Biblioteca de arte: circulação internacional de modelos de formação
A Academia Imperial das Belas-Artes (Aiba) e o rico ambiente artístico do Rio
de Janeiro no século XIX formaram-se em um processo marcado por translados e
descontinuidades, que resultou das guerras e da trama de relações
internacionais tecida nos escombros da grande transformação desencadeada pela
Revolução Francesa.
Apesar de instituídos em realidade social bastante diversa, os padrões
artísticos reproduzidos no Brasil seguiram uma lógica que é comprensível pelo
fato de fazerem parte de um complexo europeu que se configurou em redes muito
antes da emergência das instituições e dos eventos aqui tratados. A própria
idéia de escola artística, ancorada em um lugar determinado e portadora de
características singulares, foi gestada em um contexto em que a circulação de
artistas era um fenômeno bastante generalizado. O gênero literário das vidas de
artistas1, que proliferou com a criação das academias, teve papel importante na
fixação da idéia de escola, na medida em que as biografias foram agrupadas em
linhagens, umas às outras opostas e complementares, mas todas enraizadas em um
determinado solo, quase sempre identificado a uma cidade. No entanto, a
constituição imaginária das escolas aconteceu no momento em que as corporações
urbanas de praticantes das artes do desenho perdiam seus monopólios e
privilégios. É nesse contexto que aconteceu a proliferação do artista de corte
e das academias de arte. Se estas também foram instituições identificadas a
cidades, seus padrões de reprodução pressupunham um cenário mais amplo, marcado
por constantes trocas e deslocamentos. E não se trata aqui apenas da viagem à
Itália, momento essencial da formação do artista moderno, mas de inúmeras
temporadas de prestação de serviços em diversas cortes européias, assim como de
transferências permanentes. Já no século XVI e, sobretudo, no XVII a realidade
das academias pressupunha um espaço de relações internacionais onde circulavam
não apenas pessoas, mas também obras, livros e modelos educativos.
É nesse cenário que a biblioteca começa a fazer sentido, mas não somente em seu
caráter propedêutico. Que a biblioteca pode ser útil para o ensino em um âmbito
em que regras e técnicas são essenciais, não parece haver dúvida. Mas, mais do
que isso, há que se levar em conta o ideal do artista letrado que começa a se
construir a partir de Alberti, tendo como modelo o poeta erudito da
Antigüidade. Reciclado no Renascimento, esse modelo pressupunha um artista com
domínio das principais matérias das artes liberais, os números e formas da
aritmética e da geometria, os princípios da poética e da retórica para instruí-
lo no âmbito das narrativas da pintura de história. E a esses foram se
agregando outros saberes em constante acumulação.
No início do século XIX, os livros dedicados à literatura artística já se
dispunham em diversas camadas, e o acervo da biblioteca da Academia Imperial
das Belas-Artes no Rio de Janeiro constitui-se em um bom exemplo dessas
sobreposições e dos efeitos de longa duração visíveis no conjunto. Apesar de a
biblioteca aparentar ser um corpo estático, há nela uma história pressuposta,
seja porque o conjunto é composto por obras distribuídas por suas datas de
edição em pouco mais de três séculos, seja porque em obras modernas são
retomadas partes, preceitos, exemplos ou noções de suas ancestrais, em um jogo
de diferenças e repetições. No entanto, o entendimento da natureza do conjunto
não é suficiente para esclarecer aspectos essenciais do uso dos livros, pois,
como se sabe, uma biblioteca é composta também por muitos livros que não são
lidos, e lá figuram como escombros ou tesouros intactos. Apesar disso, a
biblioteca pode ser tomada como índice da inteligência da instituição que a
abriga, mesmo que essa inteligência indique apenas uma potencialidade. Daí a
importância de se acompanhar o trabalho da formação da biblioteca por parte
daqueles que dirigiram a Academia Imperial das Belas-Artes, interferindo na
composição do acervo e incentivando a leitura dos livros. Na medida em que a
escola possui um caráter normativo, a biblioteca reveste-se de autoridade e
adquire o caráter de dispositivo, pois nela se encontram os preceitos que
fundamentam a arte e seus fazeres. É nela em que estão as obras clássicas, o
cânone da literatura artística que merece figurar no currículo e participar da
rotina dos ateliês.
FÉLIX-ÉMILE TAUNAY E ARAÚJO PORTO-ALEGRE
Não são muitas as notícias que permitem reconstituir a história da biblioteca
da Academia Imperial das Belas-Artes. Sabe-se, por um escrito de Araújo Porto-
Alegre (1806-1879), que a biblioteca estava localizada em um salão no primeiro
andar do edifício projetado por Grandjean de Montigny. Em posição de destaque
pois, no princípio, só havia pavimento superior na parte central do edifício,
cuja fachada tinha a forma de um templo jônico. Depois de 1882, o Palácio da
Academia ganhou um segundo pavimento em toda a sua extensão, e a biblioteca
passou a ocupar uma sala pouca coisa menor, na ala direita do segundo piso, com
três grandes janelas. Do edifício original, a única coisa que sobrou foi seu
frontispício, que hoje se encontra preservado no Jardim Botânico do Rio de
Janeiro.
Na época em que Araújo Porto-Alegre dirigiu a Academia (1854-1857), a
biblioteca foi organizada e equipada com o mobiliário adequado; e Léon Pallière
Grandjean Ferreira realizou para seu teto uma "alegoria à reforma dos estudos",
pintura que foi elogiosamente descrita por Gonzaga Duque:
A composição é de uma simplicidade tocante, de uma preciosa pureza de
linhas que lembra, em harmonia e singeleza, a severidade das linhas
gregas. O colorido é simples, rico em limpidez, feliz na tonalidade.
O caráter decorativo relaciona-se perfeitamente com o fim a que a
sala é destinada, e com o caráter do edifício. Nem mais um esperdício
de linha, uma prolixidade, um desgarre de pincel. Sob a cúpula azul
do céu estão reunidas a escultura, a arquitetura e a pintura. A
arquitetura, a grande arte social por excelência, figura no centro,
sobre uma grande cadeira grega, tendo ao lado as co-irmãs. As
expressões dessas três figuras, delineadas pelo molde formoso e ao
mesmo tempo grave de onde saíram as peregrinas belezas do paganismo,
se traduzem em serenidade, saber e talento. Sobretudo, a que preside
a reunião patenteia, nos corretíssimos traços fisionômicos, galhardo
talento e soberana calma2.
Porto-Alegre, que instruiu Léon Pallière sobre o que deveria figurar na pintura
do teto, foi o idealizador e o executor da reforma do ensino da Academia, que
começou a ser posta em prática em sua gestão e veio a ser conhecida como
Reforma Pedreira, em homenagem ao ministro dos Negócios do Império, ao qual a
Academia estava subordinada.
Pelo conteúdo do ofício enviado ao ministério, no qual Porto-Alegre solicita
recursos para as instalações, tem-se a idéia de que até então não havia
biblioteca: "[...] tenho a honra de propor a V. Exc. a criação de uma
biblioteca especial nesta Academia a fim de que os mestres, discípulos e
amadores aí encontrem o que a pobreza os impede de adquirir [...]"3. No
entanto, o mesmo ofício faz referência a um bibliotecário já em atividade; e os
livros, que foram dispostos neste novo ambiente, também já existiam, pois há
notícia deles em documentos anteriores.
Félix-Émile Taunay já falava explicitamente da biblioteca em seu discurso na
abertura do ano letivo de 1835, no início de sua gestão como diretor da
Academia. Referia-se ao "sr. Joaquim Vieira da Silva e Souza, atento à formação
da nossa biblioteca" e às suas gestões para conseguir da Biblioteca Pública a
remessa de exemplares de livros de arte que nela existissem em duplicata4.
Esta demanda por livros em duplicata reaparece mais tarde nos escritos de
Porto-Alegre em que tratou do mesmo assunto. Mas não é certo que a biblioteca
da Aiba tenha conseguido tais transferências.
