Jürgen Habermas: religião, diversidade cultural e publicidade
Ainda que os fenômenos religiosos contemporâneos estejam em processo de
profunda mutação, seu estudo tem permanecido confinado às fronteiras
disciplinares tradicionais, sobretudo da sociologia e da antropologia, que por
terem herdado esse tema como um objeto clássico de sua própria construção se
deparam com dificuldades para renovar seus instrumentos de análise e o modo de
colocar os problemas nesse campo. Neste trabalho, trata-se de enfrentar o
desafio de expandir essas fronteiras a fim de renovar nosso modo de pensar a
religião, acionando dispositivos conceituais distintos, oriundos de programas
de trabalho que não têm esse campo como um dos principais focos de sua
problemática1.
Em trabalhos anteriores, procuramos demonstrar como o paradigma weberiano da
secularização acabou por engendrar um obstáculo epistêmico à compreensão dos
processos que apontavam para a presença e a visibilidade dos fenômenos
religiosos na esfera pública2. Sugerimos, então, que autores como Jürgen
Habermas nos permitiriam pensar o problema sem a necessidade de supor que a
emergência da esfera pública fosse o resultado do refluxo dos fenômenos
religiosos para o mundo privado e sem que a permanência e mesmo a expansão de
atores e discursos religiosos nessa esfera fossem representadas,
particularmente em sociedades como as nossas, como um obstáculo à consolidação
dos processos democráticos. Trata-se agora de fundamentar conceitualmente o que
fora então apresentado apenas como insight e, sobretudo, elaborar as
conseqüências dessa abordagem para o fazer antropológico nesse campo. Além
disso, na leitura de Habermas que proponho neste ensaio, evidentemente um
recorte parcial e interessado, entendo que seu modelo de teoria crítica dialoga
com vários problemas com os quais as ciências humanas vêm se debatendo no
momento atual, em particular o dilema que opõe, de um lado, a exigência de
reconhecimento das particularidades culturais e, de outro, o problema da
tradução das diversidades na construção de consensos mais universais3. Penso
que ao refratar o campo dos estudos religiosos com o prisma dessa interlocução
a abordagem antropológica ganha fôlego para produzir um diagnóstico mais
abrangente do presente, projeto abandonado pela antropologia pós-moderna atual
que, na sua crítica aos clássicos, acabou por renunciar a possibilidade de
qualquer teoria social4.
A obra de J. Habermas é, como sabemos, vastíssima e muda ao longo do tempo de
registro teórico. No contexto de sua obra de 1962, o conceito de publicidade
dizia respeito à reconstrução analítica do processo histórico de gestação do
social por meio da emergência de instituições de publicidade burguesas. Segundo
Lavalle5, na medida em que o autor se afasta de suas considerações genéticas
sobre a emergência do social o conceito de publicidade foi depurado de suas
particularidades burguesas e passou a designar um princípio abstrato de
intermediação entre o Estado e a sociedade. Nessa redefinição, o suposto de um
suporte institucional empírico da publicidade é abandonado em prol da idéia da
articulação intangível de "fluxos comunicativos", fundamento necessário aos
processos de legitimação política que se materializa onde a opinião pública
ganha publicidade. Em seu trabalho "Teoria da ação comunicativa", de 1981, a
estrutura social da esfera pública passa a ser descrita por Habermas em dois
planos - o sistêmico e o mundo da vida - que se acompanham de uma diferenciação
de racionalidade social das ações: ações instrumentais, voltadas para a
reprodução do sistema (mercado, poder político institucionalizado, Estado ou
poder administrativo) e ações comunicativas voltadas para o entendimento (redes
periféricas da esfera pública)6.
Nossa intenção neste artigo é recuperar o modo particular como Habermas
enfrenta, a partir dos conceitos de publicidade, legitimidade e agir
comunicativo, alguns desafios que, em nosso entender, interessam
particularmente o pensamento antropológico contemporâneo: o problema da
tradução cultural ou da irredutibilidade das diferenças e o problema do lugar
da religião no espaço público. Para tratar essas questões, vamos privilegiar a
dimensão do "mundo da vida"7, esfera das interações na qual as ações
comunicativas se voltam para a apropriação do existente e para a produção de
sentidos que escapam ao controle administrativo8. Neste nível não cabe, talvez,
o uso da noção de Esfera Pública tal como foi elaborada por Habermas em sua
obra de 1962 que, então, supunha o suporte de uma institucionalidade
propriamente política e procedimentos de argumentação9. Ainda assim,
pretendemos recuperar a noção de "publicidade" elaborada nesta primeira fase de
sua obra, não tanto para reaver sua dimensão histórica, mas para enfatizar a
permanência, em sociedades como as nossas, de espaços de interação dialógicas
atrelados a bases institucionais mais ou menos periféricas e relativamente
autônomas em face do Estado e das instituições político-administrativas que, ao
dar suporte aos discursos religiosos, modulam o mundo da vida e contribuem para
moldar a opinião pública10.
A TRADUÇÃO CULTURAL DA DIFERENÇA COMO PROBLEMA ANTROPOLÓGICO
Em seu trabalho de 1981, The theory of communicative action11, Habermas dedicou
um longo capítulo à definição das características do pensamento mítico para
demonstrar por que, em suas atitudes básicas em relação ao mundo, esse tipo de
conhecimento não permite ações racionalmente orientadas, isto é, ações auto-
reflexivas voltadas para a discussão das regras da própria comunicação.
Apoiando-se em autores clássicos da antropologia, tais como Lévy-Bruhl, E.
