Ação comunicativa e relações internacionais
Por volta da segunda metade dos anos 1990, o periódico alemão Zeitschrift für
Internationale Beziehungen [Revista de Relações Internacionais] publicou uma
série de artigos em que vários autores discutiram o uso da teoria da ação
comunicativa de Jürgen Habermas nas relações internacionais. A discussão foi
lançada por Harald Müller em 1994, já no primeiro número da revista, e
prolongou-se nos anos seguintes até cruzar fronteiras, em 2000, com a
publicação em inglês de um artigo de Thomas Risse sobre o tema no periódico
International Organization
1.
As reflexões de Müller foram motivadas pela insatisfação com as explicações que
a teoria utilitarista e suas ramificações oferecem para determinados fenômenos
no âmbito das relações internacionais, tais como as que mobilizam o conceito de
justiça entre os atores, o significado de confiança ou a idéia de aprendizado
mediante negociação. "Estados cooperam, inimigos negociam entre si, adversários
na guerra se reconciliam, instituições são criadas e se mantêm por muito tempo.
O realismo recorreu a suposições insustentáveis para resolver esse problema",
escreve Müller2. Ainda que o utilitarismo reconheça tais fenômenos, trata-os a
partir de suposições ad hoc, sem integrá-las no esquema de unificação
sistemática. De acordo com a proposta de Müller, a teoria de Habermas poderia
ser utilizada para suprir essa lacuna.
O objetivo deste artigo é apresentar o argumento de Harald Müller e criticá-lo.
Na primeira parte ocupo-me das teorias de relações internacionais de modo geral
e da proposta do autor em particular, cuja principal característica, como
veremos, consiste em focalizar as relações internacionais pelo ângulo da
comunicação. Trata-se de uma abordagem construtivista, cujos seguidores se
orientam pela idéia de que estruturas sociais e agentes se constroem
mutuamente. Ao contrário das teorias de extração utilitarista, que consideram
os interesses e as preferências dos atores como fixos durante o processo de
interação, as teorias construtivistas, partindo do pressuposto de que indivíduo
e estrutura se influenciam, admitem que interesses e preferências podem mudar
no curso do seu intercâmbio mediante atos comunicativos. Na segunda parte
formulo algumas críticas à proposta de Müller, identificando as principais
dificuldades que a cercam, e na terceira discuto como é possível avaliar a
qualidade das relações internacionais pela ótica da comunicação sem recorrer à
teoria de Habermas, mantendo-se os pressupostos do utilitarismo sem os excessos
da sua ortodoxia.
AS TEORIAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Não se espera, nem se deveria esperar, que as teorias de relações
internacionais sejam de grande utilidade para prever acontecimentos. Seu valor
reside antes no fato de que se prestam a ajudar o observador a perceber
tendências e, com base no entendimento que tenha dos fenômenos, a posicionar-se
perante eles. No entanto, sempre haverá margem para aquele imprevisto capaz de
estremecer o curso regular da política internacional, como ilustra a
surpreendente queda do muro de Berlim em 1989, de modo que uma teoria como o
realismo, até então útil para explicar fenômenos como o sistema bipolar e a
Guerra Fria, pode ver-se desafiada por novos acontecimentos e revelar-se
insuficiente para esclarecê-los.
As teorias de relações internacionais oferecem modelos de observação que se
distinguem uns dos outros pelos atores que constituem a unidade de análise
principal, pelo conceito de ação, pela concepção de ordem e pelo entendimento
que cada construção teórica tem sobre o comportamento dos atores. Nesse
sentido, é possível perceber que os modelos de observação, resultando de
diferentes visões de mundo, foram desenvolvidos de acordo com duas concepções
da natureza humana: de um lado, a de que o homem é ambicioso, a guerra é um
fenômeno permanente e a satisfação dos interesses de uns realiza-se em prejuízo
dos demais, num jogo de soma zero; de outro, a de que o ser humano pode ser
transformado, a guerra evitada e os interesses individuais satisfeitos se
houver cooperação em vez de competição. Uma ou outra dessas concepções
determina os fenômenos a serem problematizados e influencia, através das lentes
dos modelos teóricos, o modo como se observa o objeto.