No que diz respeito à coleção de livros da Aiba, Alfredo Galvão publicou em
1957 uma separata na qual transcreve um "Velho catálogo sem data e manuscrito,
cujas folhas estão rubricadas por Félix-Émile Taunay"5, em que constam os
livros pertencentes à Academia, provavelmente em 1850. Trata-se de um documento
precioso no qual constam 83 títulos, quase todos eles acompanhados do nome do
autor, lugar e data de publicação. Além disso, na margem esquerda da lista,
aparece a referência ao doador ou à procedência da obra. Na sua maioria, estas
notícias indicam que os livros foram ou doados pelo diretor, o próprio Taunay,
ou adquiridos por um "Fundo da Academia", o que faz pensar que nos dezessete
anos da gestão de Taunay houve um esforço sistemático para equipar a escola com
referências bibliográficas importantes para o ensino, para o próprio uso de
professores, de alunos e, provavelmente, de artistas que gravitavam em torno da
Academia.
A este documento, que dá a idéia do estado da biblioteca em 1850, agrega-se
outro que faz referência à doação de 23 títulos (40 volumes) feita por Porto-
Alegre em 1859, data que corresponde à sua partida do Brasil, para as
sucessivas missões diplomáticas que ocuparam os últimos vinte anos de sua
vida6.
Nestes dois documentos, tem-se, portanto, a referência a 106 títulos que foram
acessíveis na Academia em meados do século XIX, o que é um bom ponto de partida
para se ter uma visão dos recursos teóricos e práticos que estavam ao alcance
de professores e alunos na época em que a Academia atingia sua maioridade.
Apesar destes documentos, pouco se sabe acerca do uso ordinário dos livros. Dos
83 títulos que constam do catálogo redigido por Taunay, 49 são franceses (a
língua e a edição); 22 italianos; 7 portugueses ou brasileiros; 2 latinos; 1
espanhol e 1 inglês. Ao contrário deste catálogo, no qual a grande maioria das
informações bibliográficas é bastante completa, a lista das doações de Porto-
Alegre de 1859 encontra-se em documento manuscrito, com referência aos autores
e aos títulos dos livros, mas o copista traduziu todos os títulos, além de não
dar qualquer outra informação sobre as línguas em que estão escritos. Mas,
mesmo assim, é perceptível também a predominância de livros franceses e
italianos. Se estas duas últimas eram na época as "línguas gerais" dos
artistas, há no entanto indícios de que os jovens alunos as desconheciam. Daí o
esforço de Taunay no sentido de tornar acessível parte desta literatura por
meio da tradução de alguns livros considerados estratégicos para o ensino. O
próprio Taunay traduziu do inglês Arte de pintar a óleo conforme a prática de
Bardwell baseada sobre o estudo e a imitação dos primeiros mestres das escolas
italiana, inglesa e flamenga7. Traduziu e editou também um compêndio de vários
autores chamado Epítome de anatomia relativo às belas-artes seguido de um
compêndio de fisiologia das paixões e de algumas considerações gerais sobre as
proporções com as divisões do corpo humano; oferecido aos alunos da Imperial
Academia das Belas-Artes do Rio de Janeiro. Esta tradução, na parte dedicada à
osteologia e miologia - ossos e músculos ó, reproduz textos de Roger de Piles
(1635-1709); na parte relativa à fisiologia das paixões reproduz estudos de
Charles Le Brun (1619-1690); e sobre o tópico das proporções retira as idéias
gerais de Aubin Louis Millin de Grandmaison (1759-1818), e a parte mais prática
é traduzida de um manual do graveur en taille douce Gérard Audran (1640-1703).
Sobre essa seqüência de autores, é importante lembrar que De Piles, Le Brun e
Audran foram artistas e letrados da época de Luís XIV, representantes da fase
inicial da Académie Royale de Peinture et Sculpture em Paris, fundada em 1648,
sob os auspícios do cardeal Mazarino. Já Millin é um representante típico dos
grandes eruditos do Institut de France no início do XIX. Versado em artes e
línguas antigas, Millin é o autor do altamente instrutivo Dictionnaire des
beaux-arts, de 1806, livro que consta do catálogo elaborado por Taunay.
Nas listas de livros pertencentes à Baiba não há referências a De Piles e Le
Brun, mas o prefácio da tradução feita por Taunay indica que, do primeiro,
foram traduzidos trechos do livro Abrégé d'anatomie accomodé aux arts de
peinture et de sculpture, que teve reedição em 1798. Este livro de De Piles tem
por base uma seleção de figuras desenhadas por Ticiano para o famoso tratado de
anatomia de Andreas Vesalius (1514-1565)8.
De Le Brun não fica clara a fonte da tradução, que pode ter tido origem em uma
de suas tantas conferências na Academia que abordaram o tema das paixões
aplicadas às belas-artes, que foram objeto de diversas publicações: Méthode
pour apprendre à dessiner les passions (1713); Conférence de M. Le Brun sur
l'expression générale et particulière des passions (1713); Expressions des
passions de l'âme représentées en plusieurs têtes gravées d'après les dessins
de feu M. Le Brun (1727), textos que circularam por muito tempo no ambiente das
academias em suas formas originais ou em epítomes.
Quanto à parte relativa a Audran, na tradução de Taunay a fonte é o livro Les
proportions du corps humain, mesurées sur les plus belles figures de
l'Antiquité, de 1683, reeditado em 1801, título que também consta no catálogo
da Baiba.
Esse é talvez o melhor exemplo dos efeitos de longa duração presentes no
interior da biblioteca: o compêndio didático sobre anatomia e fisiologia das
paixões traduzido e organizado por Taunay contém quatro camadas sobrepostas: da
primeira metade do século XVI, Vesalius e Ticiano; do final do século XVII, De
Piles, Le Brun e Audran; do início do século XIX, Milin de Grandmaison; por
fim, de 1837, a própria iniciativa de Taunay de juntar tudo isso e recolocar em
funcionamento no âmbito da academia no Rio de Janeiro.
Essas edições da Academia no Rio de Janeiro buscavam não só oferecer recursos
para seus próprios trabalhos internos, mas também fornecer subsídios para
outras instituições, como é explicitado em um de seus prefácios:
A Academia entende assim preencher, como estabelecimento central, um
dos fins de sua existência, procurando, debaixo da aprovação do
Governo, espalhar elementos de instrução capazes de despertar o gênio
em qualquer parte em que se acha, e por ele promover o renome
nacional na cultura das Artes9.
Estas iniciativas de Taunay datam de 1836 e 1837, o que demonstra que desde o
início de sua gestão como diretor (1834-1851) a biblioteca já era considerada
um lugar estratégico na rotina acadêmica.
Por mais variados que sejam os livros, seus assuntos, seus doadores, pode-se
intuir no exame da biblioteca um sistema de conhecimento. Um ponto de partida
para entendê-lo é verificar os autores com maior número de títulos. Winckelmann
(1717-1768), Quatremère de Quincy (1755-1849) e Bartolomeo Pinelli (1781-1835)
ocupam posição de destaque.
De Winckelmann, que no universo acadêmico era ainda a mais incontestável
autoridade em assuntos artísticos, principalmente antigos mas também modernos,
no catálogo de Taunay consta apenas Monumenti antichi inediti; mas, com as
doações de Porto-Alegre de 1859, entraram na biblioteca Histoire de l'art chez
les Anciens (três volumes); Remarques sur l'architecture des Anciens; Recueil
des différentes pièces sur l'art; e uma obra que é referida como "Coleção de
Cartas", que é, provavelmente, Recueil de lettres sur les découvertes faites à
Herculanum.
De Quatremère de Quincy, que foi secretário perpétuo da classe de Belas-Artes
do Institut de France entre 1816 e 1839, constam Histoire de la vie et des
ouvrages des plus célèbres architectes du XIe siècle jusqu'à la fin du XVIIIe
(dois volumes); Histoire de la vie et des ouvrages de Raphaël; Histoire de la
vie et des ouvrages de Michel-Ange Buonarroti; Monuments et ouvrages d'art
antiques restitués d'après les descriptions des écrivains grecs et latins, et
acompagnés de dissertations archeologiques (catálogo de Taunay); e Canova et
ses ouvrages ou Mémoires historiques sur la vie et les ouvrages de ce célèbre
artiste (doação de Porto Alegre de 1859).
