O curioso realista
Nos últimos anos, voltou a estar acessível na Alemanha uma série de escritos de
Siegfried Kracauer. Mas, a partir de tais escritos, bastante diversificados, a
imagem do autor não se tornou até agora tão clara ao público alemão quanto
mereceria. Para começar a fazê-lo e delinear algo da figura de Kracauer, creio
estar qualificado pela mais simples razão: somos amigos desde minha juventude.
Eu era secundarista quando o conheci, por volta do final da Primeira Guerra.
Fomos ambos convidados por uma amiga de meus pais, Rosie Stern, professora
efetiva no colégio Philanthropin1, a cujo corpo docente pertencia o tio de
Kracauer, o historiógrafo dos judeus de Frankfurt. Como era certamente a
intenção de nossa anfitriã, estabeleceu-se entre nós intenso contato. A partir
de minhas recordações desse tempo, consciente da deficiência de tal fonte de
conhecimentos, gostaria de tentar esboçar algo como a idéia objetiva da
personalidade intelectual de Kracauer, guiado antes por suas possibilidades do
que pelo realizado em sua atuação concreta: há décadas, o próprio Kracauer
apontava a si mesmo como um tipo contrário àquele que denominava "homem dado ao
trabalho".
Ao longo de muitos anos, regularmente nas tarde de sábado, ele leu comigo a
Crítica da razão pura. Não exagero nem um pouco quando digo que devo mais a
essa leitura que a meus professores acadêmicos. Dotado de excepcional
capacidade pedagógica, ele fez Kant falar a mim. Sob sua orientação, desde o
princípio tive a experiência da obra não como mera teoria do conhecimento, como
análise das condições de juízos cientificamente válidos, mas como uma espécie
de escrita cifrada, da qual a situação histórica do espírito podia ser
depreendida com uma vaga expectativa de que, desse modo, algo da própria
verdade pudesse ser conquistado. Se mais tarde, em relação aos textos
filosóficos tradicionais, pouco me deixava impressionar por sua unidade e
sistemática unissonância, dedicando-me mais ao jogo de forças que se extenuam
reciprocamente abaixo da superfície de cada opinião doutrinal fechada em si
mesma, se sempre considerava as filosofias codificadas como campo de forças,
decerto foi Kracauer quem me estimulou a isso. Ele me apresentou a crítica da
razão não apenas como sistema do idealismo transcendental. Antes, mostrou-me
como momentos objetivo-ontológicos e subjetivo-idealistas nela se enfrentam;
como as passagens mais eloqüentes da obra são as feridas que o conflito deixa
na doutrina. Sob certo aspecto, as rupturas de uma filosofia são mais
essenciais que a continuidade do nexo de sentido, o qual a maioria das pessoas
acentua por sua própria conta. Esse interesse, do qual Kracauer tomou parte por
volta de 1920, combatia, sob o lema "ontologia", o subjetivismo epistemocrítico
e com mania de sistema; nesse contexto, ainda não se fazia a distinção adequada
entre o propriamente ontológico e os vestígios do realismo ingênuo em Kant.
Sem que pudesse me dar plena conta, captei pela primeira vez, graças a
Kracauer, o momento de expressão da filosofia: dizer aquilo que vem à mente. O
momento contrário a esse, o do rigor lógico, da coerção objetiva no pensamento,
recuou para o segundo plano. Como só vim a deparar com tal momento na atividade
filosófica da universidade, ele me pareceu acadêmico durante bastante tempo,
até que descobri que, entre as tensões das quais a filosofia vive, aquela entre
expressão e obrigatoriedade lógica talvez seja a central. Kracauer gostava de
se designar como um homem alógico. Ainda guardo o quanto me impressionou tal
paradoxo em alguém que filosofa, lida com conceitos, juízos e inferências. Mas,
nele, aquilo que urgia à expressão filosófica era a quase ilimitada capacidade
de sofrimento: expressão e sofrimento estão irmanados um com o outro. Sua
relação com a verdade era de tal modo que o sofrimento, sem ser dissimulado e
atenuado, entrava no pensamento, ao passo que, em outros casos, este volatiza
aquele; também nos pensamentos da tradição se redescobria sofrimento. A palavra
sofrimento chegou a penetrar até no título de um dos primeiros estudos de
Kracauer2. Ele me parecia, embora não fosse em nada sentimental, um homem sem
pele3; como se tudo que é exterior acometesse sua interioridade indefesa; como
se disso ele não pudesse se proteger senão ao dar voz a sua vulnerabilidade.
Por mais de uma razão, teve muitas dificuldades na infância; o aluno do colégio
Klinger também sofreu injustiças anti-semitas, algo bastante incomum na cidade
comercial de Frankfurt, e, em seu próprio meio, a despeito de uma tradição de
cultura humanista, pesava algo como uma falta de alegria; com certeza, provinha
daí sua aversão posterior à profissão de arquiteto, que teve de assumir como
ganha-pão. Olhando para trás, parece-me que, na atmosfera doméstica de
Kracauer, mesmo com toda amabilidade a mim demonstrada, já se antecipava há
muito a catástrofe que se abateu sobre sua mãe e a irmã dela - a qual parecia
exercer influência sobre ele - , quando ambas já estavam em idade bem avançada.
Bastaria mencionar, segundo sua própria narrativa, o fato de que ele, em
desolada paródia dos livrinhos vermelhos nos quais os professores se compraziam
em escrever censuras, portava seu próprio livrinho, que continha notas sobre
como os colegas se comportavam com ele. Muita coisa nele era reativa; por fim,
mas não de somenos, filosofia era um medium de auto-afirmação.