As teorias da ação utilitarista são predominantes na ciência das relações
internacionais. Partindo das premissas de que o mundo é imperfeito do ponto de
vista racional e de que os princípios morais nunca serão plenamente
concretizados, os utilitaristas acreditam que melhor do que lutar contra a
ambição humana é assumi-la como fato e agir com ela, considerando inicialmente
os interesses dos atores observados. E quais seriam esses atores? Para o
realismo uma das vertentes teóricas do utilitarismo , o Estado é o único
ator relevante das relações internacionais, constituindo a principal unidade de
análise da teoria. Trata-se de entidade que, existindo num mundo anárquico e
agindo para satisfazer os interesses nacionais, comporta-se de modo
fundamentalmente egoísta, procurando não apenas preservar as posições
conquistadas como expandir-se. Se todos os Estados têm esse comportamento, é
natural que na relação entre eles haja desconfiança e medo e que
conseqüentemente a segurança nacional se torne tema da agenda de pesquisa, com
a priorização de assuntos relativos à capacidade militar e à sua influência
sobre a ordem internacional. Contudo, tal ótica impede que entendamos com
clareza certos fenômenos que se apresentam no cenário internacional. Afinal, se
os Estados são egoístas, como explicar as inúmeras formas de cooperação
existentes nas relações internacionais, incluindo as instituições multilaterais
que foram criadas em caráter permanente?
Rejeitando certos pressupostos do realismo clássico, algumas outras teorias de
extração utilitarista argumentam que a cooperação entre Estados é um meio
possível para que lhes sejam satisfeitos os próprios interesses, cuja
otimização, conforme o caso, pode exigir dos atores intercâmbio mais intenso.
As relações entre eles não são mais concebidas a partir de uma ótica inspirada
na teoria do jogo de soma zero, segundo a qual as vantagens obtidas por um ator
consistem em perda para o outro; muito pelo contrário, aos Estados deve
interessar que seus parceiros obtenham ganhos, pois do contrário eles não se
sentirão motivados a manter uma cooperação necessária para todos. Segundo
Harald Müller, isso explica por que os Estados cooperam, mas não esclarece como
cooperam:
Os neo-institucionalistas podem bem explicar os motivos pelos quais
os Estados desejam cooperar; podem ademais fundamentar por que uma
cooperação já instituída desenvolve considerável estabilidade. No
entanto, o passo intermediário mais importante não pode ser
teoricamente trabalhado de modo satisfatório dentro de seus
pressupostos; em aberto fica a questão decisiva: como, a partir da
motivação plausível e fundamentada para cooperar, ocorre de fato a
cooperação sob condições anárquicas3?
O autor observa que nos modelos utilitaristas os atores se apresentam como
seres mudos, que não conversam entre si:
De fato, ao se proporem à análise empírica da política internacional,
todas as teorias utilitaristas descrevem sem muito compromisso o
intercâmbio lingüístico dos governos. A língua, no entanto, não
possui peso teórico próprio, sendo em certa medida apenas pressuposta
de modo ingênuo [...]. Em vista disso, torna-se necessária uma teoria
da ação que considere a importância dos atos de fala. Semelhante
teoria encontra-se à disposição na Teoria da ação comunicativa de
Jürgen Habermas4.
Segundo Müller, Habermas não rejeita os pressupostos do utilitarismo, mas
procura corrigi-los. Em sua obra, o conceito de ação estratégica refere-se a um
tipo de ação similar ao descrito nas teorias de extração utilitarista, em que
os atores, agindo de forma egoísta em busca de um fim, procuram maximizar
vantagens e minimizar perdas. Nesse tipo de ação cada ator procura defender e
impor suas posições, sem se mostrar disposto a revê-las ou ao menos a
questionar-lhes as premissas. No entanto, Habermas introduz um conceito
essencialmente distinto do de ação estratégica: o de ação comunicativa, que
pressupõe a possibilidade de contestar o que foi afirmado ou ainda de aceitar
total ou parcialmente os termos de uma asserção. Para isso, é necessário que
falante e ouvinte se reconheçam mutuamente, que as participações de ambos no
discurso ocorram em condições de igualdade e que todos estejam preparados para
rever a posição inicial, dela se afastando caso necessário. A satisfação dessas
condições exige que os falantes compartilhem previamente o mesmo "mundo da
vida", entendido este como a soma de experiências culturais, religiosas e
históricas que ao longo do tempo sedimentam um saber comum, aceito por todos e
do qual, por essa razão, é possível extrair os princípios norteadores capazes
de fundamentar pretensões de validade.
