Empresariado industrial, democracia e poder político
Entre 1930 e 1980, o país industrializou-se e cresceu extraordinariamente sob o
comando de uma coalizão política que teve, como principais atores, os
empresários industriais e a burocracia pública, e, como estratégia de
desenvolvimento econômico, o nacionaldesenvolvimentismo caracterizado pela
substituição de importações e pela forte presença do Estado na economia. Nos
anos de 1980, porém, no momento em que o modelo de substituição já se mostrava
esgotado, o país enfrentou a grande crise da dívida externa, ao mesmo tempo em
que, no plano global, a ideologia neoliberal se tornou hegemônica. A soma
desses dois fatores levou o país, nos anos de 1990, a se submeter às novas
idéias que vinham de Washington, deixando desde então de ter uma estratégia
nacional de desenvolvimento. Em conseqüência, o Brasil entrou em um processo
gradual de desindustrialização prematura combinado com taxas muito modestas de
crescimento econômico. Nessa década, a participação dos empresários industriais
na vida política nacional perdeu força e influência1. Qual a razão dessa
derrota dos empresários industriais? Seriam suas causas externas? Seria ela
inevitável dada à hegemonia neoliberal que se estabeleceu no mundo nos anos de
1990? Ou existiriam outras razões para que o país perdesse a idéia de nação,
deixasse de realizar uma política econômica autônoma e crescesse a taxas muito
menores do que a grande maioria dos demais países, mesmo depois de haver
estabilizado os preços em 1994?
Para responder a essas questões, dividiremos este trabalho em quatro seções. Na
primeira, faremos uma breve análise da perda do poder político pelos
empresários industriais no final dos anos de 1980 em conseqüência, de um lado,
da onda neoliberal, e, de outro, do fracasso do Plano Cruzado no qual eles
estiveram fortemente envolvidos. Na segunda, mostraremos como depois do vácuo
de poder de 1987 a 1991 constitui-se uma nova coalizão política dominante no
país formada principalmente pelo setor financeiro, as empresas e os interesses
multinacionais que, ao adotar as recomendações neoliberais do consenso de
Washington, levaram o país a um profundo processo de reestruturação industrial
e à desnacionalização da economia. Na terceira seção, em um primeiro momento,
examinaremos as dificuldades dos empresários industriais em criticar as novas
políticas e principalmente a política macroeconômica. Em seguida, focalizaremos
a ação do empresariado pós-crise de balanço de pagamentos de 1998, quando os
empresários industriais começam a discutir com mais competência a política
macroeconômica. Por fim, depois da eleição de Luís Ignácio da Silva para a
presidência do país, observa-se um importante ponto de inflexão de natureza
essencialmente política: a socialização do empresariado nas regras, nas
práticas e nos valores democráticos, sobretudo no que se refere à aceitação do
princípio da alternância do poder. Ao mesmo tempo, sua postura crítica e suas
propostas ganham consistência, embora ainda não justifiquem a afirmação de que
uma nova coalizão e uma nova estratégia nacional de desenvolvimento - o novo
desenvolvimentismo - tenha se tornado dominante no país. Estamos em uma fase de
transição que, provavelmente, será acelerada pela grave crise financeira
desencadeada em 2008 no centro do capitalismo mundial. Se, nos quadros de uma
democracia consolidada, o Brasil será ou não capaz de aproveitar essa
oportunidade, se os empresários industriais novamente associados à burocracia
e, agora, necessariamente, aos trabalhadores serão capazes de formular uma nova
estratégia nacional de desenvolvimento é algo ainda incerto, mas possível.
A PERDA DO PODER POLÍTICO
No início dos anos de 1990, a submissão do país ao consenso de Washington ou à
ortodoxia convencional significou para os empresários industriais diminuição
significativa de poder político e, para o país, a perda de uma estratégia
nacional de desenvolvimento. Os erros cometidos pelas elites brasileiras após a
redemocratização e o fracasso do Plano Cruzado facilitaram a crítica neoliberal
ao nacionaldesenvolvimentismo e, afinal, levaram a nação a se submeter à
hegemonia externa. Depois do fracasso do Plano Cruzado, os quatro anos entre
1987 e 1990 serão marcados por crise de ingovernabilidade. Sob tais
circunstâncias, abre-se espaço, a partir de 1991, para uma mudança fundamental
na coalizão política dominante no Brasil2. Nesse ano, depois que o fracasso do
Plano Collor leva o presidente a fazer uma ampla reforma ministerial, o país,
sob a direção de nova equipe econômica, rende-se às diretrizes neoliberais e à
política macroeconômica nelas inspirada. Agora, a política econômica redefine
suas prioridades privilegiando o setor financeiro, em detrimento da indústria.
A nova orientação importada do Norte rejeitou de forma radical a estratégia
nacional-desenvolvimentista. Desde os anos de 1980, essa estratégia foi objeto
de ataque das forças neoliberais então já dominantes no cenário internacional.
Em vez de reconhecer os grandes avanços e criticar as distorções, o consenso de
Washington, que então se afirmava, identificou o nacional-desenvolvimentismo
com o atraso, o populismo econômico e a alta inflação. A crítica e
principalmente a alternativa apresentada eram equivocadas. Era verdade que o
Brasil já havia alcançado um estágio de desenvolvimento econômico no qual a
substituição de importação e a participação direta do Estado na formação de
poupança e na instalação da indústria de base não mais se justificavam. Por
outro lado, era também verdade que, entre 1985 e 1989, no primeiro governo
democrático, o nacional-desenvolvimentismo sofreu sérias distorções,
traduzindo-se no grande desastre econômico e político que foi o Plano Cruzado
de 1986 e a hiperinflação do início de 1990. Do ponto de vista econômico, o
fracasso do Plano Cruzado revelou-se pelo descontrole da inflação, que explodiu
em seguida. Na esfera política, seus efeitos não foram menos nefastos, levando
ao fim do grande acordo nacional e popular que se formara em torno da transição
democrática. Esta se baseou num amplo leque de alianças, tendo os empresários
como uma das principais forças sociais, ao lado dos trabalhadores, dos
movimentos sociais e dos setores das classes médias. Tais fatos, porém, não
legitimavam a alternativa neoliberal - não justificavam que o país, em vez de
rever sua própria estratégia, adotasse políticas econômicas que seus
concorrentes do Norte propunham.
