à melodia e à harmonia. O primeiro, ao proceder "à cartesiana", fazendo dos harmônicos superiores o princípio lógico e indubitável da música, teria passado ao largo das propriedades afetivas da voz, bem como de sua natureza antropológica - considerando a melodia, objeto do "gosto", apenas à luz da ordem intervalar prescrita pela harmonia, a qual deveria "determinar, de antemão, uma rota a cada uma das vozes."14 Rousseau, de seu lado, ao apetrechar a linha melódica com atributos naturais do canto - prenhe de "inflexões vivas" -, teria reforçado a ideia de que, ao imitar as modulações da voz, a melodia não se deixa conduzir senão que pelos sentimentos, exprimindo espontaneamente "os lamentos, os clamores de dor ou alegria."15 Porque a atuação dos afetos envolveria imediatamente a voz e mediatamente os demais instrumentos, ao canto caberia a tarefa de recuperar o enraizamento comum entre os meios expressivos, ou, ao menos em princípio, evitar que a multiplicação de acordes - produtos bárbaros da razão - e a sobreposição de planos sonoros sufoquem o elemento "humano", centrado no coração do ouvinte. na Carta sobre a música francesa o filósofo dizia: "É sempre na parte vocal que se deve buscar a fonte de todas as belezas do acompanhamento. Esse acompanhamento está tão bem unido ao canto, e tão exatamente relacionado às palavras, que parece frequentemente determinar a atuação corporal e ditar o gesto a ser feito ao ator."16 No entanto, seria precipitado entrever, aqui, uma "fusão" entre os suportes sensíveis, como se som, palavra e gesto imagético estivessem, a despeito de suas respectivas heterogeneidades, dispostos a estabelecer relações mutuamente condicionais. Pois, embora a música possa atuar profundamente nos recônditos da alma, a ponto de despertar, segundo Rousseau, sensações assimiláveis às artes visuais, resta que a recíproca não seria verdadeira, que a pintura, privada dessa força, "não pode conceder à música as imitações que a música dela retira."17 Reiterando, então, a impermeabilidade entre os meios, chega-se à conclusão de que a cada sentido pertence seu próprio campo, de sorte que, pretender embaralhar o visível com o audível, multiplicando os sons na simultaneidade espacial e as cores na sucessão temporal, equivaleria a "colocar o olho no lugar do ouvido e o ouvido no lugar do olho."18 É certo que tais fronteiras não eram, em si mesmas, intransponíveis. No século XVIII, compor retratos da natureza era tido por algo musicalmente "moderno",19 dando ensejo à dita música ilustrativa, empenhada em emular os efeitos sonoros de batalhas, paisagens, tempestades etc. Mas, aqui, impõe-se cautela. A propósito dessa tradição, é comum citar a Sexta Sinfonia de Beethoven, açodadamente identificada à "música de programa". Uma breve alusão às palavras do próprio compositor a respeito do título da obra basta, no entanto, para indicar que seu elemento característico não é a processualidade de uma ação dramática e tampouco a cópia acústica de situações visuais concretas: "Sinfonia-Pastoral ou lembrança da vida no campo, é mais expressão da sensação do que pintura."20 O próprio Franz Liszt, precursor do "poema sinfônico" e pioneiro na composição musical a partir de pinturas específicas, não procedia a uma "tradução" direta dos quadros para a música, mas de uma apropriação que, na prática, não admite nada que seu conteúdo imanente não contenha em si, sem influenciar as fronteiras que contornam suas formas sonoras interiores. Tanto é assim que assevera: "Está claro que coisas que pertencem objetivamente apenas à percepção externa não são, em absoluto, capazes de dar à música pontos de conexão, sendo que um mero aprendiz de pintura paisagística pode, com alguns poucos traços de giz, dar uma visão mais fiel."21 Se as declarações de tais músicos parecem apontar para uma descontinuidade da arte dos sons em relação às demais artes, das quais não dependeria para adquirir legitimação, o caráter livre e auto-referencial da linguagem musical parece vacilar na pena de outros autores supracitados. Pois, ainda que Johann Mattheson explore e procure tornar operatória uma correspondência entre certos grupos de notas e determinadas tonalidades afetivas, resta que a relação entre os groppie seus respectivos afetos não é deixada a cargo da criatividade do músico e tampouco à sorte da experiência musical propriamente dita, senão que é imposta por fórmulas retóricas predeterminadas - atrelando a música, ademais, a um trabalho de conformação e modelagem da alma: "sons bem ordenados produzem almas bem ordenadas e harmoniosas."22 E, por mais que Aristóteles enfatize o poder mimeticamente recreativo e pedagógico de algumas melodias, é ainda o universo político-moral que dará forma e substância à arte dos sons, submetendo-a à educação para fins éticos: "Destas considerações emerge a evidência de que a música tem o poder de produzir um certo efeito moral na alma, e se ela tem esse poder, é óbvio que os jovens devem ser encaminhados para a música e educados nela."23 Situação não menos restritiva iremos reencontrar em Platão, o qual não irá titubear em atribuir aos sons um ínfimo benefício cognitivo. Se a contemplação das imagens nos distrai, a seu ver, da contemplação das Formas, o motivo pictórico ao menos consta dos objetos que compõem a escalada rumo ao conhecimento, referindo-se àquilo que é apreendido numa percepção de segunda ordem, mas que nem por isso deixa de estimular o raciocínio. Se a visão não descerra a estrutura objetiva do real, pelo menos nos convidaria a raciocinar, assinalando alturas contrárias entre si e dando ensejo, com isso, a uma reflexão sobre os testemunhos das sensações. o som parece estar confinado na escuridão das sombras, sem jamais ter sua "realidade" esclarecida ou seu núcleo ontológico demonstrado. E, encostando "a orelha nas cordas como quem se dispõe a escutar conversa do vizinho",24 como que colocando "o ouvido acima do entendimento",25 os músicos estariam surdos à musica mundana, atuante para além de toda sonoridade. À efetiva inversão desse estado de coisas seremos conduzidos apenas no século XIX.