Para Müller, a teoria da ação comunicativa dissolveria as condições estáticas
impostas pelo utilitarismo como ponto de partida:
Não se trata simplesmente de modificar o repertório de ação
utilitarista, acrescentando-lhe outra forma de agir. Mais do que
isso, em razão da própria estrutura lógica interna da ação
comunicativa, são os pressupostos do utilitarismo que devem ser
corrigidos em seus fundamentos5.
Enquanto o utilitarismo dá valor ao incremento das informações e à diminuição
dos custos do intercâmbio, a ação comunicativa privilegia o processo de
entendimento pelo qual se solidificam as interpretações comuns. O utilitarismo
considera o resultado da cooperação como puro arranjo para a distribuição de
benefícios. A teoria da ação comunicativa tem a expectativa de um arranjo
normativo guiado pela autenticidade e que se realiza ao longo de um processo em
que se dá o intercâmbio de argumentos acerca desse arranjo.
A ação estratégica e a comunicativa são tipos ideais que podem ocorrer
simultaneamente. Müller afirma que
os "egoístas utilitaristas" crescem como membros de uma comunidade
lingüística, na qual a ação voltada para o entendimento é tão
presente e constante quanto a ação estratégica. Eis porque é possível
aos Estados sair da utilização cega e interdependente de suas fontes
de poder a fim de, percorrendo o caminho da argumentação, encontrar
soluções para os seus conflitos e problemas de coordenação. [...] ao
atingir os limites do puro agir estratégico em seu meio internacional
[...], os Estados saberão intuitivamente e mediante a experiência que
o repertório de ações disponíveis a todos os atores, o de cada um e o
de seu adversário, inclui como alternativa a ação voltada para o
entendimento. [...] Tão-somente saber que existe à disposição um
outro modo de agir, o do entendimento, justifica o risco de se
desviar do caminho da ação puramente utilitarista, sem naturalmente
perder de vista os próprios interesses6.
Ao procurar agir pelo entendimento, os Estados deveriam conquistar um consenso
acerca do universo sobre o qual pretendem agir em conjunto; obter um acordo no
plano normativo, que estabeleça os princípios e objetivos gerais de ação de
modo a estabilizar o discurso e a interpretação normativa; e conduzir um
discurso em que os participantes possam se assegurar da veracidade das
afirmações feitas pelo parceiro. Mas cabe colocar uma questão decisiva: como
poderiam os falantes fundamentar suas pretensões de validade, tornando-as
aceitáveis, no processo de entendimento que antecede cada um dos três acordos?
Nos termos da teoria de Habermas, eles haveriam de extrair seus princípios
básicos desse reservatório de experiências compartilhadas denominado "mundo da
vida", mas antes é preciso esclarecer se há de fato um mundo da vida
internacional.
Na Teoria da ação comunicativa Habermas mostra um mundo da vida que se
apresenta de início como sociedade organizada pela religião e pelos laços de
parentesco. Num segundo momento, na esteira da evolução das relações de troca,
surge a necessidade de modificar as estruturas da sociedade, e poderes são
delegados a uma instância superior organizadora. Aqui, a autoridade do poder
político não deriva de deuses ou árvores genealógicas, como no primeiro
momento, mas da lei e das sanções nela previstas. Surge então o sistema formado
pelo poder e pelo dinheiro, em cujo âmbito as ações serão estratégicas7.
Vemos que em Habermas o sistema se apresenta como resultado de uma evolução do
mundo da vida. Nas relações internacionais, porém, não parece possível esse
tipo de separação. Temos, é verdade, instituições que se formaram a partir da
delegação de poderes dos Estados, os quais, conforme o caso, podem concordar em
se submeter tanto a uma autoridade investida de poderes decisórios como
simplesmente à decisão da maioria, em qualquer das hipóteses acatando uma
determinação com a qual podem não ter necessariamente concordado. Uma vez que a
delegação de poderes é feita por Estados, esse fenômeno representa uma expansão
do próprio sistema, que evolui em razão das necessidades de cooperação que se
fazem sentir.
Reconhecendo as dificuldades em utilizar o conceito num cenário marcado pela
diversidade cultural e sobretudo por diferentes concepções de justiça, Müller
propõe que lhe sejam criados substitutos do conceito de mundo da vida em
condições de assumir as funções que ele desempenha no processo de entendimento.
