Sintoma e intuição
Thierry de Duve é teórico, crítico, historiador, curador e professor do
Departamento de Artes Plásticas da Universidade de Lille, na França. Tem vários
livros publicados sobre arte do século XX, como Kant after Duchamp e Résonances
du readymade. Estuda particularmente a passagem para o modernismo e tem a esse
respeito uma refinada análise da obra de Marcel Duchamp e das vanguardas.
Em 2005, ministrou no Centro Universitário Maria Antônia, em São Paulo, o curso
"Uma Teoria da Arte Hoje". Durante os encontros, Thierry fez análises
detalhadas de obras de Duchamp, René Magritte e Marcel Broodthaers, além de uma
leitura de Kant aplicada ao sistema da "arte em geral", que entrou em vigor
quando o artista perdeu sua especificidade: qualquer um podia ser artista, logo
qualquer coisa podia ser arte. O passo sintomático foi dado quando Alfred
Stieglitz apresentou ao público uma foto da Fonte de R. Mutt, que, embora não
se soubesse na época, era ninguém menos que Duchamp.
Thierry trata dessa passagem como uma quebra de pacto social entre os artistas
e o público. O gosto se espatifou em tantos gostos quanto indivíduos no Salão
de Paris. Hoje, cada indivíduo deve decidir, para cada obra, se "isto é arte".
O problema é que a quebra de pacto, característica das vanguardas, passou a ser
considerada um valor em si, o que gerou um "academicismo das vanguardas".
Thierry defende que o foco da arte seja um novo pacto, um pacto baseado em
reentendimento ou reencantamento.
Paradoxalmente, para sustentar sua tese, o autor escolhe obras de artistas
bastante conceituais, o que torna mais difícil a reconstituição do pacto com o
"homem comum". São artistas que exploram em suas obras a linguagem e o sistema
da arte. Sobre essa questão específica o texto do catálogo da exposição "Voici,
100 ans d'art contemporain" e a entrevista abaixo, concedida após a conclusão
do curso em São Paulo, são bastante esclarecedores. (Tina Montenegro)
Tina Você disse que a vanguarda se tornou uma força instituidora da tradição
em certas circunstâncias da modernidade. Duchamp teria exposto como sintoma o
paradoxo histórico de que toda ruptura está condenada a se tornar uma
convenção.
Thierry Não foi isso que eu disse. Por exemplo, não digo que toda ruptura
está condenada a se tornar convenção. É verdade que, com o tempo, o que parecia
ser uma ruptura acaba sendo totalmente aceito e, então, parecendo convenção.
Não acho que foi isso que Duchamp expôs e não acho que isso explique que a
vanguarda seja uma força. Ou seja, o meu problema com a sua pergunta é a
formulação. Não digo que a vanguarda se tornou uma força instituidora da
tradição. Digo, simplesmente, que a vanguarda é a tradição. É a continuação da
tradição com meios não tradicionais.
Tina Começamos por isso para lhe dizer que, no Brasil, as leituras de Duchamp
são muito simplistas e propõem uma interpretação que vê a antiarte como
vanguarda. Ironicamente, essa leitura de Duchamp cria uma tradição da vanguarda
que é quase acadêmica...
Não é só no Brasil.
Tina Hoje, isso permite enquadrar as práticas artísticas em uma espécie de
tradição que teria saído de Duchamp e nós consideramos que não saiu e
propor uma abordagem fácil da história, que comporta todos os clichês sobre a
morte da pintura, por exemplo. O que queremos saber você nos disse que não se
trata de um fenômeno local é o que acha dessa interpretação e das
conseqüências sobre a recepção da arte contemporânea e sobre o pensamento e a
compreensão da arte contemporânea.
A conseqüência sobre a arte contemporânea é que há um novo academicismo, como
sempre houve um academicismo. Acho que a arte de grande qualidade, em todos os
países e em todas as culturas, é muito rara. Talvez porque existam muitos
artistas. No século XIX, todo mundo podia aprender a desenhar: desenhar se
aprende, mas desenhar com genialidade não se aprende. E sempre existiu uma
pirâmide com pouquíssimos grandes artistas e muitos pequenos artistas. Mas, no
passado isso é muito importante havia uma continuidade do ofício. Ou seja,
no Renascimento, um desenhista medíocre tinha o mesmo ofício que Michelangelo,
quando desenhava. E, agora, não há mais meios de definir o ofício, porque, para
ter ofício, é preciso ter um ofício. Mas qual é o ofício dos artistas de hoje,
se é possível fazer arte com qualquer coisa? Rivane Neuenschwander tem uma peça
com bolas [Globos, 2003]. Um dia, ela usa bolas, no outro dia, cola sujeiras do
seu assoalho no chão [O trabalho dos dias, 1998]. Colar sujeiras do assoalho no
chão, isso define o ofício de um artista? É óbvio que não. Todo mundo pode
fazer isso. Logo, para julgar a qualidade do trabalho de Rivane Neuenschwander,
é preciso outra coisa que não o ofício. Quando é possível fazer arte com
qualquer coisa, é ao mesmo tempo tecnicamente muito fácil fazer arte, já que
não é complicado aprender o gesto, e qualitativamente muito difícil. Não se
sabe ainda o que vai restar da arte de hoje, é preciso esperar. Talvez muito
tempo.
Tiago Você disse que a qualidade não está na técnica. Se no sistema das
belas-artes o bom trabalho de pintura é uma boa pintura, o que é um bom
trabalho para Rivane Neuenschwander? No sistema da arte em geral, que qualidade
das obras contemporâneas é essa?
