A difícil arte de "deslizar sobre o mundo" ou Montaigne, um político discreto
("De poupar a própria vontade" - III, 10)
A duplicidade do título do presente estudo1 não é casual. Ela procura refletir
os dois planos do ensaio de que nos propomos tratar ' um texto simultaneamente
ético e político, no qual Montaigne realiza uma crítica das paixões, propõe um
modo de regulação das condutas individuais e, ao mesmo tempo, debruça-se sobre
o campo da política, empreendendo uma crítica da ambição. Em seu primeiro
plano, o propósito do capítulo "De poupar a própria vontade" é ético e seu teor
é prescritivo: trata-se de uma crítica das paixões, da recusa da afeição
excessiva às coisas, da adesão demasiadamente estreita do sujeito a tudo o que
lhe é alheio e da servidão a que tal adesão conduz. Neste ensaio, Montaigne
propõe uma verdadeira ménagerie[2], mas a casa a ser administrada é o eu. Ele
prescreve ao leitor a regulação de seus próprios afetos, de maneira que
encontre a justa medida em sua aplicação às coisas e resguarde sua liberdade em
relação às mesmas. O quadro (helenístico) é conhecido: trata-se de guardar
certa distância em relação às coisas exteriores, a tudo que não está sob o
nosso poder, mas sob o poder da Fortuna, podendo ser-nos surrupiado a qualquer
momento e sem maiores razões, lançando no desespero e no tormento aqueles que
não souberam guardar tal distância ' que não souberam evitar as paixões.
Montaigne pretende nos ensinar a difícil arte de "deslizar sobre o mundo"
(glisser le monde), de evitar "mergulhar muito a fundo nas coisas" (s'y
enfoncer) (III, 10, 1005); pretende nos ensinar, enfim, a assegurarmos a
tranquillitas.
Este, no entanto, é apenas o horizonte mais geral do ensaio, pois a crítica das
paixões em "De poupar a própria vontade" realiza-se, sobretudo, num contexto em
particular ' o da política. Neste texto, Montaigne alerta o leitor para o risco
da perda da própria liberdade numa circunstância precisa: a da dedicação à vida
pública e às ocupações e cargos políticos. O ensaísta opõe a intranquilidade
dos homens que se entregam à vida pública (que se deixam sufocar e arrastar por
suas ocupações e cargos) à tranquilidade com que ele próprio desempenhou a
função de prefeito3 de Bordeaux, como ele o diz: "Consegui misturar-me com os
cargos públicos sem afastar-me de mim sequer a distância de uma unha, e dar-me
a outrem sem me tirar de mim mesmo" (III, 10, 1007).
Mas, a crítica das paixões tem principalmente um alcance político em "De poupar
a própria vontade", pois os afetos comprometem a eficácia e a justiça da ação
política, levam os indivíduos a subordinarem o bem comum aos seus interesses
privados; cindem a sociedade em seitas e partidos, lançam os cidadãos e as
nações nas mais graves disputas. Em "De poupar a própria vontade", Montaigne se
debruça sobre a paixão política por excelência: a ambição, o desejo de honras,
renome, glória. Acima de tudo, o ensaio faz a crítica desta paixão, pois os
homens que se entregam apaixonadamente à vida pública quase sempre o fazem
porque visam a projeção pessoal e, com isso, comprometem não apenas a própria
liberdade, mas igualmente a liberdade da cidade.
Montaigne foi um político discreto. Foi acusado por detratores de não ter feito
nada de marcante enquanto esteve à frente da prefeitura de Bordeaux ' seus
mandatos não teriam deixado vestígios. Em "De poupar a própria vontade", a
crítica da ambição permite-lhe responder aos ataques: sua administração
discreta foi o feito de um homem que não buscava se projetar, não procurava o
destaque diante dos olhos do público, não colocava o interesse privado (o
desejo de honras) à frente do bem comum. Também foi obra de um homem que
conhece as ilusões da ambição, a intranquilidade e a servidão dos que são
movidos por ela. De tal forma que seu mandato à frente da prefeitura de
Bordeaux ' espécie de conciliação paradigmática entre o cuidado de si e o
cumprimento dos deveres políticos ' é mais do que um simples dado biográfico,
mera curiosidade sobre sua vida: é peça-chave para a compreensão da ética e da
política que nos oferece com seus Ensaios.
Crítica da Servidão às Paixões e Prescrição de uma Terapia
Acompanhemos, então, a trama argumentativa do ensaio. Montaigne começa-o com um
curto proêmio, no qual formula a prescrição em torno da qual se constrói todo o
capítulo. Ele afirma que devemos evitar os afetos excessivos. Afirma-o,
sobretudo, visando uma circunstância específica: a ocupação dos cargos e
funções políticas. Tal prescrição visa nos auxiliar a evitar a servidão e a
intranquilidade.