Assim, o autor sugere inicialmente que as crises internacionais de grandes
proporções, por fornecerem uma experiência comum às partes envolvidas,
cumpririam esse papel. E observa, a título de exemplo, que os fundadores do
regime econômico estabelecido após a II Guerra Mundial desenvolveram sua
ideologia a partir da experiência vivida na Depressão de 1929. Na ausência de
crises recentes os atores podem recorrer a experiências passadas, a sofrimentos
que compartilharam em determinado momento. Essa referência à história, segundo
Müller, foi percebida nas conferências de cúpula entre norte-americanos e
soviéticos nos anos da Guerra Fria, nas negociações de paz entre Israel e Egito
no final da década de 1970 e nas negociações que levaram à reunificação alemã,
em 1990. Um exemplo curioso de criação daquilo que ele chama mundo da vida
artificial é encontrado nas negociações secretas entre israelenses e palestinos
em Oslo.
Sempre que a conversa emperrava, os negociadores sentavam-se no chão
e se punham a brincar com o filho de quatro anos do ministro do
Exterior norueguês, prestando com isso um juramento simbólico de que
reconheciam elementos fundamentais de um mundo da vida compartilhado
(paternidade, deveres e cuidados em relação às crianças e à ameaça ao
mundo privado caso fracassem as negociações)8.
Se esses exemplos representam tão-somente um mundo da vida artificial, Müller
lembra a existência, em determinadas áreas, do que chama terceira cultura ou
cultura dos cientistas e peritos técnicos, que se desenvolveu como uma espécie
de reservatório de conhecimento e referência para atores em negociação,
formando assim um mundo da vida real.
Para Müller, portanto, as relações internacionais apresentam tanto a ação
estratégica, característica do sistema, como a comunicativa, que originalmente,
em Habermas, pertence ao mundo da vida. Ambas se entrelaçam. Nesse sentido, ele
propõe como agenda de pesquisa a indagação de questões que colocam em primeiro
plano não o ponto de partida nem o resultado das negociações, mas o processo
interativo de negociação. Uma pesquisa que focalizasse essa interação poderia
ser conduzida inicialmente no sentido de identificar dentre as ações observadas
quais são estratégicas e quais são comunicativas.
Outro tema proposto por Müller refere-se aos obstáculos que se colocam aos
processos interculturais de negociação e às possibilidades de superá-los.
Metodologicamente, caberia comparar as negociações entre parceiros que
compartilham o mesmo mundo da vida com aquelas que envolvem parceiros de
ambientes culturais distintos. Por fim, o autor sugere que se pesquise a
influência dos regimes internacionais sobre a percepção dos fatos essenciais,
das diretivas normativas e da confiabilidade do parceiro. Em primeiro plano
fica não o resultado dos regimes por exemplo, se as emissões de poluentes se
reduziram por causa da Convenção do Clima , mas a modificação que a ordem
instituída eventualmente provocou no discurso político.
CRÍTICAS À PROPOSTA
Do ponto de vista ontológico, a proposta de Harald Müller representa uma
alternativa a um caminho usualmente percorrido para explicar o fenômeno
internacional: em vez de uma ontologia individualista e centrada no ator mudo,
ele sugere uma ontologia em que o ator, interagindo numa rede comunicativa,
dispõe de dois tipos de ação: a estratégica e aquela voltada para o
entendimento. No entanto, Müller não explica como ocorre a passagem de uma ação
para a outra, limitando-se a dizer que a ação comunicativa é uma possibilidade
para os atores internacionais, ainda que o entendimento nem sempre seja bem-
sucedido. Esse parece ser o calcanhar-de-aquiles de sua proposta. Em que
condições atores egoístas podem abrir mão de suas preferências iniciais,
originalmente fixas, em favor de outras? Como sair de uma racionalidade voltada
para um determinado fim e assumir outra, cujo propósito seria tão-somente a
coordenação das ações? Como pode um ator saber que o parceiro igualmente tomou
a decisão de agir segundo uma racionalidade comunicativa? Se não houver
resposta para essas questões, tampouco haverá para esta, feita pelo próprio
Müller: como ocorre a cooperação internacional?