3. A estética musical (romântica) doIdealismo alemão.

Que coube à luz, e não ao som, a tarefa de representar o ideal ocidental de inteligibilidade, eis algo que salta aos olhos de quem atravessa a história da filosofia. Sendo o mais helióide dos órgãos, é à visão que se atribui, em geral, a nossa capacidade descerrar a estrutura objetiva dos acontecimentos. E, embalados pela adequação entre olho e espírito, os filósofos nunca hesitaram em afirmar que o intelecto é semelhante ao olhar. Se não contempla a região clara de onde irradiam as certezas imediatas, dissipando as sombras dos outros sentidos, não consegue distinguir corretamente o que . Bem mais incomum é, no entanto, a ideia de que a audição pode ser irmanada ao saber. Longe de ser fortuita, essa ousada tentativa de fundar uma outra instância de determinação para o conhecimento deve-se, em maior ou menor grau, à influência inaugural e pregnante exercida pela estética musical romântica. Sui generis, tal vertente interpretativa julgava encontrar, na música, credencias especulativas que a tornaria preferível a outros modos de conhecer, porquanto pressupõem um isomorfismo entre som e mundo inteligível. Algo que se deixa formular, à guisa de ilustração, mediante as seguintes palavras de E. T. A. Hoffmann: "A música abre as portas de um reino desconhecido ao homem (...) que o envolve e no qual ele deixa para trás todos os sentimentos determinados para entregar-se a uma saudade impronunciável."26 Segundo tal concepção, os sentimentos propriamente musicais não seriam representantes de emoções particulares tal como os conceitos, derivados pela razão, constituem abstrações de individualidades de uma classe determinada.

Pretendendo ultrapassar as diferenciações produzidas pelo intelecto, a estética musical romântica acabou, porém, por substituir a verdade dos enunciados pela verdade enquanto uma curiosa espécie de auto-manifestação. E , com efeito, razões bastantes para tal extrapolação. Como ideia estética, a obra sinfônica genial também ocasião à fantasia do ouvinte de alçar vôo sobre uma multidão de representações intuitivas que dão mais o que pensar do aquilo que poderia expressar-se em um conceito determinado - e que, portanto, para lembrar as palavras de Kant, "nenhuma linguagem alcança totalmente e pode tornar inteligível."27 Por sua formulação invariavelmente alusiva, o núcleo de significação musical das ideias estéticas, colocado em questão pelo próprio criticismo,28 talvez seja o que mais tem dificuldade em respeitar os limites da experiência, deixando-se arrastar pela tentação de pensar o universal nos termos do particular, ou, então, hipostasiando objetos onde não é possível nenhuma objetividade. Em certo sentido, a questão que se coloca para Schelling, Hegel e Schopenhauer é a de como administrar esse legado no sentido de conceder-lhe um pouco mais de determinação, redimensionando os artigos de do romantismo musical com vistas à superação positiva da cisão entre razão e sensibilidade.

Schelling, de sua parte, tratará de dispor as formas artísticas em séries distintas, a depender se nelas prepondera o aspecto físico ou o lado espiritual, mas sem perder de vista que tal distinção marca apenas uma diferença de grau, que ambos, espírito e matéria, remetem a uma matriz dialética comum: "Aquilo que conhecemos na história ou na arte é essencialmente o mesmo que também existe na natureza."29 Além de outras, uma conseqüência curiosa dessa convergência é a escolha da música para ocupar o primeiro lugar no interior da série que designa a unidade real - "física" por excelência -, ao lado da pintura e da plástica. Mais do que uma simples extravagância, a escolha reflete uma opção metodológica. Poder-se-ia ter irmanado a música às suas potencialidades paralelas no interior da série ideal, como, por exemplo, ao lado da poesia lírica - que, liberta das dimensões espaciais que caracterizam a pintura e escultura, à música, como matéria vibrante, conviria o mínimo de suporte material. Mas, é justamente isso que o autor da Filosofia da arte quer evitar. Em vez de reduzi-la a uma arte dos sentimentos ou validar o triunfo da subjetividade, ele espera pôr em evidência que a "música nada mais é que o ritmo prototípico da própria natureza."30 Isso não o impele, porém, à conclusão de que, em sua materialidade, a música é um mero ser sem significação. Tanto é assim que, referindo-se à universalidade de sentido da própria sonoridade, ele dirá: "Na formação-em-um do infinito no finito, a indiferença, como indiferença, pode aparecer como sonoridade."31 Polissêmicos, os termos indiferença e formação-em-um indicam a identidade entre real e ideal, sujeito e objeto, não como partes isoladas, mas como modos de apresentação de uma continuidade infinita que vai de um pólo ao outro. E não é acidental o fato de Schelling iniciar seu discurso sobre a música, no § 76 de tal obra, estabelecendo um paralelismo entre a sonoridade e o magnetismo - categoria física que, no contexto da filosofia da natureza, define o primeiro momento da construção da matéria. Não , afinal, como isolar os pólos magnéticos de um ímã. Este, vindo a se romper, converte-se num novo magneto, reproduzindo as extremidades opostas. Sendo que o mais relevante - para aquilo que nos importa - é o fato de que, por ser nula, a divergência do campo magnético não permite o monopólio de nenhum dos lados. E essa indiferença, na música, " ocorre na sonoridade, pois esta = magnetismo."32 Por trazer consigo tal indiferença, a música exerceria uma intensiva "atração" entre os diferentes meios de expressão.

Hegel, de seu lado, também não poupará esforços no sentido de encontrar uma possível mediação entre o sensível e o conceito, o objeto e o sujeito. Mas, ainda que acompanhe Schelling em sua luta sem descanso contra uma concepção mecânica das forças naturais, dele se afasta ao considerá-las somente como um momento do Espírito; a razão, que observa a si mesma na natureza, nela se reencontrará apenas parcialmente. E, longe encontrar graus individuação de um mesmo princípio por toda parte, Hegel estará mais disposto a operar distinções qualitativas no seio do próprio mundo natural, firmando degraus de uma escada que o levará, aos poucos, a abandonar o sensível enquanto tal.33 Ora, é precisamente esta "queda" que se deixa entrever, uma vez efetuadas as necessárias mudanças, no declínio da arte. Signo deste último seria o paulatino atrofiamento sensível da própria figuração artística. Esta continua, é claro, sendo um construto espaço-temporal, mas, em sua exposição, passa a exigir cada vez menos matéria. Daí, a pintura - que consiste, de si, numa redução das dimensões tridimensionais da escultura à superfície plana - não "mais se contentar com a matéria não particularizada (...) e sim deve apenas escolher a aparência e a aparência da cor dela como meio de expressão sensível."34 Pode-se então dizer, grosso modo, que o limite da arte se afina com os limites da natureza: ponto além do qual a obra não se dirige aos sentidos, mas ao Espírito, e aquém do qual a objetividade requer, como condição de sua compreensibilidade, uma consciência que ela mesma não possui. O que se tornaria ainda patente, por exemplo, no caso da própria música: "Para a expressão musical (...) é unicamente apropriado o interior inteiramente sem objeto, a subjetividade abstrata como tal (...) A tarefa principal da música consistirá, por isso, em deixar ressoar não a objetividade mesma, mas, ao contrário, o modo no qual o si-mesmo mais íntimo é movido em si mesmo segundo a sua subjetividade e alma ideal."35 Esse aspecto subjetivo da arte dos sons nunca é inteiramente abandonado, mas se converte num momento de reflexão interna que vem à tona sob a forma da oposição dos contrários, tornando a negatividade do sujeito imanente, realizando-a sob o modo do "concreto." Vindo a ser como matéria vibrante para, logo em seguida, negar sua aparência separada e subsistente, o som é uma "exterioridade que em seu surgimento se aniquila novamente por meio de sua existência mesma."36 O som é uma manifestação exterior, mas a autodestrutiva. Assim que afeta o ouvido, interioriza-se. Se os corpos são atraídos para o solo, os sons tendem "naturalmente" para o silêncio, surgindo para logo desaparecer.

