O contexto religioso-político da contraposição entre pirronismo e academia na
"Apologia de Raymond Sebond"
A contraposição entre pirronismo e academia na Apologia incide especificamente
sobre a doutrina carneadiana do pithanon, traduzida por Cícero como probabile e
verisimile. Montaigne reproduz uma crítica tradicional ao ceticismo acadêmico,
largamente difundida por Agostinho. A crítica se vale desta segunda tradução
ciceroniana:1 a noção de verossimilhança pressupõe a noção de verdade, sendo
incompatível com a epoche e, portanto, com um ceticismo consistente e
integral.2 Se há efetivamente uma diferença significativa entre estas duas
tradições céticas antigas, a doutrina do probabilismo ou verossimilhança é a
grande divisora de águas.3 Uma hipótese bastante aceita sobre o ressurgimento
do pirronismo (ou surgimento do neopirronismo) no século I a.c. é a reação de
Enesidemo, então membro da nova academia, à leitura epistêmica da doutrina de
Carnéades proposta por Filo de Larissa.4 Como sugere Montaigne, a influência
desta tradição neoacadêmica é enorme.5 Ela decorre da grande influência no
período de Cícero, que foi aluno de Filo; e de Agostinho, que responde a
Cícero. É conhecida somente uma parte que creio mínima da influência do
ceticismo acadêmico no pensamento moderno ' em particular da doutrina da
verossimilhança acadêmica ' apesar do grande crescimento dos estudos históricos
sobre o ceticismo moderno desde os trabalhos de Popkin.6 No caso que nos
interessa aqui, como bem notou Flávio Loque7, o ataque à verossimilhança na
Apologia causa certa estranheza porque Montaigne a adota como critério de
julgamento e de ação na própria Apologia e em diversos outros ensaios8. Para
resolver este problema exegético da Apologia proponho uma dupla restrição do
escopo do ataque à verossimilhança. Por um lado, mostrarei que o ataque visa
mais a leitura epistêmica da verossimilhança proposta por Filo do que ao
conceito carneadiano original. Por outro, situo-o em um contexto político-
religioso bem específico. Esta contextualização soluciona também outros
problemas ainda mais fundamentais que estudiosos da Apologia têm enfrentado
como o problema da defesa paradoxal de Sebond, a inconsistência aparente das
duas respostas de Montaigne às duas objeções e o problema do fideísmo. A minha
hipótese é que o pirronismo de Montaigne na Apologia centra-se no ataque à
verossimilhança acadêmica por ela ter sido apropriada por apologistas
calvinistas.9 O ataque pirrônico à verossimilhança é a estratégia oferecida por
Montaigne à rainha católica de Navarra e irmã do rei da França Marguerite de
Valois, para eventual uso nas polêmicas religiosas em sua corte
majoritariamente protestante de Nérac.10 Inicialmente farei breves
considerações históricas que sugerem ter sido a Apologia majoritariamente
escrita ou para municiar Marguerite de Valois em seus debates com os huguenotes
ou para registrar por escrito conselhos que Montaigne teria sussurrado
oralmente nos ouvidos da bela e sedutora rainha Margot.11 Em seguida farei uma
análise de passagens centrais da Apologia que comprovam a identificação da
posição acadêmica aos protestantes e da pirrônica como estrategicamente
oferecida por Montaigne à rainha para auxiliá-la a resistir à verossimilhança
calvinista.
O contexto histórico
[A] Vós, por quem me dei ao trabalho de, contra meu costume, estender
um corpo tão longo, não deixareis de defender vosso Sebond pela forma
habitual de argumentar em que sois instruída diariamente, e
exercitares nisso vosso espírito e vosso estudo; pois este último
passe de esgrima só deve ser empregado como um recurso extremo. (557-
558/337)
A edição Villey-Saulnier acrescenta a seguinte nota sobre a pessoa a quem
Montaigne se dirige na passagem: "Segundo uma tradição, pouco antiga na
verdade, este ensaio seria dirigido a Margarida de Valois, a futura esposa de
Henrique de Navarra" (557/337).
Em primeiro lugar urge uma correção factual da maior importância. Marguerite já
estava casada com Henri de Navarra, futuro Henri IV, quando a Apologia foi
escrita. O casamento ' seguido da famosa noite sangrenta de São Bartolomeu '
foi celebrado em 1572 e Villey afirma que a Apologia não pode ser anterior a
1572, sendo, ainda segundo Villey, a maior parte (as passagens mais pirrônicas)
provavelmente de 1576. Villey indica ainda passagens que não poderiam ter sido
escritas antes de 1579. Mostro abaixo que 1579 é a data provável da redação,
pelo menos da parte da Apologia que concerne mais diretamente a Marguerite,
pois é quando a mesma se encontra na vizinhança de Montaigne.