Vias de comunicação correm daí até o traço anti-sistemático de seu modo de
pensar e sua aversão ao idealismo no mais amplo sentido, a qual não o abandonou
ao longo de sua vida. Idealismo era para ele um modo de pensar transfigurador,
de acordo com a sentença de Georg Simmel, segundo a qual é surpreendente como
pouco se nota na filosofia da humanidade o sofrimento desta última. Para quem
não estudara na universidade filosofia como área de concentração, a violência
de suas grandes construções, tão afeitas a degenerar em panegíricos, permanecia
estranha, Hegel sobretudo. O trabalho de Kracauer foi tão amplamente marcado
por isso que, certa vez, por volta de 1923, Benjamin o chamou de inimigo da
filosofia. Algo de reflexão amadorística feita por conta própria acompanhou sua
oeuvre, assim como certo desleixo amenizava a autocrítica em favor do prazer de
divertir-se com um belo insight. Sem dúvida, pensamentos que se previnem em
demasia contra o perigo do erro estão de todo modo perdidos e, por isso, os
riscos que Kracauer correu não estão desprovidos de uma ardilosa cautela; uma
vez, ele usou como epígrafe de um tratado uma frase de Nietzsche, segundo a
qual um pensamento que não é perigoso não merece ser pensado; só que, com maior
freqüência, a vítima de tais perigos vem a ser o próprio pensamento e não seu
objeto. Em contrapartida, o autodidatismo de Kracauer concedia-lhe certa
independência com relação aos métodos convencionais. Foi-lhe poupada a
fatalidade da filosofia profissional: estabelecer-se como ramo, como ciência
especializada para além das ciências especializadas; assim, ele nunca se deixou
intimidar pela linha divisória entre filosofia e sociologia. O medium de seu
pensamento era a experiência. Não a das escolas empiristas e positivistas, que
destilam a própria experiência em princípios gerais e disso fazem método. Ele
seguiu a experiência intelectual como algo individual, resolvido a pensar
apenas aquilo que era capaz de preencher com aquilo que, para ele mesmo, se
concretiza nos homens e nas coisas. Dessa maneira, estava estabelecida a
tendência à conteudização do pensar perante o formalismo neokantiano ainda
inabalado de sua juventude. Ele se ligava a Georg Simmel e Max Scheler, os
primeiros a vincular, contra a divisão oficial do trabalho, o interesse
filosófico a um interesse social que, ao menos desde a morte de Hegel, caíra em
descrédito na filosofia institucionalmente reconhecida. Conhecia a ambos também
na esfera privada. Simmel, sobre quem escreveu um estudo, aconselhou-o a se
dedicar por inteiro à filosofia4. Devia a Simmel não apenas a capacidade de
interpretar fenômenos específicos, objetivos, voltando-se para aquilo que
neles, segundo essa concepção, aparece em estruturas universais. Era-lhe, além
disso, devedor de uma atitude de pensar e expor que, com demorado desvelo,
articula um elo com outro, mesmo lá onde elos intermediários atravancam o
movimento do pensamento, onde o andamento poderia tornar-se tenso: pensar com o
lápis na mão. Mais tarde, durante sua atividade como redator, esse momento de
diligência protegeu Kracauer do jornalismo; foi-lhe difícil livrar-se da
meticulosidade de quem sempre tem de encontrar tudo por si mesmo, inclusive o
já conhecido, como se fosse recém-descoberto. O efeito de Simmel sobre ele foi,
com certeza, muito mais o do gesto intelectual que o de uma afinidade eletiva
com a filosofia da vida irracionalista. Logo depois, em Scheler deparou-se-lhe
a fenomenologia, antes da husserliana. Seu livro Soziologie als Wissenschaft
[Sociologia como ciência]5 claramente se esforça por vincular o interesse
material-sociológico a reflexões epistemológicas que se baseiam no método
fenomenológico. Este vinha ao encontro de seu dom específico. Embora o jovem em
amadurecimento não quisesse ter a ver com seu metiê, a arquitetura, o primado
do óptico que esta requer, uma vez intelectualizado, permaneceu nele
conservado. Seu tipo de inteligência não tem nada do intuicionismo
grandiloqüente, mas muito do sóbrio ver. Ele pensa com o olho quase
desamparadamente admirado e, súbito, iluminado. Com tal olhar, oprimidos podem
tornar-se senhores de seu sofrimento. Num sentido difícil de definir, seu
pensamento sempre foi, na verdade, mais visão intuitiva (Anschauung) que
pensamento, empenhado com teimosia em não deixar que se barganhe, por meio de
uma explicação, nada do que, no choque, as coisas duras haviam imprimido nele.
Sua suspeita contra a especulação nutria-se, não em última instância, de sua
índole natural, que era ainda mais esquiva à ilusão, porque desta se
desacostumara com muito esforço. O programa da visão de essência (Wesensschau),
sobretudo a assim chamada fenomenologia de pequenas imagens, parecia adequado
ao olhar dolorosamente resistente, que não se deixava desviar, por menos que,
de resto, o traço cético de Kracauer pudesse aprovar a reivindicação
scheleriana de captar imediatamente, sem reflexão, algo simples e objetivamente
válido. A fenomenologia daquela época continha potenciais ainda muitíssimo
diferentes daqueles que surgiram dela após Scheler e se tornaram dominantes.
Ela era como que feita sob medida para um tipo de intelectual há pouco surgido
e para suas necessidades. A palavra-chave "visão de essência" oferecia-se como
remédio para a incapacidade crescente da consciência experiencial de entender e
penetrar a realidade social complexa e cada vez mais coberta por densas teias
ideológicas, cuja fisiognomia ocupava o lugar da teoria em descrédito. De modo
algum, ela era tão-somente um sucedâneo desta; ela ensinava a consciência a
assimilar a si aquilo que escapa com facilidade a quem pensa de cima, e a não
se dar por satisfeita, no entanto, com fatos brutos. Fenomenologia servia
àqueles que não queriam ser ofuscados nem por ideologias, nem pela fachada do
que é meramente constatável. Tais inervaç ;ões tornaram-se tão fecundas em
Kracauer como em poucos.
Seu tema central e, por isso mesmo, raras vezes temático é a
incomensurabilidade, que, como relação entre idéia e existência, consiste em
preocupação perene da filosofia. No livro sobre sociologia, esse tema se
anuncia assim: das determinações abstratas supremas, às quais toda disciplina
se eleva, não é possível retornar sem rupturas, continuamente, para a empiria,
depois de o ente determinado já ter sido eliminado. Em todos os seus trabalhos,
Kracauer recorda que ao pensar não é permitido esquecer-se, quando olha para
trás, do que ele necessariamente se despojou para tornar-se um determinado
pensamento. Esse motivo é materialista; ele levou Kracauer, quase contra sua
vontade, à crítica da sociedade, cujo espírito cuida, solícito, desse esquecer.