De Bartolomeo Pinelli, gravador romano formado no ambiente da Academia de San
Luca, famoso por seus desenhos de costumes e cenas populares, constam no
catálogo da Baiba quatro títulos: L'Eneide di Virgilio tradotta da Clemente
Bondi inventata ed incisa all'acquaforte da Bartolomeo Pinelli; Raccolta di
cento costumi antichi ricavati dai monumenti e degli autore antichi designati
ed incise all'acquaforte da Bartolomeo Pinelli; Nuova raccolta di cinquanta
motivi pittoresche e costumi di Roma; e Raccolta di cinquanta costumi di
Napoli.
No cânone da Academia Imperial das Belas-Artes destacam-se, portanto, os dois
mais importantes teóricos do neoclassicismo dos séculos XVIII e XIX. Cinco
títulos de Winckelmann, cinco de Quatremère de Quincy, dos quais sete entraram
na biblioteca por doação de Porto-Alegre10. O fato de este aporte bibliográfico
estar associado a ele é coerente com sua trajetória de artista letrado, que se
dedicou à história, às biografias de artistas, à estética e à arqueologia, e
foi sem dúvida o mais relevante pensador das artes no Brasil de seu tempo. É
coerente também com um dos tópicos da reforma da Academia, realizada sob sua
gestão, que criou a disciplina de História das Belas-Artes, Estética e
Arqueologia11.
Quanto aos quatro livros de Bartolomeo Pinelli, pode-se dizer que fazem parte
de um significativo conjunto dedicado a imagens italianas, certamente a região
do mundo mais bem documentada na biblioteca. Os livros de Pinelli fazem série
com Palais, maisons et autres édifices modernes [de Roma], de Percier &
Fontaine; Architecture toscane, de Grandjean de Montigny; Pisa illustrata, de
Alessandro Marrona; Le mura di Roma, de Antonio Nibby; e um certo Esboços da
cidade de Nápoles, de autor desconhecido; além dos livros com ilustrações de
pintura e escultura de coleções italianas.
Afora esses, nenhum outro autor possui mais de dois títulos na biblioteca. O
que leva a pensar que, para Taunay, o assunto era mais importante do que o
autor; ou, a dizer de outra forma, a função do livro como eventual recurso
pedagógico era mais visada por Taunay do que a autoridade daquele que tem seu
nome inscrito na obra, preocupação mais típica de um artista letrado, de um
teórico, como foi Porto-Alegre.
DIVISÃO PRÁTICA DO ACERVO
Outra forma de entrada no universo da biblioteca é por meio de sua divisão em
áreas, que direta ou indiretamente remetem às divisões do ensino. Como está
explícito na alegoria pintada por Léon Pallière no teto da biblioteca, a
Academia seguia o modelo, canônico desde Vasari, que contemplava as três artes
do desenho: Arquitetura, Pintura e Escultura; e os livros distribuíam-se por
estas três áreas, complementadas pelas matérias que faziam parte da formação
geral do artista.
Para a formação do arquiteto havia uma miscelânea de livros que podem ser
classificados em três grandes conjuntos: os dogmáticos, os técnicos e os
exemplares. Por dogmáticos se entende aqui aqueles que sistematizavam
conhecimentos antigos, que eram a base da formação neoclássica, e tinham em seu
centro a teoria das ordens arquitetônicas, entre os quais encontram-se obras
como I cinque ordini d'architettura, de Giacomo Barozzi Vignola (1507-1573);
Principii di architettura civile, de Francesco Milizia (obra em três tomos);
Des principes de l'architecture, de la sculpture et de la peinture et d'autres
arts qui en dépendent avec un dictionaire des termes propes à chacun de ces
arts, de Félibien; e Nuovo corso d'architettura civile dedotta dai migliori
monumenti greci, romani, e italiani del cinquecento, de Antonio Ginesi.
No grupo dos livros técnicos encontram-se alguns bastante úteis, como o manual
ricamente ilustrado Traité sur l'art de la charpente, théorique et pratique, de
J. Ch. Krafft, obra trilingüe (francês, inglês e alemão) que trata
principalmente da carpintaria de telhados, desde as formas mais simples às mais
sofisticadas; o livro de Donnet et Orgiazzi (continué par Kauffmann).
Architectonographie des théâtres de Paris ou parallèle historique et critique
des édifices considérés sous le rapport de l'architecture et de la décoration;
e um manual chamado Architecture de Bullet, ou le nouveau Bullet de la ville et
des campagnes, cujo subtítulo é esclarecedor: "Obra indispensável aos
arquitetos, mestres de obras, empreiteiros, aparelhadores, verificadores,
agrimensores, operários, e para a verificação dos trabalhos dos particulares
que mandam construir".
Os livros orientados para a formação do arquiteto e classificados aqui como
exemplares já foram acima referidos, pois todos eles dizem respeito à
arquitetura italiana, como Palais, maisons et autres édifices modernes, de
Percier et Fontaine, e Architecture toscane, de Grandjean de Montigny.
Completam a série dedicada à arquitetura os livros Remarques sur l'architecture
des Anciens, de Winckelmann, e Histoire de la vie et des ouvrages des plus
célèbres architectes du XIe siècle jusqu'à la fin du XVIIIe, de Quatremère de
Quincy, obras de caráter histórico que se complementam; a primeira trata dos
estilos antigos, e a segunda biografa os arquitetos modernos mais importantes
desde Buschetto, do século XI, até Soufflot, autor do projeto da igreja de
Sainte-Géneviève, obra que o próprio Quatremère de Quincy adaptou
transformando-a no Panthéon, depois da Revolução de 1789.
Há uma adequação bastante razoável entre o conjunto de livros dedicados à
arquitetura e o que era previsto para seu ensino nos estatutos:
O estudo da arquitetura, ou da ciência da arte de edificar, segundo
as regras e proporções determinadas, será teórico e prático. O
professor ensinará cronologicamente a mudança de gostos e estilos que
tem experimentado a arquitetura, desde a sua mais antiga origem até o
seu estado florescente, tendo sempre em vista o conhecimento dos
diversos modos de arquitetura adotados pelos gregos e romanos dos
quais vários mestres dos séculos XV e XVI a exemplo de Vitrúvio, e,
segundo a doutrina, compuseram as diferentes ordens de arquitetura;
mas, para evitar todo sistema a este respeito, fará conhecer donde
ele as tem coligido, dando somente aos discípulos exemplos extraídos
dos monumentos existentes na Grécia e na Itália, e as cinco ordens de
arquitetura de Vignola. Passar-se-á depois à aplicação destes
diferentes modos às partes dos edifícios, seguindo-se o estudo da
construção considerada debaixo de todas as suas relações, isto é, das
partes que pertencem à composição, proporção e decoração dos
edifícios em geral; e por isso é de grande importância que os
discípulos da classe de arquitetura se apliquem ao desenho de figura
e ornatos, para se dirigirem com boa escolha na parte decorativa de
suas composições. Destes conhecimentos reunidos à teoria desta arte
resulta o bom gosto de arquitetura, observando sempre as regras do
referido Vignola12.
A série de livros dedicados à escultura é muito rica na parte dogmática e nos
exemplos, mas bastante limitada no que diz respeito à técnica. Neste aspecto, o
único livro que contém ensinamentos técnicos relativos à arte de esculpir é Due
trattati di Benvenuto Cellini, obra já bastante antiga, que havia sido
reeditada em 1811, com uma parte dedicada à ourivesaria e outra à escultura.
As obras que podem ser ditas dogmáticas são também exemplares e históricas, já
que trazem consigo inúmeras reproduções de escultura antiga e moderna. Nesta
série, Winckelmann também se destaca com Histoire de l'art chez les Anciens,
que se completa com dois outros livros ricamente ilustrados: Monumenti antichi
inediti, dele próprio, e Ricerche sopra un Apolline delle villa
dell'eminentissimo sig. cardinale Alessandro Albani, do padre Stefano Raffei.