A partir de 1991, a coalizão política dominante deixou de ser aquela definida
desde o final da década de 1970, durante a grande campanha pela democracia -
uma coalizão nacional e popular formada pelos empresários industriais (que
desde o "pacote de abril" de 1977 haviam começado a romper sua aliança com os
militares), pelas camadas médias e pelos trabalhadores3. Entretanto, como os
líderes políticos desse pacto nacional e popular - cujo auge foi a campanha das
"Diretas Já" - não se revelaram capazes de enfrentar a grande crise da dívida
externa e da alta inflação então reinantes, tendo, ao contrário, aprofundado a
crise econômica em virtude dos equívocos do Plano Cruzado, o resultado foi
terem perdido poder político real. Depois de quatro anos de vácuo político
(1987-1990), forma-se, em 1991, nova coalizão que desde então se tornou
dominante no Brasil, formada por rentistas que vivem de juros, pelo setor
financeiro e pelos interesses estrangeiros no Brasil. Durante mais de cinqüenta
anos, desde os anos de 1930, os empresários industriais associados a segmentos
da alta burocracia haviam dado suporte à estratégia da industrialização por
substituição de importações, fazendo parte do núcleo dirigente no Brasil. Do
ponto de vista ideológico-doutrinário, dois princípios típicos do capitalismo -
o liberalismo e o nacionalismo - combinaram-se, havendo certa prevalência dos
valores nacionalistas. Em contraste, nos anos de 1990, os diferentes setores do
empresariado, aí incluindo os industriais, aderem à nova hegemonia neoliberal
com suas implicações de teor cosmopolita. Assim, de certa forma os empresários
industriais foram co-participes de sua perda de poder.
O RETROCESSO NEOLIBERAL
Dada a gravidade da crise da dívida externa, o fracasso do Plano Cruzado, o
enfraquecimento das lideranças nacionais e o grande fortalecimento dos Estados
Unidos após o colapso da União Soviética, os representantes mais conservadores
do empresariado brasileiro, principalmente no setor financeiro, mas também no
setor industrial, não demoraram em assumir e se tornar propugnadores das
políticas neoliberais. A década de 1990 serão os anos das reformas orientadas
para o mercado. Do ponto de vista ideológico, observou-se a articulação de um
consenso entre os empresários de todos os setores em torno da postura
neoliberal de questionamento do modelo econômico consagrado nas décadas
anteriores. Persistiu, porém, desacordo quanto à forma e ao ritmo de introdução
de itens da nova agenda como a privatização e a liberalização comercial.
Em 1994 o governo Itamar Franco, tendo como ministro da Fazenda Fernando
Henrique Cardoso, logrou, mediante um plano heterodoxo - o Plano Real -,
neutralizar a alta inflação inercial. Entretanto, em seguida, aprofundou-se a
ruptura com a antiga ordem, que havia sido iniciada em 1991 quando se
constituiu o segundo ministério Collor. Sustentado por uma ampla coalizão de
centro-direita, a partir de 1995, o governo adotou a agenda das reformas
econômicas e constitucionais neoliberais. Por outro lado, o uso de uma âncora
cambial, não obstante a inércia inflacionária houvesse sido neutralizada pela
URV, provocou, entre 1994 e 1998, brutal apreciação da taxa de câmbio. Essa
apreciação, combinada com a abertura comercial e a liberalização dos fluxos
financeiros, levou o setor empresarial a uma profunda reestruturação que mudou
drasticamente o perfil da indústria brasileira. Fechamento de empresas,
falências, associações com empresas estrangeiras, fusões e aquisições,
substancial queda do nível do emprego na indústria, desindustrialização e ampla
desnacionalização da economia passaram a fazer parte do cotidiano da atividade
econômica nesse período, sobressaindo entre os setores mais afetados, as
indústrias têxteis, as de máquinas e equipamentos, autopeças e produtos
eletroeletrônicos. A desindustrialização só não atingiu maior profundidade
porque, entre 1930 e 1980, o Brasil construíra uma economia industrial
extraordinariamente diversificada e com razoável capacidade de absorção dos
avanços da ciência e da tecnologia, ou, em outras palavras, porque a indústria
de transformação e seus empresários revelaram extraordinária capacidade de
enfrentar a crise provocada principalmente pela sobreapreciação do câmbio e
aumentar a produtividade. O avanço anterior, porém, não impediu que as mudanças
fossem substanciais, traduzindo-se numa ampla reestruturação do parque
industrial e da estrutura produtiva do país e conduzindo à formação de grandes
conglomerados capitaneados pelo capital internacional. A desnacionalização da
economia alcançou proporções inéditas, na medida em que se consolidava a
primazia da grande empresa transnacional, comprimindo-se paralelamente o espaço
da empresa privada nacional.
A reação do empresariado não foi uniforme. Um núcleo de empresários industriais
relacionados com o Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento
Industrial) mantinha sua oposição ao que estava ocorrendo. Já a reação dos
demais refletia a ampla hegemonia neoliberal e globalista que então ocorria em
todo o mundo. A posição neoliberal no seio da indústria foi afirmada no
documento publicado pela Fiesp em 1990, "Livre para crescer, proposta para um
Brasil moderno"4, e atingiu um ponto crítico durante a primeira tentativa de
revisão constitucional, entre 1993 e 1994. Nesse momento, as elites
empresariais mobilizaram-se intensamente e criaram a Ação Empresarial, sob a
liderança de Jorge Gerdau Johannpeter, com o objetivo de exercer influência
sobre o Congresso na defesa dos postulados liberais. Durante o primeiro mandato
do presidente Fernando Henrique, a CNI (Confederação Nacional da Indústria),
sob a direção de Fernando Gonçalves Bezerra, industrial e senador pelo Rio
Grande do Norte, e a Fiesp, sob a direção de Carlos Eduardo Moreira Ferreira,
revelaram alta concordância com as prioridades da nova agenda pública,
principalmente no tocante às chamadas reformas orientadas para o mercado.