Eu não sei.
Tiago Mas essa qualidade existe em geral.
Sim, mas não pode ser definida. No caso de Rivane Neuenschwander, não conheço
muito bem o trabalho dela. Vi duas ou três peças, mas foi o suficiente para
dizer: "Existe alguma coisa aqui!". Quando vejo o Bruce Nauman, tenho outro
sentimento. É completamente diferente, mas também tenho o sentimento de que é
arte. Outras vezes, não sinto que é nem arte nem boa arte.
Tiago E sobre a boa arte e a má arte? Às vezes, temos o sentimento de que
algo é arte mas não é bom. Por quê?
Por quê? Eu não sei.
Thais Mas às vezes você acha que alguma coisa é má arte?
Sim, há muitas coisas que acho ruins. É raro que eu diga que não é arte. Em
geral, para mim são casos limítrofes, quando se trata de um problema de ética
do artista, quando há algo antiético, não antiestético. Nesse momento, tenho
problemas. Mas na maior parte dos casos estou disposto a aceitar que as coisas
que vemos nas galerias são arte. Às vezes, fico muito entusiasmado. Às vezes,
mais ou menos. Outras vezes, nem um pouco. Mas não tenho critérios. Os
julgamentos sobre arte são comparativos: automaticamente, comparamos com a arte
que já conhecemos e avaliamos se está no mesmo nível. Isso ficou claro quando
mostrei Cabanel, Manet, Ticiano e Giorgione. Não se tem a mesma qualidade em
Cabanel que em Ticiano ou Manet.
Tiago É difícil dizer, mas você tem exemplos? Exemplos de boa arte?
Eu só tenho exemplos. O que significa que não tenho definição. Não há
definição.
Tiago Existe um objeto.
Sim. Rivane Neuenschwander fez um trabalho com ovos [Mal-entendido, 2000] e um
outro trabalho com baldes e água escorrendo [Chove chuva, 2002]. Usar um copo
ou um balde é arte? Em certas circunstâncias, sim. Em outras circunstâncias,
não. O fato de existir a "arte em geral" não suprime os diferentes meios. Ainda
há a pintura, a escultura etc. Existem casos, como a arte minimalista, que
estão entre os dois. Mas Gerhard Richter é pintor. De tempos em tempos, faz
coisas que não são pinturas. E, de tempos em tempos, faz coisas que nos fazem
questionar onde está a linha divisória. Por exemplo, quando Gerhard Richter faz
janelas, temos objetos. Não é pintura. Quando faz vidros pintados por trás,
temos algo que fica entre os dois. Às vezes, ele usa espelhos. É um ready-made.
Mas antes de tudo Richter é um pintor. E o interessante em Richter, em [Sigmar]
Polke e em outros artistas como esses é que a decisão de fazer pintura pode ser
sentida na própria pintura. Portanto, enquanto o sistema das belas-artes
funcionava e cada um sabia qual era o seu ofício, ficava-se dentro dos limites
desse ofício. Agora, se você é estudante de arte em uma escola de arte, pode
fazer o que quiser: foto, vídeo, instalação, performance... A decisão de pintar
se torna uma decisão estética em si: não vou fazer instalações, vou pintar.
Então temos que comparar a qualidade dessa pintura com a instalação, a foto e
as outras coisas. Antes, era preciso comparar pintura com pintura, escultura
com escultura... Agora, o campo de comparação não tem limites.
Tina Você falou de sintoma e intuição, que estariam presentes na obra de
arte. Por exemplo, Duchamp seria, ao mesmo tempo, sintoma e intuição do que
chamamos hoje de crise da instituição tradicional da arte. Nesse sentido, a
obra de arte seria, ao mesmo tempo, sintoma de uma situação histórica e
intuição de uma teoria da arte que está se formando e que está contida na obra.
Isso nos remete a uma confusão que percebemos no debate sobre arte, entre as
determinações históricas e as determinações conceituais. Você parece dizer que
isso é inevitável, na medida em que uma obra de arte é produzida em um dado
momento, sob certas circunstâncias, e que ela será novamente vista em um outro
momento e sob outras circunstâncias históricas e culturais. Gostaríamos de
saber se a recepção de uma obra de arte é sempre feita em dois tempos, se ela
sempre tem um efeito retardado, e como funcionam os elementos histórico
(sintoma) e conceitual (intuição) na obra de arte.
Bela pergunta, mas difícil. Sobre os efeitos retardados, penso que é sempre
retardado, mesmo para o artista. Não são apenas duas vezes, podem ser três,
quatro ou vinte vezes. Por que podemos representar Shakespeare ainda hoje?
Porque existem efeitos retardados de Shakespeare que só vemos hoje. Porque nele
ecoa a situação política atual, por exemplo, e porque encontramos atualidade
nos personagens de Lady Macbeth ou Hamlet e, então, tiramos algo de novo de
Shakespeare. É assim para tudo: quanto mais rica é uma obra, mais longa será
sua vida.
Tina E com o tempo entendemos melhor a obra?