Quanto à tradição de que a Apologia teria sido dirigida a Marguerite,12
ela é de fato relativamente recente no campo dos estudos montagnianos, mas
remonta ao final da vida da rainha. Amaury Duval, editor de uma edição de 1827
dos Ensaios, afirma em uma nota que o "Vós" da passagem citada refere-se à
Marguerite. Na nota relata possuir um exemplar dos Ensaioscom uma anotação
neste sentido feita por Pierre-Charles Jamet, bibliófilo do século XVIII, na
qual diz ter tomado ciência da identidade da destinatária por Hilarion de Coste
em pessoa, primeiro biógrafo e contemporâneo dos últimos anos da rainha,
falecida em 1615. Este fato é relatado em 1923 pelo estudioso de Montaigne
Joseph Coppin, que identifica nas Memórias da princesa uma passagem em que
muito provavelmente se refere com grande entusiasmo ao Livro das criaturas de
Sebond, cuja leitura lhe teria sido um caminho de devoção.13
Vários elementos históricos dão plausibilidade à tese Duval-Coppin. Montaigne
diz no início da Apologia que seu objetivo foi o de socorrer as damas que viram
"seu livro" [das criaturas], traduzido por Montaigne,14 atingido "por duas
objeções principais" que examinarei adiante. Marguerite é a principal dama de
Navarra e uma das principais da França. A descrição do poder da destinatária
corresponde perfeitamente à sua situação: "Vós que, pela autoridade que vossa
grandeza vos traz e ainda mais pelas vantagens que as qualidades mais vossas
vos dão, podeis com um piscar de olhos comandar quem vos aprouver" (558/338-
339). Marguerite era conhecida como dotada de qualidades físicas e espirituais
excepcionais. Sua chegada a Gascogne e estabelecimento em Nérac com suas damas
teve grande repercussão na época, e não somente na França. Shakespeare, por
exemplo, escreveu uma comédia ambientada na corte de Nérac (Love's Labours
Lost) que retrata o choque entre os nobres protestantes, liderados por Henri,
moralmente rigorosos, mas um tanto broncos e ingênuos nas coisas do amor por um
lado e as damas católicas recém-chegadas de Paris, lideradas por Marguerite,
grandes especialistas na arte de sedução cortesã.15 A descrição por Montaigne
da destinatária da Apologia resume bem a comédia de Shakespeare, na qual a
princesa controla Ferdinand de Navarra (que representa Henri) e seus
gentilshommes com um piscar de olhos.
Marguerite chega inicialmente a Bordeaux em outubro de 1578, onde é recebida
com grande pompa pelos nobres da cidade. Em fevereiro de 1579 participa
ativamente de uma conferência política reunindo católicos e protestantes em
Nérac, onde ela estabelece sua corte junto ao marido até janeiro de 1582.16 Sua
corte atraiu os grandes eruditos e poetas da região. Um destes poetas, Guy du
Faur de Pibrac (1529-1584), conselheiro do rei como Montaigne e amigo pessoal
do autor da Apologia, foi tesoureiro de Marguerite por quem se apaixonou.17
Embora não haja, até onde sei, documentos históricos que atestem a presença
física de Montaigne em Nérac entre a chegada de Marguerite no final de 1578 e a
publicação da primeira edição dos Ensaios(incluindo a Apologia) em 1580,18 os
historiadores são unânimes em apontar a verossimilhança da frequentação de
Montaigne da corte de Marguerite.19 Montaigne era então Chevalier de Chambre,
tanto do rei católico da França Henri III, irmão de Marguerite, como do rei
protestante de Navarra. Marguerite, como diz Montaigne, era estudada e tinha
espírito (558/337). Este juízo era compartilhado por alguns dos "principais"
huguenotes.20 Além de Sebond, Marguerite conhecia o pensamento de outros
filósofos, especialmente da tradição neoplatônica, e era católica convicta. É
difícil imaginar que não tenha sido intelectualmente desafiada por apologistas
huguenotes a sustentar o catolicismo romano.21 Uma sua eventual conversão à
religião do marido seria um trunfo enorme para o partido protestante.22 Entre a
chegada de Marguerite na Gascogne e a publicação da Apologia decorreu quase um
ano, tempo suficiente para que Montaigne "socorresse" [secourir] (440/163)
Marguerite e suas damas católicas nas controvérsias a que se expuseram ao
instalarem-se na corte protestante de Henri de Navarre.23 Dois dos maiores
protestantes que se engajaram em controvérsias teológicas públicas oficiais com
teólogos católicos, Du Plessis-Mornay e Agrippa d'Aubigné, eram conselheiros de
Henri de Navarra na época. Aubigné, poeta mais frequente no caderno de poesias
que Marguerite guardava em Nérac, afirma que a rainha não gostava dele por,
entre outros motivos relacionados à intrigas de corte, "não ser complacente com
suas vontades".24
A Apologia se ajusta a tal designío? Como observa Villey, os dois primeiros
livros dos Ensaios não têm ' sobretudo na primeira edição de 1580 ' tanto o
desígnio da pintura de si como o terceiro livro. O objetivo original dos dois
primeiros livros é o "benefício particular de meus parentes e amigos; para que,
ao me perderem (do que correm o risco dentre em breve), possam reencontrar nele
alguns vestígios de minhas tendências e humores" (I, Ao leitor, 3/3). Este
objetivo se desdobra em dois outros compatíveis. O simples registro em escrito
da pessoa Montaigne, como souvenir na sua ausência e, mais raramente, o