Além do mais, a questão relativa ao mundo da vida internacional, decisiva para
a compreensão dessa passagem da ação estratégica para a comunicativa, revela-se
muito complexa, devendo ser tratada com extrema cautela e dentro de limites bem
precisos. Podemos no máximo admitir que se houver mundo da vida no plano
internacional ele existirá em graus variados, conforme as regiões do mundo e os
temas. O que se denomina vulgarmente "comunidade das nações" se apresenta na
realidade como um mosaico de costumes, valores, idiomas e identidades cuja
evolução nem sempre aponta para o sentido da aproximação das gentes. Em muitos
casos, a religião e o nacionalismo, apenas para ficarmos com dois exemplos,
prestando-se a unir determinado agrupamento humano, tendem a mantê-lo afastado
dos demais, desencorajando o contato. As dicotomias fiel/infiel ou nacional/
estrangeiro permanecem em muitas situações presentes. Essa porosidade torna
muito difícil a utilização do conceito de mundo da vida em relações
internacionais, pois não temos como saber qual deve ser, nas atuais
circunstâncias, a dimensão necessária do reservatório de experiências comuns
para que os atores possam se comunicar de maneira razoável.
A COMUNICAÇÃO ESTRATÉGICA
Essas dificuldades, contudo, não deveriam nos impedir de examinar as relações
internacionais pelo ângulo da comunicação nem de procurar responder, ainda que
parcialmente, a questão central proposta pelo autor. Para tanto, é necessário
que consideremos a ação comunicativa de Habermas a exemplo do que faz o
próprio Harald Müller como um tipo normativo ideal, que no entanto, como
afirma Volker von Prittwitz,
no melhor dos casos, constrói um elemento estimulante de comunicação
prática, porém não se aplica à comunicação pura e simples, pois a
comunicação não é apenas a ação voltada para o entendimento nas
condições rigorosas estabelecidas por Habermas, mas também todas as
formas de entendimento, das simples formas de sinalização, a exemplo
dos gestos e expressões simbólicas, até as formas de entendimento
complexas, de escalonamento refinado e reflexivo9.
Ampliado o conceito de comunicação, devemos igualmente ampliar a definição de
ator internacional, incorporando-lhe não somente as entidades estatais e
intergovernamentais, mas também as não-governamentais. Além disso, cabe-nos
determinar a racionalidade que leva esses atores a agir no cenário
internacional. Nos debates desencadeados pela proposta de Müller há
concordância quanto ao fato de que as ações orientadas pelo interesse fazem
parte do modo de agir dos atores internacionais10. Isso não significa que a
ação egoísta seja o único modo de ação possível, pois outros podem existir, mas
aqui teremos como pressuposto apenas um deles, precisamente esse voltado para a
satisfação dos próprios interesses. Em vez de explicarmos como ocorre a
cooperação internacional recorrendo à teoria da ação comunicativa, podemos
equacionar essa indagação a partir de uma abordagem mais próxima do realismo.
Assumo, portanto, que a ação dos Estados será estratégica, que eles podem
cooperar entre si visando a satisfação de interesse próprio e que da análise do
processo comunicativo entre esses atores podemos extrair critérios para avaliar
como de fato ocorre a cooperação internacional. Tal avaliação exige que se
recorra antes a alguns pressupostos, a parâmetros que nos permitam aferir a
qualidade de determinada comunicação. Afinal, se reputo algo como suficiente ou
insuficiente devo dispor de um critério, de algum tipo de referência que me
permita avaliar e julgar num ou noutro sentido. Assim, parto dos pressupostos
de que as soberanias, de modo geral, atuam de acordo com um determinado sistema
de valores e de que essa racionalidade que as motiva a agir na esfera mundial
irá estabelecer as condições ideais, inclusive as do diálogo, para que possam
atuar em consonância com suas próprias premissas, num esquema lógico-formal
como este: se X age pelo motivo Y, então é preciso Z, em que Z representaria as
condições ideais de comunicação para X atingir os objetivos determinados por Y.
Se for admitido o pressuposto do utilitarismo de que os Estados agem movidos
por egoísmo, buscando maximizar vantagens, e se for igualmente aceito que esses
atores vêem na cooperação internacional uma alternativa estratégica para
alcançar seus objetivos, inclusive o da própria preservação, pergunta-se então
como deve ocorrer um diálogo entre atores que se orientam por esse tipo de
racionalidade. Na ação comunicativa, a comunicação se orienta pelo
entendimento, é dialética e busca um consenso objetivo acerca da verdade. Na
ação estratégica, orienta-se pelo êxito e é retórica, não havendo busca da
verdade; os interlocutores "têm como objetivo, no mínimo, afirmar-se do ponto
de vista argumentativo e, além disso, impor os seus valores do modo mais amplo
possível"11. Para que seja possível um diálogo nessas condições, são igualmente
necessários, a exemplo do que ocorre na ação comunicativa, princípios de
legitimação aceitos pelos participantes, que deles farão uso para fundamentar
suas pretensões de validade: "Se não houver uma referência comum, não haverá
possibilidade de medir a força de convencimento de um argumento"12.
