Imagens do poder: arquiteturas do espetáculo integrado na olimpíada de Pequim
Nos anos recentes, a noção de espetáculo - amplamente compreendido como um modo
de distração paliativo e uma tecnologia teatral que camufla, justifica e
legitima o poder1 - tornou-se ubíqua nos estudos críticos como codinome para a
geração de poder. Ainda que alguns autores tenham deplorado abusos no emprego
do termo como uma metáfora-mestra para todas as formas de manipulação,
alienação e controle social opressivo e como uma crítica taquigráfica aos males
sociais e morais da sociedade contemporânea2, creio que continua sendo um
potente instrumento conceitual para analisar estruturas de poder e para revelar
como elas cooptam a paisagem material a fim de construir, consolidar e
reproduzir sua hegemonia.
Neste artigo, reexamino a noção de espetáculo para investigar como essa técnica
de gestão pode perpassar diferentes culturas políticas. Ao aplicar esse
conceito ao caso da China pós-socialista, busco demonstrar a coexistência de
Estado e mercado na forma do espetáculo como uma maneira de regular a
sociedade. Mais especificamente, utilizo a teoria do espetáculo como uma lente
para interpretar a proliferação de megaprojetos arquitetônicos na paisagem
contemporânea, particularmente no caso da Pequim olímpica.
Ao longo da última década, Pequim embarcou numa das maiores campanhas de
construção que o mundo já viu, substituindo no decorrer de uns poucos anos
grandes porções de bairros centenários por uma série de ícones arquitetônicos
espetaculares. A imagem neo-olímpica de Pequim corporifica a recente
reconfiguração do Estado chinês, marcada pela integração do poder político e
econômico e pela ascendente soberania dos atores econômicos. Apoiando-se numa
revisão do papel histórico do espetáculo na construção, na consolidação e na
reprodução do poder, este artigo examina algumas das questões em pauta na atual
espetacularização do ambiente construído, investigando como a nova imagem de
Pequim opera e foi recebida localmente. Essa investigação me permite expandir a
teoria do espetáculo ao propor que o espetáculo, especialmente no contexto dos
megaeventos globais, também pode ter um aspecto produtivo ao pressionar seus
produtores a se abrirem ao público e ao suscitar diversas formas de
resistência, contestação e mudança.
FORMAS HISTÓRICAS DO ESPETÁCULO
Ao longo da história, o espetáculo serviu como arma crucial na luta pela
manutenção do poder, cumprindo um papel significativo na constituição de
impérios e Estados-nação. Os detentores de poder, tanto político como
religioso, se valeram de eventos espetaculares para legitimar seu domínio,
apropriando-se do entretenimento, da arte e da festividade para distrair,
apaziguar e controlar as massas. Desde o proverbial panem et circenses da Roma
imperial até os comícios de Nuremberg da Alemanha nazista, a montagem de
espetáculos para mobilização das massas serviu aos interesses da elite
governante e ajudou a assegurar sua tomada do poder.
Uma das principais funções do espetáculo é maximizar a visibilidade do Estado
na paisagem. Na qualidade de uma entidade imaginária, intangível, o Estado
depende de corporificações físicas e marcos materiais permanentes para tornar
sua existência manifesta3. Como a mais visível expressão dos valores culturais
e cívicos e como o elemento central na construção do espaço urbano, a
arquitetura desempenha um papel fundamental ao reforçar a abrangente presença
do Estado na vida cotidiana. Os espaços monumentais e a arquitetura espetacular
atuam como mecanismos comunicativos a serviço de ideologias do Estado e moldam
a experiência humana por meio da manipulação de objetos e símbolos. Mais do que
mero palco e pano de fundo para rituais e protocolos rebuscados e outras
coreografias do Estado, a arquitetura espetacular vem a ser um componente da
máquina do poder, espelhando, complementando e enaltecendo outras formas do
espetáculo.
Em todas as épocas, tanto líderes de regimes autocráticos como governos
democraticamente eleitos usaram a paisagem urbana como instrumento de política
de Estado e como meio de seduzir seus seguidores e intimidar seus opositores.
