OS PROCESSOS DE AQUISIÇÃO DOS TERMOS DO SILOGISMO SEGUNDO A INVESTIGAÇÃO
NOÉTICA DE AVICENA
Avicena dedicou parte das suas investigações naturais ou físicas à alma e ao
modo pelo qual uma das suas atividades mais essenciais, a dizer, o conhecimento
teorético, é realizado, sendo a sua atividade mais essencial a autointelecção.
1 Embora o filósofo as tenha abordado em diferentes obras ao longo da sua vida,
é no "Kitāb al-nafs" da "Shifā'", 2 traduzido para o latim como "De anima",
onde se encontra um exaustivo estudo das faculdades da alma. O fio condutor das
suas cinco seções é a busca por aquela que seria a atividade própria de cada
uma das faculdades tendo em vista não apenas o propósito fundamental, a partir
do qual há uma ação exclusiva para cada uma delas, como também a posse (ou não)
de um órgão apto.
No que toca ao seu quinto livro, inteiramente dedicado ao intelecto e à sua
relação com as outras faculdades da alma, Avicena não se preocupa em detalhar
alguns pontos com os quais se depara ao longo das seções como, por exemplo, o
que são o assentimento e a conceitualização ou o porquê da distinção ontológica
entre o intelecto humano e o intelecto agente. Isto se justifica dada a
inserção da obra no interior da filosofia natural. Partindo do postulado 3
segundo o qual não cabe a uma ciência demonstrar seus próprios princípios,
Avicena adota o procedimento da constatação (īthbat) como modo de começar seus
raciocínios sem ter que, ad infinitum, demonstrar os princípios das
demonstrações e, assim, os princípios dos princípios...
Neste sentido, a compreensão da abordagem epistemológica proposta no "Kitāb al-
nafs" 4 deve levar em consideração o fato de alguns dos seus raciocínios 5
apresentarem limites peculiares ao âmbito de investigação no qual a obra se
encontra, os quais, por vezes, podem não satisfazer as curiosidades do leitor.
Tendo isto em vista, a interpretação que proponho dos processos pelos quais o
intelecto adquire os termos do silogismo se baseia nas seções V.3, V.5 e V.6
desta obra e, na tentativa de explicitar certos pressupostos tomados pelo
filósofo, recorrerei a algumas considerações lógicas e metafísicas.
O texto que se segue dividir-se-á em dois grandes momentos. Primeiramente, após
apontar a insuficiência da afirmação segundo a qual o intelecto conhece por
abstração das formas materiais, mostrarei como o conhecimento que se realiza
através do pensamento possui uma estrutura silogística. Alguns exemplos de
premissas apontam que os termos maior e menor do silogismo são adquiridos por
conceitualização. Contudo, conceitualizar os particulares que se encontram na
imaginação não é suficiente para produzir conhecimento. Para isto, é necessário
que o intelecto intua o termo médio do silogismo e, assim, seja capaz de
assentir o conteúdo das premissas.
Tendo esclarecido como tudo isto se dá, argumentarei contra a posição que nega
qualquer tipo de participação dos particulares e, consequentemente, dos
sentidos internos na produção do conhecimento. Disto resulta a redução do
conhecimento à intuição (ḥads) das formas inteligíveis que se encontram no
intelecto agente. Esta interpretação baseia-se na afirmação aviceniana de que a
atividade de conhecer se mantém mesmo após a morte de modo a ser realizada
apenas por uma faculdade incorpórea que não sucumbe com a morte do corpo.
Assim, a intuição enquanto processo de recepção não mediada dos inteligíveis
responderia perfeitamente às necessidades póstumas da alma. Argumentarei,
recorrendo a alguns exemplos de silogismos, que determinados termos das
premissas apenas são fornecidos ao intelecto pelos sentidos internos.
O segundo momento deste artigo se inicia com a análise de um exemplo de
silogismo demonstrativo apresentado por Avicena no "Kitāb al-burhan" (Livro das
demonstrações). A partir dele e de uma passagem do "K. al-nafs", apontarei as
duas etapas que compõem o ato de conhecer e que são fundamentais para a
compreensão tanto da influência dos sentidos internos quanto da ação que
somente se realiza pelo intelecto. Indicarei os problemas de afirmar que o
pensamento, responsável por produzir um dos tipos de conhecimento descrito em
V.5, é a atividade conjunta entre o intelecto e faculdade cogitativa. Para
isto, valer-me-ei dos critérios de classificação das faculdades perceptivas e
dos argumentos contra a materialidade do intelecto apresentados em V.2.
Contra estas diferentes abordagens da epistemologia de Avicena, defenderei que
o pensamento depende da intuição dos termos médios do silogismo para produzir
conhecimento. Há, portanto, uma ação conjunta entre o intelecto e os sentidos
internos de unificar a multiplicidade e uma ação própria do intelecto de
multiplicar a unidade.
I
O conhecimento ('ilm) é a atividade própria do intelecto teorético de modo a
caber apenas a esta faculdade "a extração dos universais simples a partir dos
particulares por meio da abstração das suas intenções da matéria, das suas
aderências da matéria e dos seus agregados [...]" (Avicena, "K. al-nafs", V. 3,
p. 220), chegando à forma universal desvinculada das qualidades sensíveis que a
acompanham. No entanto, esta breve descrição de como o intelecto conhece não é
suficiente para compreender o que é peculiar a ele e que o torna a única
faculdade capaz de conhecer. Em geral, a abstração (tajrīd, intizā') é
utilizada por Avicena para explicar a relação entre as faculdades perceptivas
da alma, ou seja, os sentidos externos e internos, e as formas materiais. Ainda
que haja variações de grau entre a abstração feita por eles e pelo intelecto, o
termo é igualmente aplicado às atividades realizadas por todos eles.
Falaremos agora sobre as faculdades da sensibilidade e da percepção,
sobre elas com um discurso universal. Dizemos: parece que toda
percepção é, de um certo modo, a apreensão da forma percebida. Se a
percepção é percepção de algo material, então ela é a apreensão da
forma abstraída da matéria por certa abstração, [mas] os tipos de
abstração são diferentes e os seus graus são muitos (Avicena, "K. al-
nafs", II.2, p. 58).
Assim, a abstração está envolvida na descrição da relação entre as formas
materiais e as faculdades da "sensibilidade e da percepção" (idem). Cada uma
destas faculdades separa, a seu modo, a forma da matéria e dos acidentes que a
acompanham. Trata-se não de uma explicação de como isto é feito, mas de uma
descrição do que é feito. 6 Por esta razão, não se aplica apenas ao intelecto.