Pritchard, Lévi-Strauss e M. Godelier, o autor argumenta que o pensar analógico
que sustenta esse tipo de conhecimento projeta em um mesmo nível coisas e
pessoas, objetos e agentes, ação comunicativa e ação teleológica, intervenção
instrumental e relações interpessoais. Nesse sentido, as pretensões de validade
que no pensamento moderno foram diferenciadas - a saber: a observação
compartilhada de que um estado de coisas existe como algo objetivo (verdade da
proposição), o pressuposto de uma comunicabilidade das normas compartilhadas
(correção da norma) e a adequação ao mundo subjetivo (sinceridade das
expressões) -, no pensamento mítico constituem uma unidade. Desse modo, em
contraste com os pressupostos modernos de compreensão do mundo, as sociedades
pautadas por esse tipo de pensamento não são orientadas para o dissenso e a
discussão das normas.
Ao postular que a racionalidade assim compreendida não constitui um fenômeno
universal, Habermas retoma uma questão clássica da antropologia: a
comensurabilidade das civilizações, questão esta que desde 1960 esteve no
centro da discussão entre cientistas sociais e filósofos. Não vamos retomar
todos os argumentos a partir dos quais o autor se posiciona nesse debate. Mas
para os propósitos que aqui nos interessam - o de repensar a irredutibilidade
das diferenças no escopo das sociedades modernas -, chamaremos atenção para
três questões fundamentais levantadas pelo autor nesse percurso. A primeira diz
respeito ao plano contextual e histórico: o autor observa que o interesse pelas
generalizações teóricas e a abertura para a crítica é uma exigência cognitiva
que se impõe, para as sociedades tradicionais, apenas quando elas são obrigadas
a entrar em interação com outras visões de mundo. A segunda refere-se ao
próprio fazer antropológico: quando o antropólogo está diante de uma visão de
mundo que lhe parece irracional (ou não fundada no seu próprio modo de ver o
mundo), ele não tem outra escolha a não ser tentar elucidar o seu sentido. Para
Habermas isto não significa, no entanto, que seja preciso supor a existência de
"racionalidades alternativas". Por fim, no plano de sua teoria da modernidade/
racionalidade, o autor pondera que o pensamento moderno não pode ser descrito
apenas a partir das propriedades formais da mentalidade científica - a
finalidade primordial das visões de mundo não é apenas a de construir um
instrumental cognitivo sobre a realidade externa, mas também produzir
entendimento a respeito do mundo social comum e das experiências subjetivas.
Assim, seria preciso incluir diferentes aspectos de validade das proposições
quer se trate de discurso teórico, prático, estético, terapêutico etc., uma vez
que as visões de mundo não constituem apenas processos cognitivos, mas também
funcionam para estabilizar identidades ainda que, nas sociedades
contemporâneas, o façam de maneira cada vez mais formal e aberta à revisão.
As questões que privilegiamos nesse debate permitem desenhar, a nosso ver, um
programa de trabalho para pensar a questão da comunicabilidade das diferenças e
o modo de produzir consensos entre os diversos modos de ver o mundo no âmbito
das sociedades contemporâneas. Começando pela primeira observação apontada
acima, ressaltamos que, nas condições atuais de pesquisa, o antropólogo só pode
se debruçar sobre visões de mundo "míticas" que já estão em processo mais ou
menos longo de interação com visões de mundo reflexivas. Desse modo, a
exigência de reflexibilidade e de abertura para a revisão faz obrigatoriamente
parte de seu modo de apresentar a validade de suas proposições.
Isso leva à segunda observação. Ao apresentar como problema a elucidação do
sentido de uma visão de mundo percebida como distinta, a antropologia se
colocou o problema de como traduzir o "ponto de vista" do nativo. A crítica
pós-moderna reposicionou essa questão em termos contemporâneos, lembrando que a
supressão do olhar distanciado - condição histórica para a construção das
diferenças como alteridade - obrigou a etnografia a mudar suas convenções de
descrição das diferenças. George Marcus e J. Clifford chamaram atenção para o
fato de que, diferentemente do que ocorria no século XIX ou nos anos de 1920, a
figura do "primitivo" não é mais, contemporaneamente, uma força de atração.
Apesar de que
[... ] o desafio para descobrir e representar a diversidade cultural
ainda é forte, observam eles, fazê-lo em termos de culturas espaço-
temporais a serem preservadas parece démodé. Ao contrário, as forças
da diferença mais fortes estão agora definidas no campo cultural
capitalista [... ].
Samoa ou os trobriandeses não são mais percebidos como uma
alternativa convincente de modo de ser
12.
Seria preciso, pois, romper com o tropo da "comunidade autocontida" da
etnografia realista de autores como Malinowski: em vez de fazer uma exegese das
"culturas ou cosmologias" que tira as categorias nativas de seus contextos de
discurso e as reinsere no modelo analítico do etnógrafo para que elas se tornem
compreensíveis através dessa "tradução", o autor sugere uma apropriação
dialógica dos conceitos nativos e antropológicos. A compreensão transcultural
ocorre, segundo ele, "por aproximação e diálogo". Tratar-se-ia de uma correção
mútua do entendimento por ambas as partes até o consenso13). Nesse processo, a
relação observador/observado introduziria necessariamente a reflexibilidade em
outras culturas: os povos clássicos assimilam e apropriam-se do conhecimento
antropológico produzido sobre eles.