Na China imperial, novos governantes dinásticos reconstruíam suas capitais para
efetivamente apagar os traços de seus predecessores, lançando mão de espaços
simbolicamente carregados e arquitetura codificada para representar o início de
um novo mandato celestial. De modo similar, o urbanismo monumental serviu de
propaganda para regimes autocráticos desde Napoleão III até Stalin e Mao, que
se apoiaram em profusas exibições de teatralidade e excessos para enlevar e
engajar emocionalmente seus seguidores e para legitimar suas posições como a
força dominante na sociedade. Em anos mais recentes, governantes capitalistas
de um lado ao outro do espectro político, de François Mitterrand a Tony Blair e
Hu Jintao, redescobriram o poder da arquitetura espetacular, não só para
imortalizar sua liderança, mas também para garantir uma posição na economia
mundial.
O espetáculo também foi explorado em apoio ao poder econômico, especialmente a
partir da ascensão do espetáculo da mercadoria. Walter Benjamin mostra como as
exposições universais de meados do século XIX, que atraíam peregrinos para o
fetiche da mercadoria, ajudaram a fazer da própria mercadoria um espetáculo e a
transformar cidadãos em espectadores e consumidores4. A fantasmagoria do
espetáculo da mercadoria se tornou um estratagema mediante o qual o capitalismo
podia assegurar sua própria sobrevivência, utilizando o consumo conspícuo e as
falsas promessas da publicidade, as vitrines e a abundância de mercadorias para
despolitizar as massas e atribuir-lhes um papel passivo nos assuntos públicos.
Desse modo, uma das principais funções do espetáculo da mercadoria consistiu em
distrair a atenção popular do debate público, com o intuito de intensificar o
controle social, gerar consenso e promover o consumo.
Mais recentemente, a espetacularização da paisagem urbana vem sendo adotada por
cidades em busca de novos meios de impulsionar o crescimento econômico, na
medida em que elas ingressam na competição global por visitantes e por capital.
O espetáculo passou a ser considerado essencial para a sobrevivência das
cidades do século XXI, haja vista que agentes de planejamento e marketing
urbano se valem de imagens arquitetônicas espetaculares, do patrimônio
histórico local e de iconografias urbanas sedutoras como elementos-chave de
geração de capital simbólico, contribuindo assim para a comercialização e a
divulgação publicitária de suas cidades5.
O espetáculo é tão essencial para a nova economia urbana que um dos meios mais
eficazes para intensificar a imagem mundial de uma cidade é sediar eventos
globais, tais como mostras, conferências e grandes competições esportivas
internacionais. Ser palco de eventos espetaculares de alta categoria não só
aumenta a visibilidade global ao promover a imagem da cidade como um lugar
vital e dinâmico, mas também contribui para legitimar transformações em grande
escala, permitindo aos governos locais alterar prioridades na agenda urbana sem
o escrutínio público a que normalmente estão sujeitos6.
Em sua luta pela sobrevivência econômica, as cidades vêm explorando o
emblemático poder da arquitetura de transformar sua imagem mundial. Motivadas
por aquilo que passou a ser conhecido como "efeito Bilbao"7, cidades do mundo
inteiro embarcaram em uma competição por proeminência global construindo
edifícios que fossem os mais altos, os mais ousados e com tecnologia mais
avançada. A arquitetura espetacular é agora valorizada por seu poder
propagandístico, sua capacidade de atribuir uma marca ao panorama urbano, e é
considerada vital para aumentar o prestígio e a desejabilidade do lugar. Como
símbolos de valor negociáveis, edifícios com assinaturas renomadas se tornaram
instrumentos essenciais de marketing urbano8.
Nesse processo, a arquitetura vem sendo transformada em provedora de marcas
visuais e de ambientações de conveniência e em emblema icônico projetado na
imaginação popular para ajudar a "visualizar" uma cidade e situá-la no mapa
cognitivo do mundo. Para Neil Leach9, a fetichização da imagem na cultura
arquitetônica aprisionou o discurso da arquitetura na lógica da estetização,
isto é, do deslocamento do político pelo estético. Segundo ele, a proliferação
de imagens arquitetônicas espetaculares na paisagem induz a uma forma de
anestesia, cujo efeito narcotizante reduz a consciência social e política10.
Walter Benjamin advertiu que esse privilégio da imagem não era inocente.
