A potência da ação. Uma crítica ao naturalismo da violência
Introdução
1. A matriz biopolítica dominante na modernidade tenta induzir a "biologização"
do social como se fosse um novo registro de "verdade científica", reduzindo,
como consequência, o humano a zoe,mera vida natural. O social seria um
prolongamento do biológico, que transforma a política numa gestão eficiente da
natureza humana. Ao reduzir a política a mera administração eficiente da vida,
troca-se com facilidade o bem comum pelos interesses corporativos. No marco da
biopolítica, propomo-nos analisar neste artigo alguns aspectos do estatuto da
violência: sua naturalização como mero fenômeno biológico e os desdobramentos
utilitaristas desta visão.
A violência é uma prática social que transita entre o biológico e o social, sua
análise crítica possibilitará a compreensão de alguns mecanismos operadores da
governamentalidade moderna. Inicialmente apresentamos a tese de que naturalizar
a violência significa condenar a vida humana à perene violência. Se aderirmos a
esta tese, a violência se tornaria um médio necessário para fins desejáveis.
Ela, naturalizada, apresenta-se como inevitável em todas as relações humanas. A
naturalização da violência faz o outro violento por natureza, homo homini
lupus. Há uma lógica imunitária nas novas formas biopolíticas que propõem
utilizar como solução aquilo que nos ameaça. Nessa dinâmica, a única via que
resta para combater a violência é seu uso estratégico como ameaça preventiva.
Neste suposto, a violência só se neutraliza com mais violência. A violência
maior é a única garantia das violências menores. Esta espiral violenta nos
condena a viver indefinidamente sob a sombra de um Leviatã com poder violento
suficiente para ameaçar as violências menores. Todos os cenários de
naturalização da violência confluem em formas autoritárias de governo.
Neste ensaio, propomos apresentar as bases filosóficas para uma crítica ética
da violência. Para tanto, inicialmente, analisaremos algumas das principais
teses e autores defensores do naturalismo da violência. Num segundo ponto,
abordaremos uma distinção semântica entre violência e agressividade, mostrando
como essa distinção se efetiva no conceito de potência. Num terceiro ponto,
analisaremos o sentido filosófico da potência como potência criadora (Cornelius
Castoriadis) e potência do não (Giorgio Agamben). Concluiremos apresentando as
implicações da potência na desconstrução do naturalismo da violência.
Discursos legitimadores da violência natural
2. Sem pretender ser exaustivos, faz-se necessário realizar uma breve
genealogia da vasta literatura contemporânea que defende e fundamenta o
naturalismo da violência. Um dos autores contemporâneos que mais tem
contribuído para manter e divulgar as teses do naturalismo da violência é
Konrad Lorenz. Reconhecido pesquisador do comportamento dos animais, prêmio
Nobel de biologia, seus estudos originaram, inclusive, uma nova rama do saber
biológico: a etologia. Sua obra mais divulgada e conhecida, "On Agression",1
sustenta a tese de que a agressão é um componente natural da vida de todas as
espécies animais, entre elas o ser humano. Para Lorenz, entre os denominados
instintos primários da vida, além dos normalmente aceitos (reprodução e
supervivência) há que incluir a agressividade.
Lorenz afirma, com insistência, o parentesco tão próximo que existe entre o
comportamento do ser humano e o conjunto dos animais. Para Lorenz, o ser humano
é, em primeiro lugar e sem desvalorizar o que existe de especificamente humano,
um animal. O que indica que seu comportamento, embora tenha algo de específico
e singular, tem muito de comum com o resto das espécies animais. O que há de
comum entre ambos são instintos básicos de todos os seres vivos. Esses
instintos, também denominados primários, atuam como impulsores e indutores do
comportamento animal e consequentemente do humano. Tradicionalmente são
reconhecidos como instintos primários a sobrevivência e a reprodução, entre
outros. Para Lorenz, um outro instinto primário comum a todos os animais é
agressividade.2
Segundo Lorenz, a agressividade é um instinto primário conectado
intrinsecamente aos instintos da sobrevivência e da reprodução. Os animais são
agressivos por natureza, sendo a agressividade o instinto que ajuda na
sobrevivência e na reprodução. Neste contexto, Lorenz entende que, em todas as
espécies, incluído o ser humano, a agressividade é um instinto a serviço dos
outros instintos mais importantes.Sem a agressividade, os seres vivos perderiam
a potência para desenvolver os instintos básicos da sobrevivência. Numa
referência explícita a Darwin, afirma que a natureza desenvolveu o instinto de
agressividade como meio necessário para que todos os seres vivos possam lutar
por sua sobrevivência individual e, como resultado, da espécie.3 Sem a
agressividade, os seres vivos se encontrariam incapacitados para o
enfrentamento das dificuldades e teriam um altíssimo índice de fracasso nos
empenhos por sobreviver.