Entre os perdedores, qualquer reação mais continuada parecia então impossível,
porque, ao serem desalojados do mercado, perderam a influência que tiveram no
passado. O prestígio e a influência passariam para as empresas e os setores
vitoriosos. Nesse sentido, a venda da Metal Leve à multinacional alemã, Mahle,
foi um caso paradigmático. Não foi por acaso que o jornal Estado de S. Paulo,
em sua edição de 13 de junho de 1996, considerou a venda da empresa como a
virada positiva de uma página da história do país. No final dos anos de 1990, o
quadro produtivo tornou-se complexo e instável. Várias empresas e mesmo alguns
setores desapareceram, enquanto outros se afirmaram e se expandiram,
observando-se um crescente peso dos grupos transnacionais e o aprofundamento da
concentração de capitais. Se antigas lideranças perderam expressão dadas as
dificuldades de sobrevivência diante do aumento da concorrência externa e dos
efeitos adversos da política governamental, como a abertura acirrada e os
estímulos ao capital internacional, outros industriais ganharam projeção,
beneficiando-se das oportunidades abertas pelas privatizações, como foi o caso
do empresário Benjamin Steinbruch, do grupo Vicunha, que, partindo dos setores
têxtil e vestuário, assumiu a direção de um complexo nas áreas de portos,
ferrovias e energia, vindo a tornar-se o presidente dos conselhos da Companhia
Siderúrgica Nacional, da Light e da Vale do Rio Doce. Neste caso, o
aproveitamento das condições abertas pela nova conjuntura traduziu-se no êxito
da formação de um conglomerado altamente diversificado de caráter nacional e
numa importante renovação da liderança empresarial.
Para muitos dos empresários em ascensão, especialmente aqueles que participaram
da privatização dos grandes serviços de utilidade pública e da mineração, como
a Tele Norte Leste, a Tele Centro Sul, a CSN, a Usiminas, além da própria Vale
do Rio Doce, a identificação com os novos tempos tornou-se o caminho mais
promissor. Segundo esta visão, o futuro do capitalismo no Brasil implicaria o
aprofundamento do modelo de mercado, com maior inserção externa e uma
articulação mais intensa com o capital internacional. Observou-se, assim, um
agudo processo de mudança do setor empresarial, induzido pela ação do Estado,
que redefine a atividade econômica, lança os fundamentos de uma nova
estratégia, além de repassar ao setor privado parte do patrimônio construído ao
longo da vigência do antigo modelo.
Em suma, nos anos de 1990, o empresariado nacional industrial perdeu seu papel
político na definição da estratégia nacional de desenvolvimento, ao mesmo tempo
em que se estreitou o círculo de poder burocrático e se aprofundou o
confinamento tecnocrático das decisões. Sob a égide das novas diretrizes
neoliberais, é a lógica concentradora das grandes corporações transnacionais
que comanda a nova ordem econômica, cuja prioridade é a inserção-integração das
economias nacionais numa estrutura de poder de escopo transnacional marcada por
fortes assimetrias econômicas e políticas. Somente uma fração muito restrita do
empresariado local, em geral associada aos grandes conglomerados, tem condições
de aceder e participar desta estrutura. Os demais segmentos operam sob
condições altamente desfavoráveis, no limite da sobrevivência. Grande parte
pereceu; os que garantiram sua sobrevivência pela fusão, associação ou parceria
com empresas internacionais tiveram sua sorte atrelada ao sucesso da estratégia
dominante. Neste modelo, deslegitimou-se a clivagem empresa nacional versus
empresa estrangeira, que era central na fase desenvolvimentista. E adotou-se um
conceito de "empresa brasileira" caracterizada por ser aquela que se instala no
país, investe no país, nele produz e nele cria empregos. Em consonância com
essa mesma lógica, perdia visibilidade a clivagem centro versus periferia, e os
países hegemônicos passam a ser vistos como colaboradores do desenvolvimento
econômico brasileiro em vez de seus concorrentes: não se fala mais em
imperialismo e nacionalismo, mas em integração a uma rede transnacional de
interesses diferenciados.
A análise da atuação do setor empresarial nesta fase reforçou a principal
conclusão de estudos relativos à trajetória do empresariado ao longo das várias
fases da industrialização brasileira: sua fraqueza como ator coletivo a
despeito da força relativa de alguns de seus setores, da importância de seus
recursos organizacionais, do porte econômico de muitas empresas e do peso das
conexões pessoais de segmentos destas elites com as autoridades estatais. A
baixa capacidade de ação conjunta, por sua vez, pode ser explicada em função de
uma série de fatores estreitamente inter-relacionados. Entre estes, as
características organizacionais da estrutura corporativa de representação de
interesses instaurada nos anos de 1930, especialmente a falta de uma
organização de cúpula de caráter multisetorial, capaz de agir e de falar em
nome do conjunto da classe empresarial, a incapacidade histórica do
empresariado no sentido de formular plataformas de teor abrangente incorporando
demandas de outros setores, sobretudo da classe trabalhadora, a baixa tradição
de acordos interclasse e, por fim, o papel do Estado como formulador/executor
das políticas econômicas do país e como indutor do padrão de ação coletiva da
classe empresarial. Sob esse aspecto, a concentração do poder decisório na
cúpula tecnocrática não favoreceu a reversão da tendência historicamente
consolidada à utilização de vínculos informais e práticas de natureza
clientelista como via de acesso às instâncias governamentais.
No período pós-reformas, a estrutura de representação de interesses do
empresariado tornou-se ainda mais fragmentada e especializada. Em relação ao
passado, observou-se, porém, uma diferença marcante, já que, nesta estrutura
segmentada, o espaço da empresa privada nacional estreitou-se. Nas etapas
anteriores de desenvolvimento da industrialização por substituição de
importações, em consonância com a estratégia de criar uma burguesia nacional
forte, quer sob a vigência do nacional-desenvolvimentismo, entre os anos de
1950 e 1960, quer sob a égide da ideologia dos governos militares, responsáveis
pela implantação do modelo do tripé, segundo a fórmula desenvolvimentosegurança
nacional, conferiu-se um peso específico à empresa nacional. Sob suas
diferentes configurações, a coalizão desenvolvimentista atribuíra prioridade ao
empresário nacional, que ocupava um espaço bem demarcado entre os demais
agentes dinâmicos da economia. Em outros termos, este setor tinha um
significado econômico, ocupava uma posição reconhecida e cumpria um papel
político na qualidade de integrante da coalizão desenvolvimentista.