registro de conselhos específicos a amigas. O ensaio II.37/"Da semelhança dos
filhos com os pais" tem o primeiro objetivo. Ele é dedicado à Madame de Duras
por esta o ter visitado quando escrevia o ensaio. 25 Madame de Duras era a
"confidente e favorita" da rainha de Navarra, a quem acompanhou na maioria das
viagens pela França, incluindo esta a Gascogne quando encontrou Montaigne.26 No
caso de Marguerite, evidentemente as conversações seriam no château da rainha,
mas não menos amigáveis e ainda mais necessitadas de um registro escrito, pelo
caráter de conselho que tem. Com efeito, dois outros ensaios de Montaigne
dedicados a damas de suas relações constituem conselhos bem específicos, como o
dado a Marguerite na Apologia. O ensaio II.8/"Da afeição dos pais pelos filhos"
é dedicado à Madame d'Estissac então viúva e aparentemente avara com o seu
filho. Montaigne lhe aconselha a deixar o filho gerir os bens da família. O
ensaio I.26/"Da educação das crianças" é dedicado à Madame de Foix. Ela está
grávida e Montaigne lhe dá conselhos sobre a educação do futuro filho.27 Mas,
poder-se-ia questionar, se Marguerite é a destinatária da Apologia porque o seu
nome é omitido, diferentemente dos nomes das outras damas a quem Montaigne se
dirige nos Ensaios? É preciso distinguir destinatária da pessoa a quem se
dedica uma obra. O ensaio II.8 não é destinado à Madame de Duras, mas somente a
ela dedicado. O mesmo ocorre com a introdução aos versos de La Boétie,
dedicados ' mas evidentemente não dirigidos ' a Madame de Grammont. Várias
publicações de poetas, filósofos e eruditos foram dedicadas a Marguerite, seja
pelo simples fato dela ser uma grande autoridade e patrona das artes, seja
pelos seus interesses mais específicos, como o neoplatonismo no campo da
filosofia.28 Outras obras foram dirigidas a ela ' sendo algumas explicitamente
dedicadas, outras não ' como por exemplo as obras escritas por pretendentes e
amantes. 29 A hipótese Duval-Coppin não é que a Apologia é dedicada à
Marguerite, em cujo caso a omissão do seu nome exigiria uma explicação, mas que
a Apologia é dirigida a Marguerite, como um conselho privado cuja divulgação
pública da identidade da destinatária poderia ser até indevida.30
A hipótese de que Marguerite de Valois é a destinatária original da Apologia
não é, portanto, incompatível com a natureza dos Ensaios. É compatível, também,
com a singularidade da Apologia entre os Ensaios. Em primeiro lugar, a
desproporção do seu tamanho. Na primeira passagem em que se dirige a
Marguerite, Montaigne diz que ela foi a pessoa por quem ele se deu "ao trabalho
de, contra o [s]eu costume, estender um corpo tão longo" (557/337). Outra
especificidade da Apologia no corpo dos Ensaios é o fato de tratar de questões
teológicas (440/164). Tais questões são tratadas justamente porque são
essenciais nos debates para os quais Marguerite é assistida. Montaigne deixa
claro que não trataria de tais questões e não faria um ensaio tão grande se não
fosse pela solicitação de Marguerite e suas damas, o que indica tratar-se de
alguém com autoridade soberana sobre ele.
Se Coppin está certo sobre a extensão da afeição de Marguerite pelo Livro das
Criaturas de Sebond, este foi, muito provavelmente, um dos textos em que
Marguerite apoiava a sua fé católica, pois, como diz Montaigne na Apologia,
Sebond busca nele "vérifier" todas as doutrinas católicas, especialmente a
eucaristia, principal alvo dos calvinistas.31 É natural que Marguerite
recorresse a seu súdito católico, vizinho e tradutor do Livro das Criaturas
para defendê-lo dos ataques calvinistas. Como Marguerite apoia seu catolicismo
em Sebond, o socorro que Montaigne presta às damas que veem seu Sebond
questionado visa, em última instância, a defesa do catolicismo.
O contexto das posições filosóficas
As duas objeções a Sebond a que Montaigne respondeu na Apologia são as
seguintes. A primeira "é que os cristãos estão errados em querer apoiar com
razões humanas sua crença, que só se concebe por fé e por uma inspiração
particularizada da graça divina" (440/163-164). A segunda é que os "argumentos
[de Sebond] são fracos e inadequados para demonstrar [vérifier] o que ele
pretende, e dispõem-se a atacá-los facilmente" (448/175). Estas duas objeções
são mutuamente conflituosas. A primeira recusa o papel da razão na apologética
religiosa ao passo que a segunda tacitamente aceita tal papel, limitando-se a
mostrar a inadequação da argumentação de Sebond para conferir verossimilhança
às doutrinas católicas. Uma vez que estas duas objeções derivam de concepções
distintas da relação entre razão e fé, elas confirmam a distinção que Montaigne
faz entre os autores das duas objeções.32 As respostas que Montaigne dá a elas
são ' se não contraditórias ' certamente conflituosas. Na resposta à primeira
objeção, Montaigne defende o papel ' embora limitado ' da razão na apologética
religiosa ao passo que a estratégia central da resposta à segunda objeção é
radicalizar a insuficiência da razão, não somente em matéria apologética, mas
em todas as matérias. Esta tensão se desfaz se pensarmos cada resposta como ad
hominem, isto é, como válida somente para cada objetor.
