O PCC e a gestão dos presídios em São Paulo
Afastado do universo político desde o final de maio de 2006, quando deixou o
comando da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) após a primeira onda
de atentados do Primeiro Comando da Capital (PCC), Nagashi Furukawa rompe nesta
entrevista um longo período de silêncio.
A megarrebelião de 2001, a ação do crime organizado no interior dos presídios e
a crise de 2006 foram alguns tópicos da conversa. De maneira franca, o ex-
secretário analisa as divergências políticas enfrentadas no interior do governo
quando tentava superar a crise e elabora explicações possíveis para os ataques
de maio de 2006.
Além de exercer o cargo de secretário de estado entre 1999 e 2006, Nagashi foi
diretor do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) e juiz por muitos anos
em Bragança Paulista, o que o torna um dos maiores conhecedores da realidade
carcerária do país. É a partir dessa longa experiência na área que ele comenta
as políticas públicas atuais de enfrentamento da criminalidade e tece críticas
às diversas instituições responsáveis pelo acompanhamento da execução penal no
país. (Paula Miraglia e Fernando Salla)1
Quando o sr. assumiu em 1999 a Secretaria de Administração Penitenciária de São
Paulo, em que áreas o sr. encontrou mais dificuldades para trabalhar, tanto em
relação aos presos como em relação aos funcionários e à administração?
Na época havia dificuldades de toda ordem, mas a maior delas, que me perseguiu
durante os quase sete anos [1999-2006] que eu fiquei no governo de São Paulo,
estava ligada ao aspecto material. É muito difícil desenvolver qualquer tipo de
trabalho com eficiência quando não há espaço. Quando eu assumi a secretaria no
final de 1999, havia noventa e poucas carceragens na capital, de 30 vagas cada,
com 200 presos em média. Esse foi um desafio enorme. Além disso, havia a Casa
de Detenção do Carandiru, com 3.300 vagas preenchidas por mais de 7 mil presos,
recebendo mais 800 presos por mês. Mesmo que houvesse todos os recursos
necessários para enfrentar essa situação, haveria outras dificuldades: a Lei de
Licitação, encontrar local adequado para construir, o tempo necessário para a
construção etc. Não era possível pensar em desenvolver um trabalho eficiente se
não houvesse pelo menos uma vaga adequada para um preso. Nunca tivemos isso,
apesar de serem inauguradas, nos seis anos e meio que estive na secretaria, 82
novas unidades prisionais mais de uma por mês. Foi um trabalho enorme, mais
de 60 mil vagas foram abertas nesse período, mas ainda assim insuficientes para
fazer frente à quantidade de presos que o Estado de São Paulo tinha. Essa foi a
maior dificuldade.
Outra dificuldade enorme foi a resistência dos diretores e funcionários mais
antigos do sistema a qualquer tipo de mudança. Os procedimentos que eles
aprenderam como forma correta de administrar uma penitenciária, de 40, 50 anos
atrás, eram os que vigoravam, e que, enfim, tenho que reconhecer, vigoram até
hoje apesar das poucas mudanças que foram feitas e do enorme esforço para isso.
Por fim, a dificuldade em estabelecer um trabalho bem entrosado com a
Secretaria de Segurança Pública foi outro grande problema. Sempre achei que
essas duas pastas, ou as suas atividades, devessem ser comandadas por uma única
pessoa, uma espécie de subsecretário de Segurança Pública, um subsecretário de
Administração Penitenciária ou um secretário, digamos, de Defesa Social, que
incluiria também, quem sabe, um secretário de Justiça. Afinal, são três áreas
afins, que não deviam ter comandos separados. Isso dificulta muito. Há quem
diga: "mas tem o governador". Claro, o governador comanda todos os secretários,
mas ele não tem tempo, nem é a sua atribuição, para cuidar das coisas que
acontecem no dia-a-dia.
O sr. sentiu diferença, nas duas administrações em que trabalhou, em relação à
obtenção de recursos necessários para aumentar o número de vagas, de prisões,
de funcionários?
Não. Na verdade, participei muito pouco da gestão Mário Covas. Entrei no final
de 1999, o governador Covas faleceu no começo de 2001 e, em 2000, ele tinha
enfrentado graves problemas de saúde. Então, trabalhei mesmo na administração
Geraldo Alckmin.
Quanto à dificuldade de conseguir recursos, o principal entrave foi a Lei de
Responsabilidade Fiscal, a Lei Camata, que limita os gastos com funcionários. O
governo de São Paulo estava legalmente impedido de nomear novos funcionários,
chegou a ficar quase seis meses sem a possibilidade de nomeação de novos
funcionários. Isso com um fluxo de 800 prisioneiros, a mais, por mês, em todo o
estado. Não foi por falta de vontade política do Governador, mas sim por um
obstáculo legal incontornável.
Com relação à liberação dos recursos para novas obras, o que pôde ser feito foi
feito, inclusive considerando esse assunto como prioritário. Mas o grande
problema é a dificuldade em construir novas instalações prisionais: procura-se
um lugar e todo seu entorno se volta contra. Isso provoca o atraso das obras, o
que traz muitos outros problemas. Portanto, exceto com relação aos
funcionários, não tenho queixas sobre isso.
Durante esse tempo a comunidade mudou sua forma de encarar esse problema. Isso
provocou algum impacto na administração pública; refletiu nas políticas de
governo?
Procurei debater o tema da "Execução da privação da liberdade" em todos os
lugares onde isso fosse possível, debater a necessidade da atualização da
legislação penal, a atuação do Ministério Público e do Judiciário nessa área, a
participação da polícia na continuidade das investigações das atividades das
pessoas já presas. Gostaria de que os resultados desses debates tivessem sido
um pouco mais eficientes do que foram; mas na verdade o impacto não aconteceu.
Basta ver que, depois da avaliação da crise gravíssima de maio de 2006, não se
discutiu quase nada. Nesse período houve uma grande discussão na imprensa, mas
bastou que as rebeliões e os ataques cessassem, para o debate desaparecer.
Os acontecimentos de 2006 tiveram alguma vinculação com uma série de medidas
que o sr. foi adotando em relação ao funcionamento do próprio sistema. Por
exemplo, durante o ano de 2000, vários diretores foram afastados, além disso, o
senhor propôs a descentralização da Coordenadoria dos Estabelecimentos
Penitenciários (Coespe). Resta saber, então, se a megarrebelião teve motivações
exclusivamente relacionadas à dinâmica da massa carcerária ou se teve alguma
relação com essas medidas que o sr. adotou, e que de certa forma podem indicar
uma certa conivência dos funcionários com essa movimentação dos presos.