Não necessariamente. O que quer dizer melhor? Eu tenho um critério de
fecundidade, mais do que de verdade. Tomem o exemplo de Duchamp. No início,
quando eu estudava Duchamp, também pensei que podia extrair dele uma teoria da
arte. Uma teoria da arte no sentido mais tradicional do termo, ou seja, as
condições necessárias e suficientes para que uma coisa seja arte. Essa foi a
questão que me coloquei há vinte anos. Em um primeiro momento eu ainda faço
isso e não estou sozinho, pois muitos críticos praticam esse método auto-
referencial , fui buscar na obra. E descobri na obra de Duchamp que ela fala
de suas próprias condições de existência: é preciso um objeto, um autor, um
público e uma instituição. Naquele momento, eu achava que tinha uma teoria com
as quatro condições. Admitamos que essa teoria vale alguma coisa. Agora,
vejamos a recepção histórica de Duchamp. O ready-made foi inventado em 1917, ou
1913 se considerarmos a roda de bicicleta. A primeira recepção foi dos
surrealistas. Breton disse que o ready-made é a soberania da escolha do
artista. O artista é como o rei Midas: tudo o que toca vira ouro. Tudo o que
Duchamp toca vira arte. Logo, a personalidade do artista, o autor, minha
segunda condição, é posta em prática. Se avançarmos um pouco no tempo,
chegaremos à geração dos artistas pop, que deram ênfase ao objeto. Tomemos
Arman e sua noção de acumulação, que é uma espécie de interpretação muito
restritiva de Duchamp: vamos colocar os ready-made uns sobre os outros para
fazer arte. É menos inteligente que Duchamp, que dizia: um ready-made de tempos
em tempos, mas não dez por dia. Com Arman, são dez por dia. Talvez a Brillo box
(1964) de Warhol, a pop arte, seja uma interpretação estou simplificando
que enfatiza o objeto. Um pouquinho mais tarde os artistas conceituais,
[Joseph] Kosuth e os outros, e também Hans Haacke e Daniel Buren de certa
maneira, deram ênfase à instituição. É o caso de artistas que vão de Hans
Haacke, de quem eu gosto não sempre, mas às vezes até Andrea Fraser, de
quem não gosto, mas por razões éticas, porque não gosto de ser um espectador de
museu manipulado pelo artista. Então, vimos o autor, o objeto, a instituição e
falta ainda dar ênfase ao espectador. Duchamp disse: os observadores fazem os
quadros. E eu ainda espero ainda não vi uma espécie de quarta recepção dele
que dê ênfase à responsabilidade do espectador. Talvez isso esteja emergindo
agora em algumas correntes da arte contemporânea. É claro que vi isso em
Duchamp, mas outros teóricos poderão ver outra coisa daqui a vinte anos; e
outros artistas reagirão a outra coisa. Isso se Duchamp continuar a ter a
influência que tem hoje. Talvez não tenha mais.
Sintoma e intuição é o título que quero dar ao meu segundo livro. Meu projeto é
fazer quatro volumes. O primeiro conterá praticamente tudo o que expus aqui em
São Paulo, embora outro dia tenha decidido, aqui mesmo, que a parte sobre a
arte minimalista, sobre [Clement] Greenberg e [Michael] Fried, ficará em
Sintoma e intuição. Porque o que é um sintoma? Quero tirar as conotações
negativas da palavra. Um sintoma é quando o médico diz: "Você tem os sintomas
da gripe". Ou o psicanalista diz: "Você é neurótico, esses são os seus
sintomas". Um sintoma é um sinal. É preciso saber lê-lo. É um indício. E uma
intuição é a mesma coisa, mas do lado do criador do sintoma. Acho, por exemplo,
que Fried teve uma intuição formidável para compreender a arte dos dois últimos
séculos quando inventou a oposição entre teatralidade e absorção. E então isso
se torna uma maneira de decodificar os sinais através da história. Acho que Don
[ald] Judd teve uma intuição, mas que ao mesmo tempo é um sintoma, quando
inventou a expressão objeto específico. A intuição e o sintoma são a mesma
coisa. Acho que Don Judd quer se defender de Duchamp. Contra o vale-tudo. "Não,
não vale tudo. Os meus objetos não são objetos ordinários, são objetos
específicos." Um outro sintoma-intuição: Daniel Buren. Ele usa tecido ready-
made, fabricado industrialmente, e quando pinta não sobre papel, mas sobre
tela , pinta duas listras brancas exteriores. É para dizer: isso não é ready-
made, é pintura. Acho que é uma interpretação ingênua da pintura. É uma espécie
de intuição, mas não uma boa intuição. Talvez mais um sintoma. E seria sintoma
de quê? É o sintoma do fato de que, nos anos 1960, havia um problema com a arte
em geral. Na França, o grupo Supports/Surfaces reivindicou especificidade.
Escreveram muitos textos teóricos. Tinham uma revista que se chamava Peinture,
Cahiers Théoriques, na qual as palavras especificidade e autonomia da pintura,
contra a arte em geral, voltaram com muita força. Duchamp é rejeitado por esse
grupo por representar, segundo eles, uma espécie de prática mecânica. Bom, tudo
isso está embrulhado no vocabulário marxista da década de 1960. Mas isso é o
que chamo de sintoma e intuição. Muitas vezes são a mesma coisa, mas alguns são
mais ricos do que outros. Isso não é a mesma coisa que o julgamento. Por
exemplo, acho que Michael Fried, em Art and objecthood, foi muito clarividente
sobre a teatralidade da arte minimalista, porém ele rejeita a arte minimalista
por causa disso. Eu, não. Então, o julgamento não é necessariamente a mesma
coisa que a interpretação. E o sintoma deve ser interpretado.
Tiago Você fala de uma crise da arte em geral. Eu não entendo qual é a
questão da crise.