Monumenti antichi é uma espécie de suplemento de Histoire de l'art. É composto
por dois volumes em grande formato, contendo um tratado e 208 reproduções de
frisos, baixos relevos, vasos e estátuas, com textos explicativos das imagens
gravadas. O livro de Raffei é declaradamente um complemento desse último: "Para
servir de suplemento à obra Monumenti antichi inediti de Giovanni Winckelmann",
e contém reprodução gravada não apenas do Apolo referido no título, acompanhada
de uma dissertação, mas também de outras estátuas e baixos relevos da vila do
cardeal Albani. São ao todo sete dissertações acompanhadas das reproduções das
obras analisadas. O livro de Quatremère de Quincy Monuments et ouvrages d'art
antiques restitués d'après les descriptions des écrivains grecs et latins, et
acompagnés de dissertations archeologiques pode ser agregado a esse conjunto,
na medida em que restitui não apenas obras de arquitetura como o templo de
Minerva na Acrópole, o túmulo de Porsenna e o fabuloso carro funerário que
teria transportado o corpo de Alexandre da Babilônia ao Egito, mas traz também
a reprodução do que teria sido a estátua de Minerva em ouro e marfim realizada
por Fídias no Panteão.
E a esta série também se agrega Le Musée Français recueil complet des tableaux,
statues et bas-reliefs qui composent la Collection Nationale, que, em cada um
de seus quatro volumes, apresenta as mais preciosas esculturas que haviam sido
trazidas para Paris depois das vitórias dos exércitos de Napoleão e que
enriqueceram a já significativa coleção de esculturas presentes no Louvre,
livro que merece um tratamento à parte13.
Além destes, dedicados à escultura antiga, há também três livros de exemplos
que tratam da arte francesa: Recueil de costumes français, ou Collection des
plus belles statues et figures françaises, des armes, des armures, des
instruments, des meubles, etc., dessinés d'après les monuments, manuscrits,
peintures et vitraux, depuis Clovis jusqu'à Napoléon, de Rathier &
Beaumier; Recueil des figures, groupes, thermes, fontaines, vases, statues, et
autres ornemens de Versailles tels qu'ils se voyent à présent dans le Chateau
& Parc, de Simon Thomasin; e Antiquités de la France, de Clerisseau.
Ainda no que diz respeito à escultura destacam-se dois livros dedicados a
artistas dos mais modernos: Intera Collezione di tutte le opere inventata e
scolpite dal Cav. Alberto Thorwaldsen (1768-1844); e uma biografia do escultor
italiano Antonio Canova (1757-1822), assinada também por Quatremère de Quincy,
mas que contém apenas uma ilustração.
Para coroar esse segmento, a biblioteca possuía a série de livros do conde
Leopoldo Cicognara Storia della scultura dal risorgimento in Italia fino al
secolo di Canova. Obra em sete volumes, acompanhada de livro de gravuras em
grande formato, doados em 1859 por Araújo Porto-Alegre.
Os livros da Baiba dedicados à escultura formam um magnífico conjunto de
publicações, que compendiam os maiores tesouros da arte antiga e moderna,
venerados pela cultura neoclássica dos séculos XVIII e XIX.
Na parte dedicada à pintura, há que destacar o livro já referido de Félibien,
Des principes de l'architecture, de la sculpture et de la peinture que, como
indica o título, serve a todas as áreas. E também uma obra castelhana, El Museo
Pictórico y la escala óptica, de Palomino de Castro, cujo primeiro tomo
intitula-se Theoria de la pintura, en que se discribe su origen, essencia,
especies, y qualidades; e o segundo, Prática de la pintura, en que se retrata
el modo de pintar à el olio, temple, y fresco. Estes dois livros são compêndios
dos saberes acadêmicos sobre as artes do desenho.
Havia também na Baiba uma série de livros, dedicados ao desenho, em que se
destacam os tratados de perspectiva: Direzioni de la prospettiva teórica, de
Bibiena (Ferdinando Galli), Traité de perspective linéaire à l'usage des
artistes, de Charles Choquet, Perspectiva pictorum, et architectorum, de Putei
(Andrea Pozzo), Élémens de perspective pratique à l'usage des artistes, de
Pierre-Henri Valenciènes, Elementi di perspettiva secondo li principii di Brook
Taylor, con varie aggiunte spettanti all'ottica e alla geometria, de François
Jacquier.
Outra série que é comum à formação de pintores e escultores é a que trata de
anatomia e fisiologia das paixões, como Anatomie de formes extérieures du corps
humain, appliquée à la peinture, à la sculpture et à la chirurgie, do médico
P.-N. Gerdy; e Études des passions appliquées aux beaux-arts, de J.-B.
Delestre. O livro de Gerdy tem caráter bastante prático, voltado para a
descrição das formas exteriores e de seus fundamentos anatômicos. Já o livro de
Delestre é mais filosófico. É um tratado sobre as paixões com o objetivo de
instruir os artistas para lidar com as expressões de desejo, inquietude,
cólera, ódio, amor, dor física, dor moral, satisfação, medo, coragem, furor,
raiva, desespero; e o livro se completa com dois longos estudos sobre o gesto e
o caráter. Mas, apesar de ter como objetivo servir ao artista para a
representação gráfica das formas pelas quais as paixões se expressam no homem,
não possui qualquer tipo de exemplificação, é um livro exclusivamente de texto.
Seu esforço intelectual remonta aos antigos, particularmente a Aristóteles, e
vai ao encontro do materialismo psicológico dos ideólogos, que tiveram em
Destutt de Tracy (1754-1836), seu principal formulador no início do século XIX.
Esses dois livros se alinham com Les proportions du corps humain, mesurées sur
les plus belles figures de l'Antiquité, de Gérard Audran, já referido acima,
que é um guia prático de estudo da anatomia baseado nas principais esculturas
da Antigüidade.
As obras relacionadas à formação do pintor que podem ser ditas exemplares são
diversas. A coleção mais rica de imagens gravadas é sem dúvida a de Le Musée
Français (1803), que é dividida em "Tableaux d'Histoire", "Tableaux de Genre et
Portraits" e "Tableaux de Paysages, Marines et Vues", além das estátuas
antigas. Há também um livro intitulado Galerie Aguado: Choix des principaux
tableaux de la galerie de Mr. le Marquis de las Marismas de Guadalquivir
(1839), que é uma boa coleção de pintura espanhola, que corresponde na época ao
recente interesse que os espanhóis conquistaram no âmbito do judicioso gosto
francês.
No campo particular do retrato destacam-se três livros de exemplos: Museo
Fiorentino che contiene i ritrati de' pittori, de Francesco Moücke, livro que
apresenta uma série de gravuras de auto-retratos de artistas das coleções
florentinas; e também Portraits de tous les souverains de l'Europe et des
hommes illustres modernes, de Mme. Meyer, que é claramente um livro
encomiástico, provavelmente financiado por subscrições, que foi atropelado
pelos acontecimentos históricos. É um livro contendo 109 retratos de soberanos
- sete reis e três imperadores, inclusive d. João VI ó, ministros, generais,
alta nobreza européia da segunda década do século XIX, incluindo muitas figuras
já desaparecidas ou que caíram em desgraça depois das derrotas de Napoleão. E a
estes se agrega um livro português intitulado Retratos e elogios dos varões e
donas que ilustraram a nação portuguesa em virtudes, letras, armas e artes. É
obra inicialmente publicada em fascículos, realizada por uma certa Sociedade
Philopatrica, composta entre outros por Pedro José de Figueiredo, Mariano da
Conceição Vellozo e José da Cunha Taborda. Esse livro perfaz uma verdadeira
história de Portugal por meio de seus grandes nomes, desde o Infante D.
Henrique até figuras de destaque de meados do século XVIII.
Com estas três obras e mais os retratos reproduzidos nos quatro volumes de Le
Musée Français, pode-se dizer que o aluno da Aiba possuía uma riquíssima
coleção de retratos oficiais ou encomiásticos como exemplos para aquela que era
uma das partes fundamentais da profissão do pintor, a arte do retrato, da qual
geralmente obtinha parte significativa de seu sustento. Além disso, as centenas
de personagens retratados nos livros poderiam servir também como subsídio para
a pintura de história, na qual muitas vezes é necessário tomar de empréstimo as
fisionomias de certos personagens quando o objetivo é reconstituir
acontecimentos solenes ou heróicos.
A biblioteca possuía também uma série de obras que podem ser ditas de
referência. Dicionários, como o excelente Dictionaire des beaux-arts de Millin,
no qual alguns verbetes são verdadeiros tratados históricos, arqueológicos e
estéticos; e o superficial mas informativo Dictionaire des artistes de l'école
française de Gabet. Nessa rubrica, encontram-se também livros de geografia,
como o Tratado completo de cosmografia e geografia histórica, de Casado
Giraldes, e o Dictionnaire universal d'histoire et geographie, de Bouillet.