Sublinhando a relação entre estética e política, ele mostrou como a estética
pode fantasiar uma plataforma política indigesta e torná-la um espetáculo
inebriante11. Transformar a arquitetura num espetáculo do poder e num suporte
para a ideologia do consumo representa portanto um poderoso expediente de
logro, que mascara e perverte a realidade com o intuito de apaziguar, fascinar
e mistificar12.
A TEORIZAÇÃO DO ESPETÁCULO
O poder de mistificação, pacificação e despolitização do espetáculo passou a
ser explorado nos anos 1960. Ao notar a crescente importância do espetáculo
numa sociedade cada vez mais dominada por imagens midiáticas e marcada pelo
triunfo das pseudorrealidades, eles reavaliaram o valor do espetáculo no âmbito
de uma crítica da alienação e da manipulação do mundo capitalista ocidental
contemporâneo. Daniel Boorstin13, seguido por Jean Baudrillard14, sublinhou o
papel dos fenômenos visuais e dos códigos simbólicos nessa transformação,
descrevendo visibilidade, invisibilidade e imagens como as modalidades
dominantes do poder e da alienação contemporâneos. Para Baudrillard, num mundo
de signos puros, desconectados de seus referentes, é por meio da sedução - uma
celebração da superfície - que a imagem pode envolver espectadores,
desestimulando qualquer busca de sentido e impedindo qualquer nível de
indagação mais profundo15.
Mas foi Guy Debord quem caracterizou a sociedade capitalista tardia como a
"sociedade do espetáculo" e quem melhor expôs o espetáculo como uma manipulação
dos processos de criação de sentido para servir à produção de poder político e
econômico16. Debord deplorava a obsessão de sua sociedade pelo mundo
superficial da imagem mercantilizada, que ele acusava de remover a realidade.
Para ele, porém, o poder do espetáculo vai além da simples dominação das
imagens e da saturação midiática; o espetáculo é uma visão de mundo que foi
efetivamente materializada como uma realidade objetiva17.
Segundo Debord, a especialização do poder está na raiz do espetáculo. Em seus
Comentários de 1988 ele delineia três categorias de espetáculo de acordo com a
forma de poder específica que este corporifica18. O espetáculo concentrado é
aquele do poder político bruto. É o espetáculo produzido pelo poder
centralmente planejado, favorecendo uma ideologia condensada em torno de uma
personalidade tirânica ou de um regime totalitário, a exemplo daqueles
encontrados em ditaduras dos anos 1930. O espetáculo difuso, um gênero
particularmente americano, é aquele do poder econômico. É associado ao
capitalismo avançado e à abundância de mercadorias, assemelhando-se à
fantasmagoria da mercadoria descrita por Walter Benjamin. Enquanto o espetáculo
concentrado opera principalmente por meio da violência, o espetáculo difuso em
geral se pauta pela sedução. Conforme Debord, a partir do final dos anos 1960 o
capitalismo global ensejou uma combinação lógica dessas duas formas de
espetáculo numa só, servindo simultaneamente ao poder político e ao poder
econômico: o espetáculo integrado, que representa a sociedade do consumismo
espetacular que se impôs globalmente.
O espetáculo do capitalismo tardio corporifica portanto uma nova forma de
poder, especializada como nunca. Anteriormente um meio para que o poder do
Estado e da Igreja mantivesse as massas sob controle, o espetáculo passa a
representar o modo pelo qual o capital corporativo engana e inebria as pessoas
com a ilusão da cultura da mercadoria.
Mais recentemente, alguns teóricos da política se basearam no conceito de
espetáculo integrado de Debord para desenvolver uma nova teoria do Estado. O
filósofo Giorgio Agamben afirma que a sociedade do espetáculo é o estágio final
da evolução da forma Estado, representando a condição extrema da integração do
Estado e da economia. Para Agamben, essa sociedade assimila a última
metamorfose da mercadoria, na qual o valor de troca eclipsou completamente o
valor de uso. Ele situa a ascensão desse Estado espetacular no desenvolvimento
do capitalismo tardio, em que o Estado e a economia se entremearam a tal ponto
que a lógica do desenvolvimento capitalista passou a determinar o Estado. Essa
derradeira forma do Estado se evidencia a partir do momento em que o
capitalismo assume o controle do Estado para se tornar absolutamente soberano.
