Desigualdades raciais e políticas públicas: ações afirmativas no governo Lula
Nos últimos dez anos, no que diz respeito ao tratamento da temática racial, têm
ocorrido no Brasil mudanças significativas que estão produzindo um intenso
debate na sociedade em geral, e no meio acadêmico em particular, acerca da
pertinência da adoção de políticas de ações afirmativas. Embora o debate tenha
se concentrado fortemente no sistema de cotas para as universidades públicas, a
atuação do atual governo envolve ações afirmativas em outras áreas com
características e escopo diferenciados. Neste texto serão analisados os
principais programas e ações federais com recorte racial implantados durante o
governo Lula, nas áreas de educação e saúde. A escolha dessas duas áreas levou
em consideração o destaque que elas têm recebido tanto no governo como no
debate público e por serem as áreas com ações mais consolidadas1.
A análise que se segue toma como ponto de partida algumas perspectivas. Em
primeiro lugar, considera que as fortes desigualdades que marcam a estrutura
social brasileira e que ganham contornos mais rígidos quando se inclui o
recorte racial foram elementos fundamentais para que o debate sobre ações
afirmativas se consolidasse e se efetivasse no Brasil. Assim, as desigualdades
raciais no Brasil, no final dos anos de 1990, contribuem de forma significativa
para o cenário político que se configurou nesta última década (2000-2010).
Soma-se a isso um aspecto analítico mais amplo, transnacional, ligado às
demandas sociais que reconfiguraram o debate sobre cidadania, que passou a
lidar com demandas mais específicas, tais como territorialização e políticas
identitárias.
Em segundo lugar, considera-se que esse cenário de mudanças é fruto de um longo
processo político que antecede ao atual governo; não é, portanto, agenda de um
governo e sim uma agenda construída e demandada ao Estado brasileiro ao longo
de pelo menos duas décadas. Entretanto, há importantes inflexões políticas e
discursivas na forma como essas políticas foram construídas e estão sendo
implantadas como características de atuação do governo Lula, em especial no que
diz respeito à relação com os movimentos sociais.
As políticas afirmativas serão aqui analisadas como um processo em curso na
sociedade brasileira e não como um projeto a ser executado. Portanto, o intuito
deste texto é dialogar com as questões teóricas e empíricas que o tema
mobiliza, articulando esse processo com questões sociais mais amplas discutidas
no debate sociológico sobre desigualdades raciais e na reflexão sobre políticas
de redistribuição e políticas de reconhecimento.
O texto apresenta três seções. Na primeira, faz-se um breve histórico da
inserção da temática racial na agenda das políticas públicas federais que
antecederam ao governo Lula. Na segunda seção, discutem-se as principais
políticas de recorte racial nas áreas de educação e saúde. Por fim, à guisa de
conclusão, o texto retoma alguns aspectos considerados relevantes para uma
agenda de pesquisa sobre o tema.
A TEMÁTICA RACIAL NA AGENDA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ÂMBITO FEDERAL
As demandas por inserção da temática racial na agenda das políticas públicas de
âmbito federal, bem como respostas pontuais a estas demandas, não são recentes,
embora seja possível captar momentos de inflexão. Estudiosos das questões
sociais e dos movimentos sociais são unânimes em apontar a Constituição de 1988
como um marco importante para as mudanças sociais ocorridas no país. No que se
refere à temática racial, a nova Constituição introduziu a criminalização do
racismo (que posteriormente definiu os crimes resultantes de preconceito de
raça ou de cor com a lei 7716/1989), o reconhecimento ao direito de posse da
terra às comunidades quilombolas e a criação da Fundação Cultural Palmares.
Tais ações podem ser interpretadas como uma resposta às reivindicações do
Movimento Negro e se caracterizam por uma forma de reconhecimento. Ou seja,
garantir aos grupos discriminados o reconhecimento apropriado de seu valor
histórico e cultural2. No entanto, como será visto adiante, a principal
justificativa de tais demandas era a existência de uma expressiva desigualdade
racial no país, de caráter redistributivo, amplamente mapeada em estudos
acadêmicos.
A partir da segunda metade da década de 1990 acelera-se um processo de mudanças
acerca das questões raciais, marcado fortemente por uma aproximação entre o
Movimento Negro e o Estado brasileiro. É a partir deste momento que as
reivindicações por ações mais concretas para o enfrentamento das desigualdades
raciais começam a ser cobradas. Dois acontecimentos um de âmbito nacional e
outro, internacional são destacados consensualmente pelos estudiosos do tema
como momentos importantes desse processo: a Marcha Zumbi de Palmares contra o
Racismo, pela Cidadania e a Vida, em 1995, ano de comemoração do tricentenário
da morte de Zumbi dos Palmares, e a Conferência de Durban, em 2001.
A Marcha de Zumbi foi, em primeiro lugar, uma estratégia do movimento negro
para deslocar o foco das atenções da data da Abolição da Escravatura, 13 de
maio, para o dia 20 de novembro, em razão do Dia Nacional da Consciência Negra.
Em segundo, esse evento contou com uma forte mobilização popular, sendo
estimada a participação de 30 mil pessoas na Marcha, o que propiciou um
destaque incomum à temática racial no cenário público brasileiro. Por fim, este
evento teve a formalização de uma proposta com a entrega do "Programa de
Superação do Racismo e da Desigualdade Racial" ao então presidente Fernando
Henrique Cardoso. O documento apresentava um diagnóstico da desigualdade racial
e da prática do racismo, com ênfase nos temas de educação, saúde e trabalho.
Quanto às reivindicações, elas estavam divididas em tópicos que, além dos três
mencionados, incluía religião, terra, violência, informação e cultura e
comunicação. Segundo o documento,
[...] a temática das desigualdades raciais não configura um problema
dos e para os negros, mas se refere à essência da invenção
democrática.
Reiteramos: a perpetuação das práticas discriminatórias é um grave e
manifesto atentado ao princípio constitucional da igualdade, pedra
angular da democracia. [...].
Trata-se de um esforço que deverá ter como principal escopo tornar a
igualdade formal, a igualdade de todos perante a lei, em igualdade
substancial: igualdade de oportunidades e tratamento3.
Neste dia foi criado, por decreto presidencial, o Grupo de Trabalho
Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI), que representou
uma importante estratégia de aproximação do movimento negro com o Estado. A
finalidade do GTI, composto por membros da sociedade civil ligados ao Movimento
Negro e representantes dos ministérios e secretarias vinculados à presidência
da República, é desenvolver políticas para a valorização da população negra4.