3. Edward Osborne Wilson deu continuidade às pesquisas de Lorenz a respeito da
agressividade natural, entre outras. Em sua obra de maior impacto,
"Sociobiology: The new Synthesis",4Wilson analisa a agressividade como um
fenômeno complexo implicado funcionalmente em diversas finalidades como
território, sexualidade, alimentação, hierarquias de grupo. Haveria uma
funcionalidade intraespecífica da agressividade na sexualidade, hierarquias
etc., e outra funcionalidade extragrupal, como a do território, alimentação
etc.5 A agressividade é natural e contribui positivamente para a evolução da
espécie, adaptando-se às circunstâncias e necessidades. Ele, explicitamente,
não diferencia agressividade de violência, considerando que, no máximo,
poderíamos diferenciar entre agressividade adaptativa e aquela outra que excede
o limite da funcionalidade da sobrevivência. Contudo, esta distinção é só de
grau e não de essência no tipo de agressividade, e ambas são violência.6 Wilson
discorda da distinção proposta por Lorenz entre violência intraespecífica e a
interespecífica. Para Wilson, a violência é um instinto natural que se adapta
aos contextos e necessidades, porém sem distinguir-se qualitativamente uma
violência de outra. Podemos identificar variáveis na conduta agressiva da cada
espécie, porém a agressividade é um instinto natural comum a todas elas.
Para Wilson, a agressividade tem uma explicação natural nos componentes
biológicos dos indivíduos, especificamente no sistema endócrino e no sistema
nervoso central.7 Wilson propõe a biologia como a "ciência" explicativa do
comportamento humano. Porém, dado o caráter adaptativo dos organismos vivos, a
compreensão da natureza biológica deve ocorrer a partir do contexto, esta
interação possibilita denominar de sociobiologia o novo discurso explicativo da
natureza humana. O cérebro ocupa o lugar da psique e da alma humana. Nele se
encontram as explicações da natureza e do agir humanos. Os diversos estados
emocionais, os afetos que condicionam a vontade, os sentimentos que decidem
nosso modo de agir, encontram sua
explicação na química do cérebro. A química afeta de forma direta os neurônios
e neurotransmissores como dopamina, norepinefrina, serotonina, gaba, que são
responsáveis pelas sensações que perfazem nossas emoções e criam nossos
sentimentos. Wilson, ao reduzir a agressividade e a violência a química
neurológica, naturaliza de forma mais definitiva que Lorenz a agressividade.
4. Um outro discurso naturalista que deu sequência às teses de Wilson e Lorenz
é a psicologia evolutiva no estudo dos genes. A obra de Richar Dawkins, "The
selfish genes",8 é uma referência significativa desta tendência discursiva.
Para este autor, as atitudes altruístas nada mais são do que estratégias do que
ele denominou genes egoístas. Um exemplo disso é a tendência a viver em grupo e
a própria sociabilidade humana, que nada mais seria do que uma estratégia de
replicação dos genes. Dawkins entende os genes como uma espécie de máquinas de
sobrevivência de todas as espécies, inclusive a humana. A sociabilidade seria
uma estratégia egoísta calculada e desenvolvida pelos genes. Na relação de
custo benefício, os genes aprimoraram a estratégia do gregarismo como meio
eficiente de potencializar os interesses individuais. Este determinismo
genético seria o nexo entre a natureza e a sociedade, entre a biologia e a
cultura.9 Para Dawkins, o termo egoísmo é simplesmente uma metáfora em relação
ao comportamento natural dos genes, uma vez que estes atuam naturalmente
impulsionados pelo instinto da replicação.10
Dando continuidade às teses de Wilson, Dawkins afirma que a agressividade
obedece a uma estratégia adaptativa dos genes egoístas. A agressividade social,
para não ser completamente destrutiva, seguiria um modelo matemático de cálculo
custo-benefício que Dawkins denomina de Estratégia Evolutivamente Estável
(EEE).11 O gene tem por natureza o instinto da replicação, isso leva-o a
produzir a estratégia da agressividade calculada no triple EEE. Os pactos
sociais não derivariam de um reconhecimento dos direitos individuais, nem de
uma vontade geral sobre o bem comum, nem sequer da entrega do poder a um
soberano; eles são resultados das estratégias replicantes dos genes egoístas
que formam parte da estratégia do triple EEE. Esta estratégia dos genes, para
ser eficiente, pune aqueles cuja agressividade se realiza fora das regras
estabelecidas, porque é a forma de permitir um resultado final melhor.
5. Os estudos realizados por Wrangham e Peterson sobre a agressividade nos
animais e humanos podem ser inseridos também nesta tendência naturalista
"Demonic Males: Apes and the Origins of Human Violence".12 Para estes autores,
há uma correlação entre inteligência e agressividade. As formas de violência
mais exacerbadas correspondem a inteligências mais evoluídas. Eles tomam como
referência os estudos com chimpanzés, entre outros, cuja inteligência se
assimila a uma criança de três anos. Os autores tentam responder a questão de
por que a estrutura emocional e cognitiva mais evoluída, como a dos primatas,
favorece uma agressividade maior.