Ao mesmo tempo, porém, a aversão a um pensamento sem freios também se interpõe
no caminho da lógica materialista. A justa medida sempre traz em si sua
punição, o moderantismo. Nos anos politicamente engajados em Berlim, Kracauer
certa vez zombou de si mesmo chamando-se de retaguarda da vanguarda. Com esta
não chegou a uma ruptura, tampouco a um entendimento. Recordo-me de uma
conversa entre nós um pouco anterior, de grande importância, em que Kracauer,
contra mim, não queria colocar muito alto o conceito de solidariedade. Mas a
pura individualidade na qual ele parecia obstinar-se transparecia virtualmente
em sua auto-reflexão. Esquivando-se da filosofia, o existencial torna-se
clownerie, não muito diferente do excêntrico verso de Brecht: "In mir habt ihr
einen, auf den könnt ihr nicht bauen"6. A autocompreensão do individual em
Kracauer tinha um aspecto que ele projetava em Chaplin: ele era um buraco. O
que aí tomava o lugar da existência era o homem privado como imago, o tipo
socrático heteróclito como portador de idéias, um despeito segundo os critérios
do universal dominante. Seu parti pris pelo insolúvel - uma constante em meio a
um desenvolvimento muitíssimo cambiante - , Kracauer o definia em certas
ocasiões como aversão ao cem por cento. Mas isso não é nada mais que aversão à
teoria enfática: esta tem de ir ao extremo na interpretação de seus objetos,
caso não queira contrapor-se à sua própria idéia. Na direção contrária,
Kracauer perseverou tenazmente em um momento típico do espírito alemão, pouco
importa sua tendência, momento que sempre volta a evaporar-se no conceito. Sem
dúvida, com isso ele renuncia à tarefa da qual o aproximou sua consciência da
não-identidade da coisa com o conceito: extrapolar o pensamento a partir
daquilo que resiste a ele, o universal, a partir do extremo da
particularização. O modo de pensar dialético nunca foi conforme a sua índole
natural. Kracauer contentava-se com a exata fixação do particular em favor de
seu uso como exemplo para estados de coisa universais. A necessidade de estrita
mediação na coisa mesma, de exibição do essencial no seio da mais íntima célula
de particularização, estava longe de ser a dele. Conservador quanto a isso,
atinha-se à lógica da subsunção. A idéia de uma fissão atômica intelectual, a
ruptura irrevogável com o fenômeno, ele com certeza a rechaçaria como
especulativa, lançando-se com teimosia para o lado de Sancho Pança. Sob o signo
da impenetrabilidade da realidade, seu pensamento a abandona, quando deveria
recordá-la e penetrá-la. A partir daí se oferece uma passagem para a
justificação da realidade como justificação do inalterável. A isto corresponde
o fato de que permanece socialmente aceitável a entronização de uma experiência
individual que, por mais enviesada que seja, está em casa consigo mesma. Por
mais que o principium individuationis também se sinta em oposição à sociedade,
ele é próprio dela. O pensamento que vacila em lançar-se para além de sua
idiossincrática forma de reação também se vincula, dessa maneira, a algo
contingente e o transfigura, mas com a única intenção de não transfigurar o
grande universal. A reação espontânea do indivíduo, porém, não é algo
derradeiro e, portanto, também não é a garantia de conhecimento vinculador. Até
mesmo os modos de reação que se pretendem individuais ao extremo estão mediados
pela objetividade à qual aspiram e têm de aperceber-se dessa mediação em
benefício de seu próprio conteúdo de verdade. Quanto mais motivado esteja o
desinteresse por tudo o que é meramente aprendido, como o desinteresse pela
exterioridade da atividade científica, tanto mais o pensamento precisa, em
contrapartida, tornar-se exterior ao círculo da experiência no qual ele se
forma. O soupçon de Kracauer contra a teoria, como contra a soberba de uma
razão que se esquece da própria origem natural, não carece de fundamentos. Não
é o menor deles o quanto a teoria em sua pureza tornou-se um meio de dominação.
O feitiço maligno exercido pelo pensamento desta - feitiço que é, inclusive,
seu sucesso no mercado - também é levado a efeito por sua articulação lógico-
inferencial, sistemática. No entanto, o pensamento que, como resposta a isso,
se subtrai da vinculação teórica, a qual todo pensamento anuncia em si, torna-
se impotente não apenas na realidade. Isso tão-somente não seria objeção
alguma, se o pensamento não sofresse também, internamente, a perda de força e
evidência. O conflito entre experiência e teoria não é para ser decidido de
modo cabal para um lado ou outro, mas é uma verdadeira antinomia, deve ser
resolvido de sorte que os elementos contrários se interpenetrem.
Kracauer comprometeu-se tão pouco com a fenomenologia quanto com qualquer outra
posição intelectual; Simmel é aquele a quem foi mais fiel, em uma espécie de
infidelidade filosófica com medo vigilante, por assim dizer, das obrigações
intelectuais, como se estas fossem dívidas. O comportamento reativo de Kracauer
estava pronto para saltar de banda quando ele se sentisse atado por vínculos.
As muitas críticas que escreveu em sua vida, entre as quais não escasseiam as
incisivas, representam quase todas rupturas com o que é próprio dele ou, ao
menos, com impressões que o dominaram. Em termos hegelianos, portanto, bem se
lhe poderia objetar que lhe falta, apesar de toda sua abertura e justamente em
proveito da tenacidade desta, a liberdade relativa ao objeto. No olhar que,
nele, se apega à coisa e a absorve, já está desde sempre presente, em lugar da
teoria, o próprio Kracauer. O momento da expressão ganha preponderância sobre a
coisa com a qual a experiência se ocupa. Enquanto esse modo de pensar teme o
pensar, raro ele chega ao auto-esquecimento. O sujeito que protege sua
experiência primária como propriedade facilmente irá se colocar diante do que é
experienciado com o dito "anch'io sono pittore". Amiúde, Kracauer lançava
farpas contra os outros; inclusive contra Scheler, sobre quem, a despeito da
relação pessoal próxima, publicou no Frankfurter Zeitung um artigo que
assinalava, de modo brusco e franco, a arbitrariedade dos valores eternos
propalados por Scheler e, portanto, o ideológico neles. Não é que Kracauer
pregue o indivíduo como norma ou finalidade; ele reage socialmente demais para
isso. Mas seu modo de pensar se aferra ao seguinte: o que deveria ser pensado
não pode ser pensado; ele elege esse negativo como substância. Eis aquilo que,
não sendo propriamente uma necessidade teológica, o cativava a Kierkegaard e à
filosofia da existência, da qual ele se aproximou em estudos como o que não foi
publicado sobre o romance policial - cujo primeiro capítulo está agora em O
ornamento da massa. Muito antes de Heidegger e Jaspers, ele projetou uma obra
existencialista, mas não a concluiu, como tampouco terminou, alguns anos
depois, outra sobre o conceito de homem em Marx. Não é bon motalgum, mas uma
simples constatação: conta-se entre as mais relevantes realizações de Kracauer
o fato de que ele deixou para trás aqueles manuscritos ambiciosos, embora sua
capacidade estivesse à altura deles. Ele utilizou produtivamente seu renitente
temor de tornar-se vassalo da teoria de outros ou da própria. Possuído pelo
incomensurável, ele não se achava pronto para profanar seu próprio motivo, ao
reduzir a incomensurabilidade à filosofia. Com argúcia, ele reconhecia que a
idéia marxista do homem, por mais que sua doutrina dela houvesse se nutrido,
rebaixa o homem a algo estático, reconhecia que o teor da dialética de Marx não
é atingido quando se cuida de fundá-la positivamente na essência humana, em vez
de deixá-la emergir de maneira crítica das relações que foram deformadas pelos
homens e devem ser transformadas através dos homens. Que Kracauer tenha exposto
suas reflexões tanto existencialistas quanto sociais não como tais, mas apenas
de forma indireta, de preferência na apresentação de fenômenos apócrifos que,
para ele, se tornam alegorias histórico-filosóficas, isso era mais que capricho
literário. Desde o início e de maneira inconsciente, talvez fosse claro a seu
modo de pensar materialmente orientado que os assim chamados grandes conteúdos
intelectuais, idéias e estruturas ontológicas não existem por si mesmos, além
das camadas materiais e sem depender delas, mas crescem, indissoluvelmente,
junto com estas; foi isso que depois o capacitou à recepção de Benjamin. Contra
Martin Buber, em quem o existencialismo lhe veio ao encontro em pessoa, ele
levantou uma polêmica também reeditada em O ornamento da massa7, muito digna de
leitura, em que identifica a essência restauradora da tradução da Bíblia, ou
seja, a essência de um protótipo para o jargão da autenticidade dos dias de
hoje. A polêmica baseia-se na compreensão de que a teologia não se deixa
restaurar por mero querer, porque seria bom ter uma; isso acorrentaria a
própria teologia ao interior humano, para além do qual ela se afirma.