A RUPTURA DO CONSENSO NEOLIBERAL E O RETORNO DOS EMPRESÁRIOS INDUSTRIAIS
A partir do final dos anos de 1990, porém, começaram a surgir indícios de
corrosão da coalizão neoliberal principalmente no que se refere à política
macroeconômica e, mais amplamente, a uma estratégia nacional de
desenvolvimento. Dado o caráter traumático da experiência com alta inflação
inercial no período entre 1980 e 1994, a prioridade ao controle da inflação
continuou a ser aceita. Por outro lado, gradualmente foi se tornando claro no
Brasil e no restante da América Latina - a região que se submetera mais
claramente ao Consenso de Washington - que as reformas econômicas neoliberais e
as políticas macroeconômicas ortodoxas não conduziam nem à estabilidade
financeira nem ao desenvolvimento econômico e, sim, ao aumento da
vulnerabilidade externa, bem como à concentração de renda em benefício do setor
financeiro e dos dois por cento mais ricos da população de cada país. Tem
início, então, uma mudança política no âmbito do governo que será acompanhada
pela crítica às reformas orientadas para o mercado e, principalmente, pela
demonstração de que existem políticas macroeconômicas alternativas à ortodoxia
convencional. A mudança no plano estritamente político traduziu-se em fortes
inflexões nos resultados eleitorais para a presidência da República em vários
países da região, elegendo-se candidatos de esquerda ou centro-esquerda para a
chefia do Estado. Apesar das diferenças entre eles, a rejeição das políticas
neoliberais foi um denominador comum de suas respectivas campanhas. O primeiro
deles que chegou ao poder foi Hugo Chávez, na Venezuela, ainda em 1998; em
seguida, temos as eleições de Lula no Brasil em 2002 e de Nestor Kirchner na
Argentina em 20035. Esta sucessão de vitórias eleitorais de plataformas de teor
nacionalista e de esquerda refletiu o fracasso de políticas e reformas
patrocinadas pelos círculos hegemônicos transnacionais sob a égide do governo
dos Estados Unidos. Dada a identificação do consenso de Washington com o
governo norte-americano, independentemente de qual fosse o partido político no
poder naquele país, os movimentos vitoriosos na América Latina, além de serem
de esquerda, identificam-se com uma postura nacionalista no sentido da
mobilização de forças internas tendo em vista alcançar maior autonomia na
consecução de objetivos próprios. Tais governos buscam, na expressão que Celso
Furtado usava com frequência, "trazer para dentro do país as decisões
fundamentais". A capacidade de usar os graus de liberdade existentes em
benefício dos interesses nacionais torna-se, assim, um importante diferencial
na definição de novas vias de desenvolvimento.
No plano macroeconômico, o problema fundamental que os países em
desenvolvimento enfrentarão será o de definir sua própria política
macroeconômica, em vez de aceitar passivamente a política de altos juros e de
taxa de câmbio não competitiva de acordo com os preceitos da ortodoxia
convencional. Será o de rejeitar a política de crescimento com poupança externa
de forma a impedir que a taxa de câmbio se aprecie e a capacidade do país de
exportar bens manufaturados se enfraqueça, senão desapareça. Enquanto a mudança
no sentido da autonomia nacional se acelerava no plano político, a mudança no
âmbito das burguesias locais e, especificamente, da classe capitalista
brasileira, foi naturalmente mais lenta e mais sinuosa. Historicamente, os
empresários brasileiros caracterizam-se pelo pragmatismo doutrinárioideológico,
revelando extrema flexibilidade nas sucessivas adaptações a posturas de maior
ou menor alinhamento com um papel mais ativo do Estado na defesa de estratégias
nacionais. Em outros momentos, porém, identificam-se com as elites
transnacionais. Freqüentemente adotam posturas defensivas principalmente nos
momentos em que se sentem ameaçados pelas forças populares, como aconteceu no
início dos anos de 1960, ou quando as elites dirigentes locais se deixam
dominar pelo populismo econômico - seja o fiscal seja o cambial - e se tornam
incapazes de enfrentar a crise econômica, como aconteceu no Brasil
imediatamente após a transição democrática de 1985.
No final dos anos de 1990, já havia se tornado claro o fracasso da ortodoxia
convencional reinante - de suas reformas e de sua política macroeconômica - em
promover a retomada o desenvolvimento econômico6. A inflação fora controlada,
mas graças a um plano de estabilização heterodoxo - o Plano Real. A ortodoxia
convencional readotada logo em seguida pelo governo não logrou restabelecer o
crescimento, não obstante a grande entrada de capitais no país a partir de
1995. No início da década de 1990, os empresários industriais assistem ao
gradual esvaziamento de seu espaço político, excluídos que foram das principais
decisões de política econômica. A crise financeira em que o país mergulhou em
1998 apresentou a primeira oportunidade para uma nova postura por parte dos
empresários industriais. Conforme a experiência histórica indicava, a mudança
dificilmente poderia abranger toda a classe empresarial. Sua união aconteceu no
início da década de 1960 e resultou no apoio ao regime militar, e no início dos
anos de 1980, quando a transição democrática se transformou em consenso
nacional. Mas esses foram momentos excepcionais. Nas demais ocasiões, sempre
houve uma divisão da classe capitalista. A partir de 2000, a divisão deixou, de
um lado, o setor industrial e o comércio voltado para o mercado interno e, de
outro, o setor financeiro, o agronegócio e as grandes empresas de serviços
públicos privatizados.