Apesar do avanço teórico presente nessa proposição, ao levar em conta que não
se pode representar uma cultura "outra" sem supor que a reflexibilidade já foi
introduzida no próprio processo de representação, ela ainda situa o processo de
construção de sentido na relação do antropólogo com seu objeto, produzindo uma
confusão entre o plano da autocompreensão dos sujeitos e o plano do objeto da
antropologia. A abordagem habermasiana permite-nos sugerir uma etnografia dos
próprios processos de negociação dos sentidos. Parece-nos que os trabalhos
etnográficos, tanto na vertente fenomenológica - que dão atenção ao modo como
os nativos "vêem o mundo" -, quanto na vertente hermenêutica - que se pergunta
como os nativos "decifram seus textos" -, permanecem presos ao postulado do
"ponto de vista nativo", obrigando um esforço de reconstrução "não contaminada"
pela reflexibilidade das significações do outro ou de um modelo capaz de
objetivar o outro enquanto outro anterior à relação de conhecimento que o
apreende. Não é mais plausível, a nosso ver, colocar em époché o processo da
interação, de modo a produzir um modelo da alteridade irredutível; sugerimos,
ao contrário, que é analiticamente mais produtivo trazer para o centro do
problema o modo pelo qual as diferentes visões de mundo entram em comunicação e
disputam os sentidos a respeito do mundo social e subjetivo. Uma etnografia dos
processos de reflexibilidade e disputa sobre as diferenças permitiria
compreender os consensos provisórios que dão certa estabilidade a distinções
particulares produzidas em determinados contextos, entre o nós e o eles.
Quanto à última observação, a saber, para Habermas a racionalidade voltada para
o entendimento abrange proposições de ordem prática, estética, terapêutica
etc., ela sugere que a linguagem religiosa pode ser incluída em seu modelo
discursivo de racionalização em dois níveis. Essa linguagem imbricada nos modos
de expressão característicos do mundo da vida está também, em grande parte,
voltada para a produção do entendimento a respeito do mundo social comum e a
respeito das experiências subjetivas com relação às diferenças e às
identidades. Assim, embora Habermas não tenha explorado esta possibilidade, seu
insight permite ancorar a abordagem do problema clássico da produção de
sentidos no plano das interações que se dão no âmbito da linguagem. Em nossa
maneira de ver, o conceito do "agir comunicativo" de Habermas possibilita
deslocar o problema da compreensão "do ponto de vista do nativo", do plano dos
sentidos internos da cultura que postula o consenso como uma disposição ética
do antropólogo, do plano da tradução como representação "autêntica" da
experiência longínqua para o plano das interações discursivas que produzem as
diferenças entre o "nós" e o "eles". Trata-se, pois, de analisar o jogo da
reflexibilidade e a maneira pela qual cada um expõe discursivamente as próprias
imagens de mundo em contraoposição às imagens alheias, de modo a jogar as
cartas das pretensões de validade das interpretações de mundo tornada visíveis
e pensáveis pelos discursos.
Tomando para si a interpretação que Peter Winch faz da teoria de Wittgenstein
sobre a linguagem, Habermas propõe que a comparação das imagens de mundo nas
interações leve em consideração não apenas o conhecimento do mundo e o controle
da natureza, mas também o seu potencial de fundamentação de sentido sobre a
ordem do mundo. As interações discursivas não têm a ver, assim, com a
comparação abstrata de valores para encontrar sua equivalência e/ou tradução de
um repertório para outro. Trata-se, ao contrário, de compreender como, mediante
ações discursivas, se produzem consensos sobre normas de ação que terão
validade prescritiva. Esse deslocamento permite superar o problema teórico,
sempre colocado na descrição etnográfica, de como chegar à fonte última da
distinção entre as culturas, operação sem a qual pareceria impossível
compreendê-las. A pergunta que as condições etnográficas contemporâneas impõe e
que, a nosso ver, a teoria habermasiana ajuda a formular de maneira nova é a
dos procedimentos lingüísticos que levam a produção de acordos sobre quais são
e o que significam as diferenças. Esse modo de ordenar a questão das diferenças
no plano da linguagem revigora nossa imaginação antropológica, de modo a
pensar, no âmbito de nossa própria sociedade, o problema das especificidades
culturais em termos de sua disputa pela visibilidade no espaço público.
RELIGIÃO, PUBLICIDADE E AGIR COMUNICATIVO
As condições atuais de coexistência necessária de diferenças culturais tornaram
mais aguda uma das principais características das sociedades modernas: a
imposição da convivência em um mesmo espaço político de uma pluralidade de
concepções de mundo e formas de vida14. Até muito recentemente a igreja
Católica foi capaz de produzir, nas sociedades de matriz histórica européia, os
nexos simbólicos e institucionais mediadores dessas diversas eticidades.
Segundo Nobre, na teoria política que Habermas elabora a partir de Direito e
democracia, é o direito que preenche hoje essa função: trata-se de uma
instituição mediadora capaz de transformar o poder comunicativo que circula na
base da sociedade em poder administrativo. Embora o direito tenha passado a
ocupar essa função mediadora que por muitos séculos fora no ocidente
prerrogativa da religião cristã, parece-nos que as religiões ainda são parte
importante das dinâmicas simbólicas que, em sociedades como as nossas, modulam
a experiência vivida e os processos de socialização. O foco de nosso interesse
não está, no entanto, em tomar o conceito de publicidade para analisar os
processos de intermediação das religiões entre a sociedade e o Estado, mas,
sim, em mobilizá-lo analiticamente para compreender a maneira pela qual os
sentidos presentes e virtuais a respeito das diferenças que circulam como
possibilidades no horizonte do mundo da vida se estabilizam, ainda que
provisoriamente, pela mediação de categorias religiosas em uma configuração de
identidades que ganham visibilidade e expressão pública.
Para que possamos compreender mais claramente o lugar da religião no modelo
habermasiano, procuraremos detalhar as distinções e as relações, às vezes pouco
explicitadas em sua obra, entre as noções de publicidade, esfera publica
política e mundo da vida. Sérgio Costa sugere que as forças das interações
comunicativas voltadas para o entendimento não migram imediatamente para o
plano político institucional15. Quanto às interações do mundo da vida, nem
todas ganham publicidade. A idéia de "instituições de publicidade", presente na
obra de 1962, e posteriormente dissipada pela sua metamorfose em uma noção mais
abstrata de publicidade como fluxos comunicativos, ainda nos parece útil para
compreender antropologicamente as dinâmicas das práticas de publicidade16.