Acredito que a origem da megarrebelião de 18 de fevereiro de 2001, como também
dessa grande crise de maio de 2006, está ligada ao PCC. Não há dúvida alguma
com relação a isso. Em 2001, a rebelião aconteceu logo depois da transferência
dos líderes dessa organização criminosa para presídios mais rigorosos; e em
2006 foi a mesma coisa. É claro que por trás disso existem os problemas com os
servidores públicos coniventes, que procuravam dar regalias para determinadas
lideranças criminosas em troca de uma paz aparente. Eles foram sendo afastados
pouco a pouco. Isso pode ter tido alguma influência, mas o ponto que determinou
mesmo essas duas crises foi a movimentação da liderança do PCC.
Além disso, durante a minha gestão não se fez nenhuma espécie de concessão ao
PCC. Pode ter havido uma ou outra concessão na ponta, mas como atuação de
Governo, uma concessão ao "partido", à organização criminosa como uma forma de
manter a paz, isso nunca aconteceu. É claro que quem procura cumprir a lei sem
fazer concessões acaba provocando descontentamento e, conseqüentemente,
rebeliões.
Nesse sentido, em 2006, uma das coisas que se comentava era a dificuldade da
Secretaria de Administração Previdenciária contar com o apoio da Secretaria de
a Segurança Pública, em termos de inteligência policial para alcançar as
ramificações do PCC dentro e fora das unidades prisionais. Isto foi constante
nesse período: a falta de empenho dessa área?
De fato, o empenho foi muito pequeno, porque o Deic, órgão incumbido de combate
o crime organizado, praticamente não mantinha contato com a Secretaria de
Administração Penitenciária. Por essa razão, criei um Departamento de
Inteligência dentro da própria SAP, para conseguir um pouco mais de eficiência,
mas não havia absolutamente recurso algum. Um bom serviço de inteligência
precisa de pessoas com formação policial, e não existiam funcionários com
formação policial dentro da SAP, a não ser aqueles que fui buscar, já
aposentados. Minha intenção era ter um departamento de inteligência dentro da
SAP minimamente equipado, contando com policiais e equipamentos da ativa. Isso
foi solicitado inúmeras vezes, mas infelizmente não se conseguiu, o que, em
grande parte, foi o problema gerador dessa crise toda.
Por que o sr. acha que não havia esse diálogo com o Deic, já que os interesses,
nesse caso, podem ser vistos como interesses convergentes?
Por várias razões. Primeiro porque o pessoal do Deic e da Segurança Pública
sempre teve uma visão de que o criminoso depois de recolhido à prisão, a uma
penitenciária, é como se fosse uma coisa arquivada. É um problema a menos para
eles. A visão policial sempre foi voltada para os que estão soltos, esquecendo
que os presos continuam vivos, comunicando-se com os comparsas que estão do
lado de fora da prisão, e chegando, até, a comandar o crime organizado de
dentro das grades. Diria, então, que a visão dos responsáveis pela Segurança
Pública foi equivocada.
De uma forma ou de outra, depois da megarrebelião de 2001, a impressão que se
tem é de que sua posição saiu fortalecida, pois o sr. conseguiu, por exemplo,
descentralizar a Coespe[Coordenadoria dos Estabelecimentos Penitenciários do
Estado de São Paulo], criando coordenadorias regionais, afastando diretores,
pedindo, inclusive, o afastamento do próprio Coordenador. E houve uma série de
esforços para criar uma administração com mais protocolos, com mais
procedimentos previstos. Nesse sentido, a estrutura da SAP foi suficiente para
assegurar esses padrões de inovação que o sr. estava propondo?
Quando eu assumi a Secretaria havia uma única coordenadoria, que era a Coespe,
e a sua divisão aconteceu antes da rebelião de 2001, com todo o apoio do
governador Mário Covas embora não tenha sido nada fácil descentralizar a
Coespe em cinco coordenadorias territoriais. Com o governador Geraldo Alckmin,
também houve apoio do governo nessa área, exceto em relação ao que dependia da
Secretaria da Segurança Pública. Embora o governador muitas vezes tivesse
determinado, ou ao menos tentado, que fizéssemos um trabalho mais harmônico,
houve dificuldades de ordem pessoal.
No que dizia respeito aos funcionários, a questão era conclusiva: a população
carcerária cresceu muito mais rápido do que o número de funcionários. Havia
àquela altura, por exemplo, no Centro de Detenção Provisória (CDP) do Belém
mais de 2 mil presos, três vezes a capacidade do presídio, e o plantão era
feito, no máximo, por quinze policiais. Aliás, não sei como ainda não aconteceu
uma tragédia nesses locais, porque o limite máximo que a segurança aconselha
nos CDPs são 1.100 presos, mais do que isso é uma enorme irresponsabilidade. O
ideal seria funcionar com 768 presos, mas até 1.100 seria administrável, sem
afetar a parte de segurança. Por isso, quando vejo hoje alguns locais com 768
vagas e 2.200 presos, só posso concluir que o limite da responsabilidade já foi
ultrapassado, isso representa um enorme perigo para a sociedade.
Eu gostaria de que o sr. falasse um pouco mais sobre isso, de que maneira a
superlotação pode ser perigosa.
O perigo é mais do que evidente porque, se houver uma rebelião num local que
tem três vezes mais presos do que a sua capacidade, pode acontecer de todas as
instalações serem danificadas e tornar-se um local totalmente inabitável. Se
isso vier a acontecer, por exemplo, em dois CDPs, serão cerca de 4.400 presos
que não terão onde ficar, porque não é possível enviá-los para as outras
unidades, que já estão superlotadas. É grande drama, portanto, saber aonde eles
serão levados. Segundo problema: numa rebelião desse porte, a possibilidade de
os presos fugirem é grande. Imagine 2.200 presos em fuga, é um desastre total
para a segurança da sociedade, especialmente, da comunidade próxima dessas
unidades regionais. Então é preciso encontrar um mecanismo ou que abra mais
vagas rapidamente, ou que permita a soltura dos presos menos perigosos. Esse
fluxo de entrada, o equilíbrio entre a entrada e a saída dos presos, é algo que
sempre tentei encontrar, buscando agilizar, junto ao Judiciário, o andamento
dos processos de Execução. Era um esforço para tentar encontrar vagas para o
novo contingente de presos que aumentava a cada mês, seja por meio de alvarás
de soltura, fosse pela amplição dos mecanismos das Centrais de Penas
Alternativas, fosse construindo novas unidades prisionais.
O Judiciário foi ou é cooperativo com os dramas do Executivo?
Não foi, não sei se é hoje, comigo não foi. Nem diria que isso acontecesse por
falta de vontade dos juízes, mas principalmente por falta de compreensão dos
juízes em relação à dimensão do problema, por falta de engajamento nesse
problema. Sem idéia do drama que vive o administrador público, o juiz aplica o
Direito a cada caso individualmente, sem se preocupar em ter uma visão de
conjunto. Mas especialmente na Corregedoria Geral da Justiça, na gestão do
corregedor Gilberto Freitas de Passos, houve uma preocupação em tentar
compreender os problemas pelos quais a SAP passava e ajudar na sua solução. Mas
realmente esse trabalho conjunto, entre dois poderes de Estado, não houve.