O ensaísta parte do quadro legado pela tradição helenística4. Aquele que se
apaixona por algo (que experimenta uma afeição ou aversão excessivas) prende-se
ao objeto amado ou temido e perde a própria liberdade. Passa a viver em função
de tal objeto, ocupando-se dele mesmo quando não está presente, pois seus
pensamentos permanecem retidos nele. De tal forma que o apaixonado está sempre
fora de si, preso ao objeto da paixão. É uma consciência que não vive o aqui e
o agora,que está sempre alhures: no passado, no futuro, noutro lugar. Enfim, é
alguém que perdeu o domínio sobre si mesmo (a autarquia), pois seus atos e
pensamentos são comandados por aquilo que ama ou teme.
Contra o risco de tal servidão (e ainda de acordo com os ditames da ética
antiga), Montaigne propõe uma terapia das paixões. Os termos em que esta se
deve dar serão apresentados mais adiante, mas sua prescrição é feita logo no
proêmio, por meio de uma contraposição entre o modo de agir do ensaísta, que a
aplica, e o dos homens em geral (le commun des hommes) que se deixam dominar.
Montaigne começa dizendo que as coisas o afetam, mas pouco; que ele deseja e
teme, mas não a ponto de deixar-se prender.Diz que procura reforçar "pelo
estudo e pelo discurso" (III, 10, 1003) esta propensão que reconhece em si
mesmo, esforçando-se para restringir a poucas coisas os laços afetivos
estreitos ("esposo [...] poucas coisas" ' III, 10, idem). Conta-nos, enfim, que
dirige seus afetos para si mesmo[5] e opõe-se com todas as forças às paixões
que o prendem alhures. E conclui: "minha opinião é que devemos emprestar-nos a
outrem e darmo-nos apenas a nós mesmos" (III, 10, idem).
Este modo de agir vale para a relação com tudo que lhe é alheio6. Mas Montaigne
imediatamente se volta para um campo determinado: o da relação com outrem.Diz
que nas ocasiões em que o solicitaram a cuidar de negócios alheios (affaires
estrangieres) comprometeu-se a encarregar-se deles (m'en charger), mas não a
entregar-se apaixonadamente à tarefa (m'en passionner nullement 'III, 10,
1004). Em oposição, então, descreve o comportamento da maioria dos homens, que
são servis. Eles comprometem-se a fundo em toda e qualquer tarefa de que se
encarregam, sem discriminação de ocasião ou importância ("nas pequenas coisas
como nas grandes, no que não lhes toca como no que lhes toca" ' III, 10, idem);
são propensos a uma vida servil e intranquila ("tão servis para seus amigos
quanto importunos para si mesmos" 'III, 10, idem). Contrário a esta conduta, o
ensaísta recomenda a discriminação das ocasiões e assuntos que realmente exigem
um comprometimento maior ' um discernimento que deve comandar o trabalho sobre
os afetos.
Circunscrição ao Campo Político. A Justa Medida do Amor de Si.
Imediatamente, então, Montaigne passa para o campo da política, relatando as
circunstâncias em que assumiu a prefeitura de Bordeaux. Conta-nos que disse aos
que lhe impuseram o cargo que não comprometeria a própria liberdade com uma
aplicação excessiva à nova ocupação, como fizera seu pai quando, anos antes,
conduzira a cidade. A dedicação desmedida de Pierre Eyquem aos assuntos
públicos, no entanto, não configura um vício aos olhos do ensaísta, posto que
visava o interesse coletivo, não a projeção pessoal ("jamais houve alma mais
caridosa e popular" 'III, 10, 1006), não sendo pautada por uma intenção
pervertida. Apesar disso, não deixa de lhe parecer um comportamento a ser
evitado ' até porque se apoia numa opinião que ele considera falsa: aquela
segundo a qual a coletividade vale mais e tem precedência sobre o indivíduo,
que deve se sacrificar em seu nome. Recorrendo, então, à justa medida do amor
de si, Montaigne refuta o preceito que teria pautado o modo de agir de seu pai,
mostrando que o indivíduo, ao contrário do que Pierre Eyquem pensava, deve
alguma atenção a si mesmo: "Quem conhece seus deveres descobre em seu papel que
deve aplicar a seu favor o uso dos outros homens e do mundo, e, para fazê-lo,
contribuir para a sociedade pública com os deveres e ofícios que lhe tocam"
(III, 10, idem). Numa única e mesma frase, o ensaísta formula as duas
exigências que devem ser satisfeitas: a do indivíduo (aplicar os outros a seu
favor) e a da coletividade (aplicar-se em favor dos outros).