A criação de grupos de trabalho que visam acompanhar a formulação e a
implantação dessas políticas tem sido uma prática recorrente, iniciada na
gestão FHC e preservada na gestão Lula. Em geral, esses grupos agregam
diferentes pastas ministeriais e participantes da sociedade civil, constituindo
um espaço de interlocução. A partir de então ações mais específicas começaram a
ser delineadas, envolvendo alguns ministérios e buscando formas de ampliar o
escopo da questão racial no âmbito governamental.
Em 13 de maio de 1996, foi lançado o Programa Nacional de Direitos Humanos
(PNDH I), outro importante marco nesse contexto. No documento o governo assume
o compromisso de realizar estratégias de combate às desigualdades raciais por
meio de políticas específicas para a população negra. As propostas foram
classificadas segundo prazos de execução (curto, médio e longo). Entre aquelas
consideradas de rápida implantação, constavam apoios a grupos de trabalho e a
criação de conselhos; inclusão do quesito cor em todos e quaisquer sistemas de
informação e registro sobre a população negra e bancos de dados públicos;
estímulo à presença dos grupos étnicos que compõem a população brasileira em
propagandas institucionais do governo federal; apoio às ações da iniciativa
privada que realizem "discriminação positiva". Para as proposições de médio e
longo prazo, destacavam-se a formulação de políticas compensatórias que
promovam social e economicamente a comunidade negra, alteração do conteúdo de
livros didáticos, bem como a ampliação do acesso de entidades da comunidade
negra aos diferentes setores do governo5.
A "Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial e a Xenofobia e
Formas Correlatas de Intolerância", realizada na África do Sul, em 2001, é
considerada o ponto de inflexão da temática racial na agenda governamental. O
Brasil teve uma participação de grande destaque tanto nas reuniões
preparatórias como na própria Conferência. Embora muitos projetos já estivessem
delineados e alguns deles sendo implantados, a posição oficial do Brasil na
Conferência, principalmente em relação às ações afirmativas, trouxe mudanças
significativas. As áreas de saúde, educação e trabalho foram os temas
prioritários nas recomendações do governo brasileiro. Assim, o Brasil ratifica
a Declaração de Durban, que explicita:
Art.108:Reconhecemos a necessidade de se adotarem medidas especiais
ou medidas positivas em favor das vítimas de racismo, discriminação
racial, xenofobia e intolerância correlata com o intuito de promover
sua plena integração na sociedade. As medidas para uma ação efetiva,
inclusive as medidas sociais, devem visar corrigir as condições que
impedem o gozo dos direitos e a introdução de medidas especiais para
incentivar a participação igualitária de todos os grupos raciais,
culturais, lingüísticos e religiosos em todos os setores da
sociedade, colocando todos em igualdade de condições6.
No dia 13 de maio de 2002, apesar de o PNDH I ainda estar com suas metas em
curso, o governo federal lançou o PNDH II. Neste novo Programa, foram
acrescentadas as seguintes metas: apoiar o reconhecimento, por parte do Estado
brasileiro, de que a escravidão e o tráfico transatlântico de escravos
constituíram violações graves e sistemáticas dos direitos humanos, que hoje
seriam considerados crimes contra a humanidade; apoiar o reconhecimento, por
parte do Estado brasileiro, da marginalização econômica, social e política a
que foram submetidos os "afrodescendentes" em decorrência da escravidão;
estudar a viabilidade da criação de fundos de reparação social destinados a
financiar políticas de ação afirmativa e de promoção da igualdade de
oportunidades. Nesta mesma data, por meio de decreto presidencial, o governo
lança o Programa Nacional de Ações Afirmativas sob a coordenação da Secretaria
de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça, mas não institui ações
mais específicas
7
.
Percebe-se o efeito de Durban ainda na gestão do governo Fernando Henrique
Cardoso. Além das iniciativas listadas, neste ano de 2002 o governo federal
apresentou outro conjunto de ações mais específicas com intuito de atender às
demandas da Conferência. Em termos institucionais, foram criados o Conselho
Nacional de Combate à Discriminação, para propor políticas públicas
afirmativas, o Programa Diversidade na Universidade e o Programa Brasil Gênero
e Raça, do Ministério do Trabalho. Além disso, os Ministérios da Justiça, do
Desenvolvimento Agrário e das Relações Exteriores instituíram ações afirmativas
em suas pastas. Embora existisse a perspectiva transversal envolvendo diversos
órgãos governamentais, a temática racial, no governo FHC, encontrava-se
vinculada à agenda da Secretaria dos Direitos Humanos.
Embora seja possível afirmar que no governo Fernando Henrique Cardoso já havia
iniciativas federais voltadas à população negra, a análise dos documentos do
período revela que a estratégia discursiva e a política deste governo foi
promover o reconhecimento sem investimentos no aspecto redistributivo, embora a
desigualdade racial fosse a principal justificativa para as políticas de
valorização da população negra, aliás, expressão fartamente encontrada nos
documentos oficiais deste período. É digno de nota o documento produzido pela
Secretaria de Direitos Humanos, na ocasião do aniversário de dois anos do PNDH
I, sobre os avanços do GTI, intitulado "Construindo a democracia racial"8.
Segundo Jaccoud e Beghin, que analisam a intervenção governamental na temática
racial entre 1995 e 2002, este foi um momento incipiente do debate, cujas metas
eram evidenciar a situação social dos negros por meio da produção de
diagnósticos e implantar políticas valorativas, apresentando, portanto, uma
pauta menos expressiva de políticas afirmativas9. Significava, pois, um momento
de construção de uma base para uma ação política mais efetiva. As ações
afirmativas que ocorreram na gestão FHC forma tímidas e posteriores a Durban. A
análise de Guimarães sobre a questão racial brasileira na década de 1990 aponta
que as reivindicações de caráter valorativo eram prontamente atendidas pelo
Estado brasileiro, uma vez que se encaixam na matriz de nacionalidade, da
valorização de símbolos negros e do sincretismo das três raças fundadoras, ou
seja, sem enfrentar as desigualdades raciais na distribuição de renda e no
acesso aos serviços públicos10. Como será discutido na próxima seção, no
governo Lula, o termo "igualdade racial" passou a ser amplamente utilizado e,
inclusive, institucionalizado com a criação da Secretaria de Promoção da
Igualdade Racial. Essa inflexão discursiva teve efeitos políticos no desenho
das ações governamentais e consolidou-se num cenário econômico e social de
profundas desigualdades sociais.