Tomam como referência os estudos de Damásio,13 que vincula as emoções ao
cérebro. Cada emoção estaria ligada a uma determinada área do cérebro, que por
sua vez foi moldada através do processo evolutivo da espécie. Para estes
autores, a emoção predominante nos primatas é o orgulho; ela desencadeia a
agressividade pertinente para conseguir a luta pelo poder no sexo, hierarquias,
território etc. A guerra, expoente principal da violência inteligente, tem sua
explicação natural no orgulho. Todas elas estão motivadas por uma luta de
status.14 Para Wrangham e Peterson, os humanos herdamos as características
biológicas dos chimpanzés, o que transfere a conduta de "macho demoníaco" para
dentro das relações sociais.15 Os nexos biológicos da violência humana são
inexoráveis. Eles se manifestariam na própria estrutura do cérebro humano, que
potencializa as atitudes violentas. O córtex cerebral humano constituído por
uma imensidão de sinapses e uma maior interação de neurotransmissores fazem do
ser humano um macho mais "demoníaco" que os chimpanzés.16 Estes autores também
não fazem distinção entre agressividade e violência, ambas são sinônimas e têm
uma raiz biológica.
6. Outro autor cujos estudos têm influenciado amplamente os discursos
naturalistas da violência é Antonio Damásio.17 Para este autor, as emoções e
sentimentos são regulados pela anatomofisiologia cerebral composta pelo
complexo conjunto de neurotransmissores, sinapses, hormônios e sua distribuição
nas diversas áreas do córtex cerebral.18 As emoções humanas se originam nos
processos químicos e físicos, seguidos por sistemas de defesa imunológicos e
reflexos básicos. Este seria um primeiro ramo das emoções constituído pelas
sensações primárias de prazer e dor, punição e recompensa, que provocam atração
ou repulsa. As emoções se complexificam na medida que se tornam sociais ou
relacionais. Nessa mesma medida, ocorrem em nosso cérebro reações químicas e
físicas mais complexas, todas elas são ativadas e derivadas dos genes. As
emoções são as que regulam as condutas do seres vivos.19 Aquelas se processam
no sistema límbico do cérebro englobando a percepção do corpo, os pensamentos e
as emoções básicas que constituem os sentimentos.20
Damásio entende que o cérebro humano é mais complexo que o de qualquer primata,
porque tem a consciência do eu, a intencionalidade dos atos, que reconhecem a
alteridade do outro. Os chimpanzés podem ser agressivos, inclusive matando os
outros congêneres, mas não têm percepção daquilo que estão fazendo, por isso
não desenvolvem sentimento de culpa, nem se sentem responsáveis. Damásio
explica esta particularidade humana, que os outros autores não levavam em
conta, por meio de uma categoria biológica do próprio cérebro, os neurônios
espelho. Os neurônios espelho seriam uma descoberta da neurociência que nos
permite explicar biologicamente nosso reconhecimento da alteridade do outro. Os
neurônios espelho possibilitam que tomemos consciência de nós mesmos e possamos
reconhecer o outro como diferente. Os neurônios espelho são responsáveis pela
imitação mimética do comportamento humano. Eles possibilitam a aprendizagem e
também a empatia. "Descobertos" por Giacomo Rizzolatti, Vittorio Gallesw e
Leonardo Fogasi, no início da década de 1990,21 os neurônios espelho se ativam
ao ver agir um outro indivíduo, normalmente da mesma espécie, desencadeando o
instinto mimético. O neurônio impulsiona a fazer o mesmo ato, imita o
comportamento do outro como se ele mesmo estivesse realizando essa ação.22 Os
neurônios espelho possibilitam o reconhecimento do outro, estimulam a empatia,
constituindo-se na base fisiológica do sentimento de pertença ao grupo e da
identidade coletiva.
A potência da ação e sua negação biopolítica
7. Para avançar no debate a respeito do pretenso naturalismo da violência, é
preciso delimitar conceitualmente as duas principais características que
definem a violência, a saber: a intencionalidade da ação e a negação, total ou
parcial, da alteridade humana. Estes dois aspectos são inerentes e exclusivos
de toda violência. A intencionalidade da ação e a negação da alteridade humana
demarcam um campo epistemológico e antropológico especificamente humano, a
responsabilidade ética da ação impetrada. É preciso realizar uma análise
específica de cada uma destas características, a fim de melhor desconstruir o
pretenso naturalismo da violência. Neste ensaio, só apresentaremos um estudo a
respeito do primeiro aspecto, a intencionalidade da ação. Para tanto, tomaremos
como ponto de estudo o sentido da potência. Num outro ensaio, haveremos de
explicitar uma análise crítica a respeito do segundo aspecto inerente a toda
violência, a negação da alteridade humana.
Para delimitar o campo semântico do debate, propomos fazer uma diferenciação
conceitual importante, que os autores anteriormente mencionados não fazem,
entre agressão e violência. A indistinção destes dois conceitos é comum a todas
as versões naturalistas e permite considerar que ambos são naturais da mesma
forma. A distinção semântica entre agressividade e violência nos possibilitará
pensá-las criticamente como práticas diferenciadas. Para procedermos a esta
distinção, haveremos de adentrar, inexoravelmente, no campo da linguagem e da
antropologia filosófica.
É importante destacar que nosso objetivo não é negar uma certa naturalidade da
agressividade, mas desconstruir a naturalização da violência. O ponto de
diferenciação entre agressividade e violência está no caráter intencional e
significativo da violência, que visa à negação da alteridade humana,
diferentemente das pulsões agressivas que advêm da natureza humana. Esta é a
tese que pretendemos desenvolver.