Quem seriam estes objetores? No contexto das guerras de religião da época é
plausível associar cada objetor a um dos partidos contrários que não eram os de
Montaigne. Estes partidos contrários eram o protestante, liderado por Henri de
Navarra, e a Santa Liga, fundada pelo duque de Guise para exterminar a religião
calvinista do solo francês.33 Montaigne era do partido católico, mas moderado,
próximo dos "politiques", que buscava uma solução conciliada para o conflito
religioso.34
Os autores da primeira objeção conformam-se ao figurino dos membros da Liga.
São católicos "piedosos" e "zelosos" (440/164) que não querem disputar com os
protestantes no terreno da razão.35 Pouco importa se a versão calvinista do
cristianismo é mais verossímil do que a católica. A fé não somente tem outro
fundamento (posição agostiniana com a qual Montaigne concorda), mas até
dispensa a razão (posição não agostiniana da qual Montaigne discorda). Assim, é
indiferente para estes objetores a questão de se os argumentos pró-católicos de
Sebond são ou não válidos. Mais importante do que buscar persuadir os
huguenotes com argumentos é impor a ortodoxia católica pela espada.
Montaigne responde, em primeiro lugar, defendendo como "uma iniciativa muito
bela e muito louvável adaptar ao serviço de nossa fé os instrumentos naturais e
humanos que Deus nos deu" (441/164). Montaigne aconselha Marguerite a seguir
preferencialmente esta via apologética tradicional quando lhe apresenta a via
extrema pirrônica, a ser empregada somente "como um recurso extremo": "Vós
[...] não deixareis de defender vosso Sebond pela forma habitual de argumentar
em que sois instruída diariamente, e exercitareis nisso vosso espírito e vosso
estudo" (557-558/337).36 Dada a plasticidade da razão que, como veremos na
resposta à segunda objeção, é capaz de produzir verossimilhança sobre não
importa o que, Montaigne parece dizer aos zelosos da Liga: "Não devemos
abandonar a razão para os huguenotes na disputa religiosa porque não é verdade
que os argumentos verossímeis são só os calvinistas. Nós também, católicos,
podemos produzir ' e Sebond efetivamente produziu ' argumentos a favor de
nossas doutrinas tão verossímeis quanto os calvinistas".37 Em segundo lugar,
partindo para a ofensiva, Montaigne denuncia a arrogância e a superstição
associadas a esta objeção "zelosa". A arrogância está na pretensão da própria
fé do objetor estar fundamentada na graça divina, dispensando os frágeis
instrumentos racionais naturais humanos.38 Na verdade o "zelo piedoso" se
efetiva em ação política intolerante, violenta e sediciosa que, ao contrário de
revelar a força da fé, mostra a instrumentalização da religião para fins
meramente políticos. Montaigne fustiga então os membros da Liga. Estes que
alegam uma base sobrenatural para a sua fé desmentem tal base pelas suas ações,
em tudo semelhantes à dos heréticos huguenotes a que se opõem de forma tão
radical. Os membros da Liga "empregam [a religião] de maneira tão semelhante
[aos protestantes] em seus violentos e ambiciosos projetos, caminham numa
marcha tão igual [aos protestantes] em desregramento e injustiça que tornam
duvidosa e difícil de crer sua pretensa diversidade de opiniões" (443/167).39
Mesmo estas opiniões, ao contrário de fundarem-se na graça, respondem a
interesses meramente humanos. Montaigne cita justamente a troca de opiniões
entre protestantes e católicos da Liga após a morte de Henri III. Os huguenotes
defendiam o direito de rebelião em nome da religião até que o direito da
sucessão recaiu sobre Henri de Navarra. A partir daí passaram a defender o
legalismo sucessório com o mesmo ardor exibido até então pelos católicos da
Liga que, por sua vez, passaram a defender o direito da rebelião em nome da
religião.40
A identificação dos primeiros objetores como membros da Santa Liga fica aqui a
título de sugestão. Os elementos textuais que apontam nesta direção são menores
do que os que permitem identificar os autores da segunda objeção ao outro
partido extremado na época, os huguenotes.41 Uma leitura atenta da Apologia não
deixa dúvida que a segunda objeção à Sebond visa a religião católica de
Marguerite e sua entourage. Parece-me também evidente que a posição do objetor
não é o que entendemos hoje por ateísmo. Em primeiro lugar simplesmente porque
provavelmente não havia na Europa da época ateus no sentido de descrentes do
Deus judaico-cristão.42 E ainda que existissem ateus na época de Montaigne,43 é