Mas, por isso mesmo, a natureza "bruta" é um momento que a arte deveria, ao menos em princípio, ter ultrapassado. Não por acaso, a poesia surgirá como um ponto de convergência privilegiado, haja vista que, feita para ser a um tempo compreendida e entoada, a palavra poética faz as vezes de "universal concreto." Como os instrumentos musicais, a voz humana pressupõe cordas e canal de ar, mas à diferença daqueles, pode "falar", dando às significações não uma aparência sensível, senão que clareza significativa. Interregno entre som e significado, a palavra poética achar-se-ia então entre os extremos da percepção sensível elementar e a subjetividade do pensamento, e, por isso mesmo, seria a única a fazer jus à a tarefa da arte, a saber, fazer o espírito "apreender-se em seu outro, transformando o que é estranho em pensamento e, assim, o reconduzindo de volta a si."37 No entanto, se o caminho que liga a música à poesia se , assim, racionalmente justificado, resta que o intercâmbio entre os sons e a pintura se acha obstaculizado, ou, no mínimo, tido como uma espécie de "contra-mão" na marcha empreendida pelo Espírito. Afinal, se é possível - quando não, necessário - sugerir ao pintor que estude representações exteriores e pré-formadas, não se poderia fazer a mesma sugestão ao músico, o qual, não se reconhecendo nas formas "estranhas" que contempla, vê-se obrigado a mantê-las em sua estranheza, perdendo de vista os possíveis pontos de apoio entre os âmbitos. À radicalização desse distanciamento seríamos levados, por fim, pela filosofia de Schopenhauer, a quem caberá associar a música, não apenas à interioridade subjetivamente fundada, mas à estrutura objetiva do "real": "A música é, a ser assim, uma tal reprodução e objetivação imediata da inteira Vontade, tal como é o mundo mesmo."38 E, embora o próprio filósofo alemão chegue a dizer que "a coisa-em-si, a qual reconhecemos mais imediatamente na Vontade, deve ter (...) determinações, propriedades e modos de existência que nos são absolutamente desconhecidos",39 a versão da Vontade que se mostra relevante a seus apontamentos musicais revela que o "em-si" é indevassável apenas em relação ao fenômeno. Tendo a música uma relação indireta com este último, permaneceria aberta a possibilidade de interpretar a ordenação inteligível do mundo mediante um paralelismo entre os sons e a manifestação das Ideias no mundo fenomênico.

Daí, os tons mais graves da harmonia reproduzirem, por exemplo, "os graus mais inferiores da objetivação da Vontade, a natureza inorgânica, a massa do planeta."40 Tudo somado, considerando os débitos e créditos entre tais autores, obtêm-se uma fatura teórica assaz reveledora no que tange à relação entre o romantismo musical e às estéticas consoantes ao chamado Idealismo alemão. Ao determinar a música para a imaginação mediante uma "síntese melódica",41 Schelling decerto levará água ao moinho da estética musical romântica. Como faculdade reprodutiva, a imaginação atua como capacidade de reconstruir representações passadas, figurando um objeto também sem a sua presença intuitiva e imediata.

As próprias ideias da razão, por não terem na intuição nenhum correspondente adequado, pressupõem o pensar associativo. É sempre por analogia que dizemos, por exemplo, que uma máquina simboliza um Estado despótico.42 Seguindo esse trilho, E. T. A. Hoffmann tratará de estabelecer as mais insólitas aproximações, a ponto de vestir sua principal personagem, Kreisler, com uma casaca cuja "cor era em sustenido menor", acrescentando-lhe ainda "um colarinho da cor mi maior."43 E, se ao reencontrar ideia de símbolo a interpretação schellinguiana tem o cuidado de diferenciá-la da exposição alegórica,44 mais próxima da harmonia do que da melodia, E. T. A. Hoffmann também irá, de seu lado, exortar a que não se confunda a música, "secreto sânscrito" transposto em sons, com uma mera alegoria: "Não se trata de uma imagem vazia, de uma mera alegoria, quando o músico diz que as cores, os odores e os raios de luz se lhe aparecem como sons."45 É bem verdade que, com isso, o pensamento perde em univocidade e precisão lógicas. Mas o ganho em termos de sua abertura imaginativa é inegável.

Reconhecer uma coisa como ela mesma não cede tanto espaço à fantasia quanto conhecê-la como sendo semelhanteà outra.46 Todavia, concedia a parte a tal ampliação reflexiva, não se pode ignorar que a estética musical romântica termina por reiterar os pontos de vista que interditam, ou, no mínimo, desestabilizam a ligação da música com as artes visuais. Tanto é assim que, reeditando à sua maneira a filosofia hegeliana, E. T. A. Hoffmann irá ressaltar o caráter irredutível da interioridade musical, que dispensa formas exteriores inclusive: "Nosso reino não pertence a este mundo, dizem os músicos; afinal de contas, onde podemos encontrar, na natureza, os protótipos de nossa arte, tal como os encontram os pintores e escultores? (...) as melodias que falam a linguagem mais elevada da esfera espiritual, repousam apenas no peito do homem."47 E, sustentando ainda a ideia de que ouvir é ver "desde dentro", o romantismo musical acaba por defender acintosamente a supremacia da faculdade da audição, a qual, discernindo as vibrações da natureza circundante, apreende acusticamente o próprio universo visível: "Assim como o ouvir (...) é um ver a partir de dentro, o ato de ver converte-se, para músico, num ouvir a partir de dentro."48 Louvável pela audácia, tal atitude decerto possui seus devidos méritos. No entanto, o esteta musical não deve limitar-se a sublinhar o caráter enviesado das estéticas "contemplativas", que julgavam a música a partir do mesmo critério utilizado para avaliar as artes visuais, concedendo-lhe um lugar estranho às demais formas artísticas; cumpre-lhe ainda indicar o auto- ofuscamento em que as orientações subjetivistas se deixam enredar, na medida em que permanecem encapsuladas em si mesmas. Do contrário, a polarização de permanecer apenas invertida, com sinais trocados, orbitando ao redor do par sujeito-objeto. À implosão deste último seremos encaminhados pelo Nietzsche da maturidade, ponto de inflexão que altera em profundidade o rumo da estética musical oitocentista.