O GOVERNO LULA E A IGUALDADE RACIAL
O início do governo de Luis Inácio Lula da Silva, em 2003, marca uma mudança
profunda não só na condução das políticas com perspectiva racial, reflexo das
ondas de Durban, mas também na relação do Movimento Negro com o Estado. Até
então, essa relação era de exterioridade, com os atores na condição de
demandantes e com pouca inserção no aparato governamental. No novo governo,
essa relação se transforma, e o movimento negro passa a ser um ator envolvido
na formulação de políticas, ocupando cargos e como representante da sociedade
civil nos espaços de controle social instituídos pelo governo Lula. Como lembra
Guimarães, embora a questão racial nunca tenha tido uma forte adesão por parte
do Partido dos Trabalhadores, o governo Lula representa o cume dessa mudança ao
incorporar em seus quadros representantes dos movimentos negros, dando maior
visibilidade às suas reivindicações, que são fortemente atreladas às ideologias
negras de circulação internacional pan-africanismo, a negritude e o
afrocentrismo , somadas aos elementos tradicionais da identidade afro-
brasileira11.
A criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em
21 de março de 2003, Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial,
transformada em Ministério em fevereiro de 2008, é, sem dúvida, uma inflexão
política e institucional no tratamento da temática racial pelo Estado12.
Segundo a lei que a regulamenta, a principal atribuição da Secretaria é
formulação, coordenação e articulação de políticas e diretrizes para a promoção
da igualdade racial com vistas à consolidação do tema da igualdade racial. O
aspecto mais importante, em termos de atuação institucional, é a articulação
com demais ministérios e suas respectivas secretarias e órgãos do poder
Executivo, bem como parcerias com governos estaduais e municipais, procurando
garantir a transversalidade da questão racial13. Destacam-se também as
parcerias realizadas com a sociedade civil organizada e órgãos internacionais.
Como integrante da estrutura básica desta Secretaria foi criado o Conselho
Nacional de Participação da Igualdade Racial (CNPIR), um órgão colegiado de
caráter consultivo, cuja finalidade é propor, em âmbito nacional, políticas de
promoção da igualdade racial com ênfase na população negra e em outros
segmentos étnicos da população brasileira.
Algumas ações e eventos merecerem destaque por configurarem espaços de
formulação de demandas com apoio do Estado. Entre elas as I e II Conferência
Nacional de Promoção da Igualdade Racial convocadas por decreto e com forte
mobilização da sociedade civil tanto nos eventos como nas reuniões
preparatórias que ocorreram nos estados. As propostas aprovadas nesta
conferência serviram de base para a constituição do Plano Nacional de Promoção
da Igualdade Racial (Planapir), aprovado por Decreto em junho de 2009 e
considerado um documento que oficializa demandas passíveis de serem
contempladas nas ações e programas implantados pelo governo federal. Esse Plano
contém doze eixos de atuação e visa "apoiar", "fomentar", "promover' e
"estimular" ações para grupos específicos (populações negra, indígena,
quilombola e cigana) e segmentos ainda mais específicos dentro desses grupos. O
volume de documentação encontrada no decorrer desta pesquisa sinaliza o esforço
de institucionalizar a questão racial por meio do recurso de programas, leis e
decretos.
A análise das ações e dos programas que serão apresentados ao longo desta seção
procura identificar as formas de intervenção do Estado por meio de seus
objetivos. Numa tentativa de sistematização dessas ações, o primeiro grupo de
políticas pode ser considerado como medidas de caráter repressivo, que se
orientam contra comportamentos e condutas discriminatórias, apoiadas na lei que
define o crime de racismo e conseqüentemente pune sua prática14. O segundo
grupo está relacionado com as demandas por reconhecimento com intuito
valorativo/identitário, cujo objetivo é garantir o reconhecimento de
especificidades e a valorização da cultura negra. O terceiro será chamado de
reconhecimento com intuito redistributivo; políticas que se fundamentam na
existência de desigualdades raciais aplicando critérios de reconhecimento. A
proposta é atuar na correção dos resultados e das oportunidades desiguais para
suprir as carências socioeconômicas dos membros do grupo em questão.
Conforme vimos, o número de programas e ações em execução é extenso e envolve
diversas áreas. Entre elas, destacam-se educação, saúde, mercado de trabalho e
remanescentes de quilombos, esta última voltada para um grupo específico. Dado
o escopo deste texto, optou-se por duas áreas que apresentam mais ações em
curso e que ganharam destaque no debate sobre as políticas de recorte racial.
EDUCAÇÃO
O tema da educação sempre recebeu destaque tanto na atuação da militância negra
como nos estudos acadêmicos sobre desigualdades raciais devido à sua
inquestionável importância na compreensão e no enfrentamento das desigualdades
sociais e raciais no país. Em geral a educação é considerada e analisada como
atributo individual, capital primordial no processo de realização dos
indivíduos. No entanto, a compreensão das desigualdades educacionais deve
tratar a educação não somente dessa perspectiva, mas também como um processo de
aquisição que agrega as políticas educacionais e as características
institucionais no seu modelo analítico. Em linhas gerais, é necessário observar
no sistema educacional brasileiro: i) a estrutura de oportunidades e os efeitos
da universalização e/ou expansão do acesso; ii) sua distribuição e produção de
desigualdades (idade, "raça" e sexo); e iii) sua qualidade, marcada pela
dicotomia sistema público e sistema privado, pelo rendimento dos estudantes
medidos por avaliações, além de taxas de evasão e repetência. As políticas
educacionais brasileiras propiciaram uma universalização tardia e sempre
coadunaram com a perda de qualidade e a expansão do sistema privado. Nos último
quinze anos, os indicadores educacionais têm melhorado para todas as faixas de
ensino, em todos os grupos sociais, embora ainda sejam observadas desigualdades
raciais, principalmente nas séries mais adiantadas.
As principais políticas públicas de âmbito federal com recorte racial na
educação estão organizadas tanto no eixo do reconhecimento identitário como no
redistributivo (Quadro_1). Entre elas, destacam-se a Lei 10.639 (assinada pelo
presidente Lula logo no início de seu mandato, alterando a Lei 9.394/1996,),
que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
"História e Cultura Afro-Brasileira", o Prouni (Programa Universidade Para
Todos) e o apoio às ações afirmativas nas universidades públicas. Em termos de
mudanças institucionais, destaca-se a criação da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), criada em julho de 2004, no
âmbito do Ministério da Educação, responsável pela execução de diversos
programas.