impossível que o autor da Apologia se esteja referindo aqui a "ateísmo" como o
concebemos hoje, pois tal posição certamente não existia na dimensão social
diagnosticada.44 A designação por Montaigne deste segundo objetor como "ateu"
ou de sua objeção como "ateia"45 precisa ser entendida no sentido que o termo
tinha na época, a saber, como herético em relação à crença religiosa
objetada.46 Montaigne lembra que quando o pai recebeu um exemplar do Livro das
Criaturas do erudito Pierre Bunel, este recomendou a utilidade do mesmo na
ocasião, "foi quando as novidades de Lutero começavam a entrar em voga e a
abalar em muitos lugares nossa antiga crença. Nisso ele tinha uma opinião muito
acertada, prevendo pelo raciocínio que aquele início de doença facilmente
degeneraria num execrável ateísmo" (439/161-162). Este "ateísmo" de que fala
Montaigne é, como ele explica na sequência, a consequência lógica da
subordinação da crença religiosa ao julgamento pessoal.47 Descreve o
racionalismo religioso do reformador que só toma como verdadeiros aqueles
dogmas cristãos cuja verossimilhança é atestada pela própria razão.48 Outra
evidência que os adversários visados são racionalistas cristãos é o fato de
Montaigne compará-los aos maniqueístas cristãos combatidos por Agostinho. "[C]
Pois Santo Agostinho, arrazoando contra estas pessoas, tem a oportunidade de
criticar sua injustiça por considerarem falsas as partes de nossa crença que
nossa razão fracassa em estabelecer" (449/176).49 Os racionalistas cristãos
heréticos da época de Montaigne são os protestantes que consideram falsas as
partes da crença católica desprovidas de verossimilhança. Isto é precisamente
indicado por Marie de Gournay em seu prefácio aos Ensaios, defendendo o
catolicismo de Montaigne: "Quem poderia suportar estes novos Titãs do século,
estes alpinistas do Céu, que pensam poder conhecer Deus por seus meios e
circunscrever Deus, suas obras e as próprias crenças nos limites da própria
investigação e razão, não querendo acolher nada como verdadeiro que se não lhes
apareça como verossímil [vray-semblable]?"50
Os autores da segunda objeção são chamados de "novos doutores" por Montaigne
logo em seguida à referência à Marguerite acima citada (559/340). Estes
objetores são, portanto, teólogos da religião reformada. Isto indica que
Marguerite se vale de Sebond para defender seu credo católico e que os
apologistas huguenotes que frequentam a corte do marido como Du Plessis-Mornay
e d'Aubigné atacam Sebond no sentido de mostrar a invalidade dos seus
argumentos a favor dos dogmas católicos. A arma pirrônica que Montaigne oferece
à rainha deverá ser usada caso "alguns desses novos doutores decidir fazer-se
de engenhoso em vossa presença [isto é, buscar convencê-la da maior
verossimilhança das doutrinas calvinistas], à custa de sua salvação e da vossa
[isto é, à custa da salvação do calvinista herético e da rainha, caso esta seja
persuadida pela verossimilhança das heresias]" (559/340). O conselho principal
de Montaigne é muito claro: Marguerite deve permanecer católica. "Mantende-vos
na rota comum [...]. Aconselho-vos, em vossas ideias e em vossas argumentações
tanto quanto em vossos costumes e em qualquer outra coisa, a moderação e a
temperança, e a fuga da novidade e da estranheza" (558/338).
Várias passagens da Apologia identificam a Reforma como "novidade".51 Outras
passagens que também revelam a identidade dos autores da segunda objeção
poderiam ser citadas. Por exemplo, a crítica à religião puramente espiritual de
Numa visa os reformadores (513/271). Idem a extensa crítica às tentativas de
limitação da potência divina à capacidade racional humana.52 Uma das passagens
nas quais Montaigne se refere, na minha opinião, exclusivamente à Reforma é
citada por Popkin53 como chave da associação entre o ceticismo e o fideísmo na
Apologia. Segundo Montaigne, o pirronismo
apresenta o homem nu e vazio, reconhecendo sua fraqueza natural,
apropriado para receber do alto uma força externa, desguarnecido de
ciência humana e portanto mais apto para alojar em si a divina,
anulando seu próprio julgamento a fim de dar mais espaço para a fé,
[C] nem descrendo [A] nem estabelecendo algum dogma contra as
observâncias comuns; humilde, obediente, disciplinado, zeloso;
inimigo jurado da heresia e consequentemente isentando-se das ideias
irreligiosas e vãs introduzidas pelas falsas seitas. (506/260).