Tudo se passa, no entanto, como se tal equilíbrio fosse o meio do caminho entre
doispolos contraditórios: devome dedicar um pouco menos à cidade para me
preservar; devo me dedicar um pouco menos a mim mesmo, pois tenho deveres em
relação à coletividade. Seria como se as exigências pessoais e as da cidade se
opusessem e o indivíduo tivesse de temperar uma com a outra. Ora, não é este o
sentido da justa medida proposta por Montaigne, pois imediatamente ele afirma
que não prescreve uma dedicação menor às tarefas políticas ("não quero que
recusemos aos cargos que tomamos a atenção, os passos, as palavras, nem o suor
e o sangue se for preciso"' III, 10, 1007), apenas recusa a presença da paixão
em seu exercício ("não sem ação, mas sem vexação"' idem). Este é o elemento a
ser combatido. Por meio deste combate, o indivíduo atenderá às suas próprias
prerrogativas (assegurará sua liberdade e tranquilidade) e, ao mesmo tempo e
igualmente, atenderá às prerrogativas da cidade, que será beneficiada por uma
ação política mais eficaz e mais justa, porque não apaixonada. Inversamente
(poderíamos imaginar), o indivíduo que se entrega apaixonadamente às ocupações
políticas sacrifica a si mesmo bem como a cidade ' compromete sua própria
liberdade e a condução dos assuntos públicos. De tal forma que não há tensão,
mas convergência entre os interesses da cidade e os do indivíduo: o bem de um
implica o bem do outro, como o mal de um, o mal do outro. Neste ponto,
Montaigne permanece estreitamente alinhado com os antigos.
Afastar a Paixão em nome da Ação. Montaigne Agente.
Busquemos compreender melhor a segunda parte do problema ' isto é, de que
maneira a entrega apaixonada do indivíduo às funções públicas compromete os
interesses da cidade. Montaigne se ocupa desta questão em um novo movimento
argumentativo do ensaio, no qual distingue a ação da paixão e aponta o erro dos
que veem mais ação no envolvimento apaixonado com determinada atividade e menos
ação numa relação fria e desinteressada.Ocorre, diz o ensaísta, justamente o
contrário: a paixão reduz o espaço da ação, consome as forças do agente e
obscurece seu raciocínio, mergulha-o na ansiedade e na desordem de espírito,
apressa o andamento das coisas e impede a calma consideração das circunstâncias
("esta aspereza e violência de desejo mais impede do que serve à condução do
que empreendemos" ' III, 10, 1007). Ação e paixão, diz Montaigne, são
mutuamente excludentes ("uma vai bem sem a outra" ' idem), como comprova a
experiência. Afinal, vê-se frequentemente um desempenho melhor naqueles que
mantêm uma relação desinteressada com a atividade, enquanto se constata a
inércia de homens profundamente preocupados com os mesmos eventos ("têm a alma
mais absorvida [pela guerra] do que o soldado que nela emprega seu sangue e sua
vida" ' idem). A paixão, enfim, não leva à ação e ainda a atrapalha, pois a
preocupação excessiva com os resultados da ação (a expectativa de que o fim
seja alcançado) prejudica o bom andamento dos meios: "Aquele que se porta mais
moderadamente em relação à vitória e à derrota está sempre em si mesmo; quanto
menos aguilhoa-se e apaixona-se pelo jogo, com tanto mais vantagem e segurança
o conduz" (III, 10, 1009). Daí o erro dos que se entregam apaixonadamente à
vida pública. Eles comprometem a eficácia e a justiça de suas ações, que só
podem advir de uma fria ponderação. Daí a recomendação montaigniana para que se
coloque em prática uma terapia dos desejos e das aspirações que corrija nossa
relação com os fins.
Economia dos Desejos e Aspirações. Os Costumes como Medida.
Um novo movimento do ensaio, então, dedica-se a formular esta terapia. Toda uma
tradição já denunciara os mecanismos perversos da paixão, que põem o sujeito
num movimento perpétuo, numa busca sem fim, em que cada objeto alcançado
imediatamente perde o brilho diante de outro que chama atenção à distância '
movimento acompanhado de insatisfação e ansiedade permanentes. Montaigne segue
de perto esta tradição, assimila sua crítica das paixões e até mesmo parece
adotar a terapia que ela propõe ' mas altera significativamente seus termos.
Vejamos a passagem em que começa a apresentar sua própria versão da terapêutica
dos afetos:
De resto, impedimos a captura e a retenção pela alma ao lhe darmos
tantas coisas para agarrar. Algumas, devemos apenas apresentar-lhe;
outras, atar; outras, incorporar. Ela pode ver e sentir todas as
coisas, mas deve alimentar-se apenas de si, e deve ser instruída
quanto ao que lhe concerne propriamente, e que propriamente faz parte
de seus haveres e de sua substância. As leis da natureza nos ensinam
o que exatamente nos é necessário. (...) os sábios (...) distinguem
sutilmente os desejos que provêm dela daqueles que provêm do
desregramento de nossa imaginação (III, 10, 1009; grifo nosso).