4. Nietzsche: o gesto reencontrado.

Pode-se dizer que o autor de Humano, demasiado humano foi um dos primeiros que, seguindo a esteira do formalismo, tentou levar a cabo uma crítica radical à metafísica da música, procurando desvencilhar a estética romântica da suposta capacidade de se obter, mediante obras musicais, um acesso ao núcleo ontológico das coisas. Assim é que ele escreve: "Em si, música alguma é profunda ou significativa, ela não fala da 'vontade' ou da 'coisa em si'."49 É claro que o autor destas linhas nem sempre militou contra os artigos de propalados pelo romantismo musical, tendo inclusive contribuído, no período de juventude, para fortalecer a imagem do músico como um "favorito" da natureza, a qual intervém, na pessoa deste último, para investir-se da bela aparência. Incapaz de tomar sobre os ombros o destino de sua atividade criadora, a intérprete da tragédia restaria prestar testemunho de sua própria falta de autonomia: "Converteu-se, por assim dizer, num medium por meio do qual o único sujeito verdadeiramente existente festeja sua redenção na aparência."50 Que O nascimento da tragédia acha-se eivado de léxeis schopenhauerianos e kantianos, reveladores de um intensivo movimento de assimilação, eis algo que, anos após sua publicação, será reconhecido de bom grado pelo próprio Nietzsche: "Quanto lamento agora que não tivesse então a coragem (ou a imodéstia?) de permitir-me, em todos os sentidos, também uma linguagem própria (...) que eu tentasse exprimir penosamente, com fórmulas schopenhauerianas e kantianas."51 Contudo, e apesar disso, seria temerário conceber seu conteúdo como uma espécie de reedição, colorida pelo problema da origem tragédia ática, das teses afirmadas pelo autor de O mundo como vontade e representação, o que em geral nos leva a identificar, açodadamente, o assim chamado "Uno-primordial" com a "Vontade" de que nos diz Schopenhauer. Que o jovem Nietzsche evitava transformar a dimensão não figurativa da vida afetiva numa essência íntima do universo, prova-o aquilo que sustentava, , no célebre fragmento "Música e palavra": "Até mesmo o conjunto da vida pulsional (...) é conhecido por nós - como tenho que intercalar aqui, contra Schopenhauer (...) apenas como representação, não segundo sua essência: e nós bem podemos dizer que até mesmo a 'vontade' de Schopenhauer nada mais é que a forma mais universal da aparência de algo para nós."52 Mesmo a harmonia, enquanto correlato sonoro de indelineáveis forças naturais e das mais profundas intensidades sensitivas, não constituía, em A visão dionisíaca do mundo, uma cópia imediata do princípio metafísico schopenhaueriano, mas tão-somente seu "símbolo". "A harmonia", lê-se ali, "é um símbolo da pura essência da Vontade."53 Tal cautela torna-se ainda mais patente no assim chamado "Fragmento de uma crítica à filosofia schopenhaueriana" - provavelmente, do outono de 1867. Nele, o jovem pensador conta explicitar aquilo que acredita ser uma espécie de "contrabando" categorial operado pela filosofia schopenhaueriana, a qual, sob o pretexto de apresentar os predicados do "em-si" como algo inapreensível, terminaria por reiterar fatores de ordenação próprios à experiência: "O mais relevante, para nós, é o fato de que os predicados gerais da Vontade são, também eles, tomados de empréstimo do mundo aparente (...) Trata-se justamente de três predicados: o de unidade, eternidade (i. e., atemporalidade) e liberdade (i.e., ausência de fundamento)."54 Mas, ainda que O nascimento da tragédia possa ser legitimamente irmanado à obra futura,55 o período condizente com Humano demasiado humano representará um efetivo divisor de águas no que se refere às preocupações estética-musicais, as quais se voltam, agora, à tarefa de desfazer os nós que atavam a música às antigas ordenações morais e metafísicas do universo, desonerando-a, por assim dizer, de suas atribuições extra-artísticas, e, sobretudo, da ascese mística a ela associada. Ao adotar tal ângulo de visão, Nietzsche parece dar cumprimento e continuidade a uma apreciação análoga à de Eduard Hanslick, célebre autor de Do Belo Musical.56 O crítico vienense tampouco verá, de sua parte, qualquer relação musicalmente necessária entre o objeto estético - a peça musical - e aquilo que, durante a fruição, pode apresentar-se ao espírito do ouvinte. Tanto é assim que, sem hesitar, irá afirmar: "A relação de uma obra musical com os sentimentos que ela provoca não é senão uma relação de causa e efeito; o estado de espírito que ela determina em nós varia de acordo com o ponto de vista em que situamos nosso grau de experiência musical."57 Para a dissipação do romantismo musical, a sobriedade preconizada por tal "causalidade" é, por certo, exemplar. Afirmando a existência de um belo especificamente musical, o formalista elegerá como candidato à beleza apenas os sons em sua ligação artística, e não um singular sentimento "em nós". à primeira vista, porém, Nietzsche conta refundar os alicerces fincados por Hanslick. Pode-se dizer, inclusive, que a missão do filósofo alemão se inicia quando a tarefa do crítico vienense se encerra. De remédio, o formalismo musical pode converter-se num insidioso veneno. Fadado a manter-se no plano da rígida descrição, seu partidário acaba outorgando à sensorialidade uma significação unívoca, invariável e a-histórica. Nunca lhe será dado, no entanto, apreender os sons de um modo inteiramente neutro. Influenciado das mais variadas maneiras, o austero ouvinte acha-se, também ele, pré-condicionado por certas apreciações valorativas; às diferentes condições de impressionabilidade e acessibilidade auditivas corresponderiam, afinal, diferentes tipos de efeito, assim como tipos variados e disjuntivos de sentimentos poderiam dar lugar a caracterizações diversas de uma mesma obra musical - em conformidade, pois, com o caráter relativo de todo sentir e querer. É nesse sentido, pois, que ganha força a concepção de Nietzsche: "em nossa concepção o artista pode conferir validade à sua imagem somente por um período, porque o ser humano, como um todo, mudou e é mutável, e tampouco o indivíduo é algo fixo e constante."58 Privada de seu subsolo sonoro universal, a linguagem "originária" dos sons - se, então, destronada, sendo que isso se realiza evidenciando a historicidade do próprio simbolismo musical, o qual, longe de cair do céu, indica um desenvolvimento gradual: "Tão logo as pessoas se entenderam pelos gestos, pôde surgir um simbolismo dos gestos: isto é, pudemos nos pôr de acordo acerca de uma linguagem de signos sonoros, de sorte a produzir, num primeiro momento, som e gesto (ao qual o primeiro se juntava simbolicamente) e, mais tarde, apenas o som."59 O que antes implicava um simbolismo capaz de colocar o homem em comunicação com a essência das coisas, revela-se, de pronto, fruto do hábito. A própria música instrumental, cuja origem parecia encontrar-se para além de toda a individuação, encontrar-se-á intimamente associada a determinados gestos.