O texto deixa claro que esta utilidade do pirronismo, pelo menos na primeira
edição dos Ensaios,54 não é a de conduzir um ateu ou pagão ao cristianismo. A
verdade ou falsidade ' ou o benefício ou malefício ' do cristianismo não está
em questão na Apologia.55 A utilidade reivindicada é a manutenção do católico
na religião católica, isto é, evitar sua conversão à religião reformada. O que
o pirronismo favorece no contexto é a não utilização de nossa razão como
critério de crença religiosa ' como fazem os protestantes.56 Proponho assim uma
correção parcial de Popkin que contextualiza a posição de Montaigne na Contra-
Reforma, mas também lhe atribui, a meu ver de forma anacrônica, uma visão
fideísta do cristianismo. Popkin erra ao concordar com Villey que a Apologia
teria sido escrita ' em suas partes substanciais ' "em 1575-1576, quando
Montaigne, através do estudo dos escritos de Sexto Empírico, estava passando
pelo trauma extremo de ver todo seu mundo intelectual se dissolver na dúvida
completa". Não acho que a Apologia seja "o resultado d[a] crise pyrrhonienne
pessoal [de Montaigne]"57 ' pelo menos não o seu resultado imediato ' nem que
"juntamente com este desdobramento [...] vigoroso da crise pyrrhonienne,
Montaigne constantemente introduz seu tema fideísta: a dúvida completa a nível
racional, combinada com uma religião baseada na fé exclusivamente, que nos é
dada não por nossas capacidades mas somente pela Graça de Deus"58. Como já
propus, a Apologia foi escrita majoritariamente em 1579 para subsidiar
Marguerite e suas damas, não em uma defesa fideísta do cristianismo, mas como
último recurso ' uma vez falhada a estratégia apologética católica racionalista
tradicional que Marguerite deve priorizar ' como um antídoto pirrônico contra a
apologética calvinista.59 Mantenho, portanto, a leitura de Popkin da Apologia
como uma arma da Contra-Reforma, mas observando que o oponente protestante não
é um dogmático mas um cético acadêmico probabilista filoniano que defende a
maior verossimilhança do calvinismo, isto significando para ele uma maior
proximidade da verdade comparativamente ao catolicismo.
A arma pirrônica de ataque à razão que constrói verossimilhança deve ser usada
somente "na extrema necessidade". Marguerite deve utilizar Sebond e quem mais
puder na forma apologética tradicional, isto é, buscando combater os huguenotes
no terreno da razão, mostrando a maior verossimilhança da posição católica vis-
à-vis a protestante. Como já indiquei, Montaigne afirma ser isto possível em
sua resposta à primeira objeção. Mas no caso de a rainha não conseguir
contrapor aos argumentos calvinistas argumentos católicos pelo menos tão
verossímeis quanto os dos "novos doutores" ' e há evidências que indicarei
abaixo de que Montaigne considera o calvinismo mais verossímil (mais racional,
para a nossa razão finita e falível) do que o catolicismo ' deverá usar a arma
pirrônica disponibilizada por Montaigne para justificar a sua não conversão.
Esta arma é a desqualificação da razão como instrumento de aproximação à
verdade. O fato de uma doutrina aparecer verossímil não significa que esteja
mais próxima da verdade ou que seja mais provavelmente verdadeira, pois a
validade desta verossimilhança concerne exclusivamente à subjetividade humana,
nada informando sobre a verdade das coisas.
Emmanuel Naya, num amplo estudo ainda não publicado sobre a influência dos
ceticismos antigos no Renascimento,60 mostra que o probabilismo acadêmico foi
utilizado por apologistas católicos como via para as verdades reveladas. Naya61
cita como um exemplo de tal utilização do probabilismo acadêmico o prefácio de
Hervet à sua tradução de Sexto dedicada ao grande teórico da Liga, o cardeal de
Lorrain (tio e tutor do chefe da Liga, Henri de Guise). Diz Hervet que o
exercício cético é "bastante eficaz para estimular e aguçar a inteligência dos
jovens que, somente então, estarão em condições de distinguir a verdade, pois
separarão o que é provável e verossímil do que não o é, e enfim extrairão de
muitos prováveis e verossímeis a verdade que ocultavam"62. O exame do contexto
da Apologia aqui apresentado sugere que este uso apologético da verossimilhança
acadêmica foi feito também pelos calvinistas autores da segunda objeção.
Verifica-se assim que tanto católicos como protestantes consideraram sua
religião mais verossímil do que a do outro, fazendo a mesma apropriação
apologética deste probabilismo epistêmico filoniano. Minha leitura concorda com
a de Naya no sentido em que este diverge da leitura fideísta de Montaigne
proposta por Popkin. Entretanto, não me parece evidente que Montaigne recuse o
probabilismo acadêmico a favor do ceticismo pirrônico pela razão de somente o
primeiro ser cristianizável 63. O alvo da Apologia não é a verossimilhança tal
como defendida por um Hervet como ponto de partida para a aceitação da
revelaçãocristã, mas o uso desta estratégia pelos protestantes para
justificarem a reforma de determinadas crenças cristãs, a saber, os dogmas
desprovidos de verossimilhança. A posição de Hervet é a mesma de Agostinho que
toma a verossimilhança epistemicamente, isto é, como pressupondo ' no caso
também apontando para ' a verdade.64 Montaigne rejeita esta interpretação
epistêmica da verossimilhança, mas como a argumentação pirrônica na Apologia
tem um alvo bem específico, não podemos dizer se Montaigne rejeita ou não
qualquer uso apologético cristão do ceticismo.