Como sensibilizar o Judiciário para essa dimensão do Executivo que ultrapassa o
momento do julgamento de um crime, como aproximar esses poderes?
Houve três encontros de juízes, promotores, diretores de penitenciárias,
afinados com a Administração Penitenciária, a Procuradoria e a Defensoria
Pública. Foram encontros muito bons, mas eu diria que há um equívoco na Lei de
Execução Penal. Acho que a forma pela qual a Lei de Execução Penal está
colocando a questão da aplicação da pena de privação da liberdade não funciona.
Defendo que a questão de progressão de regime de concessão de remição,
concessão de saída temporária, e várias outras coisas não deveriam ser
atribuição do Poder Judiciário. Isso deveria ser atribuição do Poder Executivo.
E caberia ao Ministério Público e ao Poder Judiciário a tarefa que não está
sendo feita hoje de fiscalizar e exigir o cumprimento da lei. Se o Judiciário
e o Ministério Público estivessem cumprindo esse papel, certamente essa
situação, como a do presídio de Belém, com mais de 2 mil presos, não estaria
acontecendo. Então, em vez de cuidarem dessa questão, que a meu a ver é muito
mais importante, os juízes preocupam-se e gastam toda sua energia examinando a
conta de liquidação de cada preso individualmente, quando a Administração
Penitenciária faz isso hoje com muita eficiência, com banco de dados
informatizado e muito mais.
O sr. acha que o advento da Defensoria Pública em São Paulo muda um pouco esse
quadro?
Tenho sérias dúvidas. Acredito que essa parte de administração penitenciária
deveria se voltar para a Lei de Execução Penal. Deveria haver uma lei federal
traçando algumas linhas principais desse assunto e o restante deveria ficar a
cargo de cada estado legislar. A constituição permite hoje que o estado-membro
faça sua legislação de administração penitenciária, legisle supletivamente à
União, porque não dá para comparar a realidade de São Paulo com a realidade do
Acre, a realidade do Amazonas com a do Rio Grande do Sul. Cada estado deveria
ter o poder de legislar sobre isso. E há exemplos de alguns estados onde o
Poder Judiciário funciona muito bem na área de execução penal. Em São Paulo,
por exemplo, funciona muito mal, porque há excesso de trabalho e poucos
funcionários, juízes etc. Algo que também seria preciso repensar é a questão do
sistema progressivo de cumprimento da pena. Não diria que deveria ser extinta,
mas a verdade é que do jeito que está hoje, embora a intenção do legislador
fosse a melhor possível, não está funcionando.
Por que o sr. acha que não está funcionando?
O regime aberto instituído em 1984 nunca existiu em lugar nenhum. Não virou
realidade, como uma daquelas leis que não pegaram, como se diz. O regime semi-
aberto também não funciona, porque o preso que vai para esse regime, faltando
muito tempo para terminar de cumprir a pena, muitas vezes não consegue suportar
a situação de semiliberdade e busca fugir. Ele não consegue seguir às cegas o
regime semi-aberto, e o regime fechado é essa tragédia que nós estamos vendo,
pois deveria ser cumprido em uma cela individual, mas existem 20, 30 presos
numa cela só. Portanto acho que tudo isso precisaria ser repensado.
O sr. acha que é fundamental o debate sobre o aperfeiçoamento do sistema de
justiça criminal, como a ampla revisão da estrutura legislativa?
Acho. Penso que a Lei de Execução Penal pecou em muitos pontos: por exemplo,
quando se criou a figura da cadeia pública como um lugar em que os acusados
devem ficar aguardando julgamento e depois da sentença serem transferidos para
uma penitenciária para cumprir suas penas. Acho isso um equívoco diante da
nossa realidade do país. Imaginemos uma pequena cidade, com aquela do Pará que
ficou famosa por ter deixado uma adolescente ser colocada numa cela masculina.
Há centenas de situações desse tipo no país, pequenas cidades com uma diminuta
cadeia pública. Cidades cujas cadeias públicas estão superlotadas, como a de
Contagem (MG), onde há 50 presos num lugar previsto para 6 vagas. Isso é um
absurdo total. Mas um dia esses cinqüenta presos serão julgados e irão
provavelmente de Contagem para Belo Horizonte. Aqui, no Estado de São Paulo, em
uma pequena cadeia pública, imaginemos, em Eldorado Paulista, que mantém de
cinco a quinze presos, a pessoa é julgada e pode ter que cumprir a pena em
Presidente Venceslau. Não há sentido nisso. Acho que é muito mais importante
manter a pessoa presa perto da sua família, seja esperando julgamento ou
cumprindo pena. É preferível isso, ainda que se misturem os provisórios com os
já condenados, a manter esse aparente princípio científico de que os condenados
não podem ficar juntos com os que não foram julgados ainda.
Mais importante do que isso ainda seria criar e manter as pequenas cadeias
públicas que o Brasil sempre teve, procurando melhorar a administração,
procurando melhorar o espaço e não exigir que as pessoas condenadas sejam
transferidas para 400, 500 quilômetros de distância de sua família. Mas para
isso seria necessário fazer uma revisão quase total da Lei de Execução Penal.
Qual a sua opinião em relação às mudanças de legislação, que muitas vezes
acabam aparecendo como uma grande solução? Como conjugar a necessidade de uma
revisão das leis, como o sr. propõe, com os apelos a favor de uma legislação
mais dura?
Nunca acreditei que endurecer a legislação penal fosse uma forma de atacar os
problemas de administração pública. Quando falo que há necessidade de mudança
na Lei de Execução Penal, muita gente alega ela nunca foi aplicada de fato, por
isso não há como saber se ela funciona ou não. De fato, ela nunca foi
inteiramente aplicada, mas não acho que isso ocorra porque no Brasil há uma
vocação para descumprir a lei, mas sim porque aquilo que se exige para o
cumprimento da lei é materialmente inexeqüível. Não há recurso para implementar
a lei com todas as previsões que ela tem. Dou um exemplo: "toda pena de
reclusão em regime fechado vai ser cumprida em cela individual". Se isso fosse
possível, seria realmente uma coisa muito boa. Em São Paulo, foi inaugurada em
2002 a prisão de segurança máxima de Presidente Bernardes, onde se aplica o RDD
(Regime Disciplinar Diferenciado). Uma única cela individual naquele presídio
custou na época 45 mil reais. Uma única vaga. Um apartamento médio, de 50m2,
custava na época mais ou menos 55 mil reais. Ou seja, uma única vaga tem um
custo altíssimo, que o país não suporta. Portanto é uma lei mas uma lei criada
num país que não tem condições financeiras de cumpri-la, esse é o grande
problema.