Stricto sensu, conhecer não é abstrair formas materiais. Cabe, então, a fim de
compreender o que o intelecto faz e que nenhuma outra faculdade sozinha
consegue realizar, a investigação do modo pelo qual o conhecimento ('ilm) é
produzido.
No "Kitāb. al-nafs" (Avicena, "K. al-nafs", V.6, p. 243) e na parte psicológica
do "Dânesh-nâmè" (Avicena, "Le livre de science", pp. 23-24) 7 uma importante
distinção é inserida em vista dos dois modos pelos quais o conhecimento se
realiza. Avicena nomeia-os como conhecimento pelo pensamento ('ilm al-fikr) e
conhecimento simples (al-'ilm al-basī
). A característica do primeiro é o fato de que "[sua]
plena perfeição se completa ao ordenar e compor [formas]" (Avicena, "K. al-
nafs", V.6, p. 243) de modo que as formas são articuladas uma a uma em
proposições. O segundo, o conhecimento simples, é marcado pela ausência de
composição das formas, produzido instantaneamente no intelecto. Embora Avicena
não forneça mais informações acerca da natureza deste segundo tipo de
conhecimento, no "Dânesh-nâmè", ele será associado ao conhecimento dos
primeiros princípios como, por exemplo, "que duas coisas iguais a uma terceira
são iguais entre si" (Avicena, "Le livre de science", p. 23).
Sobre as origens desta distinção, é no "Segundos analíticos" 100b618
(Aristóteles, "Kitāb al-burhan", p. 619) que Aristóteles distingue entre o
conhecimento acompanhado de raciocínio e o conhecimento dos princípios para o
qual não há raciocínio. Embora não seja dito, em detalhes, como este segundo
modo se realiza, Aristóteles considera se tratar do conhecimento dos princípios
que acontece apenas por intelecção ('aql/νοvς). Segundo o seu argumento, apenas
o conhecimento [demonstrativo] e a intelecção são sempre verdadeiros; o
conhecimento [demonstrativo] é acompanhado de raciocínio e o conhecimento dos
primeiros princípios não é; logo, o conhecimento dos primeiros princípios não
se dá por meio do conhecimento demonstrativo, mas por meio da intelecção. Como
Ibn Yunus, tradutor dos "Segundos analíticos" de Aristóteles, bem reconheceu, o
que está em jogo aqui é a distinção entre dois tipos de conhecimento, "já que o
princípio do conhecimento também é conhecimento" (Aristóteles, "Kitāb al-
burhan", p. 619).
Voltando à distinção aviceniana, cuja origem se remonta à distinção
aristotélica, no caso do conhecimento produzido pelo pensamento, para ser capaz
de formular as premissas do silogismo, o intelecto precisa conceitualizar (ta[/
img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0025-gf02.jpg]awwuar) as formas
materiais com o auxílio das faculdades cogitativa 8 e estimativa. 9 Tendo
realizado a conceitualização, 10 o intelecto é capaz de atribuir a intenção
universal (ma'nā kullīa) 11 "animal" à intenção "Zayd", 12 por exemplo. Ainda
com a ajuda da cogitativa e da estimativa, o intelecto formula proposições
empíricas como "Zayd é animal" a fim de serem assentidas. 13 Por mais que a
intenção "animal" possa ser dita de qualquer uma das formas de homem que se
encontram nos sentidos internos, 14 em "Zayd é animal" ela é predicado de um
indivíduo particular e não de todos os indivíduos da espécie. Por isto, a
simples aquisição destas intenções não é suficiente para produzir conhecimento
que, por princípio, 15 é do universal e não do particular. Para que o intelecto
conheça e chegue ao estágio de intelecto adquirido, 16 é necessário que ele
assinta (ya[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0025-gf02.jpg]daqu) a
verdade da proposição "Zayd é animal" através da demonstração silogística. 17
Como conhecer é conhecer a causa, o intelecto verifica que "Zayd é animal" após
a aquisição do termo médio do silogismo, a causa. Embora os termos menor e
maior sejam adquiridos por conceitualização, isto não pode ser dito do termo
médio dada a sua natureza. 18
Em outras palavras, tendo em vista esta estrutura silogística característica do
conhecimento, o que não se aplica ao conhecimento simples, mas apenas ao
conhecimento produzido pelo pensamento, o intelecto lida com termos que
ocuparão a posição maior, média e menor no interior das premissas do silogismo.
Contudo, há uma dificuldade que se apresenta com respeito a este segundo tipo
de conhecimento. Como o termo médio do silogismo é princípio e causa da
conclusão, ele não pode ser adquirido por nenhum processo de conceitualização,
caso contrário, seria dividido em termos mais simples e assim estes termos
serem os princípios e não ele. Poder-se-ia dizer, então, que este princípio
também é obtido espontaneamente, ou seja, sem mediação dos sentidos internos?
Aristóteles ("Kitāb al-hurhan", 89b10, p. 547) utiliza o termo [/img/revistas/
kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0025-gf03.jpg]ads (αγκίνοια) a fim de enunciar
como, instantaneamente, o intelecto apreende o termo médio. Assim, não se trata
do resultado nem de uma intelecção ('aql), nem de um pensamento (fikr), mas de
uma intuição.
Avicena ("K. al-nafs", V.6, pp. 248-9) mantém este modo de aquisição do termo
médio mencionado por Aristóteles, acrescentando a ele uma nova opção. Em V.6, o
critério para a distinção entre os modos de aquisição do termo médio é baseado
na autossuficiência do intelecto, ou seja, trata-se de um processo mediado ou
sem mediação: por um lado, o intelecto adquire o termo médio por si mesmo, 19 o
que é próprio da intuição; por outro, caso o intelecto não seja capaz de
adquirir por si e precise de um professor que lhe forneça o termo médio, ele é
obtido por aprendizado. No caso da intuição, por ser "uma ação própria da
mente" (Avicena, "K. al-nafs", V.6, p. 249), ou melhor, "uma espontânea
atividade do intelecto material" (Gutas, 1988, p. 171) que não necessita de um
professor para conduzir o raciocínio, ela "acontece ao homem por ele mesmo e
[ele] articula o silogismo em sua mente sem professor" (Avicena, "K. al-nafs",
V.6, p. 249). São estas as poucas considerações feitas por Avicena no "Kitāb
al-nafs" acerca da intuição.