Montaigne se dirige a Marguerite poucas páginas antes da crítica à
verossimilhança acadêmica. Esta crítica é o núcleo duro do conselho que dá à
princesa e compreende o segmento da Apologia em que Montaigne ataca a razão
diretamente (339-558-576/365). Montaigne diz que a posição pirrônica é mais
coerente do que a acadêmica, retomando contra os acadêmicos a objeção de
Agostinho de que o verossímil pressupõe a verdade (tese que para Agostinho era
admitida secretamente pelos acadêmicos).65 A crítica de Montaigne afasta a
interpretação filoniana, restituindo a verossimilhança ao seu significado
original carnediano, segundo o qual há um abismo intransponível entre
verossimilhança (que diz respeito ao aspecto da impressão voltada para o
sujeito) e conhecimento das coisas (que diz respeito ao aspecto da impressão
voltado para o seu objeto).66 A rejeição de qualquer valor epistêmico da
verossimilhança é coerente com a própria crítica acadêmica ao poder de nossas
faculdades de alcançar a verdade. 67 A precariedade de nossas faculdades (de
nossa natureza) determina a precariedade da verossimilhança enquanto
instrumento epistêmico. Além disto, o diagnóstico cético desta precariedade
recomenda ' por razões práticas ' a suspensão do juízo, que está de acordo com
o ideal de sabedoria acadêmico (na interpretação não dialética da nova
academia): se não podemos alcançar a verdade, podemos ao menos evitar o erro
não dando o assentimento mesmo ao que parecer plausível (verossímil) para as
nossas faculdades.
embora estabelecessem [...] que a verdade está engolfada em profundos
abismos [os acadêmicos] admitiam que algumas coisas eram mais
verossímeis [vray-semblables] do que outras e admitiam em seu
julgamento essa faculdade de se poder inclinar mais para uma
aparência do que para outra. [...] Mas como eles se deixam dobrar
pela verossimilhança, se não conhecem a verdade? [...] Se nossas
faculdades intelectuais e sensíveis não têm fundamento nem base, se
não fazem mais que flutuar e girar ao vento, por nada deixemos levar
nosso julgamento a alguma parte de sua operação, qualquer que seja a
aparência que esta pareça nos apresentar. (562/344 ' ênfases
adicionadas).
O contexto desta posição é a verossimilhança das doutrinas calvinistas e a
inverossimilhança das católicas, tal como argumentadas pelos apologistas
huguenotes que frequentavam a corte de Nérac. "Esta facilidade que têm os bons
espíritos de tornar plausível [vraysemblable] o que quiserem ' e não há nada
estranho que eles não se aventurem a dar-lhe cor suficiente para enganar uma
simplicidade como a minha ' mostra claramente a fragilidade de sua prova" (570/
356).68 Além do problema da coerência, o probabilismo aparece aqui como
inadequado até como critério prático da ação. Como a razão pode construir e
desconstruir verossimilhança, esta não constitui um guia estável para a ação.
Este é o uso propriamente pirrônico da razão.69 Qualquer crença, por mais
verossímil que seja, poderá ser suspensa, seja graças a habilidade do pirrônico
de estabelecer a igual verossimilhança de uma crença contrária, seja, como
último recurso quando o pirrônico não consegue estabelecer a equipolência, pelo
argumento falibilista que desqualifica epistemologicamente a verossimilhança.
"Assim, quando alguma doutrina nova se apresenta a nós, temos muita razão em
desconfiar dela e considerar que antes que fosse produzida sua contrária estava
em voga; e assim como aquela foi derrubada por esta, no futuro poderá nascer
uma terceira invenção que da mesma forma se chocará com a segunda" (570/356-
357).70 Esta é bem a situação de Marguerite em Nérac, a quem foi apresentada de
forma verossímil uma nova doutrina ' a calvinista ' contra a qual ela não
consegue contrapor uma católica igualmente verossímil. Apesar disto, Marguerite
não agirá contra a razão mantendo a doutrina que lhe aparece na ocasião menos
verossímil. Basta considerar que antes de Calvino as doutrinas católicas eram
verossímeis e que poderá surgir novo reformador religioso que mostrará a
inverossimilhança das doutrinas calvinistas. Além disto, dada a plasticidade da
razão, basta habilidade para as mesmas doutrinas serem sucessivamente mostradas
verossímeis e inverossímeis.71 Vemos assim que mesmo restituída à sua dimensão
exclusivamente prática, a probabilidade acadêmica não deve ser observada em
questões fundamentais e controvertidas como a sobre a qual Montaigne aconselha
Marguerite. Se a princesa ou Montaigne ou qualquer outro seguisse o verossímil,
não pararia de rolar em meio a diferentes seitas, eventualmente retornando e
tornando a sair das mesmas seitas em função da contingência de se deparar com
apologistas habilidosos das mesmas.
Montaigne cita o seu caso pessoal no aconselhamento à Marguerite.
[A] Ora, do conhecimento dessa minha volubilidade acidentalmente
gerei em mim uma certa constância de ideias, e dificilmente tenho
alterado as minhas primeiras e naturais, pois qualquer que seja a
aparência [quelque apparence] da novidade, não mudo facilmente, pelo
medo que tenho de perder na troca. E, posto que não sou capaz de
escolher, tomo a escolha de outrem e mantenho-me na posição em que
Deus me pôs. De outra forma eu não conseguiria impedir-me de ficar
rolando sem parar. Assim, pela graça de Deus, conservei-me intacto
[...] nas antigas crenças de nossa religião, em meio de tantas seitas
e divisões que nosso século produziu. (569/355 ' ênfases
adicionadas).