A questão é que o novo sistema, arte em geral, enfim chegou. A mensagem foi
colocada no correio em 1917 e em 1960 aconteceu algo. Alguma coisa mudou os
conceitos da arte. Existem os que abraçam com entusiasmo a nova situação os
artistas pop estão aí e os que se defendem contra isso. A questão da
especificidade dos meios é crucial. Ela ainda é crucial para alguém como
Rosalind Krauss, que recentemente escreveu sobre [James] Coleman, Broodthaers e
por aí vai. Ela se pergunta se um artista pode inventar um novo meio. É
definitivamente uma forma de lutar contra o vale-tudo.
Tiago Então eu não entendo o caso de Jasper Johns, porque é antes da arte
pop. É muito diferente de Arman, por exemplo. Não entendo qual é o lugar dele.
Isso me leva a uma pequena idéia que pode ser útil para vocês. A idéia é que as
obras de vanguarda usam uma estratégia de vacina: eu inoculo a doença para que
vocês reajam contra ela e desenvolvam anticorpos. É toda a história da
vanguarda. Jasper Johns é um caso particular. A questão é, de novo, para os
minimalistas dez anos depois, a fronteira entre a pintura e o objeto. O que é
uma bandeira? É um objeto. Quando se trata de uma bandeira pintada cujos
limites são os da tela, temos, ao mesmo tempo, a representação de uma bandeira,
uma bandeira e um objeto. Mas, se eu pintasse uma bandeira tremulando ao vento,
seria a representação de uma bandeira. Um alvo é um alvo, logo é um objeto, mas
é pintado. Jasper Johns é sem dúvida um pintor, portanto uma pincelada de
Jasper Johns é uma maneira de dizer que aquilo não é um alvo, é uma pintura.
Mas a imagem diz que é uma pintura que corre o risco de ser tomada por objeto.
Então, se objecthood é a doença, à la Michael Fried, Jasper Johns se inoculou
um pouco da doença para reagir. Vou dar outro exemplo, do século XIX: o
modernismo, que é muito importante e muito fácil de entender, é uma reação
contra a ameaça da época. A arte está ameaçada a partir do momento em que
qualquer coisa pode ser arte e qualquer um pode ser artista. Quais são as
grandes ameaças no século XIX? Na minha conferência, falei da multidão nos
salões de pintura, o que significa que o gosto se torna o gosto de qualquer um.
Por mais que sejamos totalmente democratas e politicamente progressistas, é
evidente que o gosto dos operários e dos camponeses é menos educado que o gosto
dos burgueses e aristocratas. Assim, há uma queda do gosto. Era uma ameaça.
Podemos abordar a mesma questão pela técnica: a invenção da fotografia é uma
ameaça para os pintores. O que é a invenção da fotografia? Clique! É uma
pintura ready-made. Como reagir à ameaça da fotografia? Há três maneiras de
reagir. A primeira é dizer: "Vou me tornar fotógrafo". Daguerre era pintor.
Abandonou a pintura, fez fotografia e se tornou um fotógrafo muito bom. "Perdi,
mas ganhei em outro meio." Segunda possibilidade: vou competir com a
fotografia. A fotografia é muito realista. Vou me tornar muito realista. E essa
estratégia vale tanto para pintores muito acadêmicos como [William-Adolphe]
Bouguereau, cujo efeito de pele humana é fenomenal, ou para [Gustave] Courbet,
cujo resultado não é realista no sentido naturalista, mas disse: "Agora, o
âmbito da pintura é o âmbito do visível. Não se pode pintar um anjo, porque um
anjo não é visível". Não é a mesma solução que Bouguereau adota, mas é a
solução de vanguarda: ele incorpora a sensibilidade da fotografia. Outro
exemplo: Monet. Cézanne dizia: Monet nada mais é do que um olho, e que olho!
Isso quer dizer, por metáfora, que Monet, seu corpo, sua mão, seu olho são uma
máquina fotográfica e a tela é a superfície fotossensível. Então, para ele,
pintar vira registrar a luz. Ele compete com a fotografia, porque a fotografia
é instantânea e Monet fica lá, diante da catedral de Rouen, querendo captar a
luz do meio-dia. Isso é interessante porque quando [Andy] Warhol diz: "Eu quero
ser uma máquina", está falando de Monet. E Cézanne disse não me lembro
exatamente que o pintor nada mais é do que uma máquina fotográfica cujos
filmes são revelados por banhos de sabedoria. Ele usou a metáfora da fotografia
para falar dele mesmo. É o que eu queria dizer sobre a vacina. [Jean Auguste
Dominique] Ingres já dizia: "A fotografia é muito bonita, mas não é bom dizer
isso...". Os pintores se sentiram sem trabalho porque uma máquina podia fazer o
trabalho deles. É exatamente como acontece agora com os computadores. Antes,
era preciso um linotipista para fazer um livro. Hoje, envio o arquivo
eletrônico ao editor. Não há mais linotipistas, e há pessoas que são
substituídas por máquinas todos os dias. É o problema da economia moderna,
evidentemente, e é a mesma coisa com a arte.
Afonso Você disse que o surgimento das técnicas de reprodução mecânicas da
imagem, como a fotografia, gerou uma revolução, no sentido em que a atividade
artística se considerou cada vez mais mecânica. Essa dinâmica teria cumulado
nas pinturas de Andy Warhol, o momento extremo desse "desejo do artista de
virar uma máquina de pintar". Você pode nos explicar a sua reflexão e também
como vê isso em um novo momento histórico de revolução tecnológica, no qual
aumentamos ainda mais nossa capacidade e nosso desejo de manipulação da
natureza e da vida?