Nesse espaço garantido por instituições não estatais, instituições periféricas
tais como as igrejas e outras agremiações religiosas, em sua dupla dimensão
pública e privada, moldam em seus próprios termos algumas das pretensões de
validade oriundas das interações do mundo da vida relativas à estabilização das
identidades.
Vejamos agora se a reflexão de Habermas sobre os fenômenos religiosos
possibilita esse tipo de apropriação antropológica.
Para além de seu esforço teórico de fôlego em 1981, no qual Habermas critica o
conceito de racionalidade weberiana como resultante do processo de
desencantamento do mundo, o tema da religião não recebeu, da parte do autor, um
tratamento específico até 2006. Nesse ano, ele publica no European Journal of
Philosophy, o artigo "Religião e esfera pública".
Habermas começa a pensar o problema da religião de maneira mais explícita no
contexto do desafio político dos fundamentalismos religiosos e dos conflitos
étnicos da Europa dos anos de 1990. Essa conjuntura suscita no autor a
necessidade de retomar seu debate com o modelo weberiano, que associa
modernização à secularização do mundo. Surpreende em particular o autor a
revitalização política da religião nos Estados Unidos, onde o dinamismo da
modernização foi bemsucedido. Desse modo, ele sugere que a associação imediata
que Weber ajudou a construir entre religião e tradicionalismo deve ser revista.
Em seu trabalho de 2006, Habermas reconhece que, ao contrário do que a teoria
da weberiana da secularização postulara, a história da modernização não
coincidiu sempre com a história da secularização. Nos Estados Unidos, a
introdução da liberdade religiosa não significou a vitória da laicidade, mas,
sim, a introdução da idéia de tolerância para com as minorias religiosas, posto
que, historicamente, se tratava de garantir aos colonos que fugiam das guerras
religiosas da Europa a liberdade de continuar a exercer suas próprias
religiões17.
Além disso, o autor também reconhece que, no presente, Igrejas e comunidades
religiosas continuam a preencher em muitas partes do mundo, até mesmo por
solicitação do Estado, funções importantes para a estabilização de uma cultura
pública secular18. Não há como pretender, pois, que os fenômenos religiosos
possam ser compreendidos como relíquias do passado e a liberdade religiosa uma
versão cultural da conservação das espécies em risco de extinção. Mantido esse
ponto de vista, as religiões, segundo ele, não teriam nenhuma justificativa
intrínseca para existirem e não seriam capazes de resistir à pressão para a
modernização.
Como resolver, então, a aporia colocada pelo modelo weberiano no qual a
religião exigiria de seus fiéis o "sacrifício da inteligência", impedindo-os de
assumir nas res publica os procedimentos do debate democrático?
A posição de Habermas nessa disputa nos parece bastante interessante. Ele
defende que as religiões podem ter contribuições cognitivas para a esfera
política19. No entanto, constrói sua argumentação no contexto de uma sociedade
pós-secular e pós-metafísica que não postula a finitude da razão confrontando,
pois, o posicionamento epistemológico da sociologia weberiana e da filosofia da
consciência. Nesse sentido, sua teoria do agir comunicativo é chave.
Como já o fizera em sua releitura de Weber20, Habermas reconhece a importância
histórica das doutrinas religiosas na genealogia de nossa idéia de razão. Mas,
ao lado disso, rejeita uma concepção cientificista limitada de razão que exclui
e desvaloriza todas as categorias e afirmações que não podem ser reduzidas a
observações controladas, posições nomológicas ou explicações causais. Assim, o
autor alarga seu conceito de razão de modo a incorporar os julgamentos morais,
legais e religiosos21. Nessa abertura reside, a nosso ver, sua contribuição
para o estudo de fenômenos que interessam à antropologia da religião. Em seu
conceito multidimensional de razão, ela não constitui uma posição fixa em sua
referência com o mundo objetivo. Os julgamentos morais e religiosos disputam
com outros a formulação sobre o modo de ser do mundo. Com fina sensibilidade
antropológica Habermas reconhece que todo conhecimento depende do modo como o
homem se interpreta e como interpreta sua posição diante da natureza. Mas ao
contrário do pensamento antropológico que procurou alargar o conceito de razão
tornando-o relativo, Habermas entende que a razão não pode ser assim
considerada porque não diz respeito a conteúdos ou a formatos de conhecimento,
mas sim a formas de procedimento. Os procedimentos da racionalidade são,
segundo o autor, de natureza discursiva. Trata-se de ressaltar a atitude
performativa adotada pelos participantes de qualquer interação mediada pela
linguagem: a performance lingüística é instrumento para a emergência de
consensos em torno das regras e das convenções que definem a unidade e o
significado do mundo. Elas estão, portanto, permanentemente sujeitas à
controvérsia. A "razão comunicativa" é portanto dialógica, não no sentido da
relação sujeito/objeto tal como ela é entendida pela antropologia pós-moderna,
mas porque os falantes levantam pretensões de validade em relação às coisas
existentes, aos vínculos interpessoais e às vivências. Essas pretensões só
serão aceitas se forem capazes de produzir um consenso com relação à sua
própria validade.
Assim, embora o autor leve em consideração a razão instrumental de Weber
orientada para o sucesso, o foco de sua análise é a razão orientada para a
interação e para o entendimento22. Para formular esta dimensão da ação que ele
chama de "agir comunicativo", utiliza a distinção dos atos de fala de Austin:
atos perlocutórios - que exercem um efeito sobre o ouvinte (para amedrontar,
persuadir) dependendo para isto, fundamentalmente, da situação da enunciação
aqueles que causam algo no mundo -; atos ilocutórios - que realizam a ação
denominada pelo verbo (o falante realiza algo ao dizer, sendo que o essencial é
o significado do enunciado) -; atos locutórios - o falante diz algo.