A mudança dos empresários industriais em direção a uma política macroeconômica
nacional tem início na organização brasileira mais identificada com a indústria
nacional, o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial. Esta
organização, reunindo as 32 maiores empresas industriais nacionais, foi fundada
em 1988, em um momento de vácuo político causado pela crise do Pacto
Democrático Popular das Diretas Já. A iniciativa de criar o instituto foi de
Paulo Cunha, Eugênio Staub, Claudio Bardella e Paulo Francini. O novo instituto
era uma reação nacionalista à tendência internacionalista que a Fiesp adotara
desde o colapso do Plano Cruzado. Conforme relato de um de seus membros, em uma
reunião em 1989 no Hotel Casa Grande, no Guarujá, em um determinado momento os
empresários presentes se deram as mãos e apagaram as luzes para ouvir o hino
nacional. Foi também nessa ocasião que prepararam um documento, "Visão dos
fundadores do IEDI: o Brasil em 2010", no qual previam que o Brasil, vinte anos
depois, seria "uma democracia pluralista, com partidos políticos fortes e de
ideais bem definidos; a sociedade é participativa [... ] estaria inserido no
mundo desenvolvido; estaria entre as cinco maiores economias do mundo, com
renda per capita compatível"7. Entretanto, esta visão otimista não se
confirmaria. Os primeiros dez anos da nova organização foram difíceis porque,
de um lado, o colapso daquele pacto havia coincidido com a derrota política da
burguesia industrial brasileira, e, de outro, porque esses dez anos foram um
período de absoluta hegemonia neoliberal. Em contrapartida, os empresários não
estavam preparados para os novos tempos, principalmente para fazer a crítica da
política macroeconômica, na medida em que estavam, até então, concentrados nos
problemas específicos de política comercial e industrial. Além disso, e
contraditoriamente, seu discurso contra a carga tributária reproduzia uma parte
importante do discurso neoliberal. Para sermos mais precisos, nas políticas
comerciais e industriais já estava implicitamente incluída uma política
macroeconômica. Nos anos de 1970, por exemplo, por meio de uma taxa média de
impostos sobre a exportação de 50% e de subsídio também em média de 50% para a
exportação de bens industriais se estava estabelecendo uma taxa de câmbio para
esses bens 50% mais depreciada do que a taxa nominal. Essa política
macroeconômica, porém, não era definida pelo principal órgão por ela
responsável, o Banco Central, mas pelos ministérios da Fazenda, do Planejamento
e da Indústria e Comercio, por intermédio da política industrial.
Em 1998 - depois, portanto, da liberação comercial e da eliminação dos
subsídios às exportações (1990-1992) e depois de vários anos de política
macroeconômica antiindustrial não apenas porque liberalizante, mas
principalmente porque combinada com uma taxa de câmbio efetiva sobreapreciada -
a primeira e grande crise financeira depois do Plano Real abriu uma
oportunidade para o soerguimento político dos empresários industriais. Esta
oportunidade coincidiu com o convite a Julio Cesar Gomes de Almeida, professor
da Unicamp, em 1997, para dirigir o departamento econômico do Iedi - o que
garantiu uma nova competência macroeconômica ao instituto. Por outro lado, seus
dirigentes, agora sob a presidência de Eugênio Staub, deixaram de se limitar a
demandar política industrial e passaram a fazer a crítica da política de juros,
mantidos em nível muito elevado, e da política (ou não-política depois da
flutuação de 1999) de câmbio que não se preocupava em neutralizar a tendência à
sua sobreapreciação8. Mediante um documento amplamente divulgado, "Agenda para
um projeto de desenvolvimento industrial"9, o Iedi desencadeia uma produção
crítica da indústria brasileira à política econômica em curso - uma crítica
que, a partir desse momento, ganharia força e consistência. Acusados por um
editorial de O Estado de S. Paulo (16/09/1999) de haverem demonstrado
"injustificável omissão" em relação à tarefa exitosa de derrubar a inflação
(que o governo realizara nos anos anteriores), os dirigentes do Iedi explicitam
publicamente sua posição. Afirmam, então, em nota à imprensa (28/06/1999), que
"ganhos importantes ocorreram no campo da estabilização, nas privatizações, nos
ganhos de produtividade e na abertura de nossa economia". Por outro lado,
prosseguem, impõe-se a consciência de que "é necessário ir além do bom ambiente
econômico e da estabilidade de preços, em direção à definição de políticas que
promovam o avanço industrial segundo uma estratégia que objetive o
desenvolvimento e a mudança estrutural". Dessa forma, os empresários voltavam a
manifestar seu apoio ao liberalismo econômico associando-o à necessidade de uma
estratégia nacional de desenvolvimento, rejeitando, portanto, o pressuposto
neoliberal dos mercados auto-regulados.
Entretanto, as novas idéias que começavam a ser definidas não foram
incorporadas a um movimento mais amplo sustentado pelo conjunto do empresariado
industrial. O Iedi não é uma entidade de classe e suas formulações não são
percebidas, entre os próprios empresários, como expressão da visão da classe
empresarial. Não foi possível, portanto, identificar um novo acordo ou um novo
pacto em torno de uma proposta alternativa de reestruturação da ordem
econômica. No final dos anos de 1990, depois da sucessão de crises financeiras
nos países em desenvolvimento, de baixas taxas de crescimento nesses países
depois de equacionados a crise da dívida externa e os problemas da alta
inflação, a hegemonia neoliberal estava já dando sinais de esgotamento.
Existiam muitas alternativas de política social, ambiental e industrial, mas
não havia uma clara alternativa macroeconômica e, mais amplamente, de
estratégia nacional de desenvolvimento. Aproximadamente na mesma época a
mudança começa também a ocorrer na Fiesp, ainda que de forma mais tímida, com a
eleição para sua presidência, em 1998, de um jovem empresário, Horácio Lafer
Piva, e a escolha de Claudio Vaz como seu principal assessor. A mudança em
relação à competência macroeconômica e à capacidade de definir alternativas
ocorrerá também na Confederação Nacional da Indústria, presidida, desde 2002,
por Armando Monteiro Netto. A CNI foi a primeira organização dos empresários
industriais a montar uma assessoria econômica com efetiva competência para
discutir as questões macroeconômicas.
A mudança que estava acontecendo na classe empresarial, entretanto, só se
consolidará com a ocorrência de dois fatos: o primeiro, no âmbito nacional, foi
a eleição de Luís Ignácio Lula da Silva para a presidência do país; o segundo,
no âmbito interno, com a mudança de comando na Fiesp e a conseqüente união dos
empresários ligados a ela e ao Iedi.