Montaigne, como se vê, prescreve diferentes tipos de relação e níveis de
afetividade ("ver e sentir", "atar a si", "incorporar a si", "alimentar-se")
conforme os diferentes objetos, recomendando que evitemos afeiçoar-nos em
excesso ("incorporar a si", "alimentar-se") ou que no-lo permitamos somente em
relação a poucas coisas: àquelas que nos concernem, que fazem partedos nossos
haveres e substância. Segundo certa tradição ("os sábios"), trata-se dos
objetos das nossas necessidades naturais(comer, beber etc.), aqueles pelos
quais garantimos a conservação da nossa própria vida. Eles são "nossos haveres
e substância" porque por meio deles (isto é, à medida que os buscamos) agimos
com vistas à nossa preservação, à realização da nossa própria natureza; de tal
forma que, quando os buscamos, visamo-nos, buscamo-nos. Todo excesso de
afetividade por outros objetos que não os de nossas necessidades naturais (por
exemplo, a honra ou a riqueza) é fonte de servidão e intranquilidade, pois é
afeição por um outro sobre o qual não temos poder, e que pode ser-nos subtraído
a qualquer momento pela Fortuna. Inversamente, quando buscamos apenas a
satisfação das nossas necessidades naturais, desligamo-nos do outro e
recuperamos a autarquia e a tranquilidade.
Ocorre que Montaigne, quando se volta para si mesmo e se examina, não encontra
a naturezaoperando, mas somente os costumes que o determinam e constituem ("o
que falta para o meu costume considero que me falta" 'III, 10, 1010, grifos
nossos). Assim, quando se permite apaixonar-se somente pelos objetos que
concernem e pertencem ao eu (por aquilo, enfim, que não é outro), ele não
restringe as paixões aos objetos das necessidades naturais, mas aos dos
costumes do seu país, da sua cidade, da sua classe, da sua família ("taxemo-
nos, tratemo-nos de acordo com esta medida, estendamos até lá nossos pertences
e nossas contas" ' III, 10, 1009). A medida dos afetos, pois, não é a da
natureza, mas a do costume. De resto, Montaigne acrescenta que se trata de uma
medida mais ampla e generosa (mais de acordo com o homem comum, que não é
sábio) do que a prescrita pela tradição supracitada. Nem por isso, no entanto,
deve ser obedecida com menos rigor: "é a maior extensão que podemos outorgar
aos nossos direitos. Quanto mais amplificamos nossas necessidades e nossa
posse, tanto mais nos comprometemos com os golpes da fortuna e das
adversidades" (III, 10, 1011).
A Política como Teatro. Recusa do Partidarismo sem Crítica.
Interessa principalmente realizar esta terapia dos afetos no contexto político.
Na sequência imediata do texto, então, Montaigne insiste que devemos nos
aplicar às nossas funções, mas sem deixar de nos distinguir das mesmas ' de
separar a pessoa do cargo ocupado, o eu da função desempenhada: "É preciso
representar devidamente nosso papel, mas como papel de um personagem
emprestado" (III, 10, idem). Sem avançar sobre o problema do estatuto do eu e
dos contornos que o determinam, o ensaísta prescreve certo distanciamento do
sujeito em relação às funções que desempenha, as quais devem ser exercidas
segundo o modelo da representação teatral. Ele recomenda o recuo crítico que
permite ao ator aplicar-se integralmente à execução do papel e, ao mesmo tempo,
assegurar a integridade do eu: "da máscara e da aparência não devemos fazer uma
essência real, nem do alheio o próprio" (idem). Sem investigar o problema da
alienação, que ocupará as reflexões de pensadores posteriores, Montaigne parece
chegar às suas portas, conduzido pelo problema da servidão. Aqui, o risco a ser
combatido é o da perda da própria liberdade, do domínio sobre si mesmo, em
função da afeição excessiva aos cargos e funções. O autor se apresenta, enfim,
como modelo na prevenção deste risco: "o prefeito e Montaigne sempre foram
dois, por uma separação bem clara" (III, 10, 1012).
Não se trata, no entanto, de uma defesa do uso da máscara ' do ocultamento e da
dissimulação, da manipulação do outro no espaço público em favor de seus
próprios interesses privados. Trata-se, justamente ao contrário, de demarcar
com clareza as fronteiras do público e do privado, de prescrever para o homem
privado um recuo crítico em relação aos cargos que ocupa, que lhe permita
atender aos seus interesses privados (assegurar sua liberdade e tranquilidade),
enquanto, ao mesmo tempo, abre-lhe espaço para buscar o interesse público ' o
bem comum. O ambicioso, que se afeiçoa vaidosamente aos cargos que ocupa, busca
no exercício da vida pública a realização de fins privados ' procura a
satisfação pessoal nas honras que conquista como homem público. Ao fazê-lo,
contudo, compromete tanto a sua satisfação pessoal (pois permanece intranquilo,
sempre em busca de mais honras e com medo de perder as que já conquistou)
quanto o interesse público, que ele mantém subordinado aos seus interesses
privados. Ao combater a afeição pelos cargos (ao distinguir-se dos papéis que
ocupa), ele pode finalmente encontrar a tranquilidade que a busca da honra não
lhe trazia, ao mesmo tempo em que passa a poder buscar, no exercício dos
cargos, o fim próprio da vida pública ' o bem comum.