Não sei. Não tenho resposta à sua pergunta. Acho apenas que isso que disse
sobre a estratégia da vacina ainda é válido. E que, por exemplo, diante das
novas tecnologias, há artistas que se precipitam e se tornam especialistas da
máquina: sabem manipular muito bem a imagem virtual, mas são escravos da
máquina. Há outros que usam a velha estratégia de Warhol e Cézanne: eu me torno
a máquina. Essa história é muito complicada. Marshall McLuhan dizia que o
conteúdo de uma arte é outra arte. O conteúdo do cinema, no início, era o
teatro. O conteúdo de um novo meio é o antigo meio. Acredito que poderíamos
encontrar exemplos de peças de teatro que integram a sensibilidade do cinema. O
artista faz o caminho inverso da tecnologia. Vejam a invenção do automóvel: os
primeiros modelos de automóveis tinham a forma de uma carruagem, mas sem os
cavalos. O progresso do design do automóvel era se desfazer do antigo modelo.
Na arte, muitas vezes, mas não sempre, é o contrário. Acho que aprendemos mais
sobre o trauma da fotografia, sobre o choque que a invenção da fotografia foi
no século XIX, vendo os pintores do século XIX do que vendo os fotógrafos.
Falei de Monet há cinco minutos, mas poderia ter falado de Manet: é como se
fosse uma fotografia tirada com flash. A Olympia é um instantâneo. Aliás, na
Olympia, há um gato na ponta da cama. Ele está eriçado. E o corpo da Olympia é
achatado, se olharmos a pintura e a compararmos com Ticiano, que tem toda
aquela carne. A crítica da época disse: é uma mulher de borracha, é papelão,
são imagens achatadas... Mas a sensibilidade fotográfica é o flash, e o flash
achata. Então, aprendemos mais sobre a fotografia vendo Manet, Monet e os
impressionistas, ou Seurat, do que vendo fotos. Os grandes fotógrafos do século
XIX são fotógrafos que não querem ser artistas. Os que querem ser artistas
querem imitar a pintura. É o movimento pictorialista na fotografia. [Léonard]
Misonne, [Robert] Demachy e gente assim faz fotos imitando a pintura e está dez
anos atrás dos impressionistas. Os impressionistas são mais modernos do que os
fotógrafos que imitam os impressionistas.
Tina Você falou de um pacto, que não se sabe mais quem é o público e quem são
os artistas. Como está o pacto hoje? Ele se recompôs?
Thais Eu tenho a impressão de que isso tem a ver com o fato de que, na arte
contemporânea, há poucos espectadores. Não sei se você concorda.
Sim e não. Às vezes, sou muito pessimista; outras vezes, muito otimista. Sou
pessimista quando a arte requer do espectador um ato a priori, um pacto
anterior. Ou seja, quando tenho o sentimento de que o artista me pede que saiba
que é arte antes de entrar na galeria. Quando se trata de códigos. Por exemplo,
de vinte anos para cá existe muita arte que faz citação. É uma arte que extrai
o seu estatuto das pessoas importantes que cita. Não é muito interessante.
Thais Não sei se entendo corretamente o que você disse, mas, de uma certa
maneira, na obra de Duchamp o espectador deve saber algo sobre arte
contemporânea para compreender um ready-made.
Talvez sim e talvez não. É claro que conhecer a história da arte ajuda. Mas o
que você quer dizer com "compreender a arte contemporânea"? Saber? Ter tido
experiência pessoal? Sim. Deixe-me contar dois sintomas. São os sintomas que às
vezes me fazem ficar muito otimista. É verdade que o mundo da arte de hoje tem
tendência a se fechar. O mundo da arte não é todo mundo, são as pessoas que vão
às galerias. Entretanto, de tempos em tempos, a gente se diz: não é verdade,
quando vamos à Bienal de Veneza ou São Paulo, ou à Documenta, vemos pessoas.
Vejo que essas pessoas nunca vão a uma galeria, mas vão à Documenta e parecem
interessadas. Isso me enche de alegria, porque penso: então isso quer dizer que
a arte contemporânea fala a essas pessoas. Mas existe um outro sintoma, muito
raro. Foi umas das experiências mais emocionantes da minha vida. Há vinte anos,
quando eu dava aulas no Canadá, fui com os estudantes até a Filadélfia para ver
as obras de Duchamp. Tive então a ocasião de explicar o Grande vidro diante do
Grande vidro. O segurança da sala escutou, escutou, escutou e depois veio me
procurar e disse: "Eu vou lhe dar a minha interpretação". Esse cara tinha uma
sensibilidade incrível para a arte. Depois, fomos à sala dos Brancusi e ele
entendia tudo. Por sensibilidade, não por conhecimento. Eu disse: "Fantástico!
Você fala melhor de arte do que eu! Está aqui há muito tempo?". E agora vem a
melhor parte da história: ele estava lá fazia três meses! Era caminhoneiro e
por causa de um problema nas costas não podia mais dirigir caminhão. Procurou
um outro trabalho e encontrou aquele, como segurança do museu. Era uma prova
para mim de que, de tempos em tempos, você acha pessoas que de certa maneira
são artistas: um artista que não sabe que é artista. Ele não precisa saber no
sentido de ter estudado história da arte nos livros de história da arte ou na
universidade. Porém isso é evidentemente raro, muito raro. Quando tenho dúvidas
sobre o sensus communis, volto sempre àquele homem da Filadélfia. Para mim ele
é a prova de que o sensus communis existe.
Tiago Gostaria de entender melhor como vai o pacto social nos dias de hoje.