O CONTEXTO URBANO DA CHINA E A ASCENSÃO DO ESPETÁCULO INTEGRADO
A transformação na configuração do Estado e do poder está se tornando manifesta
na paisagem urbana contemporânea da cidade de Pequim. Depois que a cidade foi
selecionada, em 2001, para sediar os Jogos Olímpicos de 2008, passou por uma
radical revolução urbana que procurou remodelar sua imagem como metrópole
moderna, utilizando para tanto a arquitetura espetacular.
Essa mudança ocorreu em meio à histórica transição da China de uma economia
planejada para uma economia de mercado, sob a liderança autocrática do Partido
Comunista chinês. Desde o início da década de 1990, as políticas de Estado da
China foram caracterizadas pela desregulação e por uma corrida para integrar o
país ao mercado mundial. A sociedade chinesa assumiu uma configuração singular
de sociedade de mercado, que levou ao simultâneo enfraquecimento da capacidade
do Estado e de seu intensivo envolvimento nas atividades do mercado. Para o
analista político Wang Hui, a política e a economia se entrelaçaram de tal modo
que aqueles que controlam o capital interno da China são agora os mesmos que
controlam o poder político19. A apropriação de ativos por funcionários
governamentais e suas famílias transformou agentes estatais em homens de
negócios independentes e prósperos, determinados a proteger sua riqueza recém-
adquirida. Segundo Wang Hui, líderes partidários em todas as esferas da
sociedade se tornaram indissociáveis dos novos capitalistas da China, de
maneira que as elites políticas e econômicas agora se encontram completamente
imbricadas.
A formação de um sistema de mercado sob os auspícios do Estado, com uso da
autoridade estatal para promover a radical expansão do mercado, levou àquilo
que Wang Hui designa como "a mercadização do poder e a delegação de poder ao
mercado" [the marketing of power and the empowering of the market]20. Com a
troca de poder por dinheiro, propriedades públicas foram colocadas nas mãos de
grupos de interesse, que usam seu poder monopólico para captar recursos de
mercado e obter lucros substanciais. A forma como essa minoria expropria
propriedades públicas, livre e legitimamente, levou críticos como David Harvey
a rebatizar o "socialismo com características chinesas" como "privatização com
características chinesas"21.
A transformação urbana de Pequim também foi promovida no contexto de um modelo
de gestão urbana pós-socialista caracterizado por uma crescente competição
intermunicipal, já que as cidades chinesas buscavam se reposicionar nos
cenários nacional e internacional para atrair investidores estrangeiros e
capitais móveis22. Ainda que os governos locais agora desfrutem de maior
flexibilidade financeira e de maior autonomia e controle sobre o uso do espaço
- graças às reformas econômicas da China, que concederam mais poder político-
econômico às localidades -, essa nova conjuntura urbana ainda é restringida
pelo legado do socialismo de Estado23. Visto que os titulares de cargos
públicos locais ainda são nomeados, em vez de serem eleitos, e avaliados para
promoção com base na lealdade política, no desempenho econômico e nas
realizações no exercício do cargo, eles tendem a favorecer projetos com alta
visibilidade, em detrimento de iniciativas sociais menos tangíveis, para
ostentar suas realizações e sustentar seu avanço na carreira político-
administrativa24. Assim, as novas estratégias urbanas se concentraram nos
grandes projetos como um meio de promover o desenvolvimento econômico e
projetar uma imagem dinâmica das cidades.
Com esse intuito, os governos locais se valeram do poder da arquitetura como
uma fonte de capital simbólico para ajudar suas cidades a obter uma vantagem
semiótica sobre destinações rivais. As autoridades municipais convidaram os
arquitetos mais famosos do mundo para conferir uma marca à paisagem urbana e
dotar suas cidades de símbolos visuais impressionantes. Membros da elite
internacional da arquitetura encontraram os patrões perfeitos nos dirigentes
chineses cônscios da imagem, para quem a fachada, o prestígio e o capital
simbólico são facilmente convertidos em poder político.