Montaigne provavelmente se refere a um dilema pessoal que viveu em algum
momento de sua vida. Se se tivesse guiado pela verossimilhança na querela
religiosa ter-se-ia, como a sua mãe e irmãos, convertido ao calvinismo. 72 No
ensaio I, 27/"É loucura condicionar ao nosso discernimento o verdadeiro e o
falso", podemos entender melhor porque Montaigne pode permanecer católico sem
problema de consciência mesmo verificando a maior verossimilhança de pelo menos
algumas doutrinas calvinistas. Diz que "é uma tola presunção ir desdenhando e
condenando como falso o que não nos parece verossímil; esse é um vício habitual
nos que pensam ter algum discernimento além do comum [como os novos doutores da
corte de Nérac]. Outrora eu agia assim". O caso relevante é citado no final do
ensaio: o problema da Reforma.
Ora, o que me parece trazer tanta desordem a nossas consciências,
nesses distúrbios religiosos em que estamos, é essa dispensa que os
católicos fazem de sua fé. Parece-lhes que agem como moderados e
sensatos quando cedem aos adversários alguns artigos dos que estão em
debate. Mas, além de não verem quanta vantagem dá a quem vos ataca
começardes a ceder-lhes e recuardes, e como isso o anima a prosseguir
sua investida, esses artigos que eles escolhem como os de menor peso
são às vezes muito importantes. Ou é preciso submeter-se totalmente à
autoridade de nossa política eclesiástica, ou dispensá-la totalmente.
Não cabe a nós estabelecer a parcela de obediência que lhe devemos. E
mais ainda: posso dizê-lo porque o experimentei, tendo outrora usado
essa minha liberdade pessoal de escolha e seleção para negligenciar
certos pontos da observância de nossa Igreja que parecem ter um
aspecto mais vão ou mais estranho e vindo a falar disso com os homens
sábios, descobri que tais coisas têm um fundamento maciço e muito
sólido e que apenas a tolice e a ignorância nos fazem recebê-las com
menos respeito que ao restante. Por que não lembrarmos quanta
contradição sentimos em nosso próprio discernimento? Quantas coisas
ontem nos serviam de artigos de fé e hoje nos são fábulas? (I, 27,
181-182/271-272).
Este souvenir pessoal remete ao trecho da Apologia sobre a mutabilidade da
razão.
Quando me pressionam com um novo argumento, cabe a mim estimar que
aquilo a que não puder satisfazer, um outro satisfará; pois acreditar
em todas as aparências das quais não nos podemos livrar é uma grande
ingenuidade. Dessa forma aconteceria que todos os homens comuns [...]
veriam sua convicção girando facilmente, como um cata-vento, pois sua
alma, sendo maleável e sem resistência, seria forçada a acolher
incessantemente outras impressões, a última apagando sempre o rastro
da anterior. (570-571/357).
Passagens como esta desta parte da Apologia embasam as leituras do ceticismo de
Montaigne feitas por Giocanti e Brahami, segundo as quais Montaigne romperia
com a epoche em função da incapacidade antropológica humana de resistir ao
verossímil. Pois é justamente a posição contrária que Montaigne defende aqui:
trata-se de resistir ao verossímil ' ao menos em questões cruciais em que a
vida ou salvação estão em jogo, como é o caso, respectivamente, da medicina e
da religião.73 Em questões menos importantes que não são objeto de
controvérsia, podemos seguir nossa inclinação natural e aderir ao verossímil,
cuja força é reconhecida por Montaigne.74 Somente espíritos fortes são capazes
de resistir-lhe75 ' como dirá Charron pouco depois ' 76
e é por isso que Montaigne recomenda um uso muito circunstanciado e secreto da
estratégia pirrônica. Note que por "razão" aqui Montaigne entende "esta
aparência de raciocínio [discours] que cada qual forja em si ' essa razão por
cuja condição pode haver cem raciocínios contrários em torno de um mesmo
assunto, é um instrumento de chumbo e de cera, alongável, dobrável e adaptável
a todas as perspectivas e a todas as medidas; é preciso apenas a habilidade de
saber dar-lhe contorno" (565/349). Esta é a razão que constrói
verossimilhanças. A ela Montaigne opõe a pirrônica, que se vale desta mesma
maleabilidade, não para construir mas para destruir a verossimilhança que
impede a suspensão do juízo. Marguerite deve fazer como Montaigne, não se
deixar levar pela verossimilhança das doutrinas calvinistas nem se afastar do
catolicismo pela inverossimilhança de algumas de suas doutrinas. Antes de Nérac
doutrinas católicas pareciam verossímeis a Marguerite, católica convicta. Em
Nérac, exposta aos apologistas huguenotes, algumas destas mesmas doutrinas
agora lhe aparecem inverossímeis. Mas se Marguerite se converter por causa
disto ' ato que teria enorme repercussão na politica francesa da época ' poderá
eventualmente, após retornar ao Louvre e se expor novamente a habilidosos
apologistas católicos, voltar a considerar as doutrinas rejeitadas como mais
verossímeis. Deve portanto desconsiderar a verossimilhança. Mudanças tão
radicais e monumentais como as deslanchadas pela Reforma ' seja dos grandes do
reino, seja de multidões dos povos (que vão atrás dos grandes) ' são
incompatíveis com a natureza do estado, como diz Montaigne, este grande corpo
que se sustenta somente pelo seu próprio peso.77