Nas entrevistas que fizemos com empresários tornou-se claro que o retorno dos
empresários industriais à política - a um papel mais expressivo na interlocução
com o governo em torno da definição das políticas econômicas do país - ganhou
um novo impulso com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência
do país no final de 2003. Excetuados alguns grandes nomes como Eugênio Staub,
na indústria, e Abílio Diniz, no comércio interno, durante a campanha
eleitoral, os empresários brasileiros haviam se oposto fortemente ao candidato
do PT. Entretanto, quando se tornou claro que o novo presidente não adotaria
algumas políticas radicais que seu partido defendera no passado, como, por
exemplo, o descumprimento de acordos internacionais, o não pagamento da dívida
externa, ao mesmo tempo em que revelava um interesse muito maior do que o
governo anterior por uma ativa política industrial e de defesa da empresa
nacional, os empresários industriais passaram a apoiar o governo. E - mais do
que isto - na medida em que voltavam a ser ouvidos, tornaram-se mais motivados
em participar do debate nacional. A criação do Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social e o convite a um número substancial de empresários para
integrar o novo órgão deram-lhes e ao Ministério do Desenvolvimento e do
Comércio Exterior (importante instância de negociação com os interesses
empresariais) um papel mais relevante do que vinham tendo desde o colapso do
Plano Cruzado e da coalizão democráticodesenvolvimentista que presidiu à
transição democrática.
No plano da própria indústria, em 2005, com a eleição de Paulo Skaff para a
presidência da Fiesp e a de Benjamin Steinbruck e Josué Gomes da Silva - seus
principais articuladores - para a vice-presidência, o protagonismo empresarial
ganhou nova dimensão, ao mesmo tempo em que Fiesp e Iedi (este último sob a
presidência de Josué Gomes da Silva) voltaram a atuar de forma mais afinada.
Por outro lado, a qualidade do Departamento Econômico dá outro salto, agora sob
a direção de Paulo Francini, um empresário conhecedor da macroeconomia e com
ampla história de atuação política empresarial desde os anos de 1970. Dessa
forma, a influência dos empresários sobre a política macroeconômica ganha nova
consistência. Em outras entidades estaduais, principalmente na Federação das
Indústrias do Paraná, sob a presidência de Rodrigo da Rocha Loures, os
empresários industriais passam a contar com a participação externa de
excelentes macroeconomistas10.
No já referido documento do Iedi11, os empresários questionaram a forma
apressada que assumiu a abertura econômica, o tratamento privilegiado
dispensado às empresas estrangeiras, o fechamento do processo decisório e a
ausência de política industrial. A crítica aprofundar-se-ia nos anos seguintes.
Dois anos depois, o Iedi lançou novo estudo com um longo título, "Indústria e
desenvolvimento: uma análise dos anos 1990 e uma agenda de política de
desenvolvimento industrial para a nova década"12, reforçando o argumento a
favor de uma redefinição da política econômica, solicitando medidas de estímulo
ao mercado interno e de apoio à empresa nacional. Ainda neste ano, o primeiro
estudo com uma abordagem claramente macroeconômica é publicado: "A pauta de
exportação brasileira e os objetivos da política de exportações"13. Por outro
lado, no campo acadêmico dos economistas, o ensaio, "Uma estratégia de
desenvolvimento com estabilidade"14, abre pela primeira vez, desde o Plano Real
de 1994, um grande debate nacional sobre a política macroeconômica ao desafiar
os economistas convencionais a responder às questões levantadas15. No mesmo
ano, Eugenio Staub, na presidência do Iedi, inicia um programa de debate
público sobre a conjuntura econômica, "Polemizar", abrindo espaço para que os
empresários se tornassem participantes mais diretos das discussões sobre
política econômica. Em 2002, assume a presidência do Iedi Ivoncy Iochpe,
apontado por seus pares como "uma cabeça inteiramente macroeconômica". O
primeiro estudo significativo do Iedi sobre a política macroeconômica será
publicado nesse ano, "O comércio exterior brasileiro nos anos 90 e as mudanças
após a desvalorização cambial de 1999"16. Outros trabalhos surgiram cada vez se
orientando mais diretamente para as questões macroeconômicas e principalmente
para o problema da taxa de juros excessivamente alta e da taxa de câmbio
sobreapreciada. Outro passo é dado, em seguida, com o artigo de Luiz Carlos
Bresser-Pereira na Folha de S. Paulo17 (2005) afirmando que a sobreapreciação
da taxa de câmbio e as baixas taxas de crescimento que então ocorriam tinham
como uma de suas causas a doença holandesa. Ocorreu, então, novo debate no país
no qual o departamento econômico da Fiesp e o Iedi tiveram papel protagonista.
Vários estudos realizados pelas duas organizações mostraram que a doença
holandesa estava levando à "desindustrialização prematura" do país e à
diminuição da participação dos setores utilizando tecnologia sofisticada na
produção industrial. É normal que países desenvolvidos se desindustrializem na
medida em que sua mão-de-obra mais especializada se dirige para subsetores do
setor serviços com valor adicionado per capita mais elevado. Mas o fenômeno
estava ocorrendo no Brasil em um estágio de desenvolvimento no qual outros
países haviam continuado a se industrializar. O debate dessas questões ganhou
um novo espaço com a criação, em 2004, pela nova Escola de Economia de São
Paulo da Fundação Getúlio Vargas, do Fórum de Economia da FGV. Este fórum que,
desde o início, contou com o co-patrocínio da Fiesp, do Iedi, da CUT e da Força
Sindical transformou-se em um espaço privilegiado para a discussão das grandes
questões da macroeconomia do desenvolvimento e, particularmente, da relação
entre uma taxa de câmbio competitiva e o desenvolvimento econômico - uma taxa
de câmbio que resultasse da neutralização da doença holandesa e da deliberada
rejeição de déficits em conta corrente.