Como reconhece Gutas (2001, p. 14), as duas alternativas mencionadas
anteriormente podem ser reduzidas a um único processo na medida em que os
primeiros professores não foram ensinados, mas intuíram os termos médios sem
que um outro homem conduzisse o raciocínio. Deste modo, embora alguns homens
obtenham dos seus mestres os termos que ocuparão a posição média do silogismo,
o fato de a origem destes termos ser a intuição permite considerá-la como
anterior ao aprendizado. Trata-se, portanto, da "disposição poderosa" do
intelecto, cujo grau mais elevado é caracterizado pelo intelecto não precisar
da conceitualização e do assentimento para conhecer; sua fase de intelecto
material 20 corresponde ao conhecimento em ato.
Contudo, Avicena não atribui este tipo de intuição a todos os homens, mas ele
se aplica apenas àqueles que conhecem imediatamente com a aquisição dos termos
médios, quando o intelecto material é chamado de intelecto sagrado ('aql
qudsī); 21 trata-se do indivíduo capaz de descobrir o termo médio
instantaneamente e sem a mediação do pensamento, a cujo intelecto é atribuído o
termo intelecto sagaz (dhakā'). 22 O profeta 23 é um dos exemplos de intelecto
sagaz dada a sua habilidade para adquirir todos os inteligíveis.
[...] de modo breve, a versão padrão é a que se segue. Todo
conhecimento inteligível, isto é, todo conhecimento não a priori dos
universais que depende do raciocínio silogístico é acompanhado pelo
descobrimento do termo médio em um silogismo. O termo médio pode ser
adquirido de dois modos, pelo aprendizado ou pela intuição, a qual é
um movimento da mente de modo a adquirir espontaneamente o termo
médio. No limite, o aprendizado é redutível à intuição na medida em
que o primeiro mestre, o qual não foi instruído por ninguém,
necessariamente descobriu o termo médio por sua intuição. Assim, todo
conhecimento inteligível é adquirido apenas por intuição. (Gutas,
2001, p. 14)
A análise de Gutas exposta na passagem mencionada corrobora com a interpretação
proposta segundo a qual a aquisição do termo médio é acompanhada pelo
raciocínio silogístico. 24 Seu raciocínio pode ser divido em duas etapas, uma
cuja conclusão é: o conhecimento inteligível é realizado por intuição e por
aprendizado; a segunda, cuja conclusão é: o conhecimento inteligível se reduz à
intuição. A primeira etapa pode ser assim reformulada: o conhecimento
inteligível é realizado pela aquisição do termo médio; a aquisição do termo
médio é realizada por intuição e aprendizado; logo, o conhecimento inteligível
é realizado por intuição e aprendizado. A segunda etapa pode ser assim
reformulada: o conhecimento inteligível é obtido por intuição e aprendizado; o
aprendizado se reduz à intuição; logo, o conhecimento inteligível é obtido por
intuição.
O problema da interpretação de Gutas vincula-se à conclusão da segunda etapa;
da afirmação de que o conhecimento não se reduz à intuição do termo médio,
decorre que a intuição sozinha não produz conhecimento, mas participa da sua
produção. 25 Argumentarei em favor desta interpretação a partir da descrição de
como ocorre a chegada ao conhecimento.
Conforme a passagem da seção V.1, "a chegada ao conhecimento acontece por
assentimento e conceitualização a partir das [coisas] inteligíveis conhecidas"
(Avicena, "K. al-nafs", V.1, p. 206). Portanto, o conhecimento envolve tanto a
aquisição das intenções como também o assentimento às proposições que são
formuladas acerca destes termos. Retornando ao exemplo da proposição "Zayd é
animal", a fim de verificar a sua verdade ou falsidade, é necessário que o
intelecto, com a ajuda dos sentidos internos, já tenha conceitualizado as
intenções "Zayd" e "animal". Agora, ele é capaz de ordenar os termos na
proposição "Zayd é animal". É esta primeira etapa que o prepara para intuir o
termo ("homem") que ocupará a posição média da proposição, o qual é a causa
formal da conexão entre o termo menor "Zayd" e o termo maior "animal" na medida
em que ele diz o que Zayd é. Após intuir o termo médio (ou tendo sido ensinado
por um professor), as outras premissas do silogismo podem ser articuladas:
"Zayd é homem" e "todo homem é animal".
Se se excluem os extremos que Avicena descreve em V.6 ("K. al-nafs", V.6, pp.
248-9) e o caso do intelecto sagrado, pode-se dizer que, no caso da maior parte
dos homens, a intuição se combina com a formulação do silogismo. 26 Algumas
passagens indicam que, à exceção do profeta, a aquisição do termo médio não
resulta em conhecimento imediato. Como a própria expressão "termo médio do
silogismo" sugere, o intelecto precisa dos termos menor e maior para que o
silogismo se complete. Caso o conhecimento se reduzisse à aquisição do termo
médio do silogismo, 27 o intelecto apenas conheceria "homem" e seria incapaz de
unificar a multiplicidade e multiplicar a unidade, ou seja, seria incapaz de
conhecer que "Zayd é homem" e "todo homem é animal", pois ele não teria
conceitualizado, a partir das formas sensíveis, as intenções universais "Zayd"
e "animal".
II
Porque o termo médio é parte de um silogismo resultante em conhecimento, a
continuação do raciocínio silogístico iniciado com a conceitualização dos
particulares não acontece sem a intuição destes termos médios. Hasse (2000, p.
181) propõe uma análise da função que eles exercem a partir do silogismo
mencionado por Avicena no "Kitāb al-burhan" ("Livro das demonstrações"), cuja
origem se remonta a Aristóteles ("K. al-burhan", 89b11).
Intuição é o movimento desta faculdade em direção à aquisição do
termo médio por si mesmo. Por exemplo, se uma pessoa vê a lua e que
ela apenas brilha, segundo às suas fases, do lado voltado para o sol,
então, sua mente, pela intuição, obtém o termo médio que é: a causa
da lua brilhar é o sol. (Avicena, "Kitāb al-burhan", p. 259. Apud
Hasse, 2000, p. 181)
Hasse reconstrói o silogismo mencionado na passagem anterior do seguinte modo:
tudo cuja causa da luz é o sol brilha apenas do lado voltado para o sol. A lua
possui o sol como causa da sua luz; logo, a lua brilha apenas do lado voltado
para o sol. Neste caso, o termo médio "possuir o sol como causa da luz" fornece
a causa real do evento descrito na conclusão. No entanto, há uma distinção
entre a ordem da enunciação do silogismo e a ordem da sua descoberta. 28 O
intelecto não parte da conclusão universal "tudo cuja causa da luz é o sol
brilha apenas do lado voltado para o sol", mas da premissa empírica "a lua
brilha apenas do lado voltado para o sol". Caso contrário, o conhecimento que
resulta do silogismo não seria universal, mas particular visto que a conclusão
reconstruída por Hasse é "a lua brilha apenas do lado voltado para o sol". Para
que isto fique mais claro, cabe compreender a distinção proposta por Avicena em
V.5 entre dois momentos do conhecimento: a unificação da multiplicidade e a
multiplicação da unidade.