Para Habermas, no agir comunicativo os agentes perseguem com seus atos de fala
fins ilocutórios, embora ele reconheça, segundo Araújo, a presença de
estratégias perlocutórias nas interações mediadas lingüisticamente23. George
Herbert Mead fornece a Habermas uma teoria da ação baseada em um modelo de
interação, retrabalhado pelo autor em termos de comunicação. Além disso, ao
sublinhar o caráter simbólico da ação social em que ela deixa de ser tomada
como mera tradução mecânica das regras e passa a ser compreendida como aberta e
submetida ao contínuo reconhecimento, Mead lhe aponta também um caminho para
superar uma perspectiva monológica da teoria da ação. Nele encontra as raízes
de um agir comunicativo pré-lingüístico, ligado à constituição do mundo dos
objetos observáveis e à afirmação das identidades24.
Autores como Pierre Bourdieu também foram buscar em Mead e no interacionismo
simbólico inspiração para integrar uma teoria do simbólico a uma teoria da ação
concebida de modo menos mecânico ou como subproduto da estrutura. No entanto,
embora Bourdieu também leve em conta a linguagem para pensar a lógica das
práticas, ele o faz na chave de leitura durkheiminiana da "representação", que
privilegia as categorias de conhecimento e suas funções lógicas. As forças
sociais de representação constituem para Bourdieu uma luta pela classificação
do mundo social, luta pelo monopólio de fazer ver e reconhecer legitimamente a
existência de divisões sociais. Nesse sentido para ele, a representação, em
grande parte, constrói o mundo que ela representa.
Como para Bourdieu, para quem o mundo simbólico torna possível o consenso sobre
o mundo social posto que integração lógica e moral aparecem associadas, a
teoria da solidariedade de Durkheim oferece a Habermas uma teoria social que
relaciona integração social e integração do sistema. Durkheim vê no conceito de
"obrigação" um dos traços constitutivos da norma moral25. Mas a sanção é apenas
um aspecto da aceitação da norma; é preciso levar em conta também o desejo de
obedecer. Estas duas características do fato moral-o desejo e o dever - levam
Durkheim a propor uma analogia entre esfera da moralidade e a do sagrado. Desse
modo, a antropologia durkeiminiana oferece a Habermas um modelo para integrar à
sua análise as ações rituais. Estas se movem em um nível pré-lingüístico:
expressam um consenso normativo atualizado regularmente. No entanto, o consenso
normativo garantido pelo rito e mediado pelo símbolo constitui o "núcleo
arcaico" da solidariedade coletiva. Em contextos modernos de ação os símbolos
religiosos não são mais capazes por si só de expressar o coletivo. O consenso
normativo que era garantido pelo rito, ancorado nos símbolos religiosos e
interpretado pela "semântica do sagrado" se dissolve e dá lugar à "verbalização
do sagrado"26, isto é, estruturas de ação orientadas para a intercompreensão. A
autoridade do sagrado é, assim, gradualmente substituída pela autoridade do
consenso27.
Com base nesta idéia de "verbalização do sagrado" Habermas permite deslocar o
problema do simbólico do campo da representação para o campo da ação como
argumentação: compreender o outro não depende, como na tradição compreensiva de
Dilthey e Weber, da possibilidade de (re)presentar os pensamentos e os
sentimentos daqueles cuja conduta ou pensamento deve ser compreendida ou
colocar-se do ponto de vista dos atores28, mas sim entrar em diálogo com o
outro. A compreensão não é tida, assim, como um método de investigação
particular, modo como a antropologia interpretativa absorveu o suposto
fenomenológico da possibilidade de (re)experimentação do exótico, mas o modo
como a própria vida é constituída. Nesse plano não-sistêmico a ação desenvolve-
se no domínio do "mundo da vida", da experiência vivida, cuja função simbólica
é coordenada para o consenso. O "mundo vivido" é o horizonte a partir do qual
se dão os processos comunicativos e a interação: ele delimita a situação da
ação, mas permanece inacessível à tematização29.
Embora a noção de "mundo vivido" esteja ainda pouco sistematizada na obra de
Habermas, ela foi desenvolvida com base na tradição fenomenológica de Edmund
Husserl e Alfred Schütz30. Para este último, ele constitui a esfera da
experiência cotidiana e do trabalho, em que prevalece o uso de uma "razão
prática" subjetiva e situacional, pois visa mais à utilidade do que à
verdade31. Nesse sentido, o "mundo vivido" em Schütz pode ser compreendido como
um contexto de convicções não formuladas explicitamente e que serve como pano
de fundo para a interação social. Habermas toma para si essa noção de Schütz
enfatizando sua função na intercomunicação: esse contexto pré-reflexivo oferece
uma reserva de convicções não objetivadas mas lingüisticamente estruturada, à
qual os atores recorrem para sustentar suas interpretações. É a partir desse
saber implícito e não problematizável que, segundo Habermas, os falantes e os
ouvintes podem pretender reciprocamente que seus enunciados coincidam com o
mundo (objetivo, social e subjetivo, criticar e fundamentar suas pretensões de
validade, resolver suas dissensões e chegar a um acordo No entanto, tendo em
vista suas características próprias já assentadas na tradição fenomenológica
clássica - a saber sua imediatez, sua força totalizadora e seu holismo - não há
como produzir a seu respeito um olhar externo e objetivador32.