O mesmo movimento é realizado por Montaigne quando examina a relação do
indivíduo com o partido a que pertence ' no caso, o partido religioso. Em
nenhum momento o ensaísta recusa a adesão convicta a um grupo, nem mesmo a
certeza de que se trata da melhor das posições ("eu me agarro firmemente ao
mais são dos partidos" ' III, 10, 1013), mas recusa a adesão sem crítica, a
incapacidade para discriminar os erros dos aliados e reconhecer os acertos dos
adversários ' a conduta, enfim, da maioria dos homens, tão contrária ao seu
modo de agir: "quando minha vontade entrega-me a um partido, não é com uma
obrigação tão violenta que infecte meu entendimento. (...) Eles adoram tudo o
que está do seu lado: eu nem sequer desculpo a maior parte das coisas que vejo
do meu" (III, 10, 1012). A maioria dos homens adere integralmente a um dos
lados, daí a incompreensão que sofreram as opiniões do ensaísta: "Ele é da
Liga, pois admira a graça do Senhor de Guise. A atividade do Rei de Navarra
maravilha-o: ele é huguenote." (III, 10, 1013)
Ora, os indivíduos são incapazes de criticar o partido a que pertencem porque a
crítica também os afetaria, uma vez que, apaixonados, não se distinguem do
grupo. Eis porque se encolerizam quando outros o atacam: defendem-se a si
próprios, quando defendem o partido. Mas qual é exatamente o objeto da paixão
que os arrasta? A causa do partido, que creem representar melhor o bem da
coletividade? Poderíamos até admitir que a crítica de Montaigne atinja
lateralmente este apaixonado bem intencionado (como de alguma forma parecia
atingir, no começo do ensaio, o engajamento apaixonado de seu pai), mas ela
visa, antes de tudo, outra figura: o indivíduo que não critica o grupo porque
tem interesses pessoais vinculados a ele, tendo a ganhar com sua vitória e a
perder com sua derrota ("eles não se interessam pela causa comum, enquanto ela
fere o interesse de todos e do estado, mas somente enquanto os machuca
privadamente. Eis porque são aguilhoados por ela em função de paixão particular
e para além da justiça e da razão pública." ' III, 10, 1012). Interesses
privados são o objeto de sua paixão, à qual Montaigne se opõe francamente: "meu
interesse não me fez desconhecer nem as qualidades louváveis em nossos
adversários, nem aquelas que são repreensíveis naqueles que segui" (III, 10,
1013).
Uma terapia das paixões, enfim, é a condição do recuo crítico em relação ao
partido. Quem ganha com isso é o interesse geral. Ganha também o indivíduo, que
não mais se perturba diante das derrotas do grupo. Ganha, enfim, o próprio
partido: "prejudicamos os partidos justos quando queremos socorrê-los [a todo
custo]. Sempre me opus a isto. Tal expediente só ocorre às cabeças doentes;
para as saudáveis, há vias mais seguras e não somente mais honestas para manter
a moral e aliviar os acidentes contrários" (III, 10, 1014).
A Terapia das Paixões. O Momento Oportuno. Diversão versus Contenção.
É necessário, pois, avançar na definição dos preceitos de uma terapia das
paixões. Montaigne começara a fazê-lo algumas páginas atrás. Agora, aprofundar-
se-á na tarefa. Ele começa lembrando que certos sábios da antiguidade não
precisavam se preocupar com os afetos excessivos: eram fortes o bastante para
se apaixonar e suportar tranquilamente a perda do objeto amado ("não temeram
apegar-se e comprometer-se até o âmago com várias coisas" ' III, 10, 1015). Sua
força lhes permitia enfrentar as turbulências das paixões sem prejuízo para a
própria tranquilidade ("estas pessoas estão seguras de sua força, sob a qual se
protegem de todo tipo de acontecimento adverso, fazendo os males lutar em
função do vigor da resistência" ' idem). O ensaísta acrescenta que tais sábios,
no entanto, não servem de modelo para a maioria dos homens (dentre os quais o
próprio Montaigne se coloca), que são homens ordinários, não possuindo a força
de um Catão ("não nos lancemos atrás destes exemplos; não os
alcançaríamos"- ' idem). Em seu lugar, propõe o exemplo de outras figuras
(Sócrates, Zenão e Ciro) que preferiam evitar o avanço dos afetos em vez de
suportar os seus excessos. Montaigne traça, assim, uma oposição entre o
enfrentamento que supõe a força (a enkrateiaoupatientia) e uma estratégia que
consiste em evitar o avanço dos afetos, lidando com eles enquanto ainda são
incipientes. Os impulsos afetivos, neste contexto, são compreendidos segundo
uma metáfora biológica ' nascem e crescem, ganhando corpo. O homem comum,
incapaz de suportar a tormenta, deve atuar sobre seus afetos enquanto ainda são
frágeis, aproveitar o momento oportuno e agir assim que se despertam ou, de
preferência, antes, quando prevê seu despertar ("sinto a tempo os ventinhos que
me vêm roçar e sussurrar por dentro, precursores da tempestade" ' III, 10,
1017).