Conforme o teor dessa crítica, a enérgica guinada de Kracauer para a sociologia
não foi nenhuma ruptura com sua intenção filosófica, mas sim a conseqüência
desta. Quanto mais às cegas ele se perdia nos materiais que sua experiência lhe
trazia, tanto mais frutífero era o resultado. Assim, foi ele quem descobriu o
cinema como fato social. Não inquiriu imediatamente os efeitos; decerto, seu
flairo advertiu a não apreender esses efeitos como coisas fixas. Eles não podem
ser reduzidos a idas isoladas a salas de cinema, talvez sequer a uma
multiplicidade delas, mas apenas à totalidade dos estímulos, que tinham no
cinema, ao menos antes da televisão, sua mais pronunciada expressão. Kracauer
decifrou o cinema ele mesmo como ideologia. Segundo as regras da pesquisa
social empírica, nesse meio-tempo muito desenvolvida do ponto de vista técnico,
a hipótese tácita seria escandalosa, mas conservou até hoje toda sua
plausibilidade: se um medium desejado e consumido por massas transmite uma
ideologia em si uníssona, preparada de modo homogêneo, é presumível que essa
ideologia tanto se adapte às carências dos clientes como, em contrapartida, os
modele cada vez mais. O desnudamento da ideologia do cinema era para ele, tanto
quanto a fenomenologia, algo próprio de uma nova fase, em formação, do espírito
objetivo. A suíte "As pequenas balconistas vão ao cinema", que no Frankfurter
Zeitung causou grande espécie8, demonstrou pela primeira vez esse modo de
proceder. Mas o interesse de Kracauer pela psicologia de massas do cinema
jamais foi meramente crítico. Ele tinha em si mesmo algo do ingênuo prazer de
ver do freqüentador de cinema; mesmo nas pequenas balconistas que o divertem,
ele encontra parte de sua própria forma de reação. Essa não é a menor das
razões por que sua relação com osmedia de massa jamais se tornou tão ríspida
como faria esperar sua reflexão sobre os efeitos deles. A inclinação ao
inferior, ao excluído da alta cultura, algo em que se entendia muito bem com
Ernst Bloch, levou-o a ainda se alegrar com a feira popular e o realejo, quando
há muito o macroplanejamento industrial já os havia tragado. No livro sobre
Caligari9, argumentos de filmes são resenhados com seriedade, sem pestanejar;
bem há pouco, na Theory of film [Teoria do filme]10, narra atrocidades como a
gênese visível de uma peça musical no compositor, o herói, como se nele
imperasse algo como a razão técnica do medium. O cinema comercial, contra o
qual Kracauer arremetia, inadvertidamente tira proveito de sua tolerância, mas
esta, às vezes, mostra seus limites diante do intolerante - o cinema
experimental.
Se o estrito empirismo sociológico anuncia, contra a experiência assistemática
invocada pela sociologia de Kracauer, que não está demonstrado o nexo entre
aquele pretenso espírito objetivo e a consciência efetiva da massa que nele
deve precipitar-se, então, há de se conceder algo a essa objeção. Na maioria
dos países do planeta, a chamada boulevard presse vende, ao lado de seus
sensacionalismos, contrabandos políticos de extrema direita, sem que isso tenha
influenciado os milhões de leitores dos países anglo-saxônicos. Entretanto,
tais objeções são todas como que cúmplices do cinema como mercadoria e, em seu
conjunto, daquilo que se põe a salvo de suspeitas por meio do rótulo media de
massas. Esses media são isentados de responsabilidade, na medida em que não se
possa demonstrar com rigor que desgraça eles provocam. A análise daquilo mesmo
que oferecem mostra, ao menos, que eles dificilmente poderiam provocar algo
diferente de uma desgraça. Seria mais aconselhável refinar a análise dos
estímulos, a qual Kracauer inaugurou e para a qual hoje se tornou comum o nome
content analysis, indo além da tese original da satisfação de desejo
ideológica, do que se entregar a um estudo de efeitos que negligencia com
demasiada facilidade o conteúdo concreto do que produz os efeitos, a relação
com a ideologia apresentada. Kracauer está numa posição ambivalente perante o
empirismo sociológico. De um lado, simpatiza com ele, no sentido de que tem
reservas acerca da teoria social; de outro, segundo o critério de sua
representação da experiência, tem expressas restrições ao método preso a
minúcias, quantificador. Vivendo já há muito tempo na América, expôs-se ao
público com uma arguta defesa teórica da análise qualitativa, a qual só ganha
seu justo valor quando se sabe até que ponto ela desafia o hábito quase
universal da sociologia institucional daquelas terras. O comportamento
experiencial de Kracauer permaneceu o do estrangeiro, transposto para o
espírito. Ele pensa como se tivesse transformado o trauma de infância da
pertença problemática em um modo de ver ao qual tudo se apresenta como numa
viagem, mesmo o que é habitual e cinzento, como objeto colorido do espanto.
Nesse ínterim, essa independência com relação à casca convencional foi até
mesmo convencionada pelo termo brechtiano distanciamento; em Kracauer, este era
originário. Kracauer veste-se intelectualmente, por assim dizer, com roupa
esporte e boné. Isso ressoa no subtítulo do livro sobre os funcionários, Die
Angestellten. Aus dem neuesten Deutschland[Os funcionários. Da mais nova
Alemanha]11. A humanidade está visada não por uma identificação, mas sim pela
ausência desta; manter-se fora como medium do conhecimento.
É justo nesse livro sobre os funcionários que Kracauer se emancipou como
sociólogo. O método tem muito em comum com o que se designa nos Estados Unidos
como procedimento do participant observer, algo como o dos Lynd em Middletow12;
em 1930, essa obra era com certeza desconhecida a Kracauer. Em Die
Angestellten, ele fez amplo uso de entrevistas, mas não empregou nenhum esquema
de questionário estandardizado; com flexibilidade, amoldou-se à situação
dialógica. Se os pretensos rigor e objetividade de levantamentos estatísticos
são variadamente pagos com uma falta de concreção e de compreensão para o
essencial, Kracauer tentou ao longo de sua vida, daquela maneira planejada-
assistemática, compensar a exigência de empiria com a de resultados que
fizessem sentido. Nisso residem os méritos particulares do livro, cujo acesso
tornou-se outra vez possível graças à editora Verlag für Demoskopie, ligada ao
Instituto Allensbacher. Com mais engenho que as coetâneas publicações da
ciência acadêmica, ele diagnosticou aquilo que veio a batizar de cultura do
funcionário. Ele a descreveu, por exemplo, no Haus Vaterland13 berlinense, a
imagem originária da consciência sinteticamente produzida daquela nova classe
média, que não era classe média alguma. Nesse meio-tempo, esse estilo estendeu-
se sobre o conjunto da sociedade dos países com alto grau de industrialização.