Ao tomar emprestada a noção de "mundo vivido" da sociologia schütziana,
Habermas parece muitas vezes associá-la ao conceito de "cultura como tradição"
próprio às escolas fenomenológicas. Atento, no entanto, ao essencialismo
inerente a essa posição o autor procura corrigir a redução culturalista desse
conceito sugerindo que as tradições são apenas um dos três componentes do mundo
vivido. Ao seu lado estão também as instituições que asseguram a solidariedade
e as competências da personalidade. Esses três níveis do "mundo da vida" não
devem ser, pois, tratados como fatos sociais, mas, ao contrário, são
teoricamente formulados em termos da interação comunicativa:
[... ] chamo cultura a provisão de saber de onde os participantes da
comunicação extraem interpretações ao se entenderem sobre algo no
mundo. Chamo sociedade aos ordenamentos legítimos pelos quais os
participantes da comunicação regulam suas pertenças a grupos sociais
e asseguram, assim, a solidariedade. E por personalidade entendo as
competências que tornam um sujeito capaz de falar e de agir, isto é,
de participar dos processos de entendimento e afirmar sua própria
identidade33.
As noções de repertório, legitimidade e competência associam esses três níveis
em um plano processual e não estrutural. É na própria dinâmica das interações
comunicativas que o que pode ser aceito como conhecimento, o que é reconhecido
como legítimo e quem pode falar ganham visibilidade e se materializam sob a
forma de "fatos".
Se, como propôs Weber, o processo histórico de racionalização do mundo produziu
a disjunção das esferas34, para Habermas, a linguagem ocupa hoje na produção
dos consensos o lugar antes garantido pelo mito. Assim, contrariamente ao que
pretendia Weber com sua noção de empatia, compreender a ação na perspectiva
proposta por Habermas estaria vinculado à capacidade do pesquisador de
descrever as ações em seus termos lingüísticos, ou seja, o modo como a
linguagem comum codifica a percepção do mundo e suas normas.
Embora seu modelo da evolução social das sociedades modernas suponha o
afastamento das narrativas míticas do plano da esfera de validade, em seu
artigo de 200635, Habermas reconhece que a religião ainda oferece uma base
cognitiva importante ao mundo da vida cotidiana. Assim, como parte do mundo
vivido ele propõe que ela seja analisada como componente da linguagem comum
acionada nos contextos de interação. É certo que, se estes contextos visam à
comunicabilidade, também as narrativas religiosas devem necessariamente
produzir e apoiar-se em procedimentos compartilhados. Segundo Habermas, a
reflexibilidade é uma das características mais importantes desse tipo de
interação. Desse modo, todas as certezas religiosas estão, como quaisquer
outras, cada vez mais expostas à exigência de "ver de fora a sua fé", isto é,
ser capaz de objetivá-la e de relacioná-la com outros pontos de vista.
É nesse ponto que o conceito de mundo da vida se encontra em Habermas com a
noção de publicidade. A categoria de publicidade, central na obra habermasiana,
permitiu-lhe articular a noção weberiana de racionalização com a noção política
de legitimação. No contexto de seu trabalho de 1962, a constituição da esfera
pública estava historicamente associada tanto à contraposição com o absolutismo
e com a autoridade tradicional, como ao bloqueio à ascensão das classes
subordinadas. O abandono da idéia de instituições de publicidade, no entanto,
tais como salões, museus, jornais, igrejas, pela idéia de fluxo subtrai a base
de uma investigação empírica que quer compreender por que apenas alguns
sentidos fazem sentido. Do ponto de vista do fazer antropológico, não basta
afirmar que os discursos religiosos ainda são capazes de produzirem sentidos: é
preciso explicar por que algumas categorias religiosas funcionam melhor do que
outras para estabelecer esses sentidos, por que algumas instituições religiosas
são mais capazes do que outras de produzir proposições verossímeis a esse
respeito. A nosso ver, se um conjunto amplo e variado de sentidos está
disponível em determinado momento, nem todos vingam porque nem todos são
percebidos como legítimos. Ora, os processos de produção de legitimidade que
tomam forma no plano das mediações lingüísticas dependem, como dissemos
anteriormente, da publicidade para estabilizar, ainda que provisoriamente,
consensos a respeito dos sentidos das coisas e das intenções. O conceito de
esfera pública teria assim melhor rendimento se for tomado como o locus onde
controvérsias e negociações culturais entre uma variedade de públicos têm
lugar36.
Ao tornar o princípio de publicidade condição da democracia, a esfera pública
constitui-se para Habermas como espaço abstrato e virtual da crítica pública. É
nesse sentido que as religiões também fazem parte do processo. Habermas
reconhece que as religiões podem introduzir seus argumentos no debate público e
ganhar adesão legítima a suas proposições. Não é problema para Habermas se o
homem comum expressa suas convicções em linguagem ou argumentos religiosos. Do
ponto de vista do sistema político, o que importa para Habermas são as
afirmações e as questões que conseguem motivar cognitivamente as decisões e
ganhar visibilidade no fluxo impessoal da comunicação pública37.
O autor reconhece, pois, que religião dá à vida cotidiana sua base cognitiva, e
muitas das decisões individuais são tomadas a partir dela. Flexibilizando suas
posições anteriores, o autor aceita neste artigo de 2006 que, por razões de
ordem funcional, não se pode reduzir a polifonia das vozes públicas. Para ele,
o conflito entre doutrinas e culturas que disputam a explicação da posição do
homem no mundo não pode ser resolvido no plano normativo ou filosófico. Se as
atitudes epistêmicas são expressão de um modo particular de ver o mundo, é
apenas no plano do direito que se pode produzir a reciprocidade de
expectativas. Essa ênfase no procedimento ameniza em parte a insatisfação de
seus críticos com o que foi percebido como uma idealização do discurso racional
na formação da esfera pública38. Embora, com efeito, a noção de esfera pública
- que supõe a produção legítima da autoridade dos discursos - possa ser
criticada pelos supostos de homogeneidade e univocidade que lhe são implícitos,
a introdução do tema da religião e a aceitação da linguagem religiosa no debate
tornam a disputa mais importante para a validade do procedimento, do que a
qualidade dos discursos.