Concordamos, em sentido amplo, com as conclusões dos diversos estudos
naturalistas da etologia, biologia, zoologia e neurociências, que indicam o
caráter natural das pulsões agressivas, identificando-as como inerentes a todos
os seres vivos e com uma função importante para auxiliar o instinto de
sobrevivência dos indivíduos e da espécie. Este seria um ponto de encontro e
acordo: as pulsões e os instintos são inerentes a todo ser vivo, entre eles a
agressividade. Não é possível pensar um ser vivo sem estas pulsões e instintos
vitais, inclusive no ser humano. Ainda, pode-se dizer que o ser humano não será
mais humano por negá-las ou simplesmente reprimi-las. O que o torna
especificamente humano, diferenciando-o das outras espécies vivas, não é a
negação ou repressão dos seus instintos, mas a sua capacidade de conduzi-los
para um estilo ou forma de vida sem ser determinado por eles no seu modo de
viver.
Um dos pontos cegos que passa "despercebido" para as teses naturalistas, é o
sentido da potência humana, especificamente a potência criativa, que fica
diluída nas causas naturais que determinam o agir. O termo potência, na
tradição filosófica, é compreendido, inicialmente, em duas grandes correntes,
como potência da natureza ou como potência da ação. A primeira é uma potência
que já se encontra enquanto tal na natureza previsível do ato, a segunda é uma
potência imprevisível que produz a novidade da ação histórica. O naturalismo
tenta derivar a potência a partir das causalidades necessárias da natureza,
reduzindo a potência a um agir segundo a natureza. Porém, o ser humano contém
uma potência que, à diferença das outras espécies vivas, não se transforma em
ato, senão em ação. A potência determinada pela espécie deriva, em grande
medida, em atos previsíveis pela natureza da potência. Porém, a potência da
ação, a potência do ser humano, caracteriza-se pelo poder da imprevisibilidade;
ela, estando condicionada pelos instintos e pulsões, é uma potência tal que
pode agir além destas determinações. É uma potência cuja característica
principal é fazer acontecer o imprevisível, por isso é uma potência criadora. A
imprevisibilidade da potência humana transforma o ato animal em ação criativa,
possibilitando que o indivíduo da espécie se torne um sujeito histórico.
A imprevisibilidade da potência confere ao ser humano a possibilidade de obter
uma certa distância das pulsões agressivas, naturalmente dadas. As pulsões não
são negadas, mas distanciadas. A distância das pulsões naturais confere ao
sujeito o poder de significá-las na forma de ação. As pulsões naturais são
mediadas, no ser humano, pelo sentido criado para elas. A ação é o resultado da
mediação do sentido que dirige intencionalmente os instintos. A potência da
ação transfere para o ser humano a possibilidade e a responsabilidade pela
ação. Neste caso, a violência excede a agressividade na mesma proporção em que
a ação humana excede o ato animal. A potência da ação existe a partir de "uma
certa" distância da natureza na forma da alteridade, e traduz o poder da
potência em responsabilidade pela ação. Sem a distância da alteridade, não é
possível a potência. Potência e alteridade se imbricam no sentido da ação
humana e na responsabilização pela consequência das ações violentas.
8. As categorias de ação e potência percorrem a história da filosofia desde
suas origens com múltiplos matizes e sentidos. Platão, no "Banquete", explica a
ação (poihsiz) como aquilo que tem poder causal de fazer passar algo do não ser
ao ser.23 Platão é quem primeiro define o termo poièsis: "Causa que, qualquer
que seja a coisa considerada faz passá-la do não-ser ao ser (Banquete, 2005,
b)".24 Aristóteles, no segundo livro da Física, explica a técnica (tecnhz) como
o tipo de coisas que não têm em si mesmas o princípio (arch) do seu ser e
deriva sua existência da ação (poihsiz).25 A ação distingue aquilo que produz
(tecnhz) da mera natureza (jusiz).
Como é bem conhecido, os gregos costumavam distinguir dois tipos de ação:
poièsis(poihsiz)e práxis(praxiz).Ambas têm em comum a potência de fazer
acontecer algo novo. Aristóteles, na "Ética a Nicômaco", faz distinção entre
poièsise práxis,inclusive opondo, em certo sentido, uma à outra. Para
Aristóteles, a poièsisé um fazer que tem a finalidade fora de si. A finalidade
do fazer (poièsis) está naquilo que está fazendo e do qual depende como obra a
ser feita. A finalidade da poièsis é o ergon (obra) que, uma vez realizada,
existe independentemente da ação que a criou. O fazer da poièsis é um mero meio
para uma finalidade que permanece para além do mero fazer.
A práxis,diferentemente, é uma ação cuja finalidade está nela mesma, por isso
sua finalidade tende necessariamente ao bem (eupraxia), que é considerado o fim
em si mesmo.26 A finalidade da práxis se consuma na própria ação. Ao concluir a
práxis, também desaparece a finalidade que ela executa. Para Aristóteles, o
paradigma da ação política e ética é a práxis, cuja finalidade está em si mesma
e tende ao bem como fim absoluto.