Termos como "sociedade nivelada de classe média" e "sociedade de consumo"
neutralizam a inverdade desse estilo. Em seus ingredientes essenciais, desde
sempre ele se assemelha àquilo que Kracauer observou nos funcionários de 1930.
Economicamente proletarizados, de ideologia encarniçadamente burguesa, eles
adicionam um elevado contingente à base de massas do fascismo. O livro sobre os
funcionários oferece, como se sob condições de laboratório, uma ontologia
antecipadora daquela consciência que apenas na mais recente fase foi integrada,
sem encaixes, ao sistema em seu conjunto. Em certas ocasiões, o livro é
prejudicado pelo tom de ironia com que se compraz. Depois do horror que aquela
consciência ajudou a incubar, esse tom soa ao mesmo tempo inofensivo e um pouco
arrogante, como o preço da hostilidade de Kracauer contra uma teoria que, fosse
ela perseguida sem digressões, sufocaria o riso na garganta. Sem dúvida alguma,
ele sabia que o espírito para o qual apontava com os dedos fora despertado,
instigado e planejadamente reproduzido em seus portadores, não foi nem é
espontaneamente o deles. Mas, omitindo isso, por qualquer razão que seja,
referindo-se antes ao contato imediato com os manipulados pela cultura de massa
do que ao sistema em seu conjunto, ele parece, com efeito, atribuir-lhes às
vezes o ônus disso. Mesmo esse deslocamento tem algo de legítimo: a indignação
contra os inúmeros que teriam de sabê-lo melhor, e que no fundo o sabem melhor,
mas se entregaram apaixonadamente à falsa consciência. Sua crítica à
racionalidade da racionalização tecnológica, que condenou os funcionários ao
desemprego, mostra da melhor maneira até que ponto Kracauer levou sua ousadia
no livro sobre os funcionários: "Ele [o capitalismo] não racionaliza muito, mas
muito pouco. O pensamento do qual é portador se opõe à realização da razão, que
fala a partir do fundamento do homem"14. Se Kracauer fala do "fundamento do
homem", discurso que de lá para cá ganhou uma fama suspeita, isso é desculpado
pelo fato de que, com essa expressão, ele visava precisamente à razão que esse
discurso em outros casos difama. Seu dégôut, porém, dirige-se contra a marca
distintiva da época em seu conjunto: os homens não são apenas enganados pela
ideologia, mas obedecem à risca ao provérbio latino, querem ser enganados e, em
verdade, com tanto mais afinco quanto mais doloroso seria encarar a situação.
De resto, Kracauer não restringiu de modo algum sua crítica da ideologia à
esfera da massa. Também a exerceu lá onde anseios mais elevados da burguesia
culta subsistiam, mas inadvertidamente degeneravam em uma ninharia que se
considerava o contrário. Ele foi o primeiro a pôr à luz do dia as implicações
sinistras da moda de biografias.
Tenho como a realização mais significativa de Kracauer uma criação que, de modo
bastante paradoxal, está assentada na terra de ninguém entre romance e
biografia, o Ginster15, impresso pela primeira vez em 1928. O título,
emprestado de uma planta que, como ele disse uma vez, citando Ringelnatz16,
floresce nos barrancos das linhas férreas, substituía o nome do autor; "escrito
por si mesmo", o livro devia ser anônimo, não pseudonímico. O sujeito estético
não é destacado abruptamente da pessoa empírica. Até a figura do narrador,
segundo a forma e a definição, entra no campo de ironia de Kracauer. Ginster
não é nenhuma obra de arte cega, autárquica, pelo contrário, o ateórico nela é
teórico. Nesse livro, é apresentado o insolúvel que Kracauer, se assim se pode
dizer, ensina - o que faz de uma maneira muitíssimo rara na Alemanha, para a
qual talvez o único modelo por estas terras seja Lichtenberg, manifestação
renovada de um gênero venerável do esclarecimento, o roman philosophique.
Kracauer chamou Ginster de um Schweik17 intelectual. O livro, que pouco sofreu
com a passagem do tempo, tornou-se produtivo ao não colocar afirmativamente o
nó da individualidade como algo substancial. Graças à reflexão estética, o eu
fundamental é ele mesmo relativizado. Uma puerilidade refinada que se coloca
como quem finge não entender, quando de fato não entende, eis a imagem inversa
da individuação absoluta. Esperto, Ginster doma a realidade em que habita,
enquanto murcham diante dele as personalidades que, jactantes, batem com
orgulho a mão no peito. Uma ingenuidade que devassa e descreve a si mesma como
técnica de viver já não é mais ingenuidade. Transcende para aquela teoria à
qual torce o nariz. A possibilidade de algo humanamente imediato é demonstrada
e negada a uma só vez. Descendo aos fundamentos, Ginster comprova que a
liberdade, a positividade, hoje não pode mais, em absoluto, ser posta como tal;
doutra feita, o momento idiossincrático em Kracauer se tornaria inelutavelmente
mania. Sábio, na nova edição, ele desistiu do último capítulo, que coqueteava
com essa positividade. À altura da concepção estava a linguagem. Com seu prazer
indômito de tomar as metáforas ao pé da letra, de autonomizá-las à maneira de
um Eulenspiegel18, de traçar com elas, em arabescos, uma realidade de segundo
grau, a linguagem lançou raízes aéreas que avançam bem adentro da modernidade.
Pena que Kracauer, em seus anos de maturidade, sob o constrangimento de
escrever em inglês, sem dúvida, também por indignação contra o acontecido,
tenha praticado uma ascese de sua própria arte da linguagem, que é
indissociável do alemão.
A fase crítico-social de Kracauer, à qual Ginster pertence, data de antes de
sua atividade em Berlim para o Frankfurter Zeitung. Com efeito, nos anos que
precederam o fascismo, ele recebeu estímulos do ar cortante daquela Berlim. No
entanto, sua crítica social manteve, mesmo depois de ele ter se ocupado com
Marx, o traço de quem caminha sozinho. Sequer perante o conflito mais extremo
era possível usar de uma manobra que o demovesse de sua posição de
individualista turrão, por mais nítidas que estivessem diante de seus olhos as
objeções a ela contrárias. Ele compensava tais objeções com aquilo que escapava
das malhas da grande teoria. Humanidade ele buscava no particular, justamente
no que é insuportável para os totalitários. Com Brecht teve uma desavença,
inventou contra ele a piada da confusão em Augsburg e esclareceu que, quando
Brecht fez Aquele que diz não se seguir a Aquele que diz sim, ele, Kracauer,
pensou em escrever Aquele que diz talvez19. Programação nada má para quem
outrora desenvolvera como sua a postura de quem espera; eis aí também uma
fórmula de auto-reflexão crítica.