[...] quando [a alma] se volta para aquelas formas imaginadas e chega
nela a luz do intelecto agente por um tipo de conjunção, elas são
preparadas de modo que se originem nela, a partir da luz do intelecto
agente, as abstrações destas formas das misturas. Logo, as coisas
essenciais são distinguidas, pelo intelecto, dos acidentes e do que,
nestas coisas imaginadas, assemelham-se e se diferenciam. As
intenções, as quais não se diferenciam nestas [coisas] vêm a ser uma
intenção única na essência do intelecto por meio de comparação entre
as [suas] semelhanças. Contudo, [as intenções] que estão [nas coisas
imaginadas] vêm a ser múltiplas devido à comparação entre as
diferenças. O intelecto possui a capacidade de multiplicar a unidade
e de unificar a multiplicidade no caso das intenções. A ação de
unificar o múltiplo acontece sob dois aspectos: o primeiro no qual as
intenções múltiplas se tornam diferenciadas em número na imaginativa;
quando não se diferenciam com respeito à definição, trata-se de uma
única intenção. No segundo aspecto, a partir das [diferentes]
intenções dos gêneros e das diferenças, uma única intenção é composta
através da [formulação da] definição. A [ação de multiplicar o uno] é
contrária a estes dois aspectos e isto está entre as propriedades do
intelecto humano, mas não pertence às outras faculdades que percebem
o múltiplo enquanto múltiplo nem [percebem] a unidade enquanto una.
Não é possível que elas percebam a unidade simples, mas [apenas] a
unidade da perspectiva segundo a qual ela é um todo composto de
coisas e de seus acidentes. Não é possível que [as faculdades]
separem o que é acidental e o remova do que é essencial. (Avicena,
"K. al-nafs", V.5, p. 236)
A partir da afirmação "o intelecto possui a capacidade de multiplicar a unidade
e de unificar a multiplicidade no caso das intenções", Avicena distingue dois
momentos: um quando "as intenções, as quais não se diferenciam nestas [coisas],
vêm a ser uma única intenção na essência do intelecto por meio de comparação
entre as [suas] semelhanças" e outro quando o intelecto, por si, é capaz de
multiplicar o termo médio.
A ação de unificar o múltiplo acontece no momento em que as diferentes formas
particulares não distinguem entre si com respeito à descrição e, por isto,
tornam-se uma única intenção como, por exemplo, quando se agrupa Zayd e 'Amr na
mesma intenção "mortal" ou "animal" ou quando o intelecto agrupa diferentes
intenções em uma única intenção que não pode ser reduzida a nenhuma das
intenções anteriores como, por exemplo, "animal" e "que ri" na descrição de
"homem", o qual não pode ser reduzido a "animal" ou "que ri". É com a ajuda das
faculdades cogitativa e estimativa que o intelecto unifica a multiplicidade em
intenções ou universais simples. Somente após a conceitualização dos
particulares, as suas definições podem ser comparadas e eles agrupados sob a
mesma intenção.
No caso de multiplicar a unidade, trata-se da atividade exclusiva do intelecto
dado que somente ele lida com os termos médios e com as intenções universais.
Na medida em que os sentidos internos não percebem a unidade simples ou a
humanidade, mas apenas a "unidade da perspectiva segundo a qual ela é um todo
composto de acidentes" como, por exemplo, Zayd ou 'Amr, "não é possível que [os
sentidos] separem o que é acidental e o remova do que é essencial" nem que eles
construam uma premissa tal como "Todo homem é animal" ou "Tudo cuja causa da
luz é o sol brilha apenas do lado voltado para o sol". Nestes casos, as
intenções conceitualizadas (animal/brilhar apenas do lado voltado para o sol)
são atribuídas ao termo médio do silogismo adquirido por intuição (homem/ter o
sol como causa da luz). Na medida em que a intenção está diretamente vinculada
aos particulares, uma vez tendo sido apreendida a partir deles, os termos
médios podem ser, inequivocamente, atribuídos a cada um dos particulares.
Igualmente se diz que Zayd, 'Amr, João, Sócrates etc. são homens. Neste
sentido, a unidade representada pelo termo médio é multiplicada.
Deste modo, pode-se considerar que Avicena ("K. al-nafs", V.5, p. 236) descreve
como o conhecimento produzido pelo pensamento acontece a partir de duas grandes
etapas: a unificação da multiplicidade por ordenação dos particulares
semelhantes em uma única descrição e a aplicação do universal adquirido a
diferentes particulares da mesma espécie, ou seja, a multiplicação da unidade.
Mesmo diante desta descrição das etapas do conhecimento, há uma certa
dificuldade em estabelecer o exato momento no qual o intelecto se desocupa dos
sentidos internos, principalmente das faculdades cogitativa e estimativa, e age
por si mesmo. Contrariando a interpretação 29 segundo a qual todas as fases do
pensamento são realizadas pelo intelecto em conjunto com a faculdade
cogitativa, algumas passagens 30 parecem indicar que é na fase (martaba) de
intelecto adquirido, quando o intelecto não mais se vale dos sentidos. Deste
modo, não se trata de o "intelecto já estar, por definição, envolvido nas
operações da faculdade cogitativa" (Black, 2013, p. 72), mas é a imaginação
cogitativa que está envolvida nas operações do intelecto. É ele que a utiliza
em uma determinada etapa do ato de conhecer, não o contrário, pois o
conhecimento ('ilm) é atividade própria do intelecto teorético, não de um
sentido interno.
O primeiro argumento contra a interpretação de a cogitativa conhecer pelo
pensamento e que ele é uma atividade conjunta entre ela e o intelecto
fundamenta-se na natureza do pensamento. Considera-se que as "operações do
pensamento discursivo" são "análise e síntese" (Black, 2013, p. 72) e tendo em
vista que é função da imaginação cogitativa compor formas, conclui-se que o
pensamento é realizado pela imaginação cogitativa que "tem um tipo de acesso
aos inteligíveis universais" (Black, 2013, p. 69) e é capaz de os compor. No
entanto, são dois os grandes problemas desta formulação. O primeiro diz
respeito ao fato de a cogitativa não lidar com formas inteligíveis, mas apenas
com as materiais.