Seria um equívoco dizer que os governos estaduais, com uma ou outra exceção
talvez, tenham pouca disposição para enfrentar os problemas relacionados à área
da punição, ao sistema penitenciário? Em termos de recursos, os estados estão
sempre de "pires na mão" com relação ao governo federal, estão sempre
reclamando do dinheiro, que falta dinheiro; até os estados mais ricos estão com
suas prisões completamente deterioradas, arruinadas. Como o sr. avalia essa
situação?
Penso a esse respeito que a Lei Complementar que criou o Fundo Penitenciário
Nacional não deveria existir. Porque, ao se regulamentar esse fundo com base na
arrecadação da Loteria Federal (3%), criou-se o pretexto para que os
governadores, que têm de buscar os recursos no Governo Federal, se eximam de
sua responsabilidade: "Eu não construo penitenciárias no meu estado porque o
Governo Federal não libera os recursos do Fundo Penitenciário Nacional".
Tornou-se uma desculpa para os governadores não priorizarem os investimentos
nessa área. Era melhor que não existisse esse Fundo, porque ele é totalmente
insuficiente para atender as necessidades do país. Ou então, se o Fundo
continuar existindo, não deveria ser repassado aos Estados para fins de
construção e sim para elaborar uma política nacional de administração
penitenciária, de execução penal, ou então criar uma instituição federal
incumbida de fiscalizar todos os estabelecimentos do país, incluindo agora a
manutenção das penitenciárias federais. Porque da forma como está é muito ruim:
os governadores reclamam que não têm recursos porque a União não libera. E a
União, por sua vez, diz "eu não libero porque o que se arrecada é muito pouco".
Enfim, nem um nem outro acabam investindo.
Por outro lado o sr. vê algum obstáculo político entre a relação do Depen
(Departamento Penitenciário Nacional)e os Estados, no sentido de implantação de
uma política nacional, ou de algumas diretrizes nacionais, levando em conta o
segundo mandato de uma administração do Partido dos Trabalhadores? Nos Estados
em que há governos de outros partidos haveria mais dificuldade de engajamento
político nesse projeto, por causa de um apoio menos consistente do Governo
Federal?
Não, nesse aspecto não vejo problema algum. O único problema que já cheguei a
presenciar no passado, e que também vi acontecendo na mudança de um governo
para outro, foi a dificuldade de conseguir a liberação dos recursos porque o
Estado de São Paulo era de um governo de oposição ao Governo Federal. Tínhamos
facilidade em liberar os recursos na época em que o PSDB dirigia o país, o que
não aconteceu quando o PT assumiu o governo federal. Então nesse ponto deveria
haver critérios mais objetivos de distribuição dos recursos federais e não
critérios partidários como acontece hoje. E quanto à implementação da política
de execução penal, também acho que não há nenhuma resistência, porque os
responsáveis por essa política, nos estados, não têm esse viés partidário.
Normalmente são técnicos que dirigem a Secretaria de Justiça, de Administração
Penitenciária, e por isso poderia haver um entrosamento bom com o Depen se ele
fosse um órgão que estivesse realmente preocupado em implementar essa política
no país inteiro. Não era eficiente vamos deixar isso bem claro, não era
eficiente no passado, e não é eficiente hoje.
Além disso, retomando a questão do repasse dos recursos do governo federal para
os estados, há uma coisa importante a ser dita. Em determinado estado, o Estado
de Minas Gerais por exemplo, cuja situação carcerária me parece ser bastante
complicada, caberia ao governador e à Assembléia Legislativa decidir: "nós
vamos manter essa situação desumana que acontece hoje, enfrentando todo o
desgaste político que isso traz, mas liberando recursos para outras áreas; ou
vamos sacrificar um pouco as outras áreas para dar prioridade ao problema
penitenciário?". Então a Lei de Execução Penal dependeria das decisões de cada
Estado, seja no caso de não querer investir, seja no caso de querer mudar a
situação. Por exemplo, a opção pelo sistema de progressão de pena com menor
lastro de tempo: isso traz desgaste político? Traz, mas é uma opção que cada
Estado faria. Não haverá investimento em construção de penitenciárias, mas a
sua superlotação, situação desumana, será combatida. Como? Por meio de uma Lei
de Execução Estadual que permitirá, por exemplo, que uma pena de oito anos de
reclusão possa ser substituída por penas alternativas. Por outro lado, em outro
Estado essa diretriz não seria aceita: "não, isso não é razoável, alguém que é
condenado a oito anos precisa cumprir uma boa parte em regime fechado"; a
conseqüência dessa posição é uma só: necessidade de investir mais na construção
de unidades prisionais. Isso não acontece hoje porque o Estado não tem
influência nenhuma na legislação que concerne ao tempo que a pessoa permanece
presa. Isso, na minha opinião, deveria mudar. As principais diretrizes da Lei
de Execução Penal seriam dadas por Lei Federal e o restante ficaria por conta
de cada Estado.
Eu queria que o sr. falasse sobre o crime organizado. No Brasil ocorre uma
experiência singular, talvez única no mundo: alguns grupos organizados formam-
se nas prisões, no Rio de Janeiro, aqui em São Paulo e agora também em outros
estados. Como o sr. vê essa questão, do fortalecimento do crime organizado
dentro das prisões? A que se deve isso?
Tenho a impressão de que essa questão foi muito mais grave em São Paulo do que
em qualquer outro lugar. E o pior é que esse mau exemplo de São Paulo acabou se
alastrando para outros Estados. Digo isso porque no Rio de Janeiro, por
exemplo, as organizações criminosas que existem dentro dos presídios são
aquelas organizações que já existiam fora. São os membros do Comando Vermelho
que acabaram sendo presos e que levaram a organização para dentro das prisões.
Mas em São Paulo aconteceu uma coisa inédita: algo que não existia na rua foi
formado dentro das prisões. Creio que não tenha havido outra motivação para
isso a não ser a falta de controle do Estado sobre seus presos. Mas por que há
falta de controle? Porque havia muita gente presa num único lugar, sem que
houvesse agentes ou servidores públicos investigando a movimentação dos
detentos. O modelo que se criou em São Paulo, há 40, 50 anos, sempre foi este:
de penitenciárias grandes, como as de Avaré, Araraquara, Presidente Venceslau,
com 500, 800, 1.000 presos, poucos funcionários, que não têm a menor condição
de observar a atuação de cada preso. Então, daquele grupo enorme de detentos
que ficam conversando o dia inteiro, formar uma organização criminosa foi só um
passo.
Além desses fatores, qual é o papel da corrupção, da autoridade em geral, da
conivência dos funcionários neste quadro?