Apenas muito mais tarde teria ela, por fim, prescindido de tal associação.

Ulterior, a pura audição suscitaria tão-só aquilo que se aprendeu a associar ao som por meio de movimentos visíveis: "primeiramente, sem dança e mímica explicativas (linguagem de gestos), a música é ruído vazio, em virtude de uma longa habituação a esse lado a lado de música e movimento o ouvido é educado para interpretar imediatamente as figuras sonoras, e, por fim, chega a um nível de rápida compreensão."60 Com isso, o filósofo alemão não conta recuperar um estado original da sensorialidade, alcançado por retroação a uma Idade de Ouro das artes, em que vigoraria o regime imaculado de um belo "natural". Contra este último, Nietzsche tempos dizia: "Não algo como um belo natural. Mas, o feio perturbador e um ponto indiferente [indifferenter Punkt]. Tem-se em vista, aqui, a realidade da dissonância em relação à idealidade da consonância."61 Pertencendo à ordem da cultura, a harmonia musical não se acharia inscrita na natureza e tampouco obedeceria uma lei supostamente congênita da percepção.

Haurida de um lento processo de modelagem e cultivo da sensibilidade, nossa percepção auditiva não se limitaria a gravar mecanicamente as excitações timpânicas, senão que as reorganizaria de modo totalizador, arranjando os sons num conjunto de configurações rítmicas: "O homem é uma criatura formadora de ritmos. Ele introduz todos os acontecimentos em tais ritmos."62 Mas, se o ritmo não se configura por si , pressupondo, antes do mais, uma atividade humanamente criadora, nem por isso cumpre privar-lhe de toda espontaneidade.

Eis, aliás, o grande perigo a ser evitado: o de reduzir a música à tarefa de dar uma presença sensível e adequada às significações, o que terminaria por fazer da audição uma mera extensão do intelecto. A esse respeito, Nietzsche pondera ainda: "Graças ao extraordinário exercício imposto ao intelecto pela evolução artística da nova música, nossos ouvidos se tornaram cada vez mais intelectuais."63 De tanto "pensarem", o olho e o ouvido acabam resultando, não num pensamento vivo sobre a visão e audição, mas num olhar míope e numa escuta atrofiada. E o "significado", vindo a substituir aquilo que se ouve e , termina artificializando os próprios órgãos dos sentidos. É nesse trilho que se insere uma das objeções levantadas contra a música de Wagner. Pressupondo um público a um tempo "leitor" e "ouvinte", o drama musical wagneriano acarretaria, conforme a apreciação nietzschiana, uma sobrecarga sensorial, agravada tanto mais pela exuberância visual do cenário e pela fartura latifundiária das orquestrações. Sobre a dificuldade de "ler", "ver" e "ouvir" a obra de arte total, o filósofo alemão escreverá: "Quem se familiarizou com a leitura isolada do poema (linguagem!) e depois o transformou em ação com o auxílio do olho para, então, distinguir, compreender e aclimatar-se ao simbolismo musical, apaixonando-se por esses três passos, dispõe de um prazer invulgar.

Mas que tamanha exigência! Salvo por alguns pequenos momentos, porém, é impossível - porquanto demasiadamente fatigante - despender esta atenção multifária e abrangente com o olho, ouvido, entendimento e sentimento [...] Porque se interrompe, aqui, a atenção, apática em grandes períodos, porque se presta unicamente atenção ora na música, ora no drama, ora na cena - decompõe-se, pois, a obra".64 Poder-se-ia argumentar, a contrapelo de tal descrição, que Wagner costumava compor primeiro o libreto e somente depois a música, de sorte que o conjunto da percepção seria mediada pelo núcleo interno da representação; cada frase teria, enfim, o seu próprio destinatário no interior do drama, exigindo, como condição de compreensibilidade, que as alterações rítmicas e melódicas, bem como as prescrições cênicas, fossem percebidas com vistas à expressão do conteúdo.

Seria ainda possível objetar, em prol do compositor alemão, que a vivência intensiva da arte é sempre totalizadora, evocando a antiga acepção de mousiké, a qual, jactando-se em órgão ilimitado de expressão, faz com que as artes se sirvam umas das outras.65 Assim, em vez de incentivar a rivalidade entre as partes do campo perceptivo, fomentando a disputa sonoro-visual mencionada por Nietzsche, o espetáculo total surgiria justamente como um encontro; em vez de mosaico, apareceria como tecido; em vez de compósito, viria à cena como amálgama. Mas, precisamente por tentar lograr isso mediante uma espécie de princípio composicional do significado, onde cada parte, cuidando de si mesma, não teria outra destinação senão soletrar, pouco a pouco, um pensamento formado por "pequenas preciosidades", Wagner passa a ser censurado por não partir de uma apreensão extensiva e instantânea, própria a uma totalidade orgânica. Daí, a caracterização d'O caso Wagner: "Wagner é admirável e encantador somente na invenção do mínimo, na criação do detalhe - nisso terá toda razão quem o proclamar um mestre de primeira ordem, nosso maior miniaturista da música."66

5. Adorno: ao som do emaranhamento.

Adorno também irá, ao longe, ecoar aquilo que Nietzsche denuncia na sobrecarregada operosidade que sustenta o drama musical wagneriano, à primeira vista incapaz de criar e sustentar formas artísticas verdadeiramente orgânicas.

Assim é que, em seus Ensaios sobre Wagner,ele escreve: "Música, cena e palavra são integradas pelo fato de que o autor - a palavra poeta-compositor [Dichterkomponist] designa muito bem a monstruosidade tais situações - as trata como se tudo convergisse numa mesma entidade. Mas, com isso, ele as viola e desfigura o todo, que se converte em tautologia, sobredeterminação permanente. A música repete aquilo que as palavras disseram, sendo que, quanto mais ela se coloca em primeiro plano, mais supérflua ela se torna em relação ao sentido que conta exprimir."67 Ainda que se possa ouvir, aqui, à distância, a denúncia nietzschiana, cumpre reconhecer que a cena operística na primeira metade do século XX é outra.