Se o princípio de publicidade é a regra magna do jogo da produção de
legitimidades como sugere Lavalle39, há, no entanto, um limite para Habermas
nesse exercício das razões polifônicas. Entre a "vida selvagem" da esfera
pública e os procedimentos formais dos corpos políticos há, para o autor, uma
demarcação institucional, "filtros das vozes de Babel no fluxo da comunicação
pública que só deixam passar contribuições seculares"40. Ainda assim, a força
das falas religiosas continuará a exercer seu direito de linguagem persuasiva
na esfera pública enquanto outras linguagens mais convincentes para expressar
um certo tipo de experiência não forem convencionadas. O que se requer é o
exercício da reflexibilidade que põe em perspectiva uma fé com relação a outros
pontos de vista - atitude epistêmica inerente ao agir comunicativo que tem como
suposto a independência de uma religião com relação a outras, e destas em
relação ao secular, cujas razões têm prioridade na arena propriamente
política41. Assim, embora Habermas exclua a ação comunicativa do campo da
política, confinando-a ao mundo sistêmico governado pela ação instrumental, ao
retermos o "princípio de visibilidade" como noção-chave é possível tornar mais
abrangente o próprio conceito de política, de modo a incluir as disputas
simbólicas regidas pelos discursos. Do ponto de vista das relações políticas
concebidas desse modo mais compreensivo, o que podemos reter como um avanço
significativo do modelo habermasiano é a articulação que ele propõe entre a
dimensão cognitiva e motivacional do mundo religioso - já bem conhecida pela
tradição dos estudos antropológicos - e os processos discursivos de produção de
visibilidade no fluxo impessoal da comunicação pública. Posto que intangíveis,
é preciso que a observação antropológica se dê os meios para descrever esses
momentos fugazes e pouco sistemáticos nos quais "a formação da opinião emerge
do mundo da vida e vem à luz pública"42.
A releitura da noção de esfera pública elaborada em sua obra de 1962 nos
permite constituir como novos objetos de análise antropológica, não mais a
objetivação de identidades, culturas e crenças religiosas pré-construídas que
pleiteiam seus direitos (naturais) no espaço político, mas sim os fluxos
comunicativos oriundos do mundo da vida e seu modo de constituir
discursivamente identidades, tradições e crenças. Na esfera pública as
controvérsias e as negociações culturais entre uma variedade de públicos em
torno da validade de certas proposições têm lugar e se tornam visíveis. Ao
trazer os processos de reflexibilidade para o foco de sua atenção, a
antropologia poderá contribuir para lançar uma nova luz sobre as modalidades de
consentimento de cujo funcionamento deriva toda atividade política.
[*] Agradeço a generosa leitura de meus colegas e amigos Marcos Nobre e Adrián
Lavalle, cujas sugestões contribuíram para trazer maior clareza ao argumento.
[1] O desafio foi proposto por Flavio Pierucci por ocasião do Encontro da
Anpocs de 2008.
[2] Montero, Paula. "Max Weber e os dilemas da secularização: o lugar da
religião no mundo contemporâneo". Novos Estudos do Cebrap, nº 65, mar. 2003,
pp. 34-44; Idem, "Religião, pluralismo e esfera pública no
Brasil". Novos Estudos do Cebrap, nº 74, mar. 2006, pp. 47-66.
[3] No livro Curso livre de teoria crítica, organizado por Marcos Nobre, ele
sugere que as contribuições da teoria crítica permitem compreender fenômenos
específicos em uma perspectiva mais ampla do que a dos especialistas. Embora
não se possa abrir mão do conhecimento especializado é preciso, segundo ele,
aprofundar cada vez mais o diálogo entre as disciplinas para propor um
diagnóstico acurado e plausível de nosso tempo. Embora não me situe aqui no
campo dos estudos da teoria crítica, tomo como inspiração a sugestão do autor
de enfrentar o desafio de "encontrar novas relações produtivas entre as
disciplinas" (São Paulo: Papirus, 2008, pp. 19-20).
[4] A generalização a partir da prática etnográfica é um problema clássico.
George Marcus observa que a etnografia, como instrumento de descrição, nunca
trabalhou adequadamente com problemas conceituais de ordem mais geral. O mundo
dos "eventos mais amplos" aparece sempre, segundo ele, como externos aos
pequenos mundos e não são integrados à análise (Marcus, George. "Problemas de
la antropologia contemporânea em el mundo moderno". In: Retóricas de la
antropologia. Madri: Jucri, 1991, p. 165.
[5] Lavalle, Adrián Gurza. "Jürgen Ha bermas e a virtualização da publicidade".
Margem, nº 16, 2002, pp. 65-89.
[6] Nobre, Marcos e Terra, Ricardo. Direito e democracia: um guia de leitura de
Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008.
[7] Em sua obra Direito e democracia: facticidade e validade, Habermas define o
mundo da vida como um sistema de ações e de saberes especializados vinculados à
escola, à religião e à família, que tem por função a reprodução do mundo da
vida e a validação dos saberes comunicados (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2003, vol. 2, p. 92).
[8] Lavalle, op. cit., p. 79.
[9] Quando a Esfera Pública se generaliza, isto é, se desliga dos espaços
físicos das interações simples, as estruturas comunicacionais comprimem-se,
segundo Habermas (op. cit., p. 94), em conteúdos e tomadas de posição
desacopladas dos contextos densos dessas interações.