Destacam-se também livros de viagens, como o Voyage autour du monde sur la
corvette La Favorite, de Laplace; e outros livros de título parecido, em geral
acompanhados com mapas das regiões percorridas por corvettes ou frégates
francesas, que exploraram o mundo com a finalidade de reatar as relações
comerciais depois do longo período de isolamento por que a França passou até a
derrota de Napoleão. Entre estas viagens, há também outra, de interesse mais
propriamente arqueológico, intitulada Voyage de la Troade, de Lechevalier, que
corresponde a uma expedição tão típica da época (1785/1786) em busca da
localização exata de Tróia; o quarto volume desta viagem é um Recueil des
cartes, plans, vues et médailles. Este livro faz par com Vues des sites les
plus célèbres de la Grèce antique, de Théodore Aligny, que é livro rico em
imagens de paisagens e ruínas das regiões mais famosas da Grécia.
Mas chama a atenção o fato de haver poucos exemplares de obras de viajantes e
naturalistas que percorreram o Brasil, ciclo que produziu uma abundante
literatura riquíssima em imagens. Sobre a flora e a fauna brasileiras há
somente Ornithologie brésilienne ou Histoire des oiseaux du Brésil,
remarquables par leur plumage, leur chant ou leurs habitudes, de Jean
Descourtilz; e Florae fluminensis do botânico - nascido em Minas Gerais - José
Mariano da Conceição Velloso14. E nada de Spix & Martius, de zu Wied
Neuwied, ou de Saint-Hilaire. E nem mesmo os livros de cenas brasileiras de
Hippolyte Taunay e Ferdinand Denis. Até 1859, nem Félix-Émile Taunay, nem
Araújo Porto-Alegre, os construtores da biblioteca, cuidaram de a ela
incorporar as obras desses dois autores, por mais articulados que estivessem à
colônia dos artistas franceses no Brasil.
Sobre essa lacuna é importante observar algo que Porto-Alegre escreveu sobre a
necessidade de renovação da biblioteca em 1855, época em que a Academia já
havia alcançado alguma maturidade e não estava mais sob a hegemonia dos
artistas franceses que fundaram a instituição. Entre os escritos que deixou
sobre a renovação da biblioteca, Porto-Alegre propõe o projeto da formação de
coleções que teriam utilidade não só para o ensino, mas também para servir de
subsídio à indústria. E assim explicita:
Estas coleções serão de um preço incalculável no futuro, e poderão
ser agrupadas em livros da maneira seguinte: 1º - Retratos históricos
de todas as épocas do Brasil. 2º - Retratos das notabilidades do
país. 3º - Estampas gravadas e litografadas no Brasil. 4º - Desenhos
originais de brasileiros e sobre o Brasil. 5º - Usos e costumes desde
os tempos coloniais. 6º - Estudos sobre os nossos indígenas. 7º -
Vistas do Brasil. 8º - Usos e costumes das províncias. 9º - Festas
nacionais. 10º - Quadros históricos. 11º - Fantasias dos artistas
brasileiros. 12º - Flores e animais do Brasil. E outros com estampas
avulsas de todos os países para auxílio da história e da
reprodução15.
A primeira coisa a se observar é que a proposição de tais coleções confirma a
inexistência de materiais desse gênero no acervo da biblioteca, o que leva a
pensar que a biblioteca, assim como a Academia em suas primeiras três décadas,
não tinha pretensões claramente nacionais. E que o projeto de formar tais
acervos pode ser visto como o início da nacionalização da Academia, em época em
que a geração de mestres franceses já havia dado lugar aos seus sucessores
brasileiros. Parece claro que o objetivo era criar na biblioteca uma memória
pictórica brasileira. Como Varnhagem ou Januário da Cunha Barbosa, com seus
florilégios de poesia, Porto-Alegre quis reunir em coleções a arte brasileira,
e ver o Brasil documentado pela arte. Isto tudo, em 1855.
SERVENTIA PROVÁVEL
A biblioteca da Academia Imperial das Belas-Artes, apesar de pequena, era
prática para o ensino das artes do desenho, cuja pedagogia estava fundada,
sobretudo, no exemplo. Cabe lembrar que a biblioteca fazia par com a
Pinacoteca, que começou a ser formada com os 42 quadros (entre os quais muitas
cópias) trazidos por Lebreton em 1816, para servirem de exemplo no processo de
ensino.
Boa parte da formação do artista estava baseada no exercício continuado da
cópia das pinturas da Pinacoteca ou das estampas e gravuras da biblioteca. O
que não era específico do ensino artístico no Rio de Janeiro, mas
característica geral das academias. Como lembra Pevsner, a Academia de Pintura
e Escultura francesa, desde o tempo de Le Brun, e até mesmo no século XIX,
comportava duas classes, uma elementar e outra superior, entre as quais se
dividiam três fases do aprendizado: primeiro apenas a cópia de desenhos e
pinturas, depois o desenho a partir de moldes em gesso e esculturas antigas e,
por fim, o desenho a partir de modelos vivos16.
O fato de Taunay ter utilizado em suas traduções o livro de Gérard Audran Les
proportions du corps humain, mesurées sur les plus belles figures de
l'Antiquité é um bom indicativo dessa perspectiva pedagógica. O discurso
preliminar que acompanha os desenhos gravados no livro de Audran é talvez o
exemplo mais precioso das operações mentais que eram a base do sistema
acadêmico. No discurso, parte-se do pressuposto de que "a perfeição da arte
consiste em bem imitar a natureza; e parece inútil consultar outro mestre que
não seja ela". Dado este axioma, parece suficiente a recomendação de se
trabalhar a partir do modelo vivo, mas o texto imediatamente começa a colocar
em questão esta idéia. Em primeiro lugar, pelo fato de raros modelos vivos
apresentarem todas as partes igualmente belas ou justamente proporcionadas - e
aqui estamos de novo em plena tópica retórica fundada na anedota da relação de
Zeuxis com as virgens de Crotona. Caberia então, para corrigir os erros da
natureza, escolher as partes mais belas em vários modelos. Mas será isso
possível? O artista não correria o risco de cometer erros de discernimento pelo
fato de ser formado em um determinado lugar e de ter, portanto, os mesmos
preconceitos de seu país de origem e de sua Escola, no que diz respeito à
beleza? Ou mesmo de cometer erros em função dos preconceitos de seu
temperamento particular? É em função da particularidade do temperamento de um
artista que se costuma dizer que
um Pintor pinta a si mesmo em suas obras; e se tivermos suficiente
acuidade ou reflexão poderemos encontrar nelas suas inclinações
predominantes. Um sentimento inato, do qual quase sempre se ignora a
causa, determina sua escolha, e o conduz a conformar suas figuras e o
aspecto das pessoas pelas quais ele se sente atraído, ou com as quais
ele costuma viver17.
Da Escola, que modela o gosto e a visão geral do artista, e de seu próprio
temperamento, nasce a maneira que o particulariza. E, "aquilo a que se dá o
nome de maneira em Pintura é com muita freqüência um defeito, um modo de
trabalho que em princípio nos agrada, que se forma pela força do hábito, e que
termina por ser invisível aos nossos próprios olhos"18.
E qual é o antídoto contra estes riscos, já que a imitação da própria natureza
traz consigo tantos problemas? A resposta é simples: "Consultar o Antigo com
total confiança"19! Os antigos não trabalharam em qualquer país, mas na Grécia,
que era fértil em belezas, ou na Itália, que tinha o domínio do mundo, e tudo
que era raro, bom e belo estava lá, por toda parte e em abundância. E, além
disso, eles aprenderam a dominar seus temperamentos, suas paixões e, com isso,
souberam evitar todos os vícios que poderiam derivar seja do meio, seja do
indivíduo, e produziram uma arte que, depois de tantos séculos, continua a ser
admirada por sua rara perfeição. A equação inicial tem dessa forma o seu fecho.