Esse é um grande problema, mas há um outro além da corrupção. Em qualquer
agrupamento humano, nós sabemos que existem pessoas que lideram as demais. Por
isso sempre houve entre diretores e funcionários do sistema penitenciário uma
mentalidade segundo a qual é mais fácil, e talvez até mais eficiente, manter a
paz dentro de uma unidade prisional se a Direção estiver em sintonia com os
líderes dos presos. Nesse caso, nem entraria o elemento corrupção, mas simples
comodismo mesmo de funcionários e diretores: "Eu não posso deixar que aconteça
uma rebelião na unidade que eu dirijo, então eu tenho que ficar mais ou menos
em paz com aqueles que lideram os demais presos". É isso que leva à formação
dessas facções criminosas. Porque esses líderes não estão preocupados, como
apregoam falsamente por aí, com o bem-estar dos presos, isso seria ótimo, mas
eles estão preocupados em ganhar dinheiro; esse é o problema.
O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) pode exercer um papel importante no
controle dessas lideranças...
Sim, mas isso teria que funcionar. O ideal é que houvesse um RDD nacional com,
digamos, uns quinze presídios de segurança máxima espalhados em todo o
território nacional, para onde pudessem ser encaminhados os líderes das facções
criminosas. E se houvesse possibilidade legal de se transferirem os líderes
mais perigosos de uma penitenciária para outra, diria que esse problema, se não
acabasse, diminuiria bastante. Porque não é difícil detectar dentro de uma
unidade prisional aqueles líderes negativos. Detectados, faz-se a transferência
deles. O ideal mesmo seria tirar o preso da sua base de atuação: aquele que tem
uma base de atuação no Rio de Janeiro vai para o Rio Grande do Norte, por
exemplo, onde passaria dois, três meses; começou a formar uma nova liderança,
vai para o Rio Grande do Sul. Isso dificultaria muito a vida do criminoso.
A impressão que se tem é de que há uma rede muito grande, uma ligação que
extrapola um pouco a realidade interna no presídio, e entre presídios. Mesmo
com o RDD, há notícias de festas promovidas neste ou naquele presídio. Quer
dizer, a impressão que se tem é que o crime organizado tem uma complexidade
muito maior que envolve outras redes, outras formas de comunicação, que há um
poder dentro dos presídios que é maior do que esse construído por uma liderança
apenas. Em suma, de que maneira o crime organizado está disseminado dentro e
fora do presídio e como essas coisas se articulam? Há como enfrentá-las
efetivamente?
Não vejo outra maneira de enfrentar essa situação a não ser por meio de
investigação e serviço de inteligência que só a polícia é capaz de fazer. Uma
ligação entre um preso, por exemplo, da Penitenciária de Presidente Venceslau
com alguém da Baixada Santista não é algo tão difícil de ser investigado; mas é
trabalhoso. É preciso ter uma equipe grande de policiais era isso que eu
pretendia instalar lá na Secretaria ou em conjunto com a Segurança Pública ,
delegados de polícia, investigadores, para que as investigações tenham sucesso.
Deve-se, por exemplo, saber quantos visitantes um preso recebe, quem são essas
pessoas, que tipo de vida elas levam, têm um bom padrão de vida sem ter fonte
lícita de recursos? Isso é motivo para investigar: pode ser uma quadrilha que
esteja se formando. Então, do universo de 150 mil presos, imagino que mais ou
menos 1.500 estejam efetivamente envolvidos nessas atividades. Todos eles devem
ser investigados, dia e noite, todos os 1.500, e todos os que se relacionam com
eles. Claro que esse é um trabalho de longo prazo, mas se essas pessoas forem
investigadas, indiciadas em inquéritos, denunciadas, condenadas e cumprirem
pena, um dia essas organizações vão deixar de existir, porque todos estarão
presos.
E por que isso não acontece?
Não acontece porque dá trabalho. Não diria que é falta de vontade, pois é
preciso ter gente designada para fazer isso. Não são dez pessoas, cem pessoas,
precisaria ter muita gente da polícia designada para fazer isso. E diante de
tantas outras prioridades que existem, talvez não tenha sido possível fazer
isso ainda.
Na sua avaliação, o sr. acha que o PCC está controlado, devidamente
desarticulado? Qual é a sua avaliação sobre ele hoje, e também sobre a SAP?
Não tenho informação suficiente para responder a essa pergunta, mas com certeza
as investigações sobre as atividades dos líderes melhoraram. É a notícia que
tenho. Seus membros estão sendo acompanhados mais de perto pelo serviço da
inteligência da polícia. Há algumas coisas das quais desconfio, mas sobre as
quais não tenho condições de afirmar concretamente. Em todo caso, posso emitir
minha impressão. O RDD de Presidente Bernardes, por exemplo, quando eu saí,
estava com quase todas as vagas ocupadas. Há pouco tempo, me disseram que há 30
presos para 170 vagas. Será que o comportamento nos outros presídios melhorou
tanto a ponto de não ter sido mais preciso mandar ninguém para lá, ou existe,
quem sabe, uma espécie de acordo de que ninguém vai mais para lá se a paz for
mantida?
Voltando à crise de maio de 2006, sobre a qual o sr. falou brevemente,
acompanhamos os fatos pela imprensa, e o que chamou a nossa atenção foram as
múltiplas versões que apareceram sobre o episódio. E todas, aparentemente, bem
informadas, histórias muito ricas, mas com versões muito diferentes. Não sei se
o sr. poderia contar a sua versão.
Claro. A transferência dos presos em 2001 e a transferência em maio de 2006
foram os dois fatores que desencadearam as duas grandes rebeliões. Mas no caso
de 2006, há um componente novo que é possível se analisar objetivamente. Em
2003, boa parte de 2004 e quase até a metade de 2005, quase não houve rebeliões
mais significativas no Estado de São Paulo. Aliás, em 2003 não houve rebelião
de espécie alguma: nem a menos grave, nem a mais grave. Não houve nada. Em 2004
houve algumas rebeliões, mas pouco graves, duas inclusive foram em
penitenciárias femininas. Muito bem, porque então, em meados de 2005, começaram
sistematicamente a acontecer rebeliões, com características de destruição, sem
reivindicação nenhuma. Houve alguma mudança importante em 2005 que deixasse os
presos descontentes, a ponto de provocar todo esse movimento? Eu diria que não.
O secretário era o mesmo de 1999; a grande maioria dos diretores que deveriam
ser substituídos já tinham sido substituídos. Portanto, os homens que dirigiam
os presídios em 2005 eram os mesmos de 2003 e 2004 praticamente. A superlotação
em 2005 não se agravou em relação aos anos anteriores, embora tenha havido,
sim, um pequeno aumento do número de presos em cada unidade prisional; os
funcionários eram rigorosamente os mesmos, portanto, o tratamento que o preso
recebia em 2003 e 2004 era exatamente igual ao de 2005. Então, por que as
rebeliões começaram a acontecer? Começaram porque o PCC, por alguma razão,
decidiu isso. E as informações que nos chegavam à Secretaria, vinham desta
forma: "vai haver eleição no ano que vem". Muitos acham que estou tentando dar
alguma justificativa político-eleitoral, mas são dados rigorosamente objetivos.