Ademais, todo diálogo exige ao menos que se estabeleça uma linguagem comum
entre os participantes13. Não parece razoável, por exemplo, um debate sobre as
origens do universo em que se contraponham argumentos científicos e teológicos,
nem um diálogo em que os opositores da pesca à baleia lancem mão de argumentos
morais, éticos ou simplesmente emotivos para convencer esquimós e consumidores
japoneses ou noruegueses de que aquele animal deve ser preservado. Não haverá
comunicação possível enquanto os interlocutores não estabelecerem uma linguagem
comum. Repare-se que nas discussões em torno da pesca à baleia o debate
possível é travado no plano científico: as questões se referem a métodos de
contagem, monitoramento e fiscalização das populações de baleias ou, ainda, a
critérios utilizados para estabelecer a quantidade daquelas que poderiam ser
capturadas sem prejuízo para o conjunto de sua espécie.
Além dessa condição, a racionalidade de um diálogo entre atores que agem
fundamentalmente de acordo com seus próprios interesses exige que os
participantes tenham acesso a todos os dados do problema. Obter o melhor
conhecimento disponível sobre a matéria em discussão deve ser aspiração de
todos que pretendam agir de modo egoísta. Nos fóruns internacionais os atores
sentam-se à mesa não para ensinar e aprender, mas para negociar, e a informação
desempenhará papel determinante do sucesso ou insucesso dos interlocutores. A
fim de que tenham as mesmas oportunidades no âmbito de um diálogo,
argumentando, perguntando, respondendo, interpretando, justificando e
interpelando em igualdade de condições, os participantes devem dispor das
mesmas informações, pois do contrário o debate se inviabiliza. Se o ouvinte,
por insuficiência de conhecimento, encontra-se em situação que não lhe permite
tecer qualquer tipo de juízo sobre uma dada asserção feita pelo falante, então
não haverá diálogo, pois nada mais será dito além daquilo que já consta no
enunciado.
Eis então, em resumo, duas condições que a racionalidade voltada aos próprios
interesses impõe ao diálogo entre atores soberanos: que seus representantes
discursem no mesmo plano e que tenham condições de compartilhar todos os dados
disponíveis sobre o problema.
O plano de discussão das relações internacionais pode comportar os dois tipos
de questões referidos por Habermas em Facticidade e validade: questões
pragmáticas e ético-políticas. As primeiras
colocam-se na perspectiva de um ator que procura os meios apropriados
para a realização de preferências e fins que já são dados [...].
Questões ético-políticas colocam-se na perspectiva de membros que
procuram obter clareza sobre a forma de vida que estão compartilhando
e sobre os ideais que orientam seus projetos comuns de vida [...]. Em
discursos pragmáticos examinamos se as estratégias de ação são
adequadas a um fim, pressupondo que sabemos o que queremos. Em
discursos ético-políticos nos certificamos de uma configuração de
valores sob o pressuposto de que ainda não sabemos o que queremos
realmente14.
Um exemplo de tema em relações internacionais que comporta os dois tipos de
questões é o do desenvolvimento sustentável, princípio amplamente consagrado
mas extremamente vago, e por essa razão aberto a diversas abordagens e
interpretações. Como o conceito traduz a idéia de que as necessidades humanas
deverão ser satisfeitas (desenvolvimento) desde que preservado o patrimônio
ambiental para as gerações futuras (sustentável), o debate pode se encaminhar
tanto no sentido de serem questionadas as premissas do estilo de vida das
gentes, entrando assim no plano ético-político, quanto no de restringir-se aos
aspectos técnico-científicos do problema e fincar-se no plano pragmático, sem
questionar as forças morais, políticas e econômicas que interferem na relação
do ser humano com a natureza.
Uma vez estabelecido o plano de discussão, os atores poderão avançar em busca
de um entendimento sobre a moldura normativa necessária para estabilizar o
discurso, assegurar expectativas e dar prosseguimento à cooperação. Normas são
aprovadas, incluindo aquelas que irão regular os termos dos debates que
ocorrerão no decorrer do processo cooperativo. Elas determinam o fenômeno a ser
discutido e problematizado e o plano em que deve ocorrer o diálogo, mas não
necessariamente regulam a distribuição de conhecimento para dele participar. A
questão a ser tratada pelo observador passa então a ser esta: em que medida as
normas que dispõem sobre a comunicação asseguram as condições ideais impostas
pela racionalidade de atores que agem estrategicamente?