Os trabalhos que dependem de uma technèsão tipos de poièsis. Contudo, o fazer
da poièsisnão se limita, simplesmente, a reproduzir. Ela é um peculiar tipo de
ação diferente da práxis, uma ação que cria algo além dos meros atos
determinados pela natureza da espécie. A poièsis é o paradigma da técnica cuja
finalidade está na perfeição das coisas produzidas, na qualidade dos objetos
que produz e não na ação em si mesma. Ainda que as diferenças propostas por
Aristóteles entre práxis e poièsis sejam relevantes para caracterizar os
diversos tipos de ação do ser humano, ambas são ações criadoras, diferentes dos
meros atos animais. O que define o estatuto singular da ação (práxise poièsis)
é a potência de produzir algo novo, produzir aquilo que ainda não existe.
A práxis e a poièsis são ações especificamente humanas. O diferencial da ação a
respeito da mera physis é sua potência, em especial a potência criadora.27
Nenhum outro ser vivente tem a potência da ação em nenhuma destas formas. A
ação revela a diferença qualitativa que existe entre o homem como ser vivente e
o resto dos seres viventes.28 O agir do animal é comandado por seu próprio
instinto de vida. A ética será, para os gregos, a ação que excede os
determinismos da natureza e possibilita criar a virtude como algo que não está
dado na natureza. Aristóteles afirma: "Nunca a natureza faz o homem sábio e
prudente, mas ela nos dá o bom senso, a penetração de espírito e o
entendimento".29
9. Os gregos tinham consciência da diferença que há entre a ação humana e o
mero ato animal, que equivalia à possibilidade de distinção entre o humano e a
natureza, psiquee physis.A ação humana, para os gregos, distinguia-se do mero
ato de viver ou sobreviver. Um dos pontos críticos desta diferenciação
encontrava-se no valor do trabalho(εργασία). O trabalho não era considerado uma
ação, no mesmo sentido que a poièsis e a práxis. O trabalho era visto como uma
atividade necessária para a subsistência biológica. O que determinava a
existência e a realização do trabalho era a necessidade. Enquanto a necessidade
é imposta pela vida animal, a ação é aquilo que vai além da mera necessidade. A
submissão do homem à necessidade do trabalho o equiparava aos animais, que têm
que trabalhar para conseguir sua subsistência. A desvalorização do trabalho
como uma atividade que não é ação tornava-o indigno dos homens livres e próprio
de servos e escravos. Hannah Arendt constata que, para os gregos, o trabalho
era uma atividade de natureza servil porque era uma necessidade para a vida e
não porque fosse feito por escravos.30 O trabalho se diferenciava
qualitativamente da ação porque aquele era exigido pela natureza como
necessidade e esta se poderia produzir livremente pelo ser humano. A condição
do trabalho era a de um mero ato de subsistência, próprio da natureza daqueles
que não conseguem ser plenamente humanos, como estima Aristóteles: "Há na
espécie humana indivíduos tão inferiores aos demais como o corpo à alma ou a
fera ao homem. Estes seres existem propriamente para os trabalhos do corpo e
são incapazes de fazer uma ação mais perfeita".31 A redução de trabalho a mero
ato de subsistência, próprio da natureza de alguns humanos, justifica que estes
sejam destinados, pela natureza, para a escravidão, porque sua finalidade
natural é obedecer. Esta condição de incapacidade para uma ação plenamente
humana (poièsis - práxis) legitima a instituição da escravidão como algo
natural, porque estes humanos participam da razão de uma forma vaga.
Aristóteles, nesse mesmo capítulo da política, afirma que a distinção entre os
escravos por natureza e os animais não é grande. Estes se encontram desprovidos
de razão e obedecem cegamente o instinto, aqueles também vivem sua vida presos
à realização de atos para satisfazer as necessidades vitais da sobrevivência.
Para os gregos, o trabalho, a diferença da ação (poièsis/práxis), remete ao
processo biológico da vida; dele dependem a manutenção do ciclo da mera vida
natural (zoe) com suas necessidades vitais imperiosas. A ação, diferentemente,
constrói um espaço de verdades e opera no registro da liberdade.
Para os gregos, o vínculo entre as necessidades biológicas e a animalidade era
tão evidente que não consideravam pertinente o uso do conceito "homens" para
aqueles que trabalhavam para sobreviver ou para suprir as necessidades
biológicas. Arendt defende a tese de que a escravidão nas sociedades antigas,
não posteriormente, não tinha o objetivo econômico explícito de conseguir mão
de obra barata,32 seu objetivo era excluir o trabalho da vida do homem livre.
Tudo o que os homens tinham em comum com os animais, como são as necessidades
vitais e o trabalho para supri-las, não era considerado propriamente humano.