***
Já antes dos anos em Berlim, aliás, começara a modificar-se nele algo mais
difícil de precisar, embora essencial; como se, resoluto, qual Hans Sachs
ordena antes de ir ao mercado que as lojas sejam bem fechadas, tivesse proibido
a si a capacidade de sofrer, tivesse prometido solenemente a si ser feliz20. Já
Ginster deixara escapar, após a cena com um oficial, a máxima por certo ainda
irônica: é preciso tornar-se à prova de fogo. Aquele que não tinha pele deixava
crescer ao seu redor uma couraça. E a partir do dia em que não quis mais estar
desprotegidamente entregue ao mundo, mas encontrou apoio em si mesmo, passou a
comunicar-se melhor com o mundo. O gesto do "sou assim e não de outro modo"
harmoniza-se muito bem com uma adaptação mais exitosa, pois o mundo, por sua
vez, é assim e não de outro modo, conforme o princípio de uma não elucidada
autoconservação expansiva. Em Kracauer, esse princípio jamais careceu de
clownerie. Um dos aspectos desta era a política de avestruz sempre planejada.
Assim, ainda durante a emigração, quando nos reunimos pela primeira vez, em
Paris, ele me recebeu em um modesto hotel, como Stauffacher21 entre os seus. À
sua maneira taciturna, sentiu a França anterior à Segunda Guerra, a qual já
estava fora dos eixos, como tão propícia para ele quanto a América, onde após a
fuga exitosa obteve, com efeito, um sucesso surpreendente. Ele também fez esse
aspecto de seu destino e de seu caráter refletir-se em um romance não
publicado, cujo herói, obtuso em suas carências e inclinações, não se acerta
bem com as variadas situações em que se mete, até que, por fim, em virtude de
suas opiniões de esquerda, perde seu posto. A estratégia de adaptação de
Kracauer teve sempre algo de astúcia, da vontade de prevalecer sobre o hostil e
o mais poderoso, sobrepujando-o quando possível na própria consciência e, dessa
forma, distanciando-se dele em meio a uma identificação forçada. Da Theory of
film, por ocasião da temática Davi e Golias, ele contrabandeia para si mesmo um
programa: "embora todas essas personagens pareçam submeter-se aos poderes
vigentes, conseguem sobreviver a eles"22.
Para fazer justiça à sua produção após 1933 - bem como à de muitos outros
exilados - , sem que a gratidão pelo asilo seja ofendida, deve-se falar da
situação dos intelectuais emigrados de maneira menos maquiada que a usual na
Alemanha. Regulamentações de divisas e impostos especiais forçaram os
intelectuais a expatriar-se, literalmente, como mendigos. O cálculo dos
nacional-socialistas, segundo o qual os que lhes eram odiosos não seriam bem-
vistos também lá onde encontrassem refúgio, não era de todo errado. O fato de
que alguns Estados acolheram apenas os que dispunham de habilidades práticas
úteis lança luzes até mesmo sobre países que desistiram de cercas de arame
farpado desse tipo. Na medida em que não havia se qualificado dentro da
atividade acadêmica estabelecida, por meio dos trabalhos chamados positivos,
nem ao menos provinha da hierarquia acadêmica, em todo lugar o intelectual se
sentia supérfluo. Provavelmente a coação a integrar-se era pior que nas
emigrações anteriores. Nos países de exílio mais importantes, a rede social
estava entrelaçada de modo espesso demais, o thought control era rigoroso
demais. O desemprego ameaçador tornava indesejáveis os concorrentes potenciais.
Emigrantes sem amigos que se solidarizassem com eles tinham de capitular para
viver. No domínio econômico tudo se passa convenientemente segundo a regra do
jogo burguesa da oferta e da procura. Que ela chegue a abarcar o espírito, que
este seja por fim absorvido pelo complexo funcional, isso reside na lógica
inflexível do sistema, mas ao mesmo tempo contradiz, sem chance de
reconciliação, o princípio do próprio espírito, que não deve dissipar-se na
reprodução da vida e que, ao tornar consciente o que existe, circunscreve no
negativo um outro possível. Mas o espírito que é complacente, segundo uma
lógica que é suspensa apenas em raras exceções, justamente por isso, anula a si
mesmo; ainda mais drasticamente que noutra circunstância, o primado das
relações de produção torna-se-lhe o grilhão da força produtiva. É inesquecível
como, nos primeiros meses de emigrado, quando eu arranhava o inglês durante uma
discussão, um sociólogo alemão muito famoso, já falecido, exortou-me em tom de
galhofa: em países anglo-saxônicos, eu nunca deveria tentar expressar mais do
que acabara de balbuciar. Se não segui o conselho, este ao menos me preveniu de
sentir-me superior aos outros. Não há motivo para revolta, já que não é
censurado como falta de caráter, por quem passou ao largo da provação, aquilo
que contém, de sua parte, um momento da decência burguesa: a vontade de não
viver de esmolas, mas de ganhar a vida por conta própria. Para o cinismo,
entretanto, para uma produção em duas frentes, na qual se resguarda a
integridade intelectual e, com a mão esquerda, se escrevem livros fáceis de
vender, seria necessária uma força que manifestamente não estava concedida a
ninguém; como, por exemplo, até hoje nenhum músico pôde compor música de
vanguarda e, ao mesmo tempo, ganhar dinheiro com hits de sucesso. O apelo de
Brecht por tolerância deveria ser estendido a esta complexa situação.
O governo norte-americano era superior ao de muitos países na época de Hitler,
na medida em que concedeu a todos os emigrantes a possibilidade de trabalhar,
não rebaixando ninguém ao status permanente de subsidiado. Em contrapartida, a
carga de conformismo, que também oprime os nativos, era particularmente pesada.
Seus defensores entusiastas eram intelectuais imigrantes já bem-sucedidos.
Adaptação tornou-se mais uma vez a norma que, de qualquer modo, já havia sido
interiorizada no início da carreira por todos aqueles que dificilmente poderiam
ter enfrentado suas adversidades externas e internas, senão obedecendo ao
mecanismo psicológico chamado por Anna Freud de identificação com o agressor.
Como fórmula contra esse infortúnio, certa vez, um adaptado usou, triunfante, a
seguinte frase: não existe transferência bancária do espírito. Uma medida
corretiva teria sido, após a queda de Hitler, trazer de volta justamente os
emigrantes cuja qualidade consistia naquilo que, em nenhuma circunstância, está
sujeito à troca e ao mercado de valores. Isso foi feito, é verdade, por algumas
universidades, como a de Frankfurt, e, com mais dedicação que qualquer um até
hoje, por Adolf Arndt, na qualidade de senador de Berlim responsável pela
cultura. Mas, em geral, isso não aconteceu. O fato de que esse modo de
reparação, o qual se dá na própria vida espiritual danificada, tenha sido
negligenciado é uma irresponsabilidade não só para com as vítimas, porém ainda
mais para com aquilo que amiúde se apresenta de bom grado como o interesse
alemão. Inestimável o que um homem como Kracauer poderia ter feito de bom em
uma posição de importância, algo como a direção da política cultural de um
grande jornal. Seja lembrada apenas sua definição da linguagem de Heidegger por
meio do provérbio: "Eifersucht ist eine Leidenschaft, die mit Eifer sucht, was
Leiden schafft"23. Sua negativa contumaz de se deixar enganar por
prestidigitadores teria sido um antídoto saudável contra o clima sintético da
cultura ressuscitada. Ele resistia tanto a Heidegger como a Brecht, imune às
técnicas de dominação que na Alemanha tão prontamente são equiparadas à
grandeza, e que tornaram funesto até mesmo o conceito de grandeza. Pelo caráter
aparente, afirmativo em mau sentido, do espírito objetivo contemporâneo, tem
boa parte de culpa o vácuo causado pela ausência daintelligentsia emigrada. A
culpa é reforçada por aqueles que preferem tornar os exilados responsáveis pelo
declínio da República de Weimar, porque estes o reconheceram. A catástrofe da
ditadura fascista vai além do destino dos assassinados, embora este impeça a
meditação sobre outras conseqüências. Numa variação de uma sentença
cabalística, bem caberia perguntar se a terra que exilou seus judeus não perdeu
tanto quanto eles.