Na análise da documentação sobre lei e sobre a temática da educação em geral,
percebe-se o esforço para implantar ações e programas com ela relacionados,
dada a pressão do movimento negro em efetivá-la nas redes de ensino15.
Acredita-se que sua implementação é, depois das cotas no ensino público, o mote
mais importante do movimento negro por ser considerada um marco normativo
importante em termos de política de diversidade16.
As evidências de que processos discriminatórios operam no sistema de ensino,
dificultando a permanência de crianças negras nos bancos escolares, fundamentam
a justificativa para implementação da lei, que visa enfrentar as visões
estereotipadas e preconceituosas presentes nas salas de aula e nos livros
didáticos, trabalhando a um só tempo aspectos relativos ao cotidiano escolar e
ao conteúdo do ensino. Segundo o parecer que valida a lei,
[...] aos estabelecimentos de ensino está sendo atribuída
responsabilidade de acabar com o modo falso e reduzido de tratar a
contribuição dos africanos escravizados e de seus descendentes para a
construção da nação brasileira; de fiscalizar para que, no seu
interior, os alunos negros deixem de sofrer os primeiros e
continuados atos de racismo de que são vítimas17.
O plano de impletementação considera seis eixos estruturantes: 1)
fortalecimento do marco legal; 2) política de formação para gestores e
profissionais de educação; 3) política de material didático e paradidático; 4)
gestão democrática e mecanismos de participação social; 5) avaliação e
monitoramento; e 6) condições institucionais. Boa parte das políticas de
diversidade encontradas na área de educação está vinculada a essas questões.
A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade tem um papel
importante na consolidação dessa lei e das demais iniciativas federais em torno
da temática racial, o que fica evidente pelo expressivo número de ações ali
desenvolvidas. A principal forma de gestão de projetos são parcerias com
diversos órgãos governamentais e não governamentais e execução de convênios por
meio de editais para o desenvolvimento de projetos elaborados pelas próprias
instituições participantes. Os temas prioritários abrangem educação escolar
indígena, diversidade étnico-racial, de gênero e orientação sexual, com base
nos quais se destaca o apoio da Secretaria aos programas educacionais para
remanescentes de quilombos. Embora a lei não atue exclusivamente nos níveis de
ensino fundamental e médio, observa-se um investimento prioritário nessas
categorias, com políticas de reconhecimento de caráter antidiscriminatório e
valorativo. O conteúdo de livros didáticos e a qualificação dos professores
como apoio à implantação da lei ganham relevo entre as atividades administradas
por esta Secretaria, em parceria com a Seppir.
O tema da educação superior é o que mais mobiliza o debate público sobre ações
afirmativas, gerando extensa produção acadêmica não somente sobre o princípio
das ações afirmativas, mas também sobre os processos de implementação das
políticas de cotas nas instituições públicas de ensino superior e análises
sobre os estudantes cotistas. A forte reação à política de cotas, no entanto,
não teve a mesma repercussão quando o governo implementou um programa de ações
afirmativas no sistema privado, responsável por cerca de 80% das matrículas no
ensino superior brasileiro. O que está em jogo, portanto, não é apenas o uso do
critério racial, mas o tipo de recurso mobilizado e o público afetado por essas
políticas.
O Prouni é, sem dúvida, em termos redistributivos, a política afirmativa de
maior impacto. Segundo informações do MEC, "o ProUni já atendeu, desde sua
criação até o processo seletivo do segundo semestre de 2009, cerca de 600 mil
estudantes, sendo 70% com bolsas integrais". O programa tem como finalidade a
concessão de bolsas de estudos integrais e parciais a estudantes de baixa renda
em cursos de graduação e seqüenciais de formação específica de instituições
privadas de educação superior. Ele apresenta uma política de cotas para os que
se autodeclaram pretos, pardos ou índios e optam por ser beneficiários deste
sistema no ato de inscrição. As instituições de ensino superior participantes
do Prouni devem destinar um percentual de bolsas aos cotistas com base no
número de cidadãos pretos, pardos e índios, por unidade da federação, segundo o
último censo do IBGE, devendo o beneficiário se enquadrar nos demais critérios
de seleção do programa, a saber, renda familiar per capita de três salários
mínimos, ter realizado o ensino médio em escola pública e ter realizado a prova
do Enem. As críticas ao programa não recaem sobre a existência de critérios
raciais, e sim por ser considerado uma política que investe e transfere
recursos (via isenção de impostos) ao setor privado da educação, cuja qualidade
de ensino, em geral, é baixa18.
Outro programa que passou a adotar o critério racial foi o Fies (Programa de
Financiamento Estudantil), cuja existência é anterior ao atual governo. Inclui
o quesito cor/raça na composição do índice de classificação, aumentando as
chances de os solicitantes negros conseguirem o financiamento. Da mesma forma
que no Prouni, o foco incide sobre a população de baixa renda e o critério
racial é aplicado após a elegibilidade do beneficiário pelo critério social.
O acesso ao ensino superior público é o tema que recebe mais destaque na mídia
e vem sendo objeto de debates polêmicos. Entretanto, não há lei federal em
vigência que imponha o programa de inclusão nas instituições públicas, mas sim
um apoio explícito do governo às ações afirmativas, inclusive com programas de
bolsas e recursos para universidades que os implementam e apoio a projetos de
lei que procuram regulamentá-los. O Projeto de Lei 73/99, que institui as cotas
nas instituições públicas de ensino técnico e superior curiosamente de
autoria da deputada Nice Lobão do partido Democratas/MA, o qual entrou com uma
representação contra as políticas de cotas nas universidades públicas19
encontra-se em tramitação. Ele foi aprovado no dia 20 de novembro de 2008 na
Câmara dos Deputados, mas retornou ao Senado em virtude das mudanças inseridas
durante as negociações no plenário da Câmara (composição com critérios de
renda), permitindo a aprovação do projeto por acordo, em votação simbólica (sem
registro individual do voto de cada parlamentar). Atualmente, o projeto está na
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado.
Não será feito aqui um aprofundamento deste debate, mas vale lembrar que as
principais polêmicas sobre essa questão envolvem tanto o seu princípio
(instituir políticas com recorte racial) como seu processo de execução
(violação da autonomia universitária, obrigatoriedade versus incentivos, uso do
sistema de cotas versus outras modalidades de inclusão). Não obstante, 91
instituições públicas de ensino superior já adotam alguma das modalidade de
políticas afirmativas para ingresso nos cursos de graduação, tendo como
beneficiários estudantes negros e/ou oriundos de escolas públicas. Considerando
a polêmica que envolve o debate, a inexistência de obrigatoriedade legal e o
fato de ter sido em 2001 a primeira vez que uma universidade adotou essa
política, houve, em especial nos três últimos anos, um crescimento
significativo desse processo.