Avicena ("K. al-nafs", V.2, pp. 211-4) 31 apresenta um argumento contra o fato
de o substrato dos inteligíveis ser um corpo ou uma dimensão entre as
dimensões. 32 Tendo em vista as considerações avicenianas contra o fato de os
inteligíveis possuírem como substrato uma faculdade corpórea e considerando que
a faculdade cogitativa está "localizada na concavidade central do cérebro"
(Avicena, "K. al-nafs", I.5, p. 45), nenhuma forma universal é objeto próprio
de um sentido interno, mas do intelecto, a faculdade incorpórea. 33 assim, do
mesmo modo que Avicena utiliza a natureza das formas materiais e das intenções
sensíveis como critério para a distinção entre os sentidos internos, 34 aqui, a
natureza dos inteligíveis também é utilizada como critério para diferenciar o
intelecto das outras faculdades.
O segundo problema põe-se em vista do modo pelo qual o pensamento é realizado.
Como foi visto, o conhecimento produzido pelo pensamento pressupõe
conceitualização e assentimento. 35 Não há dúvidas acerca da participação da
cogitativa e da estimativa na conceitualização dos particulares. 36 Contudo,
Avicena é claro sobre a exclusão da participação dos sentidos na multiplicação
da unidade: "a [ação de multiplicar a unidade] é contrária a estes dois
aspectos e isto está entre as propriedades do intelecto, mas não pertence às
outras faculdades que percebem a multiplicidade [enquanto] multiplicidade"
(Avicena, "K. al-nafs", V.5, p. 235). Em V.3, após explicitar os modos pelos
quais os sentidos auxiliam o intelecto, Avicena ressalta que, depois de ser
auxiliado pelo corpo na aquisição dos princípios da conceitualização e do
assentimento, ele "retorna a si" (Avicena, "K. alnafs", V.3, p. 222). Assim, a
"ajuda e emprego da imaginação e da estimativa" (idem) não fornecem elementos
suficientes para concluir que o pensamento se reduz à ação de qualquer uma
delas.
Há uma distinção entre a ordenação que a substância incorpórea realiza das
intenções universais e a ordenação que a imaginação realiza, 37 corroborando o
fato de ser o intelecto que lida com inteligíveis:
Por exemplo, quando você divide as intenções dos termos indicados
pela expressão "Todo homem é animal" [que está] presente na sua alma,
você descobre que a intenção de cada um [dos termos] não é
conceitualizada exceto pela substância incorpórea e descobre que é
próprio [da conceitualização realizada por esta substância incorpórea
colocar umas intenções] antes e [outras] depois. Se você rearranja
esta [expressão] de modo que a ordem das intenções conceitualizadas é
a ordem oposta da expressão "animal é predicado de todos os homens"
não duvida que esta ordem, sendo a ordem das intenções universais,
apenas é ordenada pela substância incorpórea. De certo ponto de
vista, ela também é ordenada pela imaginação como [algo] perceptível,
não como inteligível. Assim, as duas ordenações são diferentes e o
inteligível simples [está relacionado] à primeira [ordenação]
(Avicena, "K. al-nafs", V.6, p. 241).
Avicena menciona que as intenções dos termos da proposição "Todo homem é
animal" somente são conceitualizadas pelo intelecto. Embora esta afirmação não
seja justificada aqui, uma das suas características é o fato de o intelecto
colocar "[umas intenções] antes e outras depois" (Avicena, "K. al-nafs", V.6,
p. 241). A diferença entre a ordenação intelectual e a ordenação imaginativa é
o tipo de coisa que é ordenado: coisas inteligíveis ou coisas sensíveis. Assim,
a passagem estabelece uma distinção radical entre a ordenação do que é
percebido pelos sentidos, no caso, pela imaginação, e a ordenação realizada
pelo intelecto. Deste modo, ainda que Avicena use a imaginação em sentido
genérico, há uma diferença na ordenação que ela e o intelecto realizam.
Meu segundo argumento contra o pensamento ser a atividade própria da faculdade
cogitativa e em favor de ser uma atividade própria do intelecto baseia-se na
natureza do intelecto. Aqui tenho em mente a sua independência das faculdades
do corpo e as fases pelas quais ele passa até chegar ao conhecimento em ato.
Diferentemente do intelecto prático que necessita "do corpo e das faculdades
corpóreas" (Avicena, "K. al-nafs", V.1, p. 208) para realizar "todas as suas
ações" (idem), o intelecto teorético, por ser uma "substância independente"
(idem), "é capaz de agir por si mesmo" (idem), tendo sua ação própria
determinada por "um primeiro propósito (bi-al-qasd al-awwal)" (Avicena, "K. al-
nafs", I.4, p. 36).
São quatro os argumentos apresentados em V.2 (Avicena, "K. al-nafs", V.2, pp.
109-130) na defesa da imaterialidade e independência do intelecto de qualquer
substrato corpóreo: a natureza dos inteligíveis, o fato de os inteligíveis
serem infinitos em potência, a autointelecção realizada pelo intelecto
(constatada pelo experimento mental do homem suspenso no ar, o qual não é um
argumento, mas o reconhecimento da independência da alma e da sua
substancialidade) 38 e o fato de as faculdades corpóreas se fatigarem com o
uso. É estranho considerar que o intelecto dependa completamente da cogitativa
para pensar ainda que todos estes argumentos apontem a sua independência com
respeito a qualquer faculdade corpórea.
Assim, assumindo a independência do intelecto e o fato de ele possuir uma ação
própria, 39 cabe investigar sob qual critério esta ação é determinada. A partir
dos princípios de diferenciação das faculdades da alma, 40 mais
especificamente, do princípio que se baseia no primeiro propósito, ou intelecto
e cogitativa possuem ações diferentes ou as duas faculdades realizam a mesma
ação própria. Caso se assuma a segunda alternativa, infringe-se o princípio
segundo o qual "cada faculdade, por essência e fundamento é princípio para uma
determinada ação" (idem); infringe-se, ainda, um segundo princípio de
diferenciação, 41 cuja distinção entre o intelecto e os sentidos internos
fundase no fato de apenas o intelecto abstrair completamente a forma material
das qualidades sensíveis.
Deste modo, assumir que ambos realizam a mesma ação infringe dois dos critérios
de classificação das faculdades da alma apresentados em I.4 e II.2, um que se
baseia no primeiro propósito e o outro no grau de abstração das formas.