Que gênero de ação Montaigne prescreve? Resistir às primeiras manifestações
afetivas, fazendo frente aos objetos que inspiram medo ou desejo? Não. Talvez
por desconfiar demais de suas forças ou da possibilidade de agir sobre os
próprios afetos, o autor nunca propõe um embate ou ação direta sobre eles, nem
mesmo enquanto incipientes. Em vez disso, a estratégia é a do desvio, da fuga;
a terapia consiste em evitar o enfrentamento: "Sócrates não diz: ' Não vos
rendais aos atrativos da beleza, fazei frente a ela, esforçai-vos contra ela!
Ele diz: ' Fugi dela!" (III, 10, 1015). Trata-se de evitar as circunstâncias e
situações em que, por experiência, sabemos que nossos afetos tendem a se tornar
excessivos; trata-se de evitar, enfim, a presença dos objetos ou imagens
(pensamentos, lembranças) que os alimentam e intensificam: "outrora, eu gostava
dos jogos de azar (...) desfiz-me deles há muito tempo, apenas porque, por mais
que fizesse uma cara boa ao perder, não deixava de me sentir aguilhoado por
dentro" (III, 10, 1015). E quando o encontro não puder ser evitado, que se
busque o pronto afastamento da consciência, seu desvio (divertissement) para
outros objetos ou representações: "Zenão, vendo aproximar-se Cremônides, jovem
que ele amava, para sentar-se perto dele, levantou-se subitamente" (idem). De
maneira semelhante, Montaigne constrói o discurso consolatório da famosa
passagem do ensaio "Da experiência",procurando substituir a imagem assustadora
de sua doença por uma representação mais favorável: "trato minha imaginação o
mais suavemente que posso (...) Meu espírito é próprio para este serviço: (...)
diz que é para o meu bem que eu tenho cálculos" (III,13, 1090). Incapaz de
poder atuar sobre os próprios afetos, o homem comum deve agir sobre as
representações que os mobilizam7.
Deixaremos de lado a análise do movimento seguinte, em que Montaigne acusa a
vanidade das disputas humanas e a vileza dos acordos que lhes põem fim, ambos
fundados nas paixões, e nos dedicaremos diretamente ao movimento ulterior ' a
conclusão, mais imediatamente ligada ao ponto que nos interessa.
Prestação de Contas e Crítica da Ambição: o Tato Político de Montaigne
Passemos, portanto, à parte final do ensaio ' fim que bem poderia servir de
começo para o comentário. Pois, Montaigne conclui "De poupar a própria vontade"
com uma prestação de contas de seu mandato à frente da prefeitura de Bordeaux.
Ora, todo o capítulo pode ser compreendido como uma grande justificação do seu
modo de agir quando ocupou este posto ' empresa que lhe teria dado o ensejo
para uma crítica das paixões, em geral, e da ambição, em particular. Na
conclusão, então, Montaigne elenca as duas críticas que foram feitas aos seus
mandatos. A primeira: não teria se aplicado o bastante em suas funções de
prefeito, mas "como homem que se move por demais frouxamente e com uma vontade
débil" (III, 10, 1020). Ao que ele responde: os que me dirigem esta crítica
"não estão de modo nenhum distantes da verdade", pois "eu tento manter minha
alma e meus pensamentos em repouso" (idem). Mais uma vez, o ensaísta mostra ter
agido de acordo com a exigência ético-política da serenidade (a tranquillitas),
de tal forma que a dosagem de sua aplicação não deve ser confundida com
incapacidade ("pois falta de preocupação e falta de senso são duas coisas
diferentes") ou falta de empenho ("mobilizei-me [pelo povo] como o faço por
mim").
O ponto culminante do ensaio, no entanto, vem com a resposta dada por Montaigne
à segunda crítica que lhe dirigem. Ele afirma que alguns o criticam por não ter
feito nada de marcante durante seu mandato ' nada que tivesse permanecido na
memória de seus concidadãos: "dizem também que esse meu mandato passou sem
deixar marca nem vestígio" (III, 10, 1021). Contra esta crítica, o ensaísta
afirma que não deixou de lado nenhuma iniciativa que o dever tenha exigido
("aucun mouvement que le devoir requist en bon escient de moy"); que não levou
adiante apenas as prescritas pela ambição ("ceux que l'ambition mesle au devoir
et couvre de son titre" ' idem). Diz ter desempenhado todas as tarefas que sua
função de prefeito lhe impunha, mas não ter buscado se destacar aos olhos do
povo. Se pôde cumprir seu dever "à noite, na Câmara do Conselho", assim o fez '
não deixou para desempenhar suas tarefas "ao meio-dia, na praça pública".