Somente o caso concreto é capaz de responder a essa questão, pois tais normas
são de natureza distinta e determinam de forma igualmente distinta o
desdobramento do diálogo. Nos esforços levados a cabo para dar sentido ao
conceito de desenvolvimento sustentável percebe-se a prevalência de abordagens
técnico-científicas que visam mudanças tecnológicas adequadas para reduzir os
riscos ambientais, sem contudo questionar as premissas e os valores de uma
sociedade industrializada. São significativas a esse respeito as palavras do
diretor executivo do Fundo Global para o Meio Ambiente (Global Environment
Facility GEF), Mohamed El-Ashry, citadas por Marcos Nobre: "A experiência
humana sugere que o avanço tecnológico é muito mais consistente com a política
e as instituições do que com mudanças no estilo de vida". Com isso estabelece-
se a ciência como linguagem comum dos participantes, "e os pontos de vista
minoritários têm de buscar forças numa mudança de consciência, em imperativos
éticos capazes de subverter as regras do jogo estabelecidas"15.
Uma vez fixado esse plano, resta examinar a distribuição do conhecimento de que
os atores precisam para falar em nível especializado. Aqui notaremos a presença
de normas jurídicas de propriedade intelectual que, restringindo o acesso ao
melhor conhecimento existente, operam no sentido de confinar a ciência a uns
poucos centros de excelência. Nesse sentido, observa Guido Soares,
parece inerente à definição mesma do poder do Estado que a tendência
a conservar o próprio poder e a acrescer-lhe, o quanto for possível,
ainda mais poder torne a ciência e a tecnologia, por mais desapegadas
que elas pretendam ser do poder político, cercadas de uma preocupação
individual dos Estados de não serem compartilhadas com outros
Estados. Além de o próprio desenvolvimento científico e tecnológico
já representar, ele mesmo, um estágio avançado do desenvolvimento dos
Estados, em todos os seus aspectos, seu confinamento a poucos
detentores representa a perpetuação do subdesenvolvimento para os
Estados que não têm uma capacidade endógena nem de inovar nem de
quebrar sua dependência das informações científicas e de sua
aplicação prática, fornecidas por outros Estados mais avançados16.
A principal conseqüência que daí advém é que tal desnível impede que se cumpra
a segunda condição do diálogo determinada pela própria racionalidade
estratégica dos atores. Estará sujeito a manipulação o debate travado no plano
científico entre participantes que, tendo acesso desigual ao melhor
conhecimento disponível, não puderem contestar a validade das asserções
formuladas. Nesse caso, as normas reguladoras do diálogo não garantem defesas
contra comportamentos dissimulados que podem ludibriar o interlocutor,
sobretudo se ele não estiver preparado para o debate, pois sem a formação
adequada não será possível saber, por exemplo, se a ciência que se discute é a
mais conveniente para todos ou somente para alguns.
Isso não significa que debates estabelecidos entre atores internacionais no
plano científico não atendam as exigências da razão estratégica. Ainda que as
condições ideais de um diálogo não possam ser asseguradas pelas normas que o
regulam, nada impede que em casos específicos sejam satisfeitos os imperativos
de uma racionalidade voltada à satisfação dos próprios interesses. Mais uma
vez, somente o exame do caso concreto poderá revelar essa circunstância, e uma
pesquisa em relações internacionais que contemple a dimensão da comunicação
entre atores, em vez de identificar comportamentos estratégicos e
comunicativos, como sugere Harald Müller, melhor fará se, assumindo a
racionalidade estratégica, puder demonstrar como de fato ocorre a distribuição
do conhecimento necessário para a maximização das preferências de cada ator
participante.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nenhuma abordagem teórica é capaz de explicar todos os fenômenos que ocorrem
nas relações internacionais. Embora freqüentemente utilizadas, as teorias de
extração utilitarista se revelam insuficientes para esclarecer determinados
fatos, notadamente aqueles relativos à forma pela qual a cooperação
internacional efetivamente se realiza. Assim, recorre-se a outras construções
teóricas em busca de complementos, e a proposta de Harald Müller no sentido de
lançar mão da teoria da ação comunicativa para preencher as lacunas deixadas
pelo utilitarismo segue o mesmo caminho.