A regra fundamental da arte é a imitação da natureza, mas, diante dos problemas
colocados em tal operação, o melhor é imitar os antigos, que já souberam tirar
dela os melhores exemplos. E assim o livro de Audran se justifica: as figuras
reproduzidas - Hércules, dito o Farnese; Laocoonte; Piramôs no Jardim Ludovise;
Antínoos, sobrenomeado o Admirável; a Pastora Grega; Vênus Afrodite, dita de
Médicis... ó, vistas por todos os lados e cuidadosamente medidas, são os
melhores exemplos para o estudante das belas-artes, é com elas que se deve
aprender a imitação da natureza!
Apesar de seus limites, a biblioteca da Aiba estava perfeitamente aparelhada
para responder a tais propósitos, e a relativa rapidez com que a Academia
produziu bons frutos é um sinal de que os métodos expostos em seus livros ou
que se serviram de seus livros tinham lá sua eficácia.
Stendhal, nas críticas aos salões que escreveu em Paris nos anos de 1820,
inventa uma anedota que pode aqui servir de conclusão, mas não para acompanhá-
lo em sua contundente ironia:
Coloque na prisão o mais ordinário dos homens, o menos familiarizado
com todas as idéias sobre arte e literatura; em uma palavra, um
desses ignorantes desocupados que se encontram em grande número numa
grande capital; e, logo após ele ter sentido a primeira onda de medo,
diga a ele que reconquistará a liberdade se for capaz de expor no
Salão uma figura nua, perfeitamente desenhada por meio do sistema de
David. Você ficará totalmente surpreso ao ver o prisioneiro,
submetido a tal prova, de volta ao mundo ao fim de dois ou três anos.
Isso se deve ao fato de que o desenho correto, científico, imitação
do antigo, como pressupõe a Escola de David, é uma ciência exata, da
mesma natureza que a aritmética, a geometria, a trigonometria, etc.;
donde se conclui que, com uma paciência infinita [...], chega-se em
dois ou três anos ao conhecimento e à capacidade de reproduzir com o
pincel a conformação e a posição exata dos cem músculos que recobrem
o corpo do homem20.
É evidente que isto é apenas uma anedota, que, no entanto, não deixa de conter
elementos para que se possa entender a produtividade que o ensino acadêmico
pode obter com sua seca e minuciosa pedagogia. A Academia das Belas-Artes do
Rio de Janeiro, por meio da biblioteca, entre outros instrumentos pedagógicos,
buscou proporcionar os recursos para que os jovens vocacionados para a arte
saíssem de suas prisões, à custa evidentemente de uma paciência infinita. A
prisão de sua possível condição social, a prisão de seu exílio em terra inculta
como a distante Guanabara.
Foi com instrumentos dessa natureza que se criou uma Escola, produtora
inicialmente de obras de qualidade média. Aquelas pelas quais, segundo o mesmo
Stendhal, "deve-se julgar o progresso ou a tendência de uma escola"21. Nos idos
de 1860, quando começou a surgir a nova geração de artistas formados pela Aiba,
os prisioneiros que saíam da cadeia já eram capazes, vez por outra, de
apresentar algo mais do que apenas obras de qualidade média.
INTRIGANTE DECORAÇÃO
Para encerrar este artigo, cabe chamar a atenção para um elemento da
ornamentação da sala da biblioteca que não é referido nem por Porto-Alegre, nem
por Gonzaga Duque em seus comentários sobre a pintura do teto realizada por
Léon Pallière. A alegoria das belas-artes que ocupava o centro do teto se
completava com medalhões contendo retratos de artistas célebres. Quem fala
sobre isso é Moreira de Azevedo na descrição que fez do palácio da Academia, na
série de livros intitulados Pequeno panorama ou descrição dos principais
edifícios da cidade do Rio de Janeiro, publicados entre 1861 e 1867. Eram
retratos de catorze pintores que formavam uma espécie de panteão a inspirar as
atividades da Academia: Apeles, Da Vinci, Rubens, Dürer, Velázquez, Andrea del
Sarto, Murillo, Van Dyck, Michelangelo, Rafael, Poussin, Tintoretto, Ticiano e
Rembrandt. A lista é de grande interesse, pois indica um panteão de artistas e
um cânone de obras que, muito provavelmente, não seria possível nos primeiros
tempos da instituição, pois pressupõe as mudanças de gosto que se operaram na
primeira metade do século XIX, e tornaram mais aceitáveis nas rotinas
acadêmicas os adeptos da cor, sempre opostos aos defensores da linha. A forte
presença de artistas de Veneza, Antuérpia, Amsterdã e Sevilha - Ticiano,
Tintoretto, Rubens, Van Dyck, Rembrandt, Murillo e Velázquez - é sinal desse
novo estado, sendo que os cinco últimos são do século XVII, época dita barroca.
O programa iconográfico completo da sala da biblioteca da Aiba é muito
provavelmente caudatário da famosa pintura que Paul Delaroche (1797-1856)
realizou no Hemiciclo da Escola de Belas-Artes em Paris, aberto ao público em
1841 depois de quatro anos de trabalho22. Delaroche, por sua vez, deixou clara
no Hemiciclo sua dívida com a Apoteose de Homero, pintada por Ingres, catorze
anos antes, para o teto de uma das salas do Louvre. Tanto Delaroche quanto
Ingres articularam em suas pinturas elementos alegóricos com retratos realistas
mas, enquanto este fez figurar em torno de Homero representantes de todas as
artes, aquele restringiu seu panteão aos praticantes das artes do desenho.
Delaroche incluiu em sua pintura uma verdadeira multidão de artistas: Ictinos,
Fídias e Apeles, representando a arquitetura, a escultura e a pintura da
Antiguidade grega, ocupam três tronos no centro da grande pintura mural; e
estão cercados por quatro alegorias femininas, que representam a arte gótica, a
arte grega, a arte romana e a arte renascentista. Entre essas alegorias,
destaca-se bem ao centro uma quinta figura feminina representando o Gênio das
Artes. Os artistas modernos (do século XIII ao XVII) foram divididos por
características de estilo ou de gênero em duas grandes alas. À esquerda, entre
aqueles que podem ser ditos coloristas, figuram Correggio, Veronese, Antonello
de Messina, Murillo, Van Eick, Ticiano, Terborch, Rembrandt, Van der Helst,
Rubens, Velázquez, Van Dyck, Bellini, Giorgione e, até mesmo Caravaggio. Entre
os pintores de paisagens, estão Ruisdael, Paul Potter, Claude Lorain e Gaspard
Poussin. Na ala oposta, foram agrupados os grandes desenhistas, adeptos da
linha: Nicolas Poussin, Giotto, Cimabue, Andrea del Sarto, Michelangelo,
Masaccio, Perugino, Rafael, Giulio Romano, Mantegna, Fra Bartolomeo,
Domenichino, Da Vinci, Dürer, Del Piombo e Orcagna. Por fim, um outro grupo de
pintores e gravadores: Le Sueur, Holbein, Edelinck, Raimondi e Fra Angelico23.
A concepção é majestosa, estática no centro e movimentada nas alas laterais,
onde os artistas, alguns sentados, outros em pé, relacionam-se uns com os
outros por meio de conversas e olhares. A referência à Escola de Atenas, de
Rafael, é também explícita, principalmente no que diz respeito ao formato
semicircular - esticado horizontalmente no caso de Delaroche, em que se vê uma
pequena distância entre o primeiro e o último plano, aprofundado no caso de
Rafael, em que os planos se multiplicam até se perderem no ponto de fuga no
centro da composição - e à situação interativa dos personagens.
O Hemiciclo da Escola de Belas-Artes em Paris pode ser entendido como um
manifesto, no qual o próprio Delaroche, no auge de sua fama, explicitava sua
posição intermediária na Escola Francesa, na grande divisão que se estabeleceu
entre Ingres e Delacroix - entre homeristes e shakesperiens, no dizer do
crítico Etienne-Jean Delécluze24. Desde 1832, Delaroche ocupava a décima
terceira cadeira de pintura na Academia de Belas-Artes, e o Hemiciclo foi a
oportunidade de demonstrar em um grande mural, onde figuram ao todo 75
personagens, a grande flexibilidade de seu talento, expressa na capacidade de
transitar entre estilos e maneiras, sendo fiel à linha ao retratar os grandes
desenhistas e ao seu oposto ao compor as figuras dos grandes coloristas. Com
isso, parece dizer que a Escola, depois de longo conflito, estava finalmente
reconciliada.