Montaigne sabe que os homens só se contentam com a visão das ações, que
precisam vê-las em curso; do contrário, pensam que nada foi feito ("se não
ouvem barulho, parece-lhes que estamos dormindo" ' idem). Mas fez prevalecer um
outro critério sobre o desejo de projeção pessoal: o dever. Assim, agiu de
maneira diferente da maioria dos homens, que "[buscam] sua reputação e proveito
particular, não o bem", como aqueles cirurgiões da Antiguidade, "que faziam as
operações de sua arte sobre estrados à vista dos passantes, para adquirir (...)
freguesia." (III, 10, 1022)
Tais considerações lhe dão o ensejo para uma crítica direta da ambição,
empreendida por meio de dois argumentos. No primeiro, sustenta que ela não
convém à maioria dos homens (entre os quais o próprio ensaísta se coloca), que
são comuns, incapazes de ações dignas de glória e que, esperando granjear
louvores por meio de ações corriqueiras, mostram tanto mais sua própria
mediocridade ("eles querem atribuir-lhe o preço que ela[s] lhes custa[m]" '
III, 10, 1023). No segundo, sustenta que a ambição é contraproducente, que a
busca da honra só conduz à desonra, posto que implica numa postura servil
("Desdenhemos essa sede de fama e de honras, baixa e suplicante, que nos faz
mendigá-las a toda espécie de pessoas [...], por meios abjetos e pelo preço vil
que for. É desonra receber honras assim."' idem). Louvável é a ação livre, cujo
fim encontra-se nela mesma, no seu valor intrínseco. Aquela que se executa como
meio para a projeção pessoal é feia e repreensível. Ora, os motivos que levam o
agente às ações de destaque são sempre dignos de suspeita: "Na medida em que
uma boa ação é mais ruidosa, vou descontando de seu valor a suspeita que começo
a ter de que seja praticada mais por ser ruidosa do que por ser boa" (III, 10,
1023). A passagem se encerra, então, com o elogio da ação discreta: "Muito mais
mérito têm as ações que escorregam da mão do autor despreocupadamente e sem
alarde, e que depois algum homem de bem nota e resgata da sombra, impelindo-as
para a luz por causa de si mesmas" ' idem).
Terminada a crítica da ambição, Montaigne retorna à refutação de seus críticos,
insistindo que agiu de acordo com as circunstâncias e visando unicamente o
cumprimento de seu dever. Afinal, eram tempos de crise, uma época em que o
tecido social do país, já tão esgarçado pelas guerras de religião, ameaçava
romper-se em definitivo; um período, pois, em que intervenções incisivas
(inovações) não eram recomendáveis, posto que agravariam ainda mais o quadro de
crise (iniciado, aliás, por uma primeira inovação: a Reforma). Neste contexto,
convinha ao político manter certa distância dos eventos, conduzir-se com
delicadeza nas situações, observar e aguardar que os tumultos arrefecessem,
intervindo somente quando necessário. Seguindo o modelo de uma medicina
empírica, Montaigne se propôs a observar as evoluções da "doença" que acometia
a cidade e a deixá-la, tanto quanto possível, seguir seu curso natural em
direção ao arrefecimento ' sabendo que, as mais das vezes, o remédio prejudica
mais o corpo do que a doença. Esta ação cautelosa, enfim, visava conservar e
prolongar (fazer durar) a ordem frágil que ainda subsistia no corpo social,
esperando que o tempo e o arrefecimento dos ânimos lhe permitissem recuperar o
vigor original. Ocorre que tal ação (a ação de conservação) é silenciosae
imperceptível ' apenas a inovação salta aos olhos. Seu senso de conveniência e
sua profunda compreensão de seu tempo, portanto, forneceram a Montaigne os
motivos para se manter à sombra.
Uma Ambição Morna e Discreta
Terminada a leitura do ensaio, acreditamos ter dado alguma clareza à atuação
política de Montaigne ou, mais precisamente, à sua posição a respeito das
paixões (sobretudo, da ambição) no contexto político. Como vimos desde o
proêmio do capítulo, o ensaísta se esforça para afastar esta paixão do
horizonte da política, seja pelo risco que ela representa para a liberdade e a
tranquilidade do indivíduo, seja porque os interesses públicos devem permanecer
à frente dos interesses privados. De resto, a ambição não convém ao homem
medíocre, figura que representa a maioria dos homens e na qual Montaigne se
reconhece. De tal forma que, ainda que admitíssemos a existência de uma ambição
montaigniana, ela não poderia ser senão objeto da terapia das paixões proposta
pelo ensaísta. Lembremo-nos de suas palavras ainda no proêmio do ensaio: "Mas,
às paixões que me distraem de mim e me prendem alhures, a essas certamente me
oponho com todas as minhas forças" (III, 10, 1003).
Poderíamos, no entanto, desconfiar das razões alegadas pelo autor e suspeitar
da aparente assepsia de sua atuação política, tal como a descreve no "De poupar
a própria vontade". Poderíamos nos perguntar se Montaigne não é pouco sincero
quando leva tão longe a crítica das paixões e se não oculta, por trás do que
diz, alguma ambição. Afinal, todo o ensaio é uma defesa de sua atuação
política, na qual ele parece exibir-se discretamente como um político zeloso,
atento ao dever e às circunstâncias históricas. O texto, sem dúvida, parece ter
esta intenção. Deveríamos inferir daí, então, uma ambição montaigniana? Como
ela seria possível depois de um ataque tão longo e profundo às paixões? Como
conciliar a trama argumentativa do ensaio com o efeito que, ao final, ele
parece produzir no leitor (uma admiração imediata por um político tão zeloso e
atento ao bem comum)?