Talvez o grande mérito dessa proposta não esteja no que sugere propriamente,
isto é, na utilização da teoria da ação comunicativa como instrumento de
análise das relações internacionais, mas no fato de que ela torna presente uma
dimensão freqüentemente ignorada pelos observadores da área: a dimensão da
fala. No debate suscitado por Müller, os autores não somente consideram que as
ações orientadas pelo interesse fazem parte do modo de agir na esfera
internacional, como também concordam que a análise do processo comunicativo é
fundamental para explicar a realização da cooperação entre atores orientados
pelos próprios interesses.
Questionável no entanto é o uso específico da teoria de Habermas, pois ela
apresenta dificuldades de ordem prática. A idéia de mundo da vida internacional
poderia ser aceita se ampliássemos o conceito de ator internacional. Dizer que
não há mundo da vida internacional porque as relações internacionais, ocorrendo
entre Estados, são uma extensão do sistema é restringir o conceito de ator. É
como examinar a teoria de Habermas através das lentes do realismo. Se
ampliarmos o enfoque e passarmos a considerar como atores internacionais, além
dos Estados, tanto as entidades não-estatais como o próprio indivíduo,
poderemos então imaginar um mundo da vida internacional. Isso talvez resolvesse
parte do problema, mas duas questões permaneceriam em aberto: saber que
dimensões deve ter o reservatório de experiências comuns para que possa ocorrer
a ação comunicativa no plano internacional e definir como se dá a passagem da
ação estratégica para a comunicativa.
Contrariamente à via proposta por Harald Müller, sugeriu-se neste trabalho
manter-se no caminho da razão estratégica e introduzir apenas algumas
modificações conceituais. Assim, ao menos num primeiro momento das
investigações, podemos assumir a racionalidade estratégica como dado, não supor
a possibilidade de outro tipo de ação que não essa voltada para os próprios
interesses e examinar a comunicação entre os atores, colhendo nela, na razão
estratégica, os elementos necessários para avaliar o processo comunicativo. Com
isso, e livres dos espinhosos problemas da proposta de Müller, mas sem perder
de vista a dimensão da comunicação, ganharemos uma nova perspectiva da
cooperação entre atores orientados pelos próprios interesses.
[1] Müller, Harald. "Internationale Beziehungen als kommunikatives Handeln".
Zeitschrift für Internationale Beziehungen [ZIB], vol. 1, nº 1, 1994; Risse, Thomas. "Let's argue!': communicative action in world
politics". International Organization, vol. 54, nº 1, 2000. Outros textos que compuseram o debate na ZIB são citados ao longo do
artigo.
[2] Müller, op. cit., p. 22.
[3] Ibidem, p. 18.
[4] Ibidem, pp. 25-26.
[5] Ibidem, p. 28.
[6] Ibidem, p. 27.
[7] Habermas, Jürgen. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1999, vol. 2., p. 230.
[8] Müller, op. cit., p. 34.
[9] Prittwitz, Volker von. "Verståndigung über die Verståndigung". ZIB, vol. 3,
nº 1, 1996.
[10] Cf. ibidem; Schmalz-Bruns, Rainer. "Die Theorie kommunikativen Handelns
eine Flaschenpost?". ZIB, vol. 2, nº 2, 1995; Müller, Michael.
"Vom Dissensrisiko zur Ordnung der internationalen Staatenwelt". ZIB, vol. 3,
nº 2, 1996; Zangl, Bernhard e Zürn, Michael. "Argumentatives
Handeln bei internationalen Verhandlungen". ZIB, vol. 3, nº 2, 1996; Risse, op. cit.
[11] Schimmelfennig, Frank. "Rhetorisches Handeln in der internationalen
Politik". ZIB, vol. 4, nº 2, 1997, p. 230.
[12] Ibidem, p. 231.
[13] Cf. Perelman, Chaïm e Olbrechts-Tyteca, Lucie. Tratado da argumentação.
São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 17.
[14] Habermas, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, vol. 2, p. 172.
[15] Nobre, Marcos e Amazonas, Maurício (orgs.). Desenvolvimento sustentável: a
institucionalização de um conceito. Brasília: Ibama, 2002.
[16] Soares, Guido. Direito internacional do meio ambiente: emergência,
obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001, p. 489.