Vitimada pela consciência de sua própria crise, a ópera não é mais a mesma que outrora. Como escreverá o próprio Adorno em sua Introdução à sociologia da música: "O dito de Benjamin sobre o declínio da aura aplica-se de maneira mais precisa à ópera do que a qualquer outra forma artística."68 E isso não porque sua forma externamente pretensiosa tencionava justificar os enormes gastos em meio à crise financeira que, por volta do fim dos anos vinte e início dos anos trinta, vampirizava as ditas sociedades industrializadas. Senão que em virtude de um erro de cálculo em relação à subjetividade de seu público ouvinte, inapto para acolher as conseqüências "anti-racionalistas" exigidas pela estilização operística: "começava a raiar, antes do mais, a concepção segundo a qual a ópera, segundo seu estilo, substância e postura, não teria mais nada a ver com aqueles aos quais apelava."69 não havia mais como driblar, mediante o drama, os problemas trazidos pela dissolução do tonalismo. Sem encontrar refúgio nas antigas formas rígidas e tampouco no libreto, a música se confrontada com um novo desafio: o de construir o chão em que pisa a cada instante, para além da justaposição de esquemas formalmente dados e por meio de uma variação sempre em construção. À força de ter que lograr uma mínima unidade, a arte dos sons precisa afirmar um princípio regulativo que funcione ao vir a ser, isto é, efetuando-se. Como dirá Adorno: "a variação serve de princípio regulativo à forma que existe vindo a ser (...) Para realizar-se, o motivo da variação não carece da variação dos motivos. No lugar do contraste dissolvido entre o tema e a variação, surge a gênese variante dos próprios temas."70 Porque rompe com a discursividade inspirada na linguagem falada e se recusa a abandonar o princípio da variação em desenvolvimento em prol da pura e simples repetição, a música de Schönberg viria à tona, pois, como a versão mais antipódica do tempo físico associado ao espaço, colocando-se na contracorrente de uma simbiose imatura e alienada, a qual, segundo o autor da Filosofia da nova música, prestaria testemunho de "uma pseudomorfose da música à pintura."71 Anos mais tarde, porém, ao ponderar sobre as vanguardas, Adorno parece afrouxar esta oposição entre música e pintura, consagrando-se à análise de formas "mistas", "oscilantes". Tanto é assim que escreverá: "No desenvolvimento mais recente, as fronteiras entre os gêneros artísticos fluem umas em direção às outras, ou, mais precisamente: suas linhas de demarcação entrelaçam-se. As técnicas musicais foram evidentemente estimuladas pelas pictóricas, bem como pelas assim chamadas técnicas informais, mas também pela construção do tipo mondriânico. Muitas músicas tendem às artes gráficas em sua notação.

Esta se torna, nesse sentido, não apenas semelhante às figuras gráficas autônomas, senão que sua natureza gráfica assume, face ao que foi composto, uma certa independência."72 Até então, o discurso sobre os fenômenos de mutação artística baseava-se no interior das fronteiras de cada gênero. Embora atentos a tal ordem de problema, os teóricos raramente tomavam por certo que as demarcações artísticas seriam, de fato, mutuamente influenciadas. Em especial, no caso da música: por mais sensível que fosse à disposição do registro vocal, a polifonia renascentista não retirava seus princípios compositivos diretamente do texto responsorial; por mais que fosse assimilável à retórica, o discurso musical barroco permanecia, em rigor, apenas música, bem como a música programática ou inspirada em pinturas continuava, de fio a pavio, abismada na sonoridade.

Ao longo do século XX surgem, porém, formas artísticas que se afastam estruturalmente da classificação unívoca de um tipo de arte. O campo de tensão entre linguagem e música é ocupado por obras que podem ser classificadas tanto como peças musicais verbalizadas quanto peças verbais musicadas. Mais próximo a um processo dialético de transformação do que a um impulso cego à imitação, tal entrecruzamento permitiria fomentar conexões numa multiplicidade imprevista de dimensões, de modo a criar, sem dar ocasião a uma invasão destruidora, o vínculo da música com as artes em geral. No fundo, o resultado a que se chega é o de que, quanto mais um gênero admite aquilo que seu contínuo imanente não contém em si mesmo, tanto mais ele participaria criativamente do que lhe é estranho, em vez de imitá-lo pura e simplesmente. E é a música de Schönberg que surge, novamente, como o principal analisador teórico e estímulo ao entrelaçamento. Tanto é assim que Adorno dirá: "(...) os gêneros artísticos individuais esforçam-se por sua generalização, simplesmente por uma ideia de arte. Uma vez mais, isso seria ilustrado com a música. Mediante seu procedimento integral, acolhendo em si todas as dimensões compositivas, Schönberg incentivava ao máximo sua unificação."73 Embora se baseie na ordem intervalar da série linear, o procedimento dodecafônico de composição não passa ao largo da qualidade dos intervalos harmônicos, que decorrem da justaposição das melodias.74 E ainda que retome, noutra chave, expedientes tradicionais de estruturação - tais como o cânone e a inversão, por exemplo -, a referida técnica rompe com elementos hierárquicos e teleológicos, tão essenciais ao sistema tonal, tais como tônica, dominante e subdominante, cedendo terreno a uma expressividade do acúmulo e a um sistema onde as doze notas são fundamentalmente iguais. E não . Despedindo-se em definitivo do par dicotômico consonância-dissonância, termina por adotar um critério mais tímbrico da qualidade dos intervalos, permitindo-se "colorir-se" desde dentro. Como isso, revelaria que é possível fazer as pazes com a alteridade pictórica sem abrir mão da auto-afirmação de si.

Não que a substância da dita música "séria" e o paradigma "introspectivo" de Schönberg fossem impermeáveis a qualquer tipo de fetichismo. Ao contrário, inclusive. O próprio termo "dodecafonismo" teria tornado-se, rapidamente, um simples slogan.Como dirá Adorno: "A palavra 'música dodecafônica' é produto de uma nomenclatura reificada, e não um sinal que designa a coisa mesma".75 Mas, pouco importa. Aqui, a o espírito e a intenção contam mais do que a letra e a nomenclatura. Mais relevante do que acompanhar os efeitos artísticos ou reproduzir a concepção temática de Schönberg seria, porém, tomar como exemplo o procedimento musical de que ele se vale, de sorte que seu método compositivo indicaria, aos artistas de outros meios, comocriar, e não tanto o que fazer.

Sendo que o mesmo valeria para o desenvolvimento do próprio idioma musical contemporâneo. E não é à tona que Adorno trata de mencionar elogiosamente toda uma geração de novos compositores, igualmente empenhados em suplantar a suposta natureza "imutável" de cada domínio sensorial. Nesse sentido escreve: "O inteiro trabalho de Stockhausen pode ser compreendido como uma tentativa de ensaiar possibilidades de nexos de relações musicais num continuum quadridimensional (...) cria, a partir de si, o vínculo da música com o visual, com a arquitetura, as artes plásticas e a pintura."76 Operando com variações no tempo, mas sem descuidar de coordenadas e referenciais tridimensionais, a composição espacial de múltiplas camadas sonoras - tal como era praticada por Stockhausen - pressupõe um continuumespaço-tempo no qual o som não se movimenta ao redor do ouvinte apenas a uma distância fixa e constante, senão que, mediante cortes e recortes sobre a fita magnética, pode também se movimentar, "ilusoriamente", para tão longe ou tão perto quanto quisermos imaginar: "Construir profundidade espacial por sobreposição de camadas nos permite compor perspectivas em som de muito perto a muito longe, análogas ao modo como compomos camadas de melodia e harmonia no plano bidimensional da música tradicional."77 Trazendo consigo o caráter do "não-efetivo", a aparência de distância criada pela composição sonoro-espacial diferencia-se da percepção auditiva "normal", que se estabelece entre as quatro paredes da sala de concerto, porque os sons se movem para longe, sem que entretanto as paredes tenham de deslocar-se. "Se as paredes se moveram,", comenta Stockhausen, "não tem nada que ver com essa percepção, mas com acreditar no que ouvimos de modo tão absoluto quanto acreditamos antes no que vemos ou ouvimos. (...) O que dificulta tanto que a nova música seja realmente apreciada é esse bloqueio mental nas pessoas, que as faz dizer 'como se'."78 O elemento característico da profundidade espacial das camadas sonoras não é, pois, o fato de elas não serem audíveis a partir da distância "real", mas serem efetivamente perceptíveis a despeito de sua irrealidade, de sua audibilidade ilusória - o que significa que, para compreender tal procedimento compositivo, cumpre deixar de lado a "verdade" das percepções construídas exclusivamente no âmbito visual.