OPORTUNIDADE
A partir do ano 2000, depois das crises financeiras da década de 1990,
assistimos, de um lado, ao fracasso das reformas neoliberais na medida em que
os países que as adotaram apresentaram baixas taxas de crescimento, aumento do
desemprego e da desigualdade. De outro lado, como amplamente reiterado pela
literatura internacional, observou-se o crescimento acelerado de países como a
China e a Índia que não as adotaram. O bom êxito destes e de vários outros
países asiáticos, bem como da Argentina ao superar a crise a partir de 2003,
indicou com clareza o equívoco do pressuposto da infalibilidade de receitas
universais. No novo ambiente intelectual, assume o primeiro plano a rejeição do
imperativo da convergência e da uniformização. A capacidade dos governos de
agir com autonomia na escolha dos caminhos a seguir tornou-se um diferencial
para explicar os casos de sucesso. Dessa forma, reacende-se o debate em torno
de estratégias alternativas de desenvolvimento e de formas diferenciadas de
inserção na ordem global. Uma das alternativas, a estratégia novo-
desenvolvimentista18, preconiza a relevância da estabilidade econômica e do
equilíbrio fiscal, abrindo simultaneamente espaço para a retomada do
desenvolvimento com eqüidade e sustentabilidade. No que se refere à política
macroeconômica, esta estratégia postula taxas de juros em nível moderado,
rejeita os déficits em conta corrente e o crescimento com poupança externa,
propõe administrar a taxa de câmbio, de forma a neutralizar sua tendência à
sobreapreciação.
A grande crise financeira que começou nos Estados Unidos em 2007 e se tornou
econômica e global no ano seguinte confirmou o fracasso das políticas
econômicas neoliberais de desregulação e enfraquecimento do Estado - políticas
que agora estão penalizando os países ricos que as patrocinaram. Esses fatos
são lamentáveis, mas têm um mérito: eles configuram uma oportunidade para o
Brasil definir uma nova estratégia de desenvolvimento de base nacional - uma
estratégia que temos denominado "novo desenvolvimentismo"19. Como se
distinguirá essa estratégia da ortodoxia convencional que se pretende ser o
caminho único para o desenvolvimento econômico? Qual seria a coalizão capaz de
sustentar uma via alternativa caracterizada por um novo enfoque em relação à
empresa estrangeira, ao comércio exterior, à política industrial, ao
desenvolvimento tecnológico, ao crescimento econômico, ao papel do mercado
interno e à urgente questão da redistribuição da renda e redução da
desigualdade? Poderão os empresários assumir uma vez mais papel central na
articulação de uma coalizão política neodesenvolvimentista que se distinga
tanto do velho desenvolvimentismo como da ortodoxia convencional? Será este o
momento em que eles poderão voltar a uma posição influente no plano interno,
participando ativamente do processo de desenvolvimento econômico nacional,
recuperando espaço político no plano interno e contribuindo para a retomada do
desenvolvimento econômico nacional? É impossível responder a todas essas
perguntas, mas cremos que neste trabalho demonstramos que a última questão está
recebendo uma resposta positiva.
Hoje já há consenso que, nesta década, o centro da economia mundial começou a
mudar em direção aos países em desenvolvimento, sobretudo para os asiáticos.
Nessa mudança, os empresários e as burocracias públicas nacionais tiveram papel
decisivo. É difícil, entretanto, prever como isso afetará o empresariado
brasileiro e o Brasil. As mudanças ocorridas nos anos de 1990, notadamente, a
privatização e a abertura comercial, além das reformas constitucionais,
determinaram, como vimos, um profundo corte em relação ao passado. Tiveram
eficácia no desmonte dos alicerces da antiga ordem desenvolvimentista, tornando
anacrônica qualquer perspectiva de retorno à situação anterior, bem como a
utilização de antigos paradigmas para a interpretação do momento presente.
Entretanto, isso não garante que o Brasil venha a adotar um novo
desenvolvimentismo menos intervencionista, sem caráter protecionista, porém
identificado com uma política industrial estratégica e com uma política
macroeconômica baseada em disciplina fiscal, juros baixos, crescimento com
poupança interna e taxa de câmbio competitiva (em vez de uma política ortodoxa
baseada em juros altos, crescimento com poupança externa e taxa de câmbio
sobreapreciada). As reformas e as políticas governamentais que constituem a
ortodoxia convencional não foram eficazes para sustentar uma nova estratégia de
desenvolvimento porque esse conjunto de diagnósticos, recomendações e pressões
representou uma reação dos países ricos à competição crescente que, no quadro
da globalização, os países de renda média lhes vêm fazendo em todo o mundo. A
ortodoxia convencional não visava, portanto, ao desenvolvimento dos países de
renda média, mas à neutralização de sua capacidade competitiva, principalmente
por meio da política de câmbio apreciada. Entre 2002 e 2007, o Brasil e mais
amplamente a América Latina beneficiaram-se com o aumento dos preços das
commodities que exportam. Esse fato implicou em um aumento das taxas de
crescimento, as quais, entretanto, continuaram muito baixas quando comparadas
com as dos demais países em desenvolvimento que também viram acelerar seu
crescimento. O Brasil só voltará realmente a se desenvolver e a realizar o
catch up - coisa que fez entre 1930 e 1980, nos quadros do nacional-
desenvolvimentismo - se lograr formular uma estratégia nacional de
desenvolvimento que parta da realidade nacional, que se baseie em saúde fiscal,
juros baixos, câmbio competitivo, sem desconsiderar a questão da justiça
social. Só uma política baseada nessas linhas de ação será capaz de combinar
desenvolvimento econômico com eqüidade, e fazer o país ingressar num novo
patamar de desenvolvimento, priorizando suas dimensões ética, social e
política. Afinal, como salientou Amartya Sen20, o desenvolvimento requer, antes
de tudo, que se removam as principais fontes de privação de liberdade, tais
como a tirania e a pobreza, a carência de oportunidades econômicas, a
destituição social sistemática, a negligência de oferta de serviços públicos
essenciais (em saúde, educação, saneamento básico), e a insegurança econômica,
política e social. O crescimento econômico é, sim, um componente importante,
pois contribui não só elevando rendas privadas, mas também possibilitando ao
Estado financiar a seguridade social e a intervenção governamental seletiva.