Ninguém deveria ler o Offenbach de Kracauer24, há pouco republicado na Alemanha
sob o título Pariser Leben [Vida parisiense], ou De Caligari a Hitler, sem
ponderar isso, e nenhum grão de falsa condescendência teria permissão de estar
aí imiscuído. Com uma piscadela típica de Kracauer, Offenbach se inclui entre
as biografias romanceadas cuja radiografia ele apresentara impiedosamente; ao
mesmo tempo, ele queria elevar-se sobre a pseudoindividualização desse tipo de
produto mediante a ideia de uma "biografia da sociedade". A problemática social
do Segundo Império, à qual a opereta reagia, deveria transparecer. O livro tem
seus limites na abstinência musical que o autor teve de praticar. - O Caligari,
rico em análises técnicas pontuais, desdobra, de maneira bastante luminosa, a
história do cinema alemão após a Primeira Guerra como história do poder
totalitário transformando-se na ideologia em avanço. Entretanto, essa tendência
não estava em absoluto restrita ao cinema alemão; decerto ela culminou no King
Kong norte-americano, verdadeira alegoria do monstro desmesurado e regressivo
em que se desenvolveu a coisa pública; para não falar da reabilitação de Ivan,
o terrível e de outras figuras abomináveis na Rússia stalinista. Todavia, do
que é contestável na superfície da tese de Kracauer pode-se tirar a lição de
uma verdade: a dinâmica que explodiu no horror do iii Reich descia até as
galerias subterrâneas da sociedade em seu conjunto, e, por isso, também se
refletiu na ideologia dos países que foram poupados da catástrofe política. É
bem comum que um fator social universal seja equivocadamente reconhecido como
atuante apenas lá onde se o experiencia; já a invectiva de Hölderlin contra os
alemães era, em verdade, contra a deformação do homem por meio da forma
burguesa da divisão do trabalho ubíqua - aos poucos, Kracauer retornou àquilo
que o movia desde a origem, por exemplo, ao cinema, cujos elementos ele tratou
de destilar teoricamente, e por fim, em projeto de grandes intenções, à
filosofia da história.
***
Caso se arrisque algo como uma interpretação da figura de Kracauer, que a isso
resiste, então é preciso buscar a palavra certa para aquele realismo de cores
particulares, o que tem tão pouco a ver com a imagem familiar de um realista
quanto com o páthos transfigurador ou com a convicção inquebrantável da
prevalência do conceito. Proteger o espírito em nome do espírito contra sua
auto-idolatria era, sem dúvida, um impulso primário de Kracauer, amadurecido
pelo sofrimento de quem cedo foi marcado a fundo pela incapacidade do espírito
perante a brutalidade do que pura e simplesmente é. Mas a conta de seu realismo
deixa resto, não é redonda. Como este era reativo, Kracauer não pode se
contentar com a desilusão. Mesmo quando, de maneira derrotista, inflamava-se
contra a utopia, atacava na verdade, como que por causa do medo, algo que
animava a ele mesmo. O traço utópico, temeroso do próprio nome e conceito,
esconde-se furtivo na personagem do desajustado. Assim, os olhos de uma criança
maltratada e oprimida se iluminam nos momentos em que ela, entendendo de
súbito, sente-se entendida e disso haure esperança. A imagem de Kracauer é a do
homem que acaba de passar pelo mais terrível; e, tal como a esperança da
humanidade se encapsulou na chance de evitar a catástrofe, assim também o
reflexo dessa esperança incide sobre o indivíduo que, por assim dizer, antecipa
esse processo. "Pois nada mais senão o desespero pode nos salvar", diz uma
frase de Grabbe25. A imagem sobreposta à esperança torna-se para Kracauer a
individualidade que se fecha em si mesma, até não ser mais possível dirigir-lhe
a palavra, individualidade impermeável à esperança. Ele manifesta o anseio de
um dia estar livre para, sem medo, ser asperamente fora dos padrões, na mesma
medida em que o medo asperamente o marcara como um tipo aberrante. Lembrando da
infância, ele um dia contou que fora tão possuído pelas histórias de índios,
que elas transbordaram para dentro dos limites da realidade. Uma noite ele
acordou de um sonho, em sobressalto, com as seguintes palavras: "Uma tribo
estrangeira me raptou". Nisto está desenhado seu rébus: o horror, que se tornou
literal com as deportações, ao lado da saudade da barbárie impune e mais
inocente dos invejados peles-vermelhas. A doutrina freudiana segundo a qual os
momentos decisivos da gênese individual se dão na infância vale ainda mais para
o caráter inteligível. A imago infantil permanece viva no querer vão e
compensatório de se tornar um adulto de verdade. Pois justamente o que é adulto
é o infantil. Quanto mais fundamentado é o luto cujas lamentações se expressam
em mímica, tanto mais o sorrir assegura, com esforço, que tudo estaria em
perfeita ordem. Para essa índole natural, permanecer criança é o mesmo que
manter um estado de ser no qual menos coisas acontecem a alguém; eis a
expectativa, ainda que tão freqüentemente frustrada, de que tal confiança
inextinguível seja recompensada. Quão incerta é essa situação, expressa-o a
própria existência intelectual de Kracauer. A fixação na infância, como uma
fixação no jogo, tem nele a forma de uma fixação na bondade das coisas; é de se
supor que, nele, a primazia do óptico não é, de modo algum, a relação primeira,
mas a conseqüência da relação para com o mundo das coisas. Seria certamente vão
buscar no acervo de motivos de seus pensamentosalgum protesto contra a
coisificação. Para uma consciência que suspeita ter sido abandonada pelos
homens, as coisas são melhores. Nelas, o pensamento repara o que os homens
fizeram de mal ao que é vivo. O estado de inocência seria o das coisas
indigentes, das coisas miseráveis, desprezadas, alienadas de sua finalidade;
para a consciência de Kracauer, tão-somente elas encarnam o que seria diferente
do complexo funcional universal; e extrair-lhes a vida desconhecida seria sua
idéia de filosofia. A palavra latina para coisa é res. Daí deriva realismo.