As políticas de ações afirmativas, como as demais políticas encontradas na
documentação analisada, tomam como base para sua implementação a extrema
desigualdade racial brasileira no acesso ao ensino superior. Os argumentos
favoráveis concentram-se nesse sentido, , afirmando a necessidade de um
enfrentamento direto da sociedade brasileira a esse respeito, o que implica o
reconhecimento de que o Brasil é um país racialmente desigual e que tal
situação é fruto de discriminação e preconceito, e não de uma situação de
classe social. A principal oposição refere-se à incapacidade dessas ações de
atuar na estrutura de oportunidades, pois mesmo em momentos de expansão do
ensino as distâncias interraciais foram mantidas, ou seja, há nichos
impermeáveis às práticas universalistas e que precisam ser amparados com
políticas compensatórias20.
Na academia, sobretudo nas universidades públicas, as críticas à política de
cotas têm como fundamento principal o pressuposto de que instituí-las seria
assumir a existência de "raças" distintas. A única maneira de enfrentar o
racismo, segundo os analistas, seria minar a crença não só na idéia de "raça"
como algo natural, mas também na idéia de hierarquia entre as "raças".
Portanto, a racialização como antídoto para o racismo não seria a melhor saída
para uma sociedade como a nossa21. Uma das sugestões de combate às
desigualdades raciais no acesso à educação sem a implantação das cotas é o
investimento maciço nas escolas do ensino médio, o que garantiria aos alunos de
escolas públicas melhores condições de competição para inserção na
universidade. Prova disso é o fato de que, nos últimos quinze anos, elementos
demográficos e políticas públicas melhoraram o fluxo de estudantes no sistema
de ensino, diminuindo as desigualdades de acesso e aumentando o número de
formandos do ensino fundamental22. Ainda contrariamente à política de cotas,
argumenta-se que a produção de uma igualdade de resultados não é a forma mais
eficaz de enfrentar as desigualdades. Políticas afirmativas de acesso ao ensino
superior incidem sobre uma das conseqüências da discriminação racial e da
desigualdade educacional, isto é, o acesso a universidade, sem que estas, em si
mesmas, sejam corrigidas23.
As políticas educacionais com recorte racial foram reivindicadas e são
justificadas como toda a agenda deste governo como políticas de igualdade
racial, mas com forte ênfase no reconhecimento. Nesse sentido, há um esforço
maior na busca por reconhecimento identitário do por reconhecimento de status.
O ensino de história e cultura afro-brasileira e africana corrigiria o que
Fraser chama de "negação do status de um determinado grupo como parceiros
plenos na interação social"24. Mas na implantação dessa política, especialmente
em seu conteúdo didático e de formação de professores, como, por exemplo, se
abordaria a noção de diversidade? Seria preciso definir as distinções
necessárias para superar a falta de reconhecimento e estabelecer os parâmetros
de atendimento do Estado em relação às demandas por reconhecimento.
SAÚDE
O debate sobre políticas de saúde para a população negra começa a ser
consolidado a partir dos anos de 1980, sob forte atuação do movimento
feminista, com as discussões acerca das especificidades raciais no âmbito da
saúde, em geral, e da saúde reprodutiva, em particular. Se nos estudos
acadêmicos, com autores pioneiros como Elza Berquó, Carlos Hasenbalg e Nelson
do Valle Silva, houve avanços nesse sentido, no campo do ativismo foram as
mulheres negras as responsáveis pela inserção dessa temática no programa da
militância negra. A construção de uma agenda de direitos em saúde pelas
mulheres negras contribuiu para o desenvolvimento de argumentos em defesa de
ações específicas. Também foram relevantes na consolidação desse processo a V
Conferência Mundial de População e Desenvolvimento (Cairo, 1994) e a IV
Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995).
Os principais argumentos e justificativas para a consolidação de políticas e
ações no âmbito da saúde para a população negra baseiam-se em três perspectivas
que caracterizam momentos distintos.
Em primeiro lugar, essas demandas tratam da vulnerabilidade socioeconômica
associada à vulnerabilidade de negros e mulheres e, conseqüentemente, de
mulheres negras. Apesar da proposta universalista que rege o Sistema Único de
Saúde, notava-se uma reprodução, na área da saúde, do racismo que estrutura a
sociedade brasileira. O grande desafio para alargar e adensar a percepção das
desigualdades nessa área foi a produção e o acesso a dados acerca da situação
da saúde dos negros, em particular da mulher negra. Portanto, era preciso
disponibilizar os dados existentes desagregados por cor e introduzir esse
quesito nos principais formulários de saúde pública, particularmente naqueles
referentes à mortalidade e à morbidade.
Em segundo lugar, as demandas apontam doenças que afetam mais a população negra
tanto pela existência, de fato, de doenças consideradas "geneticamente
determinadas", como pelas condições socioeconômicas desfavoráveis e
dificuldades de acesso à saúde. Nesse quadro, são elencados: desnutrição, morte
violenta, mortalidade infantil elevada, abortos sépticos, anemia ferropriva,
DST/Aids, doenças do trabalho, transtornos mentais resultantes da exposição ao
"racismo" e, ainda, transtornos derivados do alcoolismo e da toxicomania. A
Aids, particularmente no campo da prevenção, aparece nesse contexto porque a
epidemia se alastrou entre as mulheres em geral e nas camadas menos favorecidas
da população, afetando, portanto, as mulheres negras. Por outro lado, as
análises sobre o papel subordinado da mulher ganharam visibilidade, sobretudo
no que se refere ao controle do corpo e à tomada de consciência no uso de
preservativos principalmente entre jovens negras, conforme apontou a pesquisa
"Comportamento sexual da população brasileira e percepções do HIV/Aids"25.
O amadurecimento desta perspectiva foi bastante polêmico, sobretudo entre
atores dos campos da saúde e do meio acadêmico. Criticava-se a tendência de
desconstruir a idéia de grupo de risco e de vulnerabilidade, e por conta disso
a questão foi recolocada em pauta26.