E enganar-se-ia, aqui, quem acreditasse que tal possibilidade seria entrevista apenas no âmbito que designa a música eletrônica. "Por que a perspectiva espacial deveria ser típica somente da música eletrônica?", indaga Stockhausen, " não a encontramos em uma sinfonia de Mahler na qual o compositor diz que os trompetes devem soar de fora do salão?"79 O compositor refere-se, no caso, a uma prescrição "dramática" do terceiro movimento da Sinfonia de Gustav Mahler, intitulado "O que me contam os animais na floresta" e que prevê um solo de corneta de postilhão fora da cena, no intuito de sugerir, "ao longe", as transformações ocasionadas pelo advento do verão. O longo e onírico solo, cuja melodia é suavemente respondida pela orquestra mediante um duo de metais e passagens de violinos, era tido como um indispensável contraste "poético", ainda que pudesse escandalizar muitos de seus contemporâneos. Visando a formas de coexistência entre portentosas criações instrumentais e poemas musicais específicos,80 Mahler dedicava-se a títulos e conteúdos programáticos, mas, ao mesmo tempo, tratava de suprimi-los num todo sinfônico e introspectivo.81 Não por acaso, Adorno via, em sua música, empréstimos mais íntegros que os demais, sem forçar ou constranger a forma musical a estabelecer um compromisso que lhe seria demasiadamente problemático. Nesse sentido, o filósofo dirá: "Os empréstimos da canção popular e da forma musical popularesca são como que colocados entre aspas invisíveis por meio da linguagem artística rumo à qual são deslocados, permanecendo uma espécie de pedra no sapato da construção puramente musical. (...) O conflito entre a música elevada e a dita música inferior (...) renova-se na música de Mahler. Sua integridade optou pela linguagem artística."82 Mas é claro que, no contexto atinente à música eletrônica, a composição espacial de múltiplas camadas acumular outros desafios, os quais não deixarão de ter efeitos corrosivos para o sistema tradicional de notação musical. Atribuir sonoridade a uma curva desenhada numa folha de papel não é o mesmo que enumerar e distribuir semi-fusas no interior de um compasso. E, ainda que se coloque como um "laboratório", o estúdio de música eletrônica não fabrica eventos sonoros tal como um laboratório farmacêutico, o qual se limita a reproduzir, em série, a substância que outrora havia surpreendido o químico, quando este a descobriu pela primeira vez. Embora o gerador de pulsos indique, ao compositor, o número exato de ciclos sonoros de seus espectros elétrico- acústicos, nem por isso se pode predizer, com exatidão, em que momento um pulso ocorrerá e tampouco antecipar o resultado final do experimento. Tudo o que podemos fazer, adverte Stockhausen, é "indicar uma tendência geral durante a curva".83 Assim como não precisamos reconhecer cada peixe de um cardume, para visualizar seu formato, tampouco carecemos de um sistema de símbolos sintática e semanticamente perfeito, para indicar as tendências gerais a serem assumidas pelas distintas camadas de som. "Se vemos uma árvore," comenta o compositor a esse respeito, "não contamos as folhas, mas ainda assim somos capazes de distinguir um pinheiro de uma faia."84 Aqui, o mais importante é perceber os intervalos que constituem as formas dos grupos e massas de notas individuas, de sorte que se pode permutar a ordem dos eventos no interior de cada grupo sem efeitos disruptivos à percepção - à diferença do código que regula a linguagem discursiva, à qual uma alteração na ordem das palavras e dos fonemas seria fatal em termos de sua compreensão.85 Ora, se não é possível ouvir todas as notas de um dado agrupamento sonoro e tampouco contá-las analiticamente; se, enfim, a textura das massas de som passa a ser mais relevante que o número preciso de seus signos sonoros, então, num certo sentido, a atividade de escrita musical adquire um sentido ligado ao esboço, à formação, àquilo que modela parte dos contornos da seção musical. "Pode-se desenhá-las",86 diz Stockhausen.

Que o método de composição de microtexturas eletrônicas não foi sem consequência para a música acústica contemporânea, prova-o a enorme influência que ela exerceu sobre a obra de György Ligeti, cujas experiências em estúdio - não por acaso, sob a orientação do próprio Stockhausen - foram decisórias para a elaboração e afirmação de sua micropolifonia.87 É, aliás, referindo-se à não- descritividade notacional de sua obra-prima que Adorno escreve: "As Atmosphères de György Ligeti, muito importantes e altamente bem formadas, desconhecem quaisquer notas individuais e diferenciáveis no sentido tradicional."88 Também Ligeti teria, à sua maneira, incorporado a aleatoriedade no interior das fronteiras entre os grupos sonoros, tornando ainda mais imprevisível a ordem das alturas em cada voz individual. Não se deterá , porém, a tendência contemporânea à estruturação aleatória, assimétrica e aperiódica, sendo que a forma discursiva, tradicionalmente constituída por quadraturas e repetições, irá encontrar um contra-ideal ainda mais radical na obra de John Cage.