A maior parte do tempo, ele está mais ou menos reconstituído. Isso significa
que o entusiasmo que às vezes sinto quando vejo a multidão na Bienal de Veneza
não é um entusiasmo extraordinário. Porque acho que as pessoas, essas que vão à
Bienal, são suficientemente bem informadas para saber que podemos aceitar
coisas muito estranhas. Elas prestam atenção, mas não são necessariamente
sensíveis por isso. E elas são enganadas por uma arte que costuma ser muito
ruim. O que me interessa são as rupturas de pacto. E eu teorizo, já que o meu
trabalho é fazer teorias, a partir da posição do adversário, ou seja, a partir
da posição do homem comum, que rejeita Duchamp, ou a arte de hoje, ou Carl
André. Por exemplo, fiz uma exposição em Bruxelas que se chamou Voici e tinha
tudo a ver com a idéia de reconstituir o pacto de outra maneira.
Tiago Há pactos que vêm depois do pacto anterior. Essa tentativa de novo
pacto é uma reivindicação de universalidade?
Thais Para voltar a Kant.
Vou falar tomando o exemplo de Voici. Na entrada da exposição, a primeira sala,
fica claro que fiz um esforço: misturei coisas para que as pessoas que
estivessem prontas para aceitar que Rodin é um artista fossem obrigadas a olhar
para Kiki Smith. Pessoas que aceitam uma visão humanista do homem gostam da
bela escultura estilizada com uma mão no coração, que desejava as boas-vindas
aos espectadores. Mas tinha também uma obra de [Bernd] Lohaus, que eram
simplesmente pedaços de madeira no chão. Vocês não conhecem esse artista, é
muito bom escultor. Era muito mais difícil para o homem comum assinar o pacto
com Lohaus do que assinar o pacto com a escultura estilizada. Um homem me
escreveu uma carta, furioso: "Fui à exposição com a minha mulher e, antes de
pagar as entradas, eu vi isso. [Lohaus] Pagar cinco dólares por isso?! Nunca!".
Para mim, ele é o herói da exposição, porque isso mostra que às vezes o pacto
ainda é problemático e que esse cara levou a arte contemporânea mais a sério do
que aqueles que estão prontos a aceitar qualquer coisa e não prestam atenção.
Logo, não consegui reconstituir o pacto com esse homem, mas fiz um esforço,
porque respondi. Escrevi e coloquei dois ingressos gratuitos no envelope.
Disse-lhe: "Se você quiser, não olhe para aquilo. Você verá. Há um belo Matisse
e um Picasso. Talvez isso lhe ajude". Não sei se o homem voltou, mas essa é a
minha idéia de pacto e de reconstituir o pacto.
Tina Você falou de novo do pacto. Você fala muito de direito. História da
arte como jurisprudência. Vanguarda como uma espécie de mudança de
jurisprudência. Você fala também de pacto rompido e indefinição das partes.
Quero saber qual é o lugar do direito no seu pensamento.
O lugar do direito? Como o julgamento estético é um julgamento, podemos fazer a
analogia com um juiz que julga um assassino. Mas a minha idéia de
jurisprudência é muito fácil. É que a história da arte é escrita duas vezes.
Ela é escrita uma vez nas obras e uma vez no discurso sobre as obras. As obras
são conservadas no museu. Quando o meu carro tem 200 mil quilômetros, eu o jogo
fora, não vou conservá-lo. Também não conservamos todas as obras de arte.
Muitas são destruídas. Bombardeios, guerras ou simplesmente o uso. Mas o ofício
de historiador da arte e o ofício de curador de museu são mesmo engraçados. Há
pessoas que passam o tempo restaurando coisas muito frágeis, sobretudo obras de
arte contemporânea feitas com materiais perecíveis. Por trás de cada decisão de
conservar uma obra, existe um julgamento e esse julgamento diz: vale a pena
conservar isso. A jurisprudência é isso. Quando Vermeer pintou seus quadros,
ele os mostrou. Vale a pena ser mostrado. Depois, alguém compra um Vermeer e
seu filho ou filha diz, cinqüenta ou vinte anos depois: "Isso vale a pena ser
conservado. Fico com ele, não vou jogar fora. Há quadros do meu avô que estavam
no sótão e que jogamos fora. Mas nós mantivemos os Vermeer". Vermeer é um caso
particular, porque foi esquecido durante dois ou três séculos, porém não
totalmente, porque se assim fosse teríamos jogado fora seus quadros. Em um
determinado momento no século XIX, ele se torna um grande pintor. A
jurisprudência é isso. Há um primeiro julgamento, depois um segundo, depois um
terceiro, um quarto, um quinto e não pára, não há julgamento final.
Tiago A jurisprudência é aceita por meio de uma discussão? É um consenso?
Sim, mas nunca é de uma vez por todas. Há uma antiga tendência na história da
arte que é revisionista. Há revisões, às vezes revisões perigosas. Quando o
Museu d'Orsay em Paris abriu, por exemplo. Ali era uma estação de trem e
decidiram fazer um museu do século XIX. De repente, todas aquelas pinturas e
esculturas acadêmicas que não víamos porque tinham desaparecido iam poder ser
revistas. Havia o Louvre, havia um museu de arte moderna, havia o Jeu de Paume,
onde estavam os impressionistas, mas os artistas acadêmicos não eram vistos.
Por isso, fiquei muito contente que pudessem enfim ser vistos. Poderíamos ver
Cabanel e Manet, ver a diferença e entender por que Manet é melhor. Mas a idéia
por trás da criação do Museu d'Orsay era muito mais ambígua do que isso. E
existe o perigo de que a história da arte revisionista diga: "Não, não. Cabanel
e [Thomas] Couture são artistas muito importantes. Talvez melhores do que o
Manet". Quem sabe como será o gosto em quinhentos anos? Ou em vinte anos?