O terceiro momento concentrou-se no enfrentamento do "racismo institucional",
conceito que vem sendo utilizado em diversos países, como nos Estados Unidos
(desde a década de 1960) e na Inglaterra (a partir dos anos de 1980). São
considerados racismo institucional ou discriminação indireta os mecanismos
discriminatórios que operam nas instituições sociais, dissimulados por meio de
procedimentos corriqueiros instaurados no cotidiano organizacional e
irredutíveis à prática individual27. Percebe-se um deslocamento da ênfase na
especificidade da população negra para determinados conjuntos de doenças e sua
maior vulnerabilidade à Aids, para uma ênfase nas questões relativas à
discriminação no acesso à saúde e no atendimento. Os programas e as ações
passaram a priorizar o treinamento dos agentes de saúde para lidar com os
programas específicos que vão sendo criados.
Foram mobilizadas diversas instâncias para a criação de um amplo quadro de
políticas fortemente articuladas, envolvendo o Ministério da Saúde, a Seppir e
organizações internacionais (Quadro_2). Entre as mais recentes destacam-se o
desenvolvimento, em 2003, da Política Nacional de Saúde da População Negra
(Seppir/Ministério da Saúde), a constituição do Comitê Técnico de Saúde da
População Negra, em 2004, e do Programa de Combate ao Racismo Institucional
(PCRI), em 2005. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra,
lançada pela Seppir, em 2007, é uma síntese deste processo:
Seu propósito é garantir maior grau de eqüidade no que tange à
efetivação do direito humano à saúde, em seus aspectos de promoção,
prevenção, atenção, tratamento e recuperação de doenças e agravos
transmissíveis e não-transmissíveis, incluindo aqueles de maior
prevalência nesse segmento populacional. Ela se insere na dinâmica do
SUS, por meio de estratégias de gestão solidária e participativa, que
incluem: utilização do quesito cor na produção de informações
epidemiológicas para a definição de prioridades e tomada de decisão;
ampliação e fortalecimento do controle social; desenvolvimento de
ações e estratégias de identificação, abordagem, combate e prevenção
do racismo institucional no ambiente de trabalho, nos processos de
formação e educação permanente de profissionais; implementação de
ações afirmativas para alcançar a eqüidade em saúde e promover a
igualdade racial28.
Para além dos argumentos de ordem política que discutem a adoção da noção de
raça na formulação de políticas públicas, as críticas à formulação de políticas
afirmativas para a população negra na área de saúde apresentam também
argumentos de ordem técnica: 1) impossibilidade de vínculos entre população
negra e doenças específicas (como anemia falciforme), dadas as características
da população brasileira em termos de miscigenação; 2) junção das categorias
"preto" e "pardo" para análise de indicadores vitais, pois eles não são
convergentes como em outros aspectos sociais; 3) estigmatização produzida
quando se vincula determinadas doenças à raça29.
Da mesma forma que ocorreu na educação, os argumentos que fundamentam as
políticas de saúde visam à promoção da igualdade racial mediante o
enfrentamento do principal mote dessas políticas depois da promulgação da
Constituição de 1988: a universalização. Desde os anos de 1980, a temática da
especificidade deixa de ser o principal ponto discursivo da agenda política na
área de saúde pública, que passa a se concentrar cada vez mais nos efeitos da
desigualdade racial no cotidiano do atendimento, o que configura uma política
de reconhecimento com efeitos distributivos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O DEBATE INTELECTUAL SOBRE POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS
A herança rural, a manutenção de privilégios de classe, o pouco investimento e/
ou o investimento tardio na educação, bem como o desigual acesso à estrutura de
oportunidades, constituíram o cenário de extrema desigualdade que caracterizou
por décadas a sociedade brasileira. Nos últimos quinze anos, tornou-se
necessário discutir de forma mais efetiva a implantação de políticas sociais
com vistas a minimizar um quadro considerado inaceitável para um país como o
Brasil. Da mesma forma, o cenário em que as políticas afirmativas foram
consolidadas é fruto de profundas e permanentes desigualdades raciais. O Estado
brasileiro não se ateve ao problema de promoção de acesso da população negra à
estrutura de oportunidades, bens e serviços no país, até mesmo no momento em
que ganhou corpo o debate sobre as desigualdades raciais e os processos
discriminatórios da sociedade brasileira, tanto pela militância como pela
academia.
Nessas considerações finais, serão recuperadas algumas questões apresentadas ao
longo do texto, com o objetivo de pensar os desdobramentos analíticos que as
recentes transformações aqui apresentadas suscitam numa agenda de pesquisa
sobre relações raciais e desigualdades raciais no Brasil. Tais considerações
estão organizadas em dois diferentes campos analíticos: o debate sobre os
efeitos das políticas nas questões relativas à igualdade, à diferença, à
redistribuição e ao reconhecimento, e o debate sociológico sobre raça e classe
na sociedade brasileira.
O debate sobre ações afirmativas permite diversas conexões entre filosofia
política, teoria crítica e teoria social. Acredita-se que a questão da
igualdade seja a principal delas. Como aponta Nancy Fraser, embora a
perspectiva distributiva tenha prevalecido, pelo menos, nos últimos 150 anos,
ela tem sido substituída por uma perspectiva do reconhecimento. É o que Fraser
denomina risco da substituição30. Mas o que levou a esse cenário? Por que o
projeto universalista moderno de garantia formal da igualdade não se realizou a
contento? Acredita-se que a produção da desigualdade baseada na diferença foi o
esteio do fortalecimento das políticas de reconhecimento.
Esse processo corresponde a uma transformação da noção de cidadania, analisada
por Lavalle, em que os binômios igualdade/desigualdade e igualdade/diferença
ganharam complexidade, o que tem produzido fortes embates analíticos e
políticos. Segundo o autor,
[...] a relação entre igualdade e diferença torna-se um tema
espinhoso na medida em que impregna e ao mesmo tempo transborda a
questão da cidadania. Segundo ele, o potencial integrador da
igualdade opera como idéia extraordinariamente potente para
equacionar em registros distintos tanto a questão da desigualdade
quanto a questão da diferença: a primeira concebida no plano das
disparidades socioeconômicas, das condições a perpetuarem o acesso
desigual aos recursos materiais; a segunda entendida no terreno da
atribuição do status da cidadania, da delimitação do conjunto de
iguais que formam a comunidade política, isto é, da identidade31.
Como afirmar a diferença garantindo a igualdade? Como afirmar a igualdade sem
negar a diferença? A questão-chave aqui diz respeito à necessidade de se
definir espaços avaliativos específicos quando se fala em igualdade, nos termos
de Amartya Sen. Da mesma forma que é importante identificar quais diferenças
são realmente válidas e necessárias para tratarmos das questões de
reconhecimento.