Como eu disse, o tratamento dos presos não mudou em 2005, os funcionários eram
os mesmos etc. Muito bem, então, naquele ano de 2005, especialmente de julho em
diante, nós começamos a receber informações deste teor: "o PCC determinou a
realização de uma rebelião em tal penitenciária e que era para quebrar tudo o
que tinha lá". Qual era a reivindicação? Não tinha reivindicação "vão
quebrar, porque vão quebrar". Isso foi se repetindo e a cada mensagem que o PCC
passava aos seus companheiros, li várias dessas mensagens, diziam que queriam
Lula como presidente da República, Marta Suplicy, governadora de São Paulo, um
advogado da cidade de Marília como deputado estadual e, ainda, "não queremos
Alckmin como presidente da República". Não estou dizendo que o PT tinha algo a
ver com isso. Não tinha absolutamente nada a ver com isso, mas os presos
acharam que tinham de fazer rebeliões e escolheram essa bandeira para
justificá-las. Por quê? Não sei dizer. Alguns conjecturaram que era por causa
do governador Alckmin, que criou o RDD em São Paulo, mas não foi ele, na
verdade fui eu, ou melhor, foi o governo dele. Alguns líderes do PCC imaginavam
que, caso o Geraldo Alckmin se elegesse presidente da República, ele
construiria várias penitenciárias federais nesse sistema de RDD. O raciocínio
deles era este: "todos nós vamos ser transferidos para muito longe; se isso
acontecer, a nossa carreira criminosa terá chegado ao fim, portanto, vamos
fazer de tudo para que esse homem não seja eleito". Não consigo enxergar um
outro componente que tenha determinado as rebeliões além desse. Elas começaram
a acontecer em 2005 e continuaram no começo de 2006 numa quantidade e
gravidade cada vez mais crescente. Havia notícias vindas de todos os cantos, de
todas as penitenciárias, de que a megarrebelião de 2006 seria feita em agosto
daquele ano, ou seja, nas vésperas da eleição de outubro, e nós, simplesmente
nos antecipamos, tomamos providências para tentar evitar que as rebeliões
continuassem acontecendo e que essa grande rebelião anunciada para agosto
acontecesse. Ou seja, transferimos os presos no mês de maio e por vários
equívocos operacionais, informações que vazaram, depoimentos de delegados de
São Paulo em sessão secreta da CPI do tráfico de armas que foram vendidos para
um advogado do PCC, tudo isso fez com que a operação vazasse e desencadeasse
essa reação extremamente grave que todos nós presenciamos. Enfim, não consigo
encontrar outra explicação a não ser essa que eu dei.
De fato, os presos temem esse isolamento mais severo. Isso aconteceu no Rio de
Janeiro também. Alguns atentados que aconteceram lá em 2002 teriam ocorrido por
causa da transferência de lideranças para o presídio de Bangu 1. O sr. associa
os acontecimentos de 2001 e os de 2006 em São Paulo às transferências?
Efetivamente os presos temem isso, então?
Temem. Não há dúvida nenhuma de que temem o isolamento, temem a imposição de
regras mais duras do que as que normalmente encontram nas outras
penitenciárias. Além disso, em 2006, souberam que a Penitenciária Federal de
Catanduvas passaria a funcionar entre junho e julho daquele ano, e só essa
notícia, e de que haveria mais em outros Estados, foi suficiente para criar um
sentimento de pânico entre os membros da liderança dessas facções, porque
abriu-se concretamente a possibilidade de alguém de São Paulo ir cumprir pena
no Paraná, ou cumprir pena no Rio Grande do Norte.
O que é um pouco incompatível com a idéia de que o governo Lula não investiria
em regimes desse tipo, porque o governo Lula tem investido em segurança
máxima...
Pois é, a visão dos líderes do PCC foi completamente equivocada. Imaginar que
Geraldo Alckmin, eleito presidente, faria algo muito diferente daquilo que
vinha sendo feito pelo atual governo do PT; que prejudicaria os presos, os
líderes criminosos, foi um equívoco. Suponho que os líderes tenham sido
induzidos por pessoas de má-fé, que nem presos eram, que viram nessa bandeira
uma plataforma eleitoral e começaram a divulgar isso no meio dos presos.
Na época da rebelião de 2006 muitos postos policiais e soldados foram atacados.
Foi dito na ocasião que o comando da polícia sabia de tudo que ia acontecer,
mas não teria informado as bases, o que acabou gerando graves conseqüências. O
sr. acha possível que isso tenha ocorrido? Era possível informar a base da
polícia, que assim poderia ter se preparado melhor, ou ninguém tinha como
imaginar a dimensão dos ataques?
O grande problema começou, pelo que eu sei, na sexta-feira, 11 ou 12 de maio, e
a decisão de se transferirem os presos tinha sido tomada na tarde da quarta-
feira. A transferência começou na madrugada de quinta-feira e se estendeu até a
noite do mesmo dia. Foram 760 presos transferidos para Presidente Venceslau, de
diversos pontos do Estado. Todas as viaturas, dezenas delas, foram escoltadas
pela polícia. Ou seja, ninguém tentou esconder nada da polícia. Tudo foi feito
às claras, de maneira aberta e transparente. Ninguém imaginava que esses
ataques contra as bases policiais fossem se dar com a dimensão e a gravidade
que se deram. Participei da reunião em que o governador Cláudio Lembo decidiu a
transferência. Defendi a transferência dos presos porque o número de rebeliões
estava aumentando de tal maneira que alguma coisa deveria ser feita, que não
era possível ficar de braços cruzados esperando a megarrebelião de agosto
acontecer. Era uma forma de tentar evitá-la. Mas acrescentei na mesma reunião:
"Agora, que tipo de conseqüência isso vai trazer aqui na rua eu não tenho a
menor condição de avaliar". Estavam presentes à reunião o secretário adjunto de
Segurança Pública, o subcomandante da Polícia Militar, dois policiais e um dos
principais diretores do Deic. Todos fizeram a seguinte avaliação: vai haver
reação, mas não deve ser uma reação diferente das que nós já enfrentamos, uma
base policial atacada aqui, outra ali, nada que ultrapasse isso. E eu falei:
"dentro do meu âmbito, eu acho que vamos ter rebeliões, mas nada que seja
incontrolável. No limite do limite, se tudo der errado, podemos ter rebeliões
em 70 unidades regionais". Tivemos em 74. "Podemos ter em 70, que são as
unidades nas quais o PCC tem influência, mas acho que, tirando esses líderes,
os que vão permanecer não terão capacidade de decidir uma coisa dessas" foi o
que imaginamos. Portanto, ninguém escondeu nada de ninguém, a informação correu
pela SAP, com certeza absoluta. Desde o mais alto coordenador até o último dos
agentes penitenciários sabia o que estava sendo feito e a possibilidade de
reação. Mas creio que ninguém imaginava que ia haver uma reação daquele tipo,
isso é um fato.