Aristóteles negava aos escravos a capacidade de serem humanos porque não tinham
o poder de deliberar e decidir (to bouleutikon) sobre sua ação, nem de escolher
(proairesis) como agir. Estas duas carências inseriam o escravo no mundo da
necessidade vital, que é mundo da biologia e dos animais. O uso do termo animal
laborans para aqueles que têm que sobreviver do trabalho era absolutamente
pertinente. Eles eram considerados uma das espécies animais, talvez a mais
desenvolvida, que povoavam a terra, e que como todas as demais espécies animais
sobreviviam do trabalho e estavam submetidos às necessidades do trabalho.33
A tríplice diferenciação entre poièsis, práxise trabalho, realizada pelos
gregos, foi-se diluindo ao longo da história do pensamento ocidental. A
tradução latina da poièsis por agere, induziu o sentido do agir como algo
comum, um operari.34 Operar passa a ser um sinônimo da ação e todo operário age
na forma de ação indistinta. O ergon (obra) e a energeia (obrar) para os gregos
não eram decorrentes da poièsis nem tinham a ver diretamente com a ação, no
sentido estrito do termo, criação; elas designavam mais a presença de algo que
se faz e não a potência da ação que o realiza. Os romanos traduziram estes
termos por actuse actualitas, que transportam o sentido da ação para o agir,
agere.A teologia cristã pensa o Ser supremo como actus purus, o que consolida o
legado da filosofia ocidental da ação como fazer do homem. Esse legado, ao
chegar a modernidade, diluiu completamente as distinções da ação entre poièsise
práxis.35Na modernidade, ação e fazer coincidem na medida em que produzem um
efeito real (o opusdo operari,o factumdo facere,o actus do agere).
A biopolítica moderna transparece em toda sua potência na inversão
epistemológica e política que operou sobre o conceito de trabalho. Se para os
gregos o trabalho era uma atividade assimilada à biologia do animal e para o
mundo medieval o trabalho permaneceu como penitência do castigo divino para os
homens, o surgimento do capitalismo como sistema econômico e do liberalismo
como forma de governo ressignificou o trabalho como o grande valor moderno. O
trabalho se tornou, para a modernidade, o paradigma da ação. A inversão
valorativa que a biopolítica moderna operou sobre a objetivação da vida humana
tem seu correlato central na categoria trabalho. É largamente reconhecida a
importância que John Locke teve na formulação desta temática por meio da sua
teoria sobre o valor do trabalho como a origem da propriedade privada natural.
O trabalho passou a vigorar como a categoria que valida todas as demais,
inclusive a natureza humana. Para Locke, o que define o ser humano como tal é
sua capacidade de poder alugar a força de trabalho como propriedade que todos
têm no estado de natureza. Locke espelha os traços biopolíticos modernos
originários mediante os quais se captura a vida humana como objeto útil e
produtivo.36 O marco biopolítico plantado por Locke e outros pensadores do
século XVII a respeito do trabalho foi largamente desenvolvido posteriormente
por Adam Smith, que elevou o trabalho a fonte de riqueza das nações e objeto a
ser governado. Porém, foi Marx quem de forma mais contundente simbolizou o
conceito do trabalho como práxis. Para Marx, o trabalho é a práxis por meio da
qual o homem se constitui como humanidade. Todo fazer humano é uma práxis
produtiva pela qual o homem se produz a si mesmo como humanidade. A práxis é
interpretada como trabalho, ou seja, como produção da vida material
correspondente ao ciclo biológico da vida.37 Arendt assinala como o pensamento
liberal de Locke e Smith e as teses comunistas de Marx coincidem em promover o
trabalho como valor supremo pela sua produtividade, sendo o trabalho o que
distingue o homem dos animais, e não a razão ou a ação como poièsis, como os
gregos pensavam.38
A potência do não
10. A ação humana se distingue do ato animal porque a potência da ação não se
exaure no agir, senão que se preserva como potência e se enriquece na própria
experiência do agir. A problemática da potência, em Aristóteles, ocupa um lugar
central como categoria que se conecta e separa concomitantemente com o ato. Ato
(energeia) e potência (dynamis), em Aristóteles estão, concomitantemente,
relacionados e em oposição.39 A dynamis do ser humano é aquela que, além da
potência, conserva-se sempre como possibilidade. A dynamis humana não se esgota
no ato, diferentemente da potência das coisas que existe segundo a sua natureza
e ela se realiza plenamente no ato por meio do qual passa da potência de ser ao
ato. Na natureza, a potência se realiza no ato. O ato da física e até da
biologia realiza a potência exaurindo todas as suas possibilidades no agir do
ato. Diferentemente, a potência do ser humano não se esgota no ato, senão que
ao realizar o ato ela permanece como potência para continuar a ação. O
princípio do ser e do advir se encontra no criador e não no criado, como diz
Aristóteles a respeito da techné.40
Agamben destaca que a compreensão da potência, em Aristóteles, leva consigo,
também, uma experiência de ausência ou uma forma de privação (steresis) que
testemunha a presença do que faltou no ato. É uma relação paradoxal pela qual
ter uma potência implica também ter a experiência da privação, algo que está
por ser, que pode ser, mas que ainda não é.41 Aristóteles distingue entre uma
potência genérica e a potência que já tem a hexis(o hábito, ou faculdade
adquirida). A criança tem a potência genérica de um dia poder construir uma
casa, o arquiteto tem a potência (hexis) de construí-la.42 Para Agamben, a
diferença entre as duas potências está na potência do não que o arquiteto tem e
a criança não tem. O arquiteto, por ter a potência como faculdade adquirida,
pode suspender o ato e manter a potência como possibilidade de sua vontade. A
criança, por ter só a potência genérica, não tem a potência do não; ela não
pode suspender a ação de construir ou não a casa porque não tem a faculdade
adquirida como potência de fazê-lo. A potência humana da ação manifesta sua
plenitude na possibilidade de suspender a potência de fazer. A potência do não,
que tanta importância adquiriu na obra de Agamben, reflete a possibilidade de a
ação humana se distanciar dos imperativos biológicos da espécie a ponto de
poder ter uma potência cujo uso obtém seu pleno sentido na possibilidade de
negar-se a realizar a ação. Os atos biológicos das espécies vivas não podem
distanciar-se da pulsão que os induz e, por isso, não têm a potência do não. O
ser humano é aquele que tem a potência como possibilidade de não fazer, podendo
fazer. A potência do não há de ser adquirida pela hexis, ela não é uma potência
da natureza.