Gênero e "raça" são apontados por Nancy Fraser como paradigmas de coletividades
bivalentes, pois abarcam dimensões econômicas e dimensões cultural-valorativas,
implicando redistribuição e reconhecimento. Embora a autora desenvolva a tese
da conciliação entre redistribuição e reconhecimento, ela é enfática na sua
preocupação em garantir que a pauta da redistribuição não seja abandonada,
sendo necessário encontrar um quadro conceitual adequado às demandas atuais.
O reconhecimento, de acordo com a autora, é uma questão de status social. O não
reconhecimento significa subordinação socialno sentido de ser privado de
participar como igualna vida social. Reparar a injustiça certamente requer uma
política de reconhecimento, mas não significa mais uma política de identidade.
No modelo de status, ao contrário, significa uma política que visa a superar a
subordinação, fazendo do sujeito falsamente reconhecido um membro integral da
sociedade, capaz de participar efetivamente como igual32.
No que diz respeito ao debate sociológico das desigualdades, há duas questões
complementares. As mudanças ocorridas na sociedade brasileira não estão
descoladas de um debate que se dá também em outros contextos nacionais.
Portanto, a discussão sobre desigualdades em geral e desigualdades entre
grupos, em particular, está em consonância com uma ampla literatura
internacional que enfatiza cada vez mais os atributos adscritos dos indivíduos
(sexo e "raça") como mecanismos produtores de desigualdades em diferentes
contextos. Por outro lado, é imprescindível abordar a especificidade das
relações raciais e da estrutura das desigualdades brasileiras. Segundo
Guimarães, analisá-la é "teorizar a simultaneidade de dois fatos aparentemente
contraditórios e amplamente tratados na literatura: a reprodução ampliada das
desigualdades raciais no Brasil coexiste com a suavização crescente das
atitudes e dos comportamentos racistas33. Tendo em mente essa questão, é
preciso analisar quais os efeitos das políticas afirmativas nas desigualdades e
nas relações raciais? A experiência e os efeitos na vida dos beneficiários
dessas políticas constituem um campo de investigação incipiente, porém
importante.
O estatuto teórico da relação entre discriminação racial e desigualdades
sociais é um aspecto analítico igualmente importante. A produção de Carlos
Hasenbalg e Nelson do Valle com forte aceitação e reverberação acadêmica e
política demonstrou que preconceito e discriminação raciais estão intimamente
associados à competição por posições na estrutura social, refletindo-se em
diferenças entre os grupos de cor na apropriação de posições na hierarquia
social34. Este enfoque diz respeito às desigualdades entre grupos sociais,
chamadas por Charles Tilly de desigualdades categóricas, que são evidenciadas
por mecanismos resultantes de processos sociais e interacionais35. As pesquisas
recentes têm utilizado sofisticados modelos estatísticos e corroboram parte do
argumento principal dos estudos de Hasenbalg e Valle. Apontam para a existência
de uma forte rigidez na estrutura de classes no Brasil independentemente da
variável raça/cor. Mas demonstram também que essa variável ganha importância
analítica nas chances de mobilidade, na tentativa de manutenção de status e nas
disputas por posições ocupacionais de maior status entre os mais
escolarizados36. Entretanto, alguns autores são mais cautelosos e apontam para
a limitação dos modelos estatísticos que relacionem discriminação e
desigualdade. A confluência desses modelos com pesquisas qualitativas e a
discussão de formas de mensuração da discriminação são campos de investigação
promissores para entender as desigualdades raciais brasileiras.
O Brasil passou por transformações importantes que, de certa forma, têm
reformulado as agendas tanto dos estudos sobre as desigualdades em geral como
das desigualdades raciais em particular. Tais transformações estão associadas a
mudanças de caráter estrutural, assim como às formas de enfrentamento das
desigualdades via políticas de inclusão social.
Em relação às políticas com vistas à diminuição das desigualdades raciais, há
que se investigar em que medida políticas sociais mais amplas têm contribuído
para seu enfrentamento, ou seja, verificar qual a aderência das políticas
voltadas para as populações socialmente desfavorecidas à diminuição da
desigualdade racial. É o caso, por exemplo, das políticas de transferência de
renda, que não incluem variáveis como raça ou sexo, , mas têm como principais
beneficiários os segmentos por elas representados. É importante ressaltar ainda
que as políticas afirmativas que não sejam de caráter valorativo devem garantir
efeitos redistributivos. Nesse sentido, o recorte racial em situações de
extrema pobreza assim como a utilização de um critério unicamente racial nas
políticas de acesso ao ensino superior podem produzir um reconhecimento não
redistributivo, comprometendo o princípio de promoção da igualdade.
MÁRCIA LIMA, professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São
Paulo e pesquisadora associada ao Centro de Estudos da Metrópole do Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (CEM-Cebrap).
[*] Este texto é parte de uma versão reduzida de uma consultoria realizada para
a Fundação Ford (RJ), a quem agradeço o apoio recebido. A pesquisa contou com a
assistência de Thaís Rabello, Maurício M. da Silva e Graziella Castelo. A
versão final do artigo contou com a colaboração de Flavia Mateus Rios para
atualização de informações.
[1] A pesquisa em que se baseia este artigo envolveu também as áreas de mercado
de trabalho e remanescentes de quilombos, mas não foi possível incluí-las
devido ao escopo restrito do artigo.
[2] Tomo como referência o debate desenvolvido por Nancy Fraser, que diferencia
reconhecimento de identidade e reconhecimento de status. Ao longo do texto
veremos que, no caso brasileiro, as políticas oscilam entre esses dois modelos.
Fraser, Nancy. "Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa
era pós-socialista". Cadernos de Campo, 2006, nº 14-15.
[3] "Programa de Superação do Rascimo e da Desigualdade Racial", p. 15.
Disponível em <http://www.leliagonzalez.org.br/material/
Marcha_Zumbi_1995_divulgacaoUNEGRO-RS.pdf>
[4] Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/DNN/
Anterior%20a%202000/1995/Dnn3531.htm> .
[5] Disponível em <http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh/pndh1.pdf> .
[6] Disponível em <http://www.inesc.org.br/biblioteca/legislacao/
Declaracao_Durban.pdf> .
[7] Disponível em <http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh/pndhII/
Texto%20Integral%20PNDH%20II.pdf> .
[8] Disponível em <http://www.planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/RACIAL2.HTM> .