A dimensão dos acontecimentos fora das prisões surpreendeu, a ousadia das ações
alcançando até os transportes públicos...
Neste caso há uma avaliação que diz que os ataques ao transporte público não
tiveram relação com o restante. Alguns aproveitaram aquele momento para
aumentar o problema.
De qualquer forma, isso também é preocupante, porque vários jovens começaram a
fazer atentados em nome do PCC.
E muitas desavenças pessoais foram resolvidas aproveitando aquele momento.
Na conta do...
...do PCC. Mas é a pergunta que nos vem , tendo sido capazes de desencadear
um movimento daquela dimensão em maio de 2006, se eles forem contrariados hoje,
será que vão ficar quietos? Ou será que reagiriam com a mesma força? Não
saberia responder a essa pergunta. Só contrariando-os para ver o que acontece.
Houve, depois, algumas manifestações diferentes, uma espécie de greve no Fórum,
envio de algumas centenas de cartas para ONGs, estratégias muito mais pacíficas
com intuito de apresentarem algumas queixas, opostas ao enfrentamento das
autoridades.
Algo de que se tem quase certeza é que existe um grande comandante do PCC, que
é o chefe de todos eles. Existe uma espécie de "Estado Maior". E o que esse
grupo decidir, seja por uma razão ou outra, a massa segue. Obedece cegamente às
ordens. Portanto, se hoje não está acontecendo nada, é porque eles decidiram
que não compensa enfrentar o Estado daquela maneira que eles enfrentam.
De qualquer forma, acho que isso que aconteceu em São Paulo exerce um papel
terrível em outros Estados. Porque vários grupos de presos começam a tomar
conta das prisões, querendo enfrentar os agentes penitenciários, a polícia etc.
Em contrapartida ao surgimento desses grupos, pensando na manutenção da ordem
interna das prisões, cada vez mais se vem recorrendo ao pessoal militarizado,
para manter a tal da ordem, algo que parece preocupante.
Há um outro dado sobre o qual é preciso falar, a respeito de uma decisão do
Supremo Tribunal Federal, em 2004 ou no começo de 2005, que dizia que o artigo
da Lei de Crimes Hediondos que impedia a progressão do regime era
inconstitucional. Era uma decisão que beneficiaria centenas de criminosos,
seria um motivo a mais, portanto, para ampliar a paz estabelecida em 2003 e
2004. A perspectiva em 2005, para os presos, era positiva, no entanto, a reação
deles foi na direção contrária, porque havia outras motivações por trás que não
o tratamento bom ou ruim ao preso.
Por que objetivamente as condições carcerárias mudaram tão pouco? E, por outro
lado, o sr. consegue observar alguma melhora?
Não, em relação ao espaço, com certeza, mudou para pior, porque hoje há o mesmo
número de vagas e muito mais presos. Alguns dizem que o princípio de autoridade
foi resgatado e que, por isso, a ordem vem sendo mantida. Se isso é verdade,
trata-se de algo extraordinário, mas essa explicação não me convence, uma vez
que as autoridades que tratam diretamente com os presos e que estão lá na ponta
são rigorosamente as mesmas. Além disso, quando era secretário, jamais fiz algo
para diminuir a autoridade dos diretores penitenciários. Pelo contrário, sempre
os prestigiei, sobretudo os bons diretores, sempre lhes dei tudo de que
precisavam, por isso tenho dúvidas quanto a essa alegação.
O sr. passou por alguma situação constrangedora como a que viveu o secretário
José Carlos Dias, no período em que se deflagrou a política de humanização dos
presídios, durante o governo Montoro? Ele chegou a ser desafiado pelos
funcionários, destratado de forma bastante agressiva, hostil. O sr. chegou a
passar por alguma situação em os funcionários ou mesmo alguns diretores tenham
discordado das suas orientações políticas?
Não. Existiram divergências, diretores que expunham suas discordâncias em
reuniões, mas tudo era discutido num clima de educação e respeito. A única
coisa em relação à qual senti certa oposição, até mesmo uma tentativa de
ridicularização, foi a questão dos Centros de Ressocialização (CRs). Esses
centros são unidades administradas de maneira totalmente diferente, começando
pela concepção arquitetônica, totalmente diferente dos modelos tradicionais.
Alguns mais céticos diziam: "não vai sobrar um preso num lugar desse, todos vão
embora. Vai chegar o dia em que não vai ter nenhum preso cumprindo pena no CR".
Era o que se dizia no começo. Mas o tempo se incumbiu de mostrar que nos CRs,
apesar da pouquíssima estrutura de segurança, fugiam menos detentos do que nas
unidades tradicionais de segurança máxima, e que aconteciam menos rebeliões ali
do que nas demais. E nenhum homicídio! Nos 22 CRs, não aconteceu nenhum
homicídio até hoje, creio. Na época em que fui secretário não houve. Aconteceu
só uma rebelião, que não chegou a ser bem uma rebelião, mas um motim, em
Presidente Prudente. Então, o tempo se incumbiu de mostrar que esse modelo era
bom, sobretudo para aqueles que não acreditavam nele. Então, confrontos,
hostilidade, contra minha autoridade não houve. O que contribuiu um pouco para
que os funcionários "mais duros" confiassem na nossa política foi a questão do
RDD, que era algo com que quase todos os diretores da linha-dura sonhavam, mas
que nenhum secretário da chamada linha-dura havia tido a coragem de instituir.
A queda dos homicídios em São Paulo, que ainda é bastante controvertida, e os
seus motivos são objeto de um debate bastante conturbado hoje. Um dos
argumentos alegados é que eles caíram, entre outros fatores, em razão das altas
taxas de encarceramento do Estado. Como o sr. vê a associação entre esses dois
fenômenos?
Há um dado curioso de que poucos falam. Há dados estatísticos sobre homicídios
só a partir de 1995, no governo Mário Covas. Antes disso, não havia registro.