Kracauer conferiu a seu Theory of film o subtítuloThe redemption of physichal
reality [A redenção da realidade física]. A verdadeira tradução seria: a
salvação da realidade física. Tão curioso26 é seu realismo.
THEODOR W. ADORNO foi um dos principais filósofos do século XX. Autor de Minima
moralia, Notas de literatura (I-III) e Dialética negativa.
[*] Adorno, Theodor W. Noten zur Literatur, "Der wunderliche Realist".
Frankfurt/M: Suhrkamp, 2002 [1965], vol. 3, pp. 388-408. Este
ensaio sobre Siegfried Kracauer, inicialmente preparado para uma transmissão
emitida pela rádio de Hessen, em 7 de outubro de 1964, teve sua primeira versão
impressa em Neue Deutsche Heft, nº 101, set.- out. 1964. [N.
do T.] Os direitos de publicação foram cedidos pela Editora 34 Letras. A
revista Novos Estudos agradece especialmente a Alberto Martins e Milton Ohata.
[1] Trata-se da escola da comunidade judia de Frankfurt am Main, a maior da
Alemanha até seu fechamento, em 1942, pelo regime nazista. [N. do T.]
[2] Kracauer, Siegfried. Das Leiden unter dem Wissen und die Sehnsucht nach der
Tat [O sofrimento causado pelo saber e a saudade da ação, 1917], republicado em
Frühe Abhandlungen aus dem Nachlass, Inka Mülder- Bach e Ingrid Belke (orgs.).
Frankfurt/M: Suhrkamp, 2004, vol. 1. [N. do T.]
[3] A expressão "sem pele" (ohne Haut) parece fazer alusão a uma sensibilidade
que não separa o que é interno e externo. Adorno a emprega também num texto
sobre Proust: "A busca pelo tempo perdido prova a realidade interna e externa
por meio do instrumento da existência de um homem sem pele". In: Noten zur
Literatur, "Zu Proust", op. cit., p. 674. [N. do T.]
[4] Kracauer. "Georg Simmel". In: O ornamento da massa, trad. Carlos Eduardo
Jordão Machado e Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify, 2009, pp. 243- 78. [N. do T.]
[5] Idem. Soziologie als Wissenschaft. Eine erkenntnistheoretische Untersuchung
[Sociologia como ciência. Uma investigação epistemológica, 1922], republicado
em Schriften. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1971, vol. I. [N. do T.]
[6] Verso do poema "Vom armen B. B." ["Do pobre B. B."] que significa
literalmente "Em mim vocês têm alguém sobre quem não podem construir", mas cujo
sentido é "Em mim vocês têm alguém em quem não podem confiar". [N. do T.]
[7] Kracauer. "A Bíblia em alemão". In: O ornamento da massa, op. cit., pp.
205-20. [N. do T.]
[8] Idem. "As pequenas balconistas vão ao cinema". In: O ornamento da massa,
op. cit., pp. 311-26. [N. do T.]
[9] Idem. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão.
Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. [N.
do T.]
[10] Idem. Theory of film: the redemption of physical reality [Teoria do filme:
a redenção da realidade física]. Nova York: Oxford University Press, 1960. Adorno cita a edição alemã, revista e publicada sob o título
Theorie des Films. Die Errettung der åusseren Wirklichkeit. Frankfurt/M:
Suhrkamp, 1964. [N. do T.]
[11] Idem. Die Angestellten. Aus dem neuesten Deutschland [Os funcionários. Da
mais nova Alemanha, 1929], republicado em Schriften, op. cit. [N. do T.]
[12] Trata-se da obra Middletown: a study in American culture [Middletown: um
estudo da cultura americana], publicada em 1929 por Robert (1892-1970) e Helen
Lynd (1894- 1982), pioneiros no estudo do lazer nas
sociedades capitalistas avançadas. [N. do T.]
[13] Grande centro de lazer, inaugurado em 1928, em Berlim. Importante inovação
no setor de serviços e entretenimento, o Haus Vaterland podia abrigar 8 mil
pessoas em seus cinemas, cafés, salões de baile e bistrôs temáticos. [N. do T.]
[14] Kracauer, "O ornamento da massa". In: O ornamento da massa, op. cit, p.
97. [N. do T.]
[15] Kracauer. Ginster. Vom selber geschrieben [Ginster. Escrito por si mesmo,
1928]. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1963. O título significa um
tipo de arbusto com flores amarelas, conhecido como tojo ou giesta. [N. do T.]
[16] Joachim Ringelnatz (1883- 1934), poeta e pintor alemão. [N. do T.]
[17] Dobrý voják švejk [O bravo soldado Schweik] é a obra mais importante do
escritor tcheco Jaroslav Hašek (1863-1923). [N. do T.]
[18] Popular, malicioso e irreverente, Till Eulenspiegel é um personagem do
folclore alemão, cujos registros remontam ao final da Idade Média. [N. do T.]
[19] Brecht, Bertolt. Aquele que diz sim e aquele que diz não. Trad. Luis
Antonio Martinez Correa e Marshall Netherland. In: Teatro completo, São Paulo:
Paz e Terra, 2004 [1929- 1930], vol. 3. [N. do T.]
[20] Hans Sachs (1494-1576), poeta alemão, adepto da Reforma. É o herói da
ópera Os mestres cantores de Nuremberg, de Wagner. [N. do T.]
[21] Werner Stauffacher é um personagem de Wilhelm Tell, de Schiller. [N. do
T.]
[22] Kracauer, Theorie des films, op. cit., p. 366. [N. do T.]
[23] A tradução literal desse provérbio popular é "ciúme é uma paixão, que com
zelo busca o que causa dor". Trata-se de um trocadilho intraduzível, construído
por meio do desmembramento das palavras nos elementos que as compõem. A menção
ao provérbio serve para parodiar um procedimento típico da linguagem de
Heidegger. [N. do T.]
[24] Adorno refere-se à obraPariser Leben. Jacques Offenbach und seine Zeit.
Eine Gesellschaftsbiographie [Vida parisiense. Jacques Offenbach e seu tempo.
Uma biografia da sociedade], republicada em 1962. [N. do T.]
[25] Christian Dietrich Grabbe (1801-1836), poeta alemão. [N. do T.]
[26] Buscando recuperar a polissemia da palavra alemã, "curioso" traduz
wunderlich, que aparece também no título do ensaio. Via de regra, este adjetivo
qualifica algo ou alguém cuja maneira de ser não é usual e, por isso, causa
estranhamento. Mas Adorno também faz ressoar nele outros significados, por meio
de implícita alusão ao substantivo do qual deriva: Wunder, que
significamaravilha, milagre. Daí provém o verbo wundern: causar espanto ou
curiosidade (em seu uso reflexivo, este verbo se assemelha ao wonder inglês:
perguntar-se admirado). Dada sua origem em Wunder, tão clara ao falante alemão,
não é de surpreender que se encontre na literatura outros sentidos para
wunderlich: 1) milagroso; 2) admirado, espantado, curioso; 3) admirável,
espantoso, curioso. [N. do T.]