Como observou Delécluze, na notícia explicativa que escreveu sobre o Hemiciclo,
a pintura representa uma espécie de tribunal, presidido por Fídias, Apeles e
Ictinos, tendo como membros do júri a plêiade de artistas acima elencados. Por
estarem lá, em relativo equilíbrio, representantes de todas as grandes
tendências, supõe-se que a Academia não terá comportamento sectário nem
cometerá injustiças. O Hemiciclo é, por assim dizer, a apologia das vantagens
do juste milieu. Depois dessa pintura-manifesto, a Academia estava pronta para
receber em seu seio, em 1857, o quase sexagenário shakesperien Eugène
Delacroix, que ocupou a mesma décima terceira cadeira depois do falecimento de
Delaroche.
Se Araújo Porto-Alegre, que voltou da Europa em 1837, onde esteve durante seis
anos, até então não havia tido oportunidade de conhecer pessoalmente o
Hemiciclo, Léon Pallière, ao contrário, foi pensionista da Aiba no Velho
Continente, no início da década de 1850, quando a visita ao recinto pintado por
Delaroche era uma espécie de obrigação para artistas e amadores em trânsito por
Paris. E é provável que ambos possam ter tido notícias acerca dos inúmeros
debates sobre as injustiças cometidas por Delaroche ao preterir determinados
artistas e incluir outros.
O empreendimento de Porto-Alegre e Léon Pallière não pode ser colocado na cota
da tendência, dita brasileira, de macaquear tudo que é estrangeiro, pois o
Hemiciclo de Delaroche teve outras imitações mais destacadas: em Antuérpia,
Nicaise de Keyser se inspirou em Delaroche ao pintar um mural dedicado à glória
dos artistas locais no museu da cidade; e em Londres, no memorial em homenagem
ao príncipe Albert, marido da rainha Vitória, também foi representado um
panteão de artistas célebres em todos os tempos, dessa vez não em pintura mas
em altos relevos, esculpidos por Henry Hugh Armstead25.
De qualquer forma, Porto-Alegre estava bastante bem informado sobre o que se
passava em Paris, e particularmente sobre a arte de Delaroche, tanto que, na
crítica que publicou na revista Minerva Brasiliense a propósito da exposição de
1843, acontecida no Rio de Janeiro, teceu alguns comentários sobre a arte do
pintor francês. Só que nessa data sua tolerância aos adeptos da cor era um
tanto limitada, a ponto de dizer que "la couleur - é a peste maior que tem
aparecido, e que tem afastado da senda do belo tantos homens de gênio"26. E, no
mesmo artigo, ressalta o fato de Delaroche ter abandonado "la couleur" nos seus
últimos quadros, dedicados a Carlos I e a Cromwell. Mas, por prudência, Porto-
Alegre não deixa de fazer referências a grandes coloristas como Ticiano,
Rubens, Van Dyck, Rembrandt, Veronese, Murillo, ressaltando sempre a diferença
entre esses mestres e seus imitadores cujo trato pictórico lembra as "pastas de
tinta colocadas na porta de um tintureiro".
E, para lembrar a todos que foi aluno de Gros, também ele um colorista, Porto-
Alegre relata alguma coisa sobre sua pedagogia: "[Gros] nunca nos ensinou a
colorir; o que mais insistia era sobre a construção, sobre o conhecimento da
mecânica do corpo humano, e sobretudo o desenho", além, é claro, do estudo das
estátuas antigas. O que é um resumo da pedagogia neoclássica. E, para
arrematar, conclui que o colorismo em si agrada apenas o "homem primitivo", e
comemora o fato de não termos ainda regredido a esse ponto: "em geral há muito
bom senso no Brasil"!
O que pode ser notado é que Porto-Alegre, entre as posições defendidas nesse
artigo de 1843 e aquelas dos anos 1850 quando foi realizada a pintura do teto
da biblioteca, estava a operar uma ligeira e discreta conversão. O que vai
ficar evidente no artigo "Algumas idéias sobre as Belas-Artes e a indústria no
Império do Brasil", publicado na revista Guanabara em 1851. Esse artigo,
dividido em três partes, apresenta umas tantas novidades, mas o que chama a
atenção é o abandono de uma visão estática e universal da arte, em favor de
reflexão de corte claramente relativista, que admite as mudanças de gosto no
tempo e no espaço.
O que chama atenção nesse artigo é a articulação entre a arte e os outros
elementos da vida social, o que é esboço de uma visão sistêmica da cultura:
nós temos balizas infalíveis para o pleno conhecimento do estado de
um povo em qualquer época que seja, logo que soubermos do estado de
um dos seus elementos de civilização: não há indústria sem comércio,
não há filosofia sem ciências, e não há belas-artes sem literatura:
este último elemento é sempre o mais fiel representante das idéias do
tempo [...]27.
E o povo, que é uma categoria a todo tempo evocada no artigo, quanto mais
mobilidade tiver mais fará surgir novas formas estéticas. Porto-Alegre
contempla a história francesa e indica as constantes mudanças no plano das
artes: a arquitetura gótica nos tempos feudais, o retorno aos ideais clássicos
gregos, o estilo barroco e a volta ao classicismo nas vésperas da Revolução. E,
em épocas mais recentes, as mudanças aparecem mais aceleradas:
À soberania burguesa, a realeza popular começa a desagradar; os
espíritos rolam num mar de incertezas, num tormentoso provisório, e
as artes se lançarão em diferentes vias: os teatros se ornarão de
semilúneos, os lustres de caudas encarnadas, e os camarotes de
ornatos árabes: durou essa confusão de 1833 a 1840 pouco mais ou
menos; e eis que de repente surge o estilo borromínico, ou barroco, e
passa a cidade de Paris e toda a França, e as nações que a imitam, a
produzirem todos os objetos de indústria, e construírem salões
naquele gosto, que poucos anos atrás era olhado como um delírio do
pensamento humano, como uma aberração do gosto, e contrária a todos
os princípios do belo e do sublime28.
O que Porto-Alegre não diz é que ele próprio, anos antes, escrevia estas mesmas
coisas sobre o barroco, considerado "doutrina errônea", contrário às regras
estáveis do belo, fruto de uma época que começou com a grande arte de
Michelangelo, que foi seguido por uma "torrente de imitadores" que propagaram
seus defeitos e degeneraram as artes29.
Poucos anos mais tarde em outro artigo, dessa vez publicado na Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, intitulado "Iconografia
brasileira", na seção dedicada a [Mestre] Valentim da Fonseca e Silva, notável
artista do Rio de Janeiro do tempo dos vice-reis, Porto-Alegre começa
exatamente por uma reflexão sobre as mudanças de critérios na apreciação das
obras de arte:
Seria difícil há quinze anos fazer o elogio desse artista, sem
desafiar os ânimos daqueles que seguiram a escola chamada clássica,
aquela que foi propagada por Winckelmann e Rafael Mengs,
exemplificada por David, Pompeu Battoni, Percier e Fontaine, e
exagerada por Camuccini, Valadier e Benvenuti. As crenças também se
renovam no mundo artístico para justificarem o círculo vicioso de
Vico: o barroquismo, condenado há quinze anos como um delírio do
espírito humano, está hoje outra vez em voga; mas não é somente a
moda, a deusa soberana dos espíritos volúveis, que concorre para as
mudanças artísticas nos nossos tempos, mas sim aquele espírito de
mobilidade da sociedade moderna, que faz hoje em cinco anos o que em
outras eras se fazia em um século30.
Nesses textos da década de 1850 Porto-Alegre parece estar acertando o passo com
as correntes em voga na Europa; e se mostra um pouco mais complexo na maneira
que aborda os fenômenos artísticos e muito menos ortodoxo no que diz respeito
às idéias, particularmente aquelas ligadas à pedagogia neoclássica. É possível
dizer que o programa iconográfico da sala da biblioteca da Aiba, com a forte
presença de artistas associados ao barroco, está articulado a essas mudanças no
plano do pensamento e a uma certa adesão à mobilidade da sociedade moderna que
coloca em questão as antigas regras fixas da arte.
Em certo sentido, pode-se dizer que a decoração do recinto da antiga sala da
biblioteca tinha algo de inquietante para boa parte dos livros lá abrigados.
[1] Sobre as "vidas de artistas" em Portugal e no Brasil, ver Gomes Júnior, G.