Para responder a esta questão, devemos lembrar que a terapia montaigniana das
paixões não tem como alvo a afetividade enquanto tal.Como vimos, o ensaísta
prescreve uma economia dos afetos que visa evitar os excessos, dando lugar aos
impulsos moderados. Retomando uma das frases que citamos anteriormente, vemos
Montaigne a dizer que a alma "deve alimentar-se apenas de si", mas "pode ver e
sentir todas as coisas" (III, 10, 1009, grifos nossos). Ainda que não seja
definido com clareza ao longo do ensaio, o termo paixão indica o impulso que
compromete a tranquilidade do agente, impede-o de agir e põe em xeque sua
liberdade. É somente este impulso (um impulso excessivo) que deve ser evitado
por meio da terapia da diversão,a qual abre caminho para uma ação tanto mais
plena, equilibrada, justa e eficaz. Neste sentido, poderíamos admitir que
Montaigne experimenta uma ambição morna e discreta, que ele busca a honra sem
ansiedade, sem paixão ' sem prender-se a este outro e escravizar-se a ele. E se
seus argumentos pareceram frequentemente radicais ao longo da trama do ensaio,
a ponto de nos fazer crer que atacavam a ambição e a afetividade tout
court,isto se deve ao fato de que tinham como alvo um excesso ' a cultura da
ação notável, tão característica da época. Contra um excesso, apenas outro é
eficaz ' apenas o outro extremo é capaz de reconduzir à justa medida: como na
"arte dos arqueiros, que para chegar ao ponto vão buscando a mira num grande
espaço acima do alvo" (III, 10, 1006).
Montaigne Agente
Se isto é verdade, se Montaigne assegura, por meio de uma busca morna da honra,
sua tranquilidade e sua capacidade de ação, somos obrigados, por fim, a indagar
os comentadores que defendem a tese da passividade do autor dos Ensaios ou que
pretendem restringir o alcance de suas ações. Pensamos mesmo num grande
clássico do comentário montaigniano, como o livro Montaigne, de Hugo Friedrich,
que fez história com sua preciosa contribuição para o estudo da obra
montaignianae marcou diversos intérpretes posteriores8.
Friedrich insere sua leitura9 do ensaio "De poupar a própria vontade" no
segundo momento do movimento dialético de humilhação e afirmação do homem, que
ele acredita presidir a estrutura dos Ensaios. Ele considera que Montaigne
fornece com sua atuação política mais um exemplo da afirmação da condição
humana ' frágil, contingente, complexa, mistura de bem e mal, razão e paixão.
Segundo o comentador, o ensaísta restringiria ao máximo sua aplicação aos
cargos públicos (obrigação que se lhe imporia) em nome de uma "livre disposição
de si mesmo" (do máximo de espaço que pode conceder às próprias pulsões);
optaria por um grau mínimo de intervenção sobre a ordem política em nome de um
"deixar correr" que, no final das contas, convergiria favoravelmente com o
andamento do mundo, o qual seria avesso às intervenções. Nesta concessão mínima
à obrigação dos cargos ' entende Friedrich ' Montaigne se ajustaria à sua
condição humana mista: à sua precariedade (sua necessidade de segurança e,
portanto, de uma vida em comunidade) e, ao mesmo tempo, às pulsões que lhe
comandam o espírito, ansioso por liberdade.
Ocorre que esta concessão mínima à cidade, esta quase inação, este deixar
correr passivo em que o indivíduo atende sobretudo às suas próprias exigências
e, por aí mesmo, ajusta sua conduta ao andamento do cosmos, vão na direção
contrária do que Montaigne sustenta no "De poupar a própria vontade". Em
primeiro lugar, porque a dosagem de sua aplicação aos cargos políticos não se
funda numa necessidade (aliás, típica do individualismo moderno, que Montaigne,
para Friedrich, inaugura) de dar livre curso às próprias pulsões, mas numa
exigência ética herdada da tradição helenística ' a tranquillitas. De tal modo
que é uma outra ação, um outro trabalho ' ação ou trabalho sobre si ' que vêm
regular a ação política. Em segundo lugar, porque mesmo a exigência ética não
vem restringir o espaço da atuação política, mas, ao contrário, ampliá-lo,
vindo fortalecer a ação com vistas à coletividade, torná-la mais justa e
eficaz. Isto porque se trata de afastar a paixão do domínio da ação. De tal
forma que, tanto do lado da ética quanto da política, o ensaísta age ' ainda
que sobre uma matéria que pede cautela, observação, atenção aos seus próprios
movimentos e exigências. É justamente por isso que Montaigne parece passivo:
porque respeita rigorosamente a dinâmica de suas próprias pulsões bem como a
das pulsões dos homens na história. Mas, o faz somente para adaptar a terapia à
matéria, a ação ao objeto; pois, ele não deixa os eventos correrem ' apenas
observa-os, buscando aprender a maneira correta de agir e esperando o momento
propício para intervir, calma e discretamente.