Aristóteles, ao formular a sua teoria da potência, visa contestar as teses dos
megáricos que afirmavam que a potência só existe no ato; que ela só existe
quando se realiza no ato. Neste caso, contesta Aristóteles, a potência do
médico para curar ou a do arquiteto para construir não existiria antes do ato,
o que impediria que demandássemos seus serviços. Muito pelo contrário, a
potência mais genuína é aquela que se mantém suspensa como potência na
possibilidade ou não de ser. Aristóteles considera que a potência que
necessariamente se realiza em ato corresponde à potência física das coisas e a
potência biológica dos animais. A potência que só existe quando se realiza em
ato, é a potência da natureza. Se o ser humano não tivesse nada mais que essa
potência, ele se equipararia em tudo e por tudo aos demais animais. Entretanto,
o ser humano é aquele que tem a potência de suspender a realização da potência
em ação, conservando-a como possibilidade. Os demais seres vivos têm a potência
natural da espécie que existe sempre que se realiza como ato. Nesta segunda
acepção, o ato é uma consequência natural da potência da natureza que impele o
agir do animal num sentido determinado. Ele não pode agir diferente, como não
pode suspender a potência do agir, porque não tem distância do seu ato. Sua
potência necessariamente deriva num tipo de ato. Enquanto no ser humano: "A
grandeza de sua potência se mede pelo abismo de sua impotência".43 A potência
do não é um ponto de fuga, de transcendência, da compulsão biopolítica dos
instintos sobre o sujeito.
Potência e linguagem
11. A análise até aqui realizada a respeito dos diversos sentidos da ação e da
potência propõe-se a compreender a singularidade da ação humana, diferenciada
do ato animal, questão essencial para desconstruir alguns princípios da
administração biopolítica da vida humana decorrente da visão naturalista, mais
especificamente sobre a violência.
Um outro sentido, ainda não apresentado, é a compreensão da potência humana da
ação implicada no registro da linguagem. Aristóteles já fazia a distinção entre
a voz (phone) dos animais e a palavra (logos) do ser humano. No conhecido texto
do primeiro livro da "Política" demarca uma diferenciação entre a sociabilidade
dos animais e a do ser humano. O elemento de distinção entre ambos é a
linguagem. Os animais têm a phonepara manifestar as sensações, só o ser humano
têm o logos para expressar sentimentos e aspirações.44 A voz necessita, para
existir, de um órgão apropriado que possibilite emitir os sons de cada espécie.
Porém, as ações do logos humanoexcedem a mera materialidade biológica.45
A linguagem humana coloca em funcionamento a potência da criação. Uma potência
que se realiza pela criação de sentidos. A ação humana, em especial a
linguagem, a diferença do ato, provoca um excesso de sentido sobre as pulsões
da natureza transformando os dados naturalmente impostos em significados
culturalmente construídos. A potência manifesta seu poder na criação de
sentido. A linguagem, amplamente reconhecida na filosofia contemporânea como
dimensão diferenciadora do humano, transparece como efeito da ação criativa,
ou, numa espécie de inversão permanente, podemos dizer que ação humana se
manifesta sempre como forma de linguagem. A ação é potência de criar o sentido
que excede (transcende) o mero ato natural. A criatividade humana, que excede a
determinação de toda pulsão e instinto, ainda que por eles esteja condicionada,
é a criação de sentido. O ser humano é o único ser vivo que produz sentido para
o que faz e o que vive. O sentido não é dado pela natureza, ainda que por ela
esteja influenciado; ele é uma criação simbólica da realidade.46
Nesta perspectiva, o termo criar adquire um sentido mais denso que metafórico.
Criar, no sentido estrito do termo, significa inovar algo que antes não existia
e agora existe, algo que antes não era e agora é, mas também poderia não ser. O
ser ou não ser de algo que depende da criação, e não da natureza, implica sua
existência na possibilidade da ação que cria. Em sentido estrito, quando se
cria sentido se está criando ex nihilo. Este é um atributo divino que perpassa
o sentido da ação humana a ponto de identificar o específico do humano com o
singular do divino. Evidentemente que o sentido do ex nihilo da ação humana não
se pode dizer no mesmo sentido que da ação divina. A criação humana é
dependente dos seus muitos condicionantes. Contudo, ao criar algo que não
existia e que se não fosse criado pelo sentido nunca iria existir, introduz
algo novo que surgiu do nada. O verbo grego poieodo qual deriva a criação
(poièsis) sofreu transformações de sentido ao longo do tempo. Nos tempos
homéricos, prevalece o sentido do fazer da technecomo produzir, construir,
fabricar.47 Nesta época, a techne só pode produzir algo a partir da junção de
coisas que já existem, ela não cria, só recria. Só na época clássica que
surgirá o terceiro sentido da poièsis como criar.48 Essa dificuldade estava
associada ao fato de que, para os gregos, aquilo que faz existir algo diferente
ou é a physis ou é a techne. É Platão, como indicamos anteriormente, que
utiliza, por primeira vez, poièsis como criação. Aristóteles, como vimos,
ampliou o sentido da poièsis como criação, atribuindo tal qualidade inclusive à
techne.