[10] Estamos usando o conceito em seu sentido mais abrangente tal como foi
proposto por autores como S. Benhabib ("Models of public space: Hannah Arendt,
the liberal tradition and Jürgen Habermas". In: Calhoun, Craig (org.). Habermas
and the public sphere. 4 ed. Cambridge, Massachusets Institute of Technology,
1996). Ao criticar a noção habermasiana de "esfera pública burguesa" cunhada no
trabalho histórico de 1962, a autora propõe que o volume da esfera pública seja
preenchido por um leque diversificado de processos comunicativos que se
elaboram em diferentes microcampos. Na leitura de Sérgio Costa (As cores de
Ercília: esfera pública, democracia e configurações pós-nacionais. Belo
Horizonte, Editora da UFMG, 2002, p. 24), Habermas revê seus
argumentos sobre o declínio da esfera pública burguesa na reedição de 1990 de
seu livro A mudança estrutural da esfera pública (Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003). Nesse trabalho, Habermas reafirma a importância da esfera
pública como órbita da constituição da opinião e da vontade coletiva.
[11] Habermas, The theory of communicative action. Boston: Beacon Press, 1984
[1981] .
[12] Marcus, G. e Clifford, J. Writing culture. Berkeley: University of
California Press, 1986, p. 168.
[13] Marcus, G. e Fischer, M. Anthropology as cultural critique: an
experimental moment in the history of social sciences. Chicago: University of
Chicago Press, 1986, p. 29.
[14] Nobre, op. cit., p. 16.
[15] Costa, op. cit., p. 35.
[16] Segundo Lavalle, a idéia de publicidade em Habermas evoluiu de seu sentido
genético de construção histórica da autonomia material e moral da burguesia
para um conceito mais abstrato: estatuto do que é público. A publicidade
burguesa como fenômeno histórico teria permitido a constituição da noção de
esfera de publicidade, espaço para a formação de consensos que se expressam na
opinião pública. Mais recentemente, segundo o autor, Habermas redefine o
conceito publicidade em termos de fluxos comunicativos espontâneos, abandonando
a necessidade de suportes institucionais (Lavalle, op. cit., p. 69).
[17] Habermas. "Religion and the public sphere". European Journal of
Philosophy, vol. V, nº 14, 2006, p. 33.
[18] Ibidem, p. 6.
[19] Ibidem, p. 15.
[20] Habermas, The theory of communication action, op. cit.
[21] Idem, "Religion and the public sphere", op. cit. p. 16.
[22] Araújo, Luiz Bernardo Leite. Religião e modernidade em Habermas. São
Paulo: Loyola, 1996, p. 127.
[23] Ibidem, p. 127.
[24] Ibidem, p. 185.
[25] Ibidem, p. 149.
[26] Para Habermas a história das sociedades move-se em direção à demanda
crescente de legitimação lingüisticamente organizada. As sociedades arcaicas
interpretam-se pelo mito e fixam sua validade normativa a partir de si mesmas;
as sociedades tradicionais interpretam-se pela narrativa teológica e a validade
normativa depende de leis garantidas pelo poder sagrado de um chefe político;
nas sociedades modernas a argumentação substitui a doxa: "a cultura é investida
da tarefa de justificar porque a ordem política existente merece ser
reconhecida". Ver Habermas. Théorie de l'agir communicationnel. Paris: Fayard,
1987, pp. 35 e 206.
[27] Araújo, op. cit., pp. 157-58.
[28] Giddens, A. Política, sociologia e teoria social. São Paulo: Editora da
Unesp, 1997, p. 288.
[29] Habermas distingue nas sociedades complexas duas esferas opostas e em
permanente tensão: a do mundo da vida e a do sistema. Quanto mais complexos os
sistemas sociais mais periféricos se tornam os mundos da vida. No entanto, todo
acréscimo de complexificação no primeiro plano só ganha força se acompanhado de
um processo equivalente no segundo (Araújo, op. cit., p. 165).
[30] Schutz toma o termo da obra de Husserl. Em 1940 ele declara que a
fenomenologia é a " filosofia do mundo da vida". Na leitura que Helmut R.
Wagner faz de sua obra, Schultz devotou parte considerável de seu esforço
interpretativo à exploração das estruturas cognitivas e das experiências do
mundo da vida. Seu objetivo era reinterpretar o mundo do trabalho, não do ponto
de vista dos arranjos institucionais ou do sistema econômico, mas sim sob o
ângulo da intenção humana, da cognição e do esforço subjetivo na cooperação
(Wagner, Helmut R. Alfred Schütz: an intellectual biography. Chicago:
University of Chicago Press, 1983, pp. 289-290).
[31] Ibidem, p. 291.
[32] Araújo, op. cit., p. 161.
[33] Habermas, Théorie de l'agir communicationnel, op. cit., pp. 151-52 (grifos
nossos).
[34] Retomando a idéia de Weber ("A psicologia social das religiões mundiais".
In: Ensaios de sociologia. 5 ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1979 [1913] ) de secularização como separação das esferas de economia,
política, religião, filosofia, estética e erótica, Habermas propõe no primeiro
plano a separação entre mundo da vida e sistema, e no interior delas a
disjunção cultura, sociedade e personalidade, de um lado, estratificação,
organização estatal e direito, de outro.
[35] Habermas. "Religion and the public sphere", op. cit.
[36] Eley, Geoff. "Nations, publics, and political cultures: placing Habermas
in the Nineteenth century". In: Calhoun (org.), op. cit., 1996, p. 306.
[37] Habermas. "Religion and the public sphere", op. cit., pp. 6-13.
[38] Eley, op. cit., p. 312.
[39] Lavalle, op. cit., p. 78.
[40] Habermas. "Religion and the public sphere", op. cit., p. 10.
[41] Ibidem, p. 14.
[42] Lavalle, op. cit., p. 80.