Em várias passagens do "Kitāb al-nafs", 42 depara-se com um momento no qual o
intelecto isola-se das outras faculdades. A ideia comum é que, após ter
adquirido os primeiros princípios da conceitualização, o intelecto "retorna
para si" (Avicena, "K. al-nafs", V.3, p. 222) ou "isola-se em suas ações"
(Avicena, "K. al-nafs", V3, p. 223). Assim, há um momento no qual ele não
precisa mais do auxílio de nenhum dos sentidos, nem mesmo da cogitativa, para
conhecer. Este momento é a fase de intelecto adquirido, quando o intelecto já
conceitualizou os particulares e apenas precisa se conectar com o intelecto
agente, pois não é necessário conceitualizá-los novamente. Se a única coisa
necessária é o intelecto se conectar com o intelecto agente, isto somente se
realiza por uma faculdade imaterial.
Nesse caso, o que resulta para [a alma racional], então, é um
intelecto adquirido. Tão somente chama-se intelecto adquirido porque,
como ficará claro para nós, o intelecto em potência só sai para o ato
por causa de uma inteligência que está sempre em ato por uma espécie
de ligação que imprime nele formas adquiridas à partir do que lhe é
extrínseco. Além do mais, esses são os graus das faculdades que se
chamam intelectos teoréticos e, quando do intelecto adquirido,
completa-se o gênero animal e, a partir dele, a espécie humana. Lá, a
faculdade humana já assimilou os princípios primeiros da existência
em sua totalidade. (Avicena, "K. al-nafs", I.5, p. 50)
É imprescindível, a fim de o intelecto chegar ao grau de intelecto adquirido,
já ter conceitualizado os "primeiros princípios" (idem) e se voltar para a
causa da sua atualização, o intelecto agente. 43 Deste modo, as formas
adquiridas são impressas no intelecto após ele já ter "assimilado os princípios
primeiros da existência em sua totalidade" (idem).
III
A partir da argumentação exposta, conclui-se que há um tipo de conhecimento
teorético produzido pelo pensamento e pela intuição dos termos médios. O outro
tipo de conhecimento, dito simples, é entendido como a descoberta instantânea
dos primeiros princípios, cuja especificidade, no "Kitāb al-nafs", é se
realizar sem ordenação ou composição.
O conhecimento produz-se pelo pensamento quando o intelecto unifica a
multiplicidade a partir das formas particulares e multiplica a unidade. Em
vista dos exemplos de silogismo analisados, este conhecimento não se reduz à
ordenação e composição das intenções com emprego dos sentidos internos nem à
intuição dos termos médios. Ele possui uma estrutura silogística cujas
premissas são compostas do termo menor e maior, que são conceitualizados, e do
termo médio recebido a partir do intelecto agente.
Ao afirmar que o intelecto conhece por conceitualização e assentimento, Avicena
especifica melhor o sentido de dizer que a faculdade racional abstrai por
completo as formas materiais. A abstração mostrou-se insuficiente para a
compreensão dos momentos que compõem o conhecimento em vista da aquisição dos
termos do silogismo. Por isto, a conceitualização apresentase como requisito
fundamental para a apreensão das intenções universais, possibilitando ao
intelecto formular, a partir delas, proposições empíricas a serem assentidas.
Deste modo, a redução do conhecimento à intuição dos termos médios ou à ação de
combinar formas realizada pela cogitativa não são coerentes com a epistemologia
aviceniana no "Kitāb al-nafs". A consequência de assumir a primeira posição é a
aniquilação da estrutura proposicional do conhecimento a não ser que se assuma
ou que os outros termos do silogismo também são intuídos como, por exemplo,
Zayd no silogismo "todo homem é mortal, Zayd é homem, logo, Zayd é mortal", 44
ou que a intuição se combina com a conceitualização e o assentimento, isto é,
com o pensamento. 45
A natureza dos inteligíveis e do intelecto, marcadas pela imaterialidade, e a
independência de uma faculdade corpórea apontam para a existência de uma ação
que exclusivamente pertence ao intelecto. Por mais que as faculdades cogitativa
e estimativa colaborem com ele, sua ação de construir silogismos e chegar a um
novo conhecimento a partir do que já foi conhecido, ou seja, os princípios, não
se reduz à composição de formas sensíveis. Portanto, algumas passagens do
"Kitāb al-nafs" parecem indicar que a interpretação do pensamento como uma ação
própria da faculdade cogitativa contraria não apenas os critérios de
classificação das faculdades como também as fases envolvidas no ato de pensar,
o qual não se reduz à conceitualização das formas pela imaginação. Nem mesmo se
Avicena reduzisse o pensamento à ordenação de inteligíveis, ele seria realizado
pela cogitativa, pois os inteligíveis não são objeto de uma faculdade corpórea.
1Avicena apresenta, no "Kitāb al-nafs" I.1 e V.7, duas versões do experimento
mental do homem suspenso no ar a fim de apontar que o homem é capaz de realizar
a atividade de inteligir sua própria existência (autointelecção) de modo
independente do corpo e das faculdades corpóreas. Cf. A._R._D._Alwishah,_2006;
R._Arnaldez,_1972; D._Black,_2012; D._Black,_2008; A. Hasnawi, 1987; M.
Marmura,_1986; S._Westra,_1992.
2O "K. al-shifā'" (Livro da cura) foi composto por Avicena na primeira metade
do século XI, entre 1020-7. Ele é dividido em lógica, física, matemática e
metafísica, sendo o "K. al-nafs" o quinto livro que compõe a parte dedicada à
física. Este se divide em cinco livros. O primeiro fornece a prova da
existência da alma, a sua definição geral, uma primeira indicação da sua
substancialidade e independência do corpo e, por fim, uma classificação e
investigação de algumas das suas funções. O segundo livro se inicia com uma
análise das ações próprias da alma vegetal e, em seguida, passa ao estudo das
faculdades da percepção, encerrando com a análise de quatro dos cinco sentidos
externos. O terceiro livro é inteiramente dedicado ao quinto sentido externo, a
visão. O quarto livro trata dos sentidos internos, dos critérios a partir dos
quais eles são diferenciados e das ações peculiares a cada um deles. O quinto
livro investiga as ações próprias da faculdade racional da alma.
3Cf. A._Bertolacci,_2007, pp. 61-98.
4Doravante "K. al-nafs", seção e página. Salvo indicação em contrário, todas as
traduções são minhas.
5Tem-se como exemplo o raciocínio formulado por Avicena (K. al-nafs I.1, p. 4)
para mostrar que a alma é o princípio responsável pelas atividades dos seres
vivos. Assim, o filósofo já inicia a seção assumindo que eles são compostos de
corpo e alma.