Doravante, o signo musical decerto assumirá uma nova feição, impelindo a um redimensionamento profundo do conceito de desenvolvimento musical, o qual passa a ser marcado, não por um rígido nexo de relações causais, mas por um processo de contínua metamorfose. Aquilo que a discursividade desejaria espiritualizar ou eternizar, dirá Adorno, agora termina por se "converter num material nu e cru, qual um mero existente, como seria explicitamente exigido no desenvolvimento mais recente de algumas escolas, como, por exemplo, em termos musicais, na escola de John Cage."89 O princípio da não-repetição e da reprise variada aplicar-se-á, em Cage, à própria performance da obra. Esta última não permanece idêntica sequer a si mesma, adquirindo unidade formal a partir de um processo integrador em permanente mudança. Mas é precisamente aqui que se recrudescem, mais e mais, as incompatibilidades com a tradição, e, em especial, com as teorias semioticamente orientadas. À luz destas últimas, o estabelecimento de um sistema notacional dependeria da segregação interna de seus sinais, dispostos em conjuntos bem diferenciados e discerníveis entre si, razão pela qual os esboços de John Cage não pertenceriam, em rigor, a tal rubrica. A esse respeito, Nelson Goodman dirá: "Este sistema [relativo ao Concerto para piano e orquestra,de John Cage] não é notacional; que, sem alguma estipulação de unidades mínimas significantes de ângulo e distância, ele se acha privado de diferenciação semântica."90 Na escrita musical tradicional, a cabeça de uma dada figura e o colchete que lhe convém podem, quiçá, estar situados no pentagrama de modo que fiquemos em dúvida se pertencem a um ou a outro espaço ou linha suplementar, mas em caso algum nos ocorrerá tomá-los como consoantes a ambos espaços e/ou linhas divisórias. Fiel depositária de um patrimônio acústico supostamente extensivo aos intérpretes, a linguagem da partitura não pode dar margem a "duplos sentidos", o que, por si , dificultaria a recuperação mental de cada passo dado peça adentro.

No entanto, uma definição coextensiva das principais peças de John Cage - supondo que isso fosse possível e, sobretudo, desejável - jamais poderia ser lograda mediante um membro determinado de sua classe, representado por um sistema elaborado à maneira da linguagem discursiva. Nesse contexto, um bloco sonoro corresponde aos mais variados tipos de caracterização, e todos diversos entre si - tais como, por exemplo, "mescla", "frações de ruidosidade", "simultanóides" etc. Grafando os signos sonoros de maneira aproximada, seus diagramas gráfico-musicais não têm a pretensão de ser uma cópia ou um equivalente acurado de suas possíveis execuções. É isso que se acha em jogo, de modo patente e radical, em Fontana Mix (videFigura_1), peça notacionalmente derivada do mencionado Concerto para piano e orquestra, mas tanto mais influenciada pelo medium da pintura. Aqui, a notação não se torna apenas semelhante às figuras gráficas autônomas, senão que sua natureza gráfica assume, face ao que foi composto, uma efetiva independência. De duração indeterminada, composta para toda sorte de instrumento e qualquer número de intérpretes ou faixas de fita magnética, consistente de 10 folhas de papel e 12 transparências - contendo, respectivamente, desenhos de curvas diferenciadas e pontos nodais randomicamente distribuídos -, a obra é executada por meio da livre sobreposição das linhas e dos pontos, da qual resultam possíveis estruturas a serem executadas. Nada mais distante, portanto, do registro convencional.

No fundo, o resultado a que se chega é o de que a pretensa existência de uma gramática generativa da música,91 ainda que recoberta por operações hauridas de um efetivo fluxo sonoro, termina por nos enganar, criando a falsa ideia de uma semântica musical. Sensitiva desde a raiz, a música opera com intensidades não- figurativas, passando a preterir, como uma espécie de acréscimo inesperado, o próprio significado à base das representações discursivas. Se nestas os ditos significantes permanecem atarraxados a determinados significados, a crua massa de sons formaria, anteriormente às imagens acústicas usadas para formação do signo lingüístico, um campo liberto de toda obrigatoriedade representativa.

Nesse sentido, os caracteres notacionais convertem-se em puras fórmulas, cujas variáveis, a título de etiquetas passíveis de serem substituídas a qualquer momento, decerto podem ter um significado, mas não possuem necessariamente nenhum em particular. A música pode falar antes mesmo de ter alguma coisa a dizer. Não se refere, ab ovo, a algo verdadeiro ou pleno de sentido. Se isso parece reforçar o caráter enigmático da expressão artística, é porque fomos educados a nos calar quando atingimos os limites da linguagem e do pensamento.92 Mas, em matéria de arte, o sentido denegado é, de si, um sentido. Eis o ponto de partida do Concerto para piano de John Cage, o qual é reconhecido, de bom grado, pelo próprio Adorno: "Isso é atestado por obras de arte cujos nexos de relação [Zusammenhånge] são eliminados de modo tão consequente que, justamente em função de tal consequência, terminam por engendrar um novo nexo de relações, tal como o Concerto para piano de Cage".93 Frustrado, aquele que busca na música uma semântica fixa e perfeitamente adequada acaba deparando-se com a única "coisa" que lhe resta, a saber, a execução, a interpretação, enfim, a performance mesma das obras. A moderna execução, no entanto, vai além dos fenômenos acústicos. Visível, o ataque ao teclado, os pizzicatinas cordas do piano e o vaivém do pianista pelas extremidades do instrumento são, no limite, "ações" pianísticas. E, um tanto incomodado, o essencialista vê-se então obrigado a inferir que a diferença entre o barulho de um garfo lançado acidentalmente sobre as cordas de um piano e a sonoridade própria a uma peça para piano preparado é justificada única e exclusivamente por uma teoria da arte. Afinal, como dirá Arthur Danto: "É a teoria que a recebe no mundo da arte e a impede de recair na condição do objeto real que ela é (num sentido de é diferente do da identificação artística)."94 A teoria artística, como uma espécie de guardiã da extensão do termo "música", limitar-se-ia a acalmar um público que, na falta de uma explicação segura e essencial, tende a vaiar a atividade musical contemporânea.

Mas, é justamente essa pacificação que o entrelaçamento das artes quer evitar.

Procurando manter a coexistência a um tempo tensa e dinâmica entre métiers distintos entre si, ele fortalece o não-idêntico, aquilo que é avesso à aceitação impensada do que existe. Nesse sentido, até mesmo as vaias poderiam arvorar-se em meio expressivo, fazendo coro com a música entrelaçada.

O problema surge, porém, quando sequer isso é possível. Quando, enfim, o conformismo triunfa solenemente. Também essa situação deve ser imputada à teoria. Como irá lembrar Heinz-Klaus Metzger: "Antes de um concerto de Cage, os organizadores pediram-me para explicar ao público as razões técnicas para o uso do inteiro piano, quer dizer, não apenas dos teclados, senão que também de outros dispositivos, os quais não raro provocam gargalhadas, que estamos mais habituados a vê-los nas mãos e nas bocas de crianças. Meu argumento foi o de que estávamos lidando com a apresentação de uma escala de cores sonoras (...) Esse argumento pacificou o público a tal ponto que, por ocasião deste concerto, ele não colaborou nem um pouco com tal escala."95 No decurso do último século, Adorno foi um dos raros filósofos que entreviu, na música, a semente a partir da qual nasce e cresce essa escala de cores, colocando-se, por assim dizer, à escuta do emaranhamento das artes. O presente texto nada mais foi do que uma tentativa inicial de deslindar alguns fios de tal trama.


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