[9] Jaccoud, Luciana e Beghin, Nathalie. "Desigualdades raciais no Brasil: um
balanço da intervenção governamental". Brasília: Ipea, 2002
[10] Guimarães, Antônio Sérgio. "A questão racial na política brasileira: os
últimos quinze anos". Revista Tempo Social, 2001, vol. 13, nº 2, pp. 121-142.
[11] Ibidem, "Contexto histórico-ideológico do desenvolvimento das ações
afirmativas no Brasil". Seminário Internacional "Ações afirmativas nas
políticas educacionais brasileiras: o contexto pós-Durban". Brasília:
Ministério da Educação/Câmara Federal, set., 2005, p. 6.
[12] A Medida Provisória de 20/2/ 2008 transformou o cargo de Secretário
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial em Ministro de Estado
Chefe da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
[13] É importante frisar que o foco desta análise são as políticas implantadas
pelo governo federal. Houve algumas experiências anteriores de inserção e
institucionalização da questão racial em agendas públicas estaduais e
municipais. No estado de São Paulo, o governador Franco Montoro criou o
Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra em 1984, que
levou a iniciativa a outros estados. No Rio de Janeiro, Leonel Brizola, em
1991, criou a Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações
Afro-Brasileiras, inicialmente dirigida por Abdias do Nascimento. Para essa
discussão, ver Santos, Ivair Augusto. O movimento negro e o Estado (1983-1987):
o caso do Conselho de Participação da Comunidade Negra no governo de São Paulo.
São Paulo, Imprensa Oficial da Cidade de São Paulo, 2008;
Motta, Athayde e Santos, Regina. "Políticas públicas e a questão racial: a
experiência do Seafro no RJ". Cadernos de Pesquisa, nº 7;
ibidem, "Políticas públicas e inclusão social: a visão das organizações não
governamentais". São Paulo, Cebrap, maio 1997.
[14] Esse primeiro grupo de ações tem sido mais utilizado nas ações que
envolvem a questão da discriminação no mercado de trabalho. Para essa
discussão, ver Jaccoud, Luciana e outros. "Entre o racismo e a desigualdade: da
Constituição à promoção de uma política de igualdade racial (1988-2008)".
Políticas sociais: acompanhamento e análise, 17. Vinte anos da Constituição
Federal. Brasília: Ipea, vol 3, cap. 5, pp. 261-328.
[15] Os documentos analisados foram a Lei 10.639, o Plano Nacional de
Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Etnicorraciais e para Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e
Africana e o parecer da lei que teve como relatora a pesquisadora Petronilha
Beatriz Gonçalves e Silva.
[16] Moehlecke, Sabrina. "As políticas de diversidade na educação no governo
Lula". Cadernos de Pesquisa, 2009, vol. 39, nº 137, pp. 461-487.
[17] Parecer da Lei 10.639, p. 9.
[18] Catani, Afrânio, Hey, Ana Paula. e Gilioli, Renato. "Prouni:
democratização do acesso às Instituições de Ensino Superior? Educar, 2006. n.
28, pp. 125-140; Carvalho, Cristina. "O Prouni no Governo
Lula e o jogo político em torno do acesso ao ensino superior". Educação e
Sociedade, 2006, vol. 27, nº 96, pp. 979-1000.
[19] Conferir artigo de Luis Felipe de Alencastro neste número de Novos Estudos
Cebrap, pp. 5-11.
[20] Guimarães, "Acesso de negros às universidades públicas". Cadernos de
Pesquisa, 2003, nº 118, pp. 247-268.
[21] Fry, Peter. "A persistência da raça": ensaios antropológicos sobre o
Brasil e a. África austral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
[22] Fry, Peter e Maggie, Yvonne. "Cotas raciais: construindo um país
dividido?"Econômica, 2004, vol. 6, nº 1, pp. 153-161.
[23] Durham, Eunice. "Desigualdade educacional e quotas para negros nas
universidades". Novos Estudos Cebrap, 2003, nº 66, pp. 3-22.
[24] Fraser, "Rethinking recognition". New Left Review, 2000, nº 3, pp. 107-20,
p. 113.
[25] Pinho, Maria Dirce e outros. "Juventudes, raça e vulnerabilidade". Revista
Brasileira de Estudos Populacionais, 2002, vol. 19, nº 2, pp. 277-94.
[26] Fry e outros. "Aids tem cor ou raça? Interpretação de dados e formulação
de políticas de saúde no Brasil". Cadernos de Saúde Pública, 2007, vol.23, pp.
497-507.
[27] Jaccoud, Luciana. "O combate ao racismo e à desigualdade: o desafio das
políticas públicas de promoção da igualdade racial". In: Theodoro, Mario
(org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após
a abolição. Brasília, Ipea, 2008, pp.131-75.
[28] Seppir/Ministério da Saúde. "Política nacional de saúde integral da
população negra. Brasília: Seppir, 2009. p. 14.
[29] Maio, Marcos e Monteiro, Simone. "Tempos de racialização: o caso da 'saúde
da população negra' no Brasil". História, Ciências e Saúde- Manguinhos, 2005,
vol. 12, nº 2, maio-agosto; Fry e outros, "AIDS tem cor ou
raça?, op. cit.
[30] Fraser, "A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento
e participação". Revista Crítica de Ciências Sociais, 2002, nº 63, pp. 7-20.
[31] Lavalle, Adrian. "Cidadania, igualdade e diferença". Lua Nova, 2003, nº
59, pp. 75-93, p. 87.
[32] Fraser, "Redistribuição ou reconhecimento? Classe e status na sociedade
contemporânea". Interseções Revista de Estudos Interdisciplinares, 2002, ano
4, nº 1, pp. 7-32.
[33] Guimarães, "Preconceito de cor e racismo no Brasil". Revista de
Antropologia, 2004, vol. 47, nº 1, pp. 9-44, p. 33.
[34] A produção desses autores sobre a temática das desigualdades raciais é
extensa. Destacam-se Hasenbalg, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais
no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da UFMG/Iuperj, 2005;
Hasenbalg, Carlos A. e Silva, Nelson V. Estrutura social, mobilidade e raça.São
Paulo/Rio de Janeiro: Vértice/Iuperj, 1988.
[35] Tilly, Charles. La desigualdad persistente. Buenos Aires: Manancial, 2006.
[36] Ribeiro, Carlos A. C. Desigualdades de oportunidades no Brasil. Belo
Horizonte: Argumentum, 2009; Osório, Rafael. "A mobilidade
social dos negros brasileiros". Textos para Discussão, nº 1033, Brasília, Ipea, 2004.