6No "K. al-burhan" ("Livro das demonstrações"), Avicena associa a abstração
realizada pelo intelecto à conceitualização: "se conceitualizar o homem no
intelecto ao defini-lo estivesse vinculado a uma medida, posição ou algo
similar, todo homem compartilharia [estas coisas]. Contudo, esta magnitude que
se observa pelos sentidos, esta posição, este lugar, etc., vinculam-se ao homem
apenas devido à matéria que lhe é particular. Assim, obviamente, na medida em
que homem é conceitualizado no intelecto pela definição, é algo abstraído pelo
intelecto da matéria e dos seus acidentes e, como tal, não é algo que possa ser
obtido pela percepção sensível" (Avicena, "Book of demonstrations", pp. 154-3).
7Esta distinção também se encontra no "Compêndio sobre a alma". Cf. Avicena,
"Compêndio", 8, §2. In: Gutas,_2013, p. 5.
8A faculdade cogitativa corresponde à imaginação compositiva nos animais. A
diferença entre elas se deve à faculdade cogitativa estar sob o controle do
intelecto, enquanto a compositiva realiza suas combinações de modo independente
e, por isto, produz sonhos e devaneios. É esta última que distrai a
inteligência, desviando-a das suas atividades próprias. Cf. D._Black,_2013, pp.
60-70.
9Wolfson defende que as origens da faculdade estimativa podem ser remontadas a
determinadas funções atribuídas à fantasia por Aristóteles. Deste modo, as
necessidades que levaram a acrescentar outra faculdade ao grupo dos sentidos já
presentes em Aristóteles não correspondem ao desejo de suprir uma deficiência,
dado que a sugestão da existência de tal faculdade é feita pelo próprio
Aristóteles ("Historia animalium" VIII.1, 588a, pp. 29-31); a faculdade da
sagacidade, prudência e antecipação, que Aristóteles atribui aos animais,
corresponde às descrições árabes e escolásticas de wahm e aestimatio (Cf. H._A.
Wolfson,_1935).
10Aqui faço um uso genérico do termo conceitualização. Avicena, em V.3,
distingue três tipos de conceitualização. Segundo Black, trata-se da
conceitualização em ato, da "memória intelectual", ou seja, da retomada de
formas que já foram anteriormente conceitualizadas e, por fim, da
conceitualização espontânea (Cf. Black,_2013, p. 74).
11Existem dois tipos de intenção: própria ou material e comum ou universal.
Aprimeira diz respeito à intenção apreendida a partir de um indivíduo singular,
enquanto a segunda se refere à intenção que é atribuída a todos os membros da
espécie (Cf. D._Black,_1993; C._Di_Martino,_2006).
12Ainda que o termo Zayd seja uma intenção obtida por conceitualização, ele não
é universal, mas uma intenção particular. Trata-se de um nome que denota um
indivíduo singular; ainda que possa ser dito de outro indivíduo, o seu sentido
não será o mesmo, pois o Zayd dito de um e do outro é diferente na medida em
que os indivíduos denotados são diferentes.
13É através do silogismo que o intelecto assente ou verifica a verdade de uma
proposição (Cf. Avicena, "Le livre de science", p. 48).
14São cinco os sentidos internos: sentido comum, imaginação retentiva,
imaginação cogitativa, estimativa e memória (Cf. C._Di_Martino,_2008).
15Cf. Aristóteles, "Kitāb al-burhan", pp. 516-526.
16Cf. Avicena, "K. al-nafs", V.6, pp. 241-2; H._Davidson,_1992, pp. 86-8.
17Tendo em vista os dois tipos de demonstração (burhān innā e burhān limā),
neste caso, trata-se da burhān limā, pois é a investigação do porquê de tal
fato. A conceitualização é responsável pelo intelecto conhecer o que algo é.
Assim, a investigação do porquê fornece a causa de algo ser o que é (Cf. S.
Arif,_2000, p. 101).
18No "K. al-burhan", 84b 20-24, Aristóteles afirma a indispensabilidade dos
termos médios sem os quais não existe demonstração. Conhecemos algo quando
sabemos a causa, a qual responde pelo por quê. Enquanto causa, ele é
essencialmente anterior. O que garante sua anterioridade é o fato de se
produzir, no intelecto, a partir de um inteligível que se encontra no intelecto
agente, sendo este anterior e mais perfeito que o intelecto humano.
19Sobre a origem do termo médio, ele é emanado a partir do intelecto agente. Há
uma relação de causalidade entre o intelecto agente e o intelecto humano na
medida em que aquele, no "K. al-nafs" V.5, é apontado como causa da atualização
das formas no intelecto humano. Contudo, não me dedicarei a esta relação do
ponto de vista do intelecto agente, pois este artigo parte do princípio de que
o conhecimento é uma produção humana e não uma recepção passiva de formas.
Ainda que o intelecto intua os termos médios do intelecto agente, a ação de
intuir é própria do homem, enquanto a ação de emanar é própria dos intelectos
celestes, dentre eles o intelecto agente. Na medida em que a emanação ou fluxo
das formas está sempre acontecendo, é necessário que o intelecto humano se
volte para esse fluxo e, com a ajuda do termo médio, complete a estrutura
silogística peculiar ao conhecimento.
20Sobre as fases do intelecto cf. M. Secti, 2006, pp. 7-28.
21Segundo Sebti_(2006,_pp._7-28), este grau do intelecto humano não é um quinto
grau do intelecto (os quatro graus são intelecto material, em hábito, em ato e
adquirido), mas um momento do intelecto de alguns homens caracterizado pela
plena capacidade de receber inteligíveis do intelecto agente de modo
instantâneo e sem ter que realizar uma preparação para tal.
22Cf. A._M._Goichon,_1938, §262, p. 132.
23Sobre a profecia na teoria de Avicena cf. D._N._Hasse,_2000, pp. 154-65.
24Uma outra passagem que Gutas traduz aponta para a relação entre pensamento e
intuição: "pensamento (fikr) às vezes intui (ta[/img/revistas/kr/v56n131//0100-
512X-kr-56-131-0025-gf03.jpg]disu) a verdade e discerne o bom, mas ambos variam
com respeito ao aumento e ao decréscimo. Todos são acompanhados pela intuição
do termo médio sem instrução (taʻlīm). Não é impossível, contudo, que uma das
almas que brilha com a faculdade sagrada esteja constantemente intuindo coisas
devido ao seu intenso contato com o intelecto agente [...]". Avicena, "Al-
hidāya", pp. 293-4. Apud D. Gutas, 2001, p. 5.
25Meu raciocínio pode ser assim reformulado: a intuição é a aquisição do termo
médio do silogismo. A aquisição do termo médio do silogismo participa da
produção do conhecimento. Logo, a intuição participa da produção do
conhecimento.