Tiago Mas o debate fica mais importante.
Só que não há debate. Vou citar um exemplo que me deixou tão furioso que mandei
um artigo para o Libération. Era uma exposição no Museu d'Orsay, chamada Manet-
Velázquez. Não havia somente Manet e Velázquez, mas também [Jusepe de] Ribera,
[Francisco de] Zurbarán e outros pintores espanhóis da época. Fiquei muito
contente de ir, porque vemos essas comparações de quadros nos livros de
história da arte, então que prazer poder vê-las ao vivo! Fiquei furioso, porque
a confrontação entre dois quadros foi sistematicamente evitada. A gente entrava
na primeira sala e encontrava Velázquez, Velázquez, Velázquez. O filósofo de
Velázquez [Menipo]. E o filósofo de Manet? Onde estava ? Não estava lá. Então,
me virei e vi o soldado morto, que era atribuído a Velázquez no tempo de Manet
e não é mais, vem da coleção Portalis, de Paris. Olhei: onde está o Toureiro
morto, de Manet? Não estava lá. Me perguntei: que tipo de exposição é esta? Em
outra parede, o São Francisco em meditação, de Zurbarán, ajoelhado com um
crânio. Bela pintura! Onde está o Monge ajoelhado, de Manet? Então, dei a volta
na parede e ele estava lá. Exatamente atrás. Não era possível vê-los juntos.
Fiquei furioso. Escrevi o artigo e falei com o diretor do museu depois. O que
eu penso não tenho provas é que eles tiveram medo. Os conservadores tiveram
medo. Como vocês vêem, não sou conservador. Eu o sou apenas na medida em que
quero preservar as obras-primas do passado e não deixar que sejam destruídas.
Mas o ponto de vista conservador numa exposição dessas é dizer: Manet e
Velázquez são grandes pintores que dialogam através da história. É um blablablá
humanista. Ao entrar, o espectador deve saber que Manet e Velázquez são grandes
pintores. Mas eu digo que não. Se tivessem colocado o Monge ajoelhado ao lado
do Zurbarán, teríamos visto como o Monge ajoelhado é mal pintado. É horrível,
duro, bruto, ao lado do Zurbarán. Isso teria dado ao espectador de hoje a
possibilidade de ter um pouquinho da experiência estética que os espectadores
do tempo de Manet tiveram, quando Manet era tão novo que o veredicto do júri
foi: "Isto não é um quadro". Vocês entendem? A mesma coisa vale para todos os
outros: Mayas no balcão, de Goya, e O balcão, de Manet... Havia todas as
comparações, porque todos os quadros estavam lá. Mas o Toureiro morto estava
quatro salas adiante. Eu sonho em fazer uma exposição onde, pelo menos uma vez,
possamos colocá-los juntos. Então saberemos o que é julgamento estético em toda
a sua brutalidade.
Afonso A produção de arte no Brasil provém de uma situação cultural e social
muito diferente da européia e da norte-americana. Ela se diferenciou, por
exemplo, por intermédio de um Hélio Oiticica, gerando contramodelos para a
experiência estética ocidental. Você acompanha essa produção? Ou essa diferença
seria apenas uma questão de rótulo multiculturalista para o consumo do mercado
internacional de feiras e exposições?
A resposta à última pergunta é não, não é de forma alguma só isso. Ao
contrário. No entanto, o que me choca na sua pergunta é que não tenho nem um
pouco a mesma impressão que você. Tenho a forte impressão de que a Europa é
aqui. Tenho sobretudo a impressão de que a América Latina é o reservatório
cultural da Europa do futuro. A Europa está em decadência, mas vocês ainda têm
o futuro econômico e portanto o futuro cultural, e é importante que conservem
essa herança européia. Eu sou muito europeu, mas sempre sou mais europeu quando
estou fora da Europa do que quando estou na Europa. Todos os movimentos,
concretismo, neoconcretismo e outros, saem da arte européia. Hélio Oiticica tem
uma formação rigorosamente formal. Evidentemente, há um contexto, acho que as
arquiteturas frágeis de Oiticica, os parangolés etc. nasceram da cultura do
samba e da favela. Estou dizendo clichês. Desculpem-me, não sou brasileiro,
portanto não conheço bem. É evidente que a cultura popular é uma fonte, é assim
que todas as culturas se renovam: sempre bebendo na fonte da cultura popular.
Contudo há uma herança européia extremamente forte na arte brasileira.
Afonso Em uma série de artigos publicados na revista October, você fez uma
análise de quatro artistas fundamentais, que delimitam os horizontes da
produção contemporânea: Joseph Beuys, Warhol, Yves Klein e Duchamp. Você acha
que eles ainda são referência para a esfera de valores da produção de arte? Que
artistas surgem atualmente com a força de instaurar questões atuais e propor
valores para a arte?
Não estou propondo valores para a arte. A palavra valor é problemática para
mim.
Afonso A pergunta é: o que é a arte?