Desde então, de 1995 a 1999, o número de homicídios só subiu. Em 1999 quase
estacionou e de 1999 a 2007 só caiu. Houve, então, a partir de 1999, uma
mudança embora isso não explique tudo , um melhor gerenciamento dos recursos
da segurança pública. A meu ver, isso é indiscutível. Essa mudança se deu na
gestão do secretário Marco Vinício Petreluzzi, que assumiu a Secretaria em
janeiro de 1999. Ele fez algumas coisas muito importantes de que se fala pouco
atualmente. Ele compatibilizou a área de atuação da Polícia Civil com a da
Polícia Militar, criou um sistema de informações em que todos os dados dos
crimes eram conhecidos por toda a polícia quase imediatamente após o
acontecimento. Com isso, foi possível direcionar recursos policiais para as
áreas mais necessitadas, coisa que não acontecia. O Departamento de Homicídios
passou a apurar a autoria de homicídios que antes não se apuravam, num número
muito maior do que antes. Além disso, houve uma mudança que contou com a ajuda
da SAP: a desativação gradativa das carceragens dos distritos policiais, o que
fez com que investigadores e delegados fossem liberados da tarefa de cuidar de
presos e passassem a investigar mais os crimes de autoria desconhecida. E isso
se refletiu num dado importantíssimo: havia mais de 30 mil presos provisórios
nas cadeias públicas e distritos policiais aguardando julgamento nessas suas
carceragens. Quando eu saí da Secretaria, esse número tinha caído para algo em
torno de 16, 17 mil. Nas carceragens das delegacias, havia muitas fugas mesmo,
de 1995 a 1998 cerca de 20 mil detentos fugiram dessas carceragens. É um número
fantasticamente alto. Imagine um autor de um homicídio ser preso, fugir pouco
tempo depois e voltar para a sua comunidade, onde ele cometeu o crime. A
sensação de impunidade é fantástica. Outros possíveis matadores se vêem
incentivados a fazer isso.
Mas o aumento no número de encarceramentos devido à ampliação da identificação
dos criminosos por causa do aperfeiçoamento da investigação policial, somado ao
fato de os presos não conseguirem fugir mais, contribuir, não tenho dúvida
disso, para a queda dos índices de homicídios. Houve outros fatores, como o
desarmamento, mas a Lei do Desarmamento só foi promulgada em 2003, e os índices
em São Paulo vêm caindo desde 1999. Alguma coisa tem de ter acontecido no meio
disso. A criação do Disque-Denúncia foi algo muitíssimo importante também. A
bem da verdade, é preciso reconhecer, foi na gestão do Marco Petreluzzi que o
número de denúncias anônimas disparou, o que levou à descoberta de vários
criminosos. E também o trabalho das ONGs, das que atuam nos bairros, o
fechamento de alguns bairros em algumas cidades, tudo isso somado deu esse
resultado, que está entre, ao que parece, os melhores do mundo em termos de
queda do número de homicídios. A meu ver, isso se deve a um melhor
gerenciamento dos recursos públicos, incluindo a questão do encarceramento.
No Brasil, o número de presos mortos dentro das prisões é impressionante.
Infelizmente, não há dados muito precisos sobre isso, mas todas as vezes que se
conseguiu apurar, chegou-se a um preso morto para cada grupo de mil presos, o
que é um dado astronômico comparado ao de qualquer outro país, onde o número de
presos que morrem sob a tutela do Estado é muito pequeno. Lembro-me de que
houve um aumento no número de homicídios dentro das prisões entre 1995 e o
comecinho do ano 2000, e depois houve uma redução muito drástica. O sr.
associava esse aumento de homicídios à consolidação do PCC, que buscava tirar a
concorrência do caminho para consolidar o seu poder. Como o sr. vê isso hoje?
O número de homicídios em São Paulo, na minha gestão, acho que caiu bastante.
Havia vários aspectos ligados aos crimes em presídios. Quando não havia certeza
de "quem era inimigo de quem" dentro dos presídios e entre as facções, ocorria
um maior número de mortes. No momento em que os grupos se tornaram mais
facilmente identificáveis e foram separados, levados para penitenciárias
diferentes, o número de embates entre eles diminuiu e, conseqüentemente, o
número de homicídios também caiu. Mas há um outro dado também importante a ser
mencionado e que diz respeito à separação que fizemos dos presos por tipos de
crime. Os autores de crimes sexuais foram separados e levados para três ou
quatro presídios diferentes. A partir daí, quase não houve mais homicídios de
autores de crimes sexuais nas penitenciárias de São Paulo. Antes, eles ficavam
junto aos outros presos, mas depois passaram a ser "protegidos", digamos, em
penitenciárias específicas. Além disso, o fato de procurar separar de forma
muito clara quem é de uma facção criminosa de quem é de outra trouxe bons
resultados. Houve quem dissesse que isso era "reconhecer oficialmente a
existência das facções"; e eu retrucava: "não é melhor reconhecer o que
obviamente existe e, com esse reconhecimento, evitar a conseqüência mais grave
de todas: os homicídios dentro das prisões?".
Todas essas medidas, enfim, melhoraram o funcionamento dos presídios. Ou seja,
o trabalho de gerenciamento entre as áreas da Secretaria da Segurança Pública e
da Secretaria da Administração Penitenciária foi um pouco mais afinado, o que
contribuiu, a meu ver, de forma significativa para a queda no número de
homicídios, embora, nem de longe, tenha sido a principal causa, mas que
contribuiu, contribuiu.
E quanto à sua segurança pessoal, em algum momento o sr. se sentiu ameaçado ou
enxergou a sua tarefa como uma tarefa de risco?
Não. Mas recebi inúmeras ameaças durante o tempo em que fiquei na secretaria.
Não só contra mim, mas contra a minha família. Contudo, o que me deixou
impressionado foram dois episódios ocorridos depois que eu saí. Em dezembro de
2006, e também em 2007, passou a circular uma informação de que o pessoal do
PCC havia decidido que seis pessoas aqui no Estado de São Paulo deveriam ser
assassinadas, e eu estava entre elas, e o pior, encabeçando a lista. Segundo
apuraram, o que motivou essa decisão tinha sido a criação do RDD, que foi coisa
minha. Portanto, eu seria o maior opressor do Estado de São Paulo e que, por
isso, eu teria de ser eliminado. Foi uma coisa séria realmente, porque não só
fui alertado por um promotor de justiça que era meu amigo e que tinha dados
concretos sobre isso, mas também por um juiz de Direito, pela Delegacia Geral
de Polícia, pelo Comando da PM, que chegou a colocar uma viatura na porta da
minha casa. Mas felizmente não aconteceu nada.
O sr. gostaria de falar mais alguma coisa?
Eu esperava que, diante da gravidade da crise de 2006, as autoridades, a
sociedade inteira, estivessem analisando essas questões. Por exemplo, será que
foram falhas individuais que provocaram essa crise, desentendimentos entre esta
ou aquela autoridade, será que foi por isso que tudo isso aconteceu? Então, se
buscarmos outros nomes que consigam se entender ao exercerem suas tarefas, ou
que possam exercer com mais eficiência alguns cargos, o problema será
resolvido? A meu ver, parece evidente que não e infelizmente não vi nenhuma
discussão importante sobre as causas que levaram àquela crise. Isso é o que
mais me preocupa, o fato de nada disso ter acontecido.
[1] Fernando Salla é doutor em Sociologia pela USP e Pesquisador-Sênior do NEV
(Núcleo de Estudos da Violência). Ver créditos de Paula Miraglia na p. 7.