26Em algumas passagens Avicena vincula a intuição ao silogismo: "Sem dúvida, se
as coisas conhecidas pela intuição foram descobertas pelos mestres destas
intuições [e] depois as transmitiram aos seus aprendizes, então, é possível que
aconteça ao homem a intuição por si mesmo e que articule o silogismo na sua
mente sem professor" (Avicena, "K. al-nafs", V.6, p. 249).
27Arif considera que a intuição produz conhecimento intuitivo, o qual é um dos
sentidos que ele atribui ao termo. Os sinônimos de [/img/revistas/kr/v56n131//
0100-512X-kr-56-131-0025-gf03.jpg]ads são: maʻrif, mulā[/img/revistas/kr/
v56n131//0100-512X-kr-56-131-0025-gf03.jpg]a[/img/revistas/kr/v56n131//0100-
512X-kr-56-131-0025-gf04.jpg]a, i[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-
131-0025-gf02.jpg]ābah, yaq[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0025-
gf04.jpg]ah, fahm, ta[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0025-
gf03.jpg]qīq, ta[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0025-gf03.jpg][/
img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0025-gf02.jpg]īl, iqtinā[/img/
revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0025-gf02.jpg], fa[/img/revistas/kr/
v56n131//0100-512X-kr-56-131-0025-gf01.jpg]ān e fi[/img/revistas/kr/v56n131//
0100-512X-kr-56-131-0025-gf01.jpg]n. Nas suas palavras: "para intuição no
primeiro sentido, isto é, como uma faculdade mental da cognição, Ibn Sina usa
alguns termos familiares como intelecto ou razão (ʻaql), faculdade inata (fi[/
img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0025-gf01.jpg]ra), mente (khirad)
e aptidão mental (quwwat al-nafs). Michot descreve intuição como a capacidade
de possuir conhecimento sem recebê-lo de um mestre ou por reflexão, "est un
fait d'experience". Cf. S._Arif,_2000, pp. 99-100; J._R._Michot,_1986, p. 83,
nota 91.
28Em 94b22-36, Aristóteles afirma que o silogismo procede disto que foi
adquirido por último mesmo se o seu princípio são as coisas adquiridas
primeiro.
29D._Black,_2013, pp. 59-81.
30Avicena, "K. al-nafs", I.5, p. 50; V.6, p. 243; V.6, p. 248.
31Cf. J. McGinnis,_2010, p. 255.
32Cf. Avicena, "K. al-nafs", V.2, pp. 211-4; J. McGinnis,_2010, p. 255.
33
Segundo Avicena ("K. al-nafs", V.2, p. 214): "as formas inteligíveis são
obtidas por nós [através de uma] substância
incorpórea".
34Cf. "K. al-nafs", I.5, pp. 42-3.
35Cf. Avicena, "Le livre de science", p. 21.
36Cf. Avicena, "K. al-nafs", V.3, pp. 221-2.
37Segundo Black, "em sentido estrito, para Avicena, não existe nenhuma
composição e divisão real dos universais exceto acidentalmente em virtude da
atividade concomitante da imaginação". Contudo como será exposto, em V.6,
Avicena atribui ao intelecto a atividade de compor e ordenar diferentemente da
atividade de compor e ordenar da imaginação (Cf. D._Black,_2013, p. 72).
38Segundo Avicena ("K. al-nafs", V.2, pp. 216-7): "Dizemos, pois que se a
faculdade intelectual inteligisse por meio de um órgão corpóreo, de modo que
sua ação própria somente se completasse por meio do emprego desse órgão
corpóreo, então, seria necessário que ela não inteligisse a si mesma, que ela
não inteligisse o órgão e que ela não inteligisse que inteligiu; não há um
órgão entre ela e sua essência, não há um órgão entre ela e seu órgão e não há
um órgão entre ela e o que ela inteligiu. Em vez disso, ela intelige a si
mesma, intelige o órgão que se alegaria que ela possui e ela intelige que
inteligiu. Portanto, ela intelige por si mesma e não por meio de um órgão, mas
isso já estabelecemos".
39Segundo Avicena ("K. al-nafs", V.1, p. 208): "[...] a alma [humana] é uma
coisa que possui estas duas faculdades e é uma substância independente,
conforme foi esclarecido, que possui uma disposição para as ações. Algumas
[ações] não se realizam senão por meio dos órgãos e, como regra, pela
proximidade deles, de um modo geral; outras têm alguma necessidade dos órgãos e
outras definitivamente não necessitam deles. Tudo isto será explicado depois. A
substância da alma humana está disposta para obter um tipo de perfeição por si
mesma, pois o que é superior não necessita do que é inferior nela. Esta
disposição que pertence a ela deve-se a uma coisa chamada intelecto teorético".
40Avicena, "K. al-nafs", I.4, p. 36.
41Avicena, "K. al-nafs", II.2, p. 58.
42Segundo Avicena ("K. al-nafs", V.3, p. 223; V.5, p. 238): "Quando a alma
[racional] é aperfeiçoada e fortificada, em qualquer circunstância, ela isola-
se em suas ações ainda que as faculdades sensíveis, imaginativa e as outras
faculdades corpóreas desviem-na de sua ação".
43Avicena, "K. al-nafs", V.5, pp. 234-5.
44Esta opção parece contrariar a ontologia das formas em Avicena, pois o
intelecto não lida com formas materiais devido às qualidades sensíveis que as
acompanham.
45Gutas_(2012,_pp._420-1), em um artigo mais recente, parece concordar que a
intuição se combina com o pensamento: "[...] isto significa que todos os
inteligíveis que servem como termos médios e que dependem do silogismo para
serem construídos também existem nos intelectos celestes [...]. Desde que todos
os termos médios venham do intelecto agente, a questão é como os homens podem
ter acesso a eles ou como a intuição, i.e., guessing them, precisamente
funciona. Avicena inicialmente mantém que todo aprendizado, i.e., toda
aquisição de termos médios, é acompanhada ou por instrução ou por intuição; mas
tendo concluído que a instrução ultimamente também depende da intuição, ele
introduziu a reflexão; reflexão e pensamento, baseado na abstração e na análise
lógica, preparam o intelecto para a intuição, i.e., para alcançar o termo médio
ou recebê-lo do intelecto agente [...]. Resumindo o processo intelectivo, o
dispositional intellect em posse dos inteligíveis primeiros e após o processo
de raciocínio envolvendo a abstração e o pensamento, é capaz de obter o termo
médio por meio de um silogismo qualquer, encontrar a causa para a conclusão e,
como resultado, chegar ao estágio de intelecto adquirido. Deste modo, por meio
da lógica, o intelecto humano é capaz de pensar os inteligíveis...".