Não é possível responder o que é a arte, mas eu talvez possa tentar responder
esclarecendo alguns de meus conceitos. Por exemplo, eu distingo o conceito de
valor e o de qualidade. Acho que o conceito de qualidade é estético e é medido
pela força do meu sentimento. Não há outro meio. É sempre uma coisa afetiva. A
sensação também. É sensual, se quiserem. No fim, de alguma forma, é sempre da
ordem do desejo. Valor é uma palavra econômica, um conceito econômico. Um dos
meus livros trata unicamente disso. É que você citou a October, mas em francês
era um livro, Cousus de fil d'or [Amarrados com fio de ouro]. É um livro
engraçado, porque foi uma encomenda. Eu tinha que escrever sobre quatro
artistas. Eu me perguntei o que podia unificá-los, e foi Marx que serviu. É um
livro um pouco estranho na minha produção, porque é sobre Marx, sobre os
conceitos de Marx e sobre a sobreposição. Começou assim porque, naquele
momento, tive uma intuição: a criatividade em Beuys era a mesma coisa que a
força de trabalho em Marx; e então comecei a ler Marx seriamente. Tinha lido um
pouco quando era estudante, como todo mundo, mas nunca seriamente. Devorei todo
o primeiro volume do Capital, mais os escritos de juventude. Enfim, uma série
de coisas que li muito, muito rápido, em um mês. De vez em quando fazia
anotações. De repente, tudo se encaixou. Acho que existe de fato é uma das
características da modernidade uma espécie de superposição do campo
conceitual da economia, em termos de valor, de força de trabalho, alienação,
todos esses conceitos, e o campo da estética. Evidentemente, esse livro é uma
tentativa de desconstruir, mostrar que essa superposição é um fenômeno
histórico contingente, e não um fenômeno fundamental da natureza. O século XX
pensou a arte dentro de um paradigma econômico, da mesma maneira que, nos
tempos antigos, se pensava a arte dentro de um paradigma religioso. O paradigma
econômico e o político comprimiram o religioso. Quando digo econômico, quero
dizer economia política no sentido de [David] Ricardo, Marx e toda a tradição.
Não estou falando de quanto custa. Estou falando dos conceitos fundamentais:
antes, era a religião, o culto, o valor do culto; hoje, é a política. Hoje se
fala muito da estetização do mundo cotidiano. Do ponto de vista crítico
adorniano, é um conceito negativo, mas é um conceito que pode abrir novos
campos positivos. A noção de qualidade de vida, toda uma série de noções que
vêm da ecologia comer melhor, não comer porcaria, ter boa saúde... , uma
espécie de ética à la Michel Foucault dos últimos livros, uma espécie de ética
antiga ("Mens sana in corpore sano"), isso está voltando e é uma forma muito
positiva de estetização da vida. Não se trata necessariamente de valor de
mercado, publicidade ou decoração.
Afonso O que você acha dessa repolitização da produção contemporânea, que
recuperou práticas situacionistas e reordenou o campo de circulação de objetos
e ações contra as instituições tradicionais de valor, por meio de dinâmicas
comunitárias? Refiro-me aos coletivos de artistas e às redes de integração
digital, que fazem trocas de produtos estéticos fora do mercado, refletem sobre
os fluxos migratórios, escolhem a cidade como campo de intervenção ou, como diz
Rancière, lutam pela "partilha do sensível" em um espaço e um tempo de
atividades cotidianas. Ou, ainda, que relação existe entre estética e política?
A última pergunta é tão vasta que certamente não poderei abordá-la aqui. Quanto
ao resto, o que acabei de dizer sobre a estetização do cotidiano entra um pouco
aí. Claro que sou favorável a todas as experimentações e a tudo que você diz
sobre reencontrar a comunidade, sobre as dinâmicas comunitárias, os coletivos
de artistas etc. Porém não faço disso uma ideologia, não faço uma doutrina.
Tenho muita desconfiança do comunitarismo, pelas razões que expliquei no outro
dia: arte negra para os negros, arte gay para os gays... Quanto aos coletivos
de artistas, depende. É toda a questão da divisão do trabalho na arte. Acho
que, infelizmente, um dos mitos da modernidade, justamente no lado marxista,
foi acabar com a divisão do trabalho. Porque a divisão do trabalho, como diz
Marx, é uma divisão técnica do trabalho. Quer dizer que você é encanador e eu
sou padeiro. Mas também é uma divisão social do trabalho. Quer dizer que você
está em cima e eu estou embaixo. O mito dos coletivos é a igualdade,
naturalmente. O perigo dos coletivos é como um ditado que diz que um camelo é
um cavalo desenhado por um comitê. Em compensação, existem artes onde a divisão
do trabalho é muito forte e isso não impede que sejam artes maiores. O cinema
não pode ser feito por uma só pessoa, é uma equipe. O teatro também. Você pode
pintar sozinho em casa, mas não pode fazer teatro sozinho. Talvez uma
performance, porém não montar uma peça de teatro. Logo, não tenho nada contra a
arte coletiva, mas pintar um quadro coletivamente não costuma ter bons
resultados. Melhor assim. O importante é que esse tipo de experiência sempre
aconteça. A história da modernidade é cheia de reagrupamentos e cisões, o tempo
todo. No entanto, é comum os reagrupamentos serem feitos em nome de uma
ideologia em vez de uma prática real. Na minha opinião isso não produz muitos
resultados. Quanto a Rancière, ele é interessante, mas não conhece a história
da arte suficientemente bem, não presta atenção a singularidades. Ele tem
amplas categorias que aplica sobre a história. É útil, sedutor, porém eu tento
combinar uma visão ampla com análises específicas. Por exemplo, ontem passei
duas horas analisando um único trabalho de Broodthaers.
1 Entrevista por Afonso Luz, Thais Rivitti, Tiago Mesquita e Tina Montenegro.
Edição e tradução de Tina Montenegro.