S. "Vidas de artistas: Portugal e Brasil". Revista Brasileira de Ciências
Sociais, v. 22/64. São Paulo, Anpocs, 2007.
[2] Estrada, Luiz Gonzaga Duque. Arte Brasileira. Introd. e notas de Tadeu
Chiarelli. Campinas: Mercado das Letras, 1995, p. 126.
[3] Porto-Alegre, M. A. "Ofício" [datado de 05/01/1855]. In: Galvão, A. (org.)
"Manuel de Araújo Porto-Alegre: sua influência na Academia Imperial das Belas-
Artes e no meio artístico do Rio de Janeiro". Revista do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional 14. Rio de Janeiro, 1959, p. 75.
[4] Apud Santos, Francisco Marques dos. "Subsídios para a história das Belas-
Artes no Segundo Reinado. As Belas-Artes na Regência". Estudos Brasileiros,
vol. 9, nos 25-26-27. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Brasileiros, 1942,
p. 42.
[5] Universidade do Brasil - Escola Nacional de Belas-Artes. Catálogo da
Biblioteca com indicação das obras raras ou valiosas. Rio de Janeiro, 1957.
[6] Museu d. João VI, Minuta de ofício da Aiba solicitando permissão para
aceitar a oferta de 40 volumes feita por Porto-Alegre à Biblioteca da Aiba
[Baiba]. Contém relação das obras doadas. 10/09/1859 [documento avulso 4350].
Porto-Alegre foi cônsul brasileiro em Berlim, Dresden e, por fim, em Lisboa,
onde faleceu.
[7] O original de Bardwell do qual foi feita a tradução não consta das listas
dos livros da Baiba. A referência é: Bardwell, Thomas. The practice of painting
and perspective made easy. Londres: Printed by S. Richardson, for the autor,
1756.
[8] Este livro de De Piles, de evidente caráter didático, aparece como tendo
sido "mis en lumière par François Tortebat, d'après le choix, fait par R. de
Piles, des figures du Traité d'anatomie de Vesale, dessinés par le Titien".
Andreas Vesalius foi médico nascido em Bruxelas, professor de anatomia em
Louvain. Em 1555 publicou De humanis corpori fabrica (ver Abrégé d'anatomie,
accomodé aux arts de peinture et de sculpture par M. de Piles. Chez C.-A.
Jombert, 1765).
[9] Apud Galvão, A. (org.)."Felix Emílio Taunay e a Academia das Belas-Artes".
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional 16. Rio de Janeiro, 1968,
pp. 141-142.
[10] Cinco destas obras entraram na biblioteca na doação de 1859; enquanto
duas, as vidas de Rafael e Michelangelo, já estavam lá, e o catálogo de Taunay
indica Porto-Alegre como doador.
[11] A introdução de História da Arte no currículo já havia sido idealizada por
Taunay, mas foi Porto-Alegre quem formalizou sua inclusão. Mas, como tantas
tentativas de Porto-Alegre, esta também demorou muito para tornar-se realidade.
Apenas em 1869 foi designado um professor para a referida disciplina: Pedro
Américo, que nela atuou apenas durante esse ano. Por todo o século XIX o
funcionamento desta cadeira foi precário e o número de alunos muito reduzido
(Ver Fernandes, Cybele V. N. "O ensino de pintura e escultura na Academia
Imperial de Belas-Artes". In: Pereira, Sonia Gomes (org.). 185 anos de Escola
de Belas Artes. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002).
[12] Apud Rios Filho, Adolfo Morales de los. O ensino artístico. Subsídios para
a sua história. Rio de Janeiro: S. N., 1938, pp. 92-93.
[13] Ver Gomes Júnior, G. S. "Le musée français: guerras napoleônicas, coleções
artísticas e o longínquo destino de um livro". Anais do Museu Paulista, v. 15/
1, São Paulo, Museu Paulista, 2007.
[14] Frei Mariano da Conceição Velloso (1741-1811), nascido em Minas Gerais,
foi um dos mais destacados representantes da geração ilustrada formada no fim
do século XVIII, que serviu o império português com seus estudos de botânica e
técnicas agrícolas - além de Florae fluminensis (1790), publicou também
Fazendeiro do Brasil (1798-1806) ó, estimulado pelo vice-rei Luís de
Vasconcelos, no Rio de Janeiro, e depois na esclarecida gestão de d. Rodrigo de
Souza Coutinho, ministro dos negócios do Império, que o trouxe a Lisboa (Ver
Dias, Maria Odila Leite da Silva. "Aspectos da Ilustração no Brasil". RIHGB,
vol. 278, jan.-mar. 1968).
[15] Porto-Alegre, M. A. "Biblioteca da Academia". In: Galvão, A. (org.).
"Manuel de Araújo Porto-Alegre: sua influência na Academia Imperial das Belas-
Artes e no meio artístico do Rio de Janeiro", op. cit., p. 79.
[16] Pevsner, Nikolaus. Les académies d'art. Paris: Gérard Monfort, 1999
[1940], p. 95.
[17] Audran, G. Les proportions du corps humain, mesurées sur les plus belles
figures de l'Antiquité. Nouvelle Édition dédiée aux Écoles centrales. Paris:
chez Joubert, 1801.
[18] Ibidem.
[19] Ibidem.
[20] Stendhal, "Critique amère du Salon de 1824 par M. van Eube de Molkirk".
In: Salons. Édition, introduction et notes de S. Guégan et M. Reid. Paris:
Gallimard, 2002, pp. 78-79.
[21] Idem, "Exposition de tableaux au Louvre", p. 51.
[22] O mural de Delaroche ocupa um espaço de 27 metros em uma espécie de salão
nobre da Escola de Belas-Artes, no qual eram realizadas as cerimônias de
premiação dos artistas laureados nos concursos da Academia. A pintura foi
danificada por um incêndio, em 1855, e Delaroche prontificou-se a restaurá-la
mas faleceu logo em seguida, em 1856, e o trabalho foi concluído por Robert-
Fleury.
[23] Sobre o Hemiciclo de Delaroche, Delécluze escreveu uma notícia explicativa
em que, além da descrição física da pintura, identifica os personagens
retratados (ver L'Hémicycle du Palais des Beaux-Arts. Peinture murale exécutée
par Paul Delaroche. Notice explicative. Paris: Chez Goupil, s./d. ). Sobre os debates e as imitações que o Hemiciclo suscitou, ver
Haskell, Francis. "Hiérarchie et subversion". In: La norme et le caprice.
Paris: Flammarion, 1983.
[24] A associação de Shakespeare aos românticos tornou-se um verdadeiro
dístico, nos idos de 1824, por meio da crítica rotineira de Delécluze no
Journal des Debats, periódico de grande influência na época. A oposição entre
homéristes e shakespeariens, mobilizada no discurso sobre arte, é caudatária do
contraste entre as literaturas meridionais e do Norte (homéricas e ossianescas)
formulada por Mme. de Staël. Apoteose de Homero, de Ingres, que era amigo de
Delécluze, apresentado em 1827, é devedor dessa oposição. Além de sua atividade
de crítico de arte, desde 1820, Delécluze reunia semanalmente em sua casa um
grupo seleto de amigos, com os quais tratava variados assuntos de artes e
letras, e Shakespeare foi tema constante entre eles (também Byron), de leitura
e discussão (Ver Baschet, Robert. "Introduction". In: Delécluze. Carnet de
route d'Italie (1823-1824). Impressions romaines. Paris: Boivin Éditeurs, 1942,
p. 1.
[25] Ver Haskell, op. cit.
[26] Porto-Alegre, M. de A. "Exposição de 1843". Minerva Brasiliense, nº 5, 1o
de janeiro de 1844, p. 149. Trata-se aqui do segundo artigo
de Porto-Alegre sobre a exposição, o primeiro apareceu no número anterior da
revista e se intitula "Exposição pública".
[27] Idem, "Algumas idéias sobre as Belas-Artes e a indústria no Império do
Brasil". Guanabara. Rio de Janeiro, 1851, p. 110.
[28] Ibidem.
[29] Idem. "Exposição de 1843", op. cit., p. 150.
[30] Idem. "Iconographia Brazileira". Revista do Instituto Histórico e
Geográfico brasileiro, tomo XIX nº 23, 1856, p. 369.