Conclusão
12. O ponto de ruptura entre a línea plana da pulsão biológica e a ação humana
está na potência criadora de sentido. Por meio da potência criadora de sentido,
o ser humano significa suas pulsões transformando os atos naturalmente
induzidos em ações significativamente construídas. A ação cria um modo de ser
humano, ou seja, um estilo ou forma de vida. A dialética da ação produz o modo
de viver humano na forma de existência, com uma forma própria além da mera vida
natural. A ação produz a sua forma de subjetivação e o modo histórico como o
sujeito se constitui enquanto tal sujeito. O ser humano, enquanto sujeito
histórico, é o estilo de vida que cria. A ação cria o modo de ser de sua
subjetividade. Esta dialética da potência criativa incorpora em cada pessoa, em
maior ou menor grau, as diversas influências naturais, culturais ou sociais,
porém confere a cada sujeito a potência de transcender as mediações recriando-
as por meio da ação significativa que produz formas e estilos de vida.
O elo organicista entre a pulsão e a ação é quebrado pela potência da
significação. O ser humano é o único ser vivo que tem o poder de produzir
significações não naturais, mas simbólicas e culturais para tudo o que vive. A
significação não é induzida nem deduzida por causas naturais, mas produzida
criativamente. A diferença entre a ação humana e o mero ato animal reside em
que este se encontra determinado pela pulsão natural e aquela é recriada
significativamente. No ser humano, todas as pulsões passam pelo filtro da
valoração; ele as simboliza significativamente com um sentido que excede a
pulsão natural. A linguagem humana não denota códigos definidos pela natureza,
senão que conota sentidos criados. Pode se dizer que, no ser humano, não existe
uma pulsão natural da ação, mas uma significação simbólica da pulsão. Nele, o
instinto da pulsão aparece sempre significado simbolicamente. Paradoxalmente,
também podemos afirmar que não há nenhuma ação humana isenta de influência dos
instintos e pulsões. Eles são o substrato da ação humana, condicionam-na
sempre, em maior ou menor grau, embora não a determinem nunca, a não ser nas
patologias graves que por isso são conceituadas como tais.
O que define e diferencia uma ação humana de um ato animal é seu grau de
distanciamento (alteridade) que consegue manter a respeito do instinto. O
humano se torna mais animal quanto menor é sua capacidade de distanciar-se e
significar as pulsões naturais. Podemos dizer que o animal é guiado pelo
instinto, enquanto o ser humano aprende a ser humano por intermédio da potência
que guia seus instintos. Contudo, ele não será mais humano por negar os
instintos da natureza, senão pela potência de dar sentido e direção ao agir
sobre eles. Não é a mera negação ou repressão dos instintos que define o ser
humano enquanto tal, senão a virtude (arete) de governá-los segundo um estilo
de vida escolhido. A diferença qualitativa entre influência e determinação
torna a ação humana algo qualitativamente diferente do mero ato animal. Só nas
patologias humanas, que apagam a distância e diluem a experiência de
alteridade, há uma identificação entre instinto e agir humano, impedindo a
potência da ação e reduzindo o agir patológico a meros atos induzidos pelas
circunstâncias. Nessas circunstâncias, o ser humano reduzido é isento de
responsabilidade, porque perdeu ou não teve a potência da ação.
A ação humana é sempre valorativa, ela reflete o poder da linguagem e a
potência da criação. Ao simbolizar valorativamente os instintos, o ser humano
transforma as pulsões naturais em ações culturais. Uma tensão agônica percorre
a ação humana no processo de recriar sua natureza biológica em subjetividade
histórica. A condição agônica implica a alteridade e a criação de sentido, a
abertura para o outro e os significados instituídos, transformando os
condicionamentos naturais do seu ser em possibilidades de existir, em formas e
estilos de vida, em modos de subjetivação.
No caso da violência, a distinção que propomos é sobremaneira importante porque
diferencia a mera agressividade animal, que é instintiva e determinante, da
violência humana, que é uma possibilidade, entre outras, de dirigir o instinto
agressivo. A agressividade é uma pulsão da natureza que no resto dos seres
vivos induz seus atos, porém no ser humano é significada simbolicamente pela
potência criativa produzindo o sentido da ação. A potência de distanciar-se das
pulsões agressivas torna o ser humano responsável pela violência que constrói,
assim como o habilita para agir de forma não violenta. A potência do sentido e
sua abertura para a alteridade estabelecem a possibilidade da ação e criam a
responsabilidade ética do sujeito.