No Brasil, desde a eleição de Lula para a presidência da República, em 2002,
vivemos um período de transição de uma ordem centrada no mercado para um modelo
econômico com maior coordenação pelo Estado. Se há linhas de continuidade,
predominam os pontos de descontinuidade. A manutenção da política
macroeconômica do governo anterior indica que a coalizão financeira e
internacional continua influente, mas desde a substituição do ministro da
fazenda Antonio Palocci por Guido Mantega tivemos um reforço das idéias novo-
desenvolvimentistas. Este fato se acentuou, no segundo governo Lula com a
escolha de Luciano Coutinho para a presidência do BNDES. Provavelmente por essa
razão alguns empresários relacionaram sua maior participação política com a
eleição de 2002. Entretanto, o caráter sindical e de esquerda do governo leva a
burguesia brasileira como um todo e, especialmente, seus setores mais
conservadores e globalistas a se sentirem fora do poder. Vivem, assim, uma
contradição que sempre caracterizou a burguesia industrial brasileira:
identificam-se com governos nacionalistas porque se sentem mais fortes então,
mas insistem em suas perspectivas liberal e internacionalista que os aproxima
do capitalismo dominante.
* Foi Ministro da Fazenda (1987), da Administração Federal e Reforma do Estado
(1995-1998) e da Ciência e Tecnologia (1999)
[1] Este artigo retoma e avança alguns argumentos desenvolvidos pelos autores
em trabalhos anteriores. Ver Bresser-Pereira, Luiz Carlos. "Maldição dos
recursos naturais", Folha de S. Paulo, Caderno Dinheiro, 6/06/2005, p. 3; Idem, Macroeconomia da estagnação. São Paulo: Editora 34; Diniz, Eli. Empresários, Estado e capitalismo: 1930-1945. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1978; Idem, Crise, reforma do Estado
e governabilidade: Brasil, 1985-1995. 2 ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2000 [1997] ; Idem, Globalização, reformas econômicas
e elites empresariais: Brasil, anos 1990. 2 ed. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 2004; Diniz, Eli e Boschi, Renato.
Empresários, interesse e mercado: dilemas do desenvolvimento no Brasil. Belo
Horizonte/Rio de Janeiro: Editora da UFMG/ Iuperj, 2004.
[2] A mais cabal comprovação deste vácuo político foi a derrota nas eleições
presidenciais de 1989 de três dos principais líderes da luta pela transição
democrática (Ulysses Guimarães, Mario Covas e Luís Ignácio Lula da Silva) e a
eleição de um jovem e até então desconhecido político, Fernando Collor de
Mello.
[3] A análise do rompimento da aliança dos empresários com os militares e seu
alinhamento com as forças democráticas foi originalmente feita em Bresser-
Pereira. O colapso de uma aliança de classes: a burguesia e a crise do
autoritarismo tecnoburocrático. São Paulo: Brasiliense, 1978.
Formou-se então o Pacto Democrático-Popular de 1977 que comandou a transição
democrática brasileira.
[4] Fiesp: São Paulo, 1990.
[5] Seguem-se as eleições de Evo Morales na Bolívia em 2005, de Rafael Correa
no Equador, em 2007, de Tabaré Vasquez no Uruguai, Daniel Ortega na Nicarágua e
de Fernando Lugo no Paraguai, todas em 2008, e, finalmente, já em 2009, de
Mauricio Funes em El Salvador - e é necessário ainda lembrar a derrota
discutível de Andrés Obrador no México, em 2007.
[6] A partir do novo milênio, surge uma ampla bibliografia crítica da ortodoxia
convencional. Ver, entre outros, Fiori, José Luis e Medeiros, Carlos (orgs.).
Polarização mundial e crescimento. Rio de Janeiro: Vozes, 2001; Bresser-Pereira. "Incompetência e confidence building por trás de 20
anos de quase estagnação da América Latina". Revista de Economia Política, vol.
21, nº 1, 2001, pp. 14166; Idem, "Novo desenvolvimentismo e a
ortodoxia convencional". In: Diniz (org.). Globalização, Estado e
desenvolvimento: dilemas do Brasil no novo milênio. Rio de Janeiro: FGV, 2007; Idem, Mondialisation et compétition. Paris: La Découverte,
2009; Stiglitz, Joseph E. A globalização e seus malefícios: a
promessa não cumprida de benefícios globais. São Paulo: Futura, 2002; Chang, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em
perspectiva histórica. São Paulo: Editora da Unesp, 2004 [2002] ; Sicsú, João, Paula, Luiz Fernando de e Michel, Renaut (orgs.). Novo
desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com eqüidade social. São
Paulo: Manole/ Konrad-Adenauer, 2005.
[7] Iedi, Guarujá, 1989, p. 1 (mimeo.).
[8] Sobre esta tendência que, de um lado, explica as crises de balanço de
pagamentos recorrentes que ocorrem nos países em desenvolvimento, e, de outra
parte, que justificam uma política econômica ativa das autoridades monetárias
para neutralizar essa tendência, ver Bresser-Pereira, Mondialisation et
Compétition, op. cit., cap. 4.
[9] Iedi, São Paulo: Iedi, 1998.
[10] A Fiesp, especificamente, contou com a participação dos economistas José
Luís Oreiro, Gabriel Porcile e David Kupfer na elaboração de seus documentos.
[11] Iedi "Agenda para um projeto... ", op. cit.
[12] Idem. São Paulo: Iedi, 2000.
[13] Iedi. A pauta de exportação brasileira e os objetivos da política de
exportações. São Paulo: Iedi, 2000.
[14] Bresser-Pereira e Nakano, Yoshiaki. Revista de Economia Política, vol. 21,
nº 3, 2002, pp. 146-77.
[15] Para um dossiê sobre esse debate, ver <www.Bresser-Pereira.org.br>.
[16] Iedi. São Paulo: Iedi, 2002.
[17] Bresser-Pereira. "Maldição dos recursos naturais". Folha de S. Paulo, 6/
06/2005.
[18] Idem. "Novo desenvolvimentismo e a ortodoxia convencional, op. cit.
[19] Ibidem.
[20] Sen, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.