Os governos locais também tiveram de contar com o setor privado para ajudar a
financiar esses projetos. Empreendedores privados com estreitas ligações com os
governantes lucram com as transformações urbanas em razão da valorização de
propriedades, e com frequência veem tais investimentos como oportunidade para
rentismo e especulação. Esses projetos tendem portanto a priorizar os
benefícios econômicos de investidores privados e a visibilidade política de
seus patrocinadores públicos, em prejuízo da melhoria das condições urbanas.
Dessa maneira, o desenvolvimento urbano na China contemporânea frequentemente
tem menos a ver com funcionalidade, racionalidade econômica e crescimento do
que com poder, imagem e prestígio25.
A ARQUITETURA DO PODER
Os Jogos Olímpicos de 2008 deram um grande ímpeto para a intensificação do
processo de modernização de Pequim, iniciado nas décadas anteriores. As
autoridades municipais rapidamente adotaram o novo modelo de gestão urbana,
recorrendo à arquitetura de vanguarda para atualizar e remodelar a antiga
capital socialista da China na forma de uma próspera metrópole mundial. Essa
cirurgia plástica não só visou melhorar o desempenho econômico da cidade na
competição intermunicipal pela atração de turistas e investidores estrangeiros,
como também buscou restaurar a imagem internacional da China e legitimar o
poder de sua elite governante.
Uma parte essencial dessa estratégia urbanística de produção de imagem se
apoiou na construção de uma série de ícones arquitetônicos altamente
emblemáticos, que pudessem criar uma representação visual vigorosa e duradoura
e impregnassem a imaginação coletiva global como algo audacioso, heroico e
moderno. Poucos anos antes dos Jogos, Pequim encomendou mais de uma dúzia de
projetos com assinaturas renomadas, em que a magnitude, a concepção e a
etiqueta de preço eram tanto superlativas como espetaculares. No rol dos
projetos construídos com vista ao encerramento do prazo olímpico figuravam,
entre outros, o Teatro Nacional, de Paul Andreu, a torre do complexo da China
Central Television (CCTV), de Rem Koolhaas, o Estádio Nacional, de Herzog e De
Meuron, o terminal do Aeroporto, de Norman Forster, e o Centro Aquático
Nacional, do escritório australiano PTW26.
A farra da construção olímpica em Pequim relembra arroubos de construção
intensiva patrocinados pelo Estado que transformaram a paisagem da cidade ao
longo do século XX, na esteira de grandes mudanças de ideologia. No fim dos
anos 1950, por exemplo, Mao encomendou uma série de monumentos à maneira
soviética para marcar o surgimento de uma nova nação socialista e legitimar o
comando do Partido Comunista chinês. No fim dos anos 1980, o prefeito Chen
Xitong buscou reafirmar as características tipicamente chinesas da capital e ao
mesmo tempo representar a abertura da China para o mundo impondo padrões
urbanísticos neotradicionais a vistosas edificações pós-modernas,
ridicularizadas por usar "chapéus chineses"27. Contudo, esse último ciclo de
construção ostensiva iniciado pelo presidente Jiang Zemin visando a Olimpíada
foi de fato em escala sem precedentes. Ressaltou o espetacular ressurgimento da
China como uma superpotência mundial e o desejo do país de afirmar sua posição
legítima na nova economia global.
Como expressão material do poder ascendente de uma coalizão de dirigentes
políticos com seus aliados capitalistas, esse recente exercício de construção
de imagem representa, sob vários aspectos, a corporificação do espetáculo
integrado de Debord. A nova imagem da cidade atesta as mudanças em curso na
estrutura de poder dominante, composta por um Estado unipartidário cada vez
mais entremeado com uma classe capitalista ascendente, e busca maximizar tanto
os lucros privados como o controle social. Embora os governos locais tenham se
beneficiado com a descentralização do poder político-administrativo, o status
especial de Pequim como capital nacional implica que a visão geral da cidade
promovida pelos megaprojetos olímpicos permanece sob a supervisão direta do
governo central, que é seu principal contratante, e desse modo reflete suas
aspirações.
Antes de tudo, os projetos olímpicos de Pequim fazem parte da teatralidade do
poder usada pelo regime para reafirmar sua legitimidade como liderança única da
China. Assim, eles compartilham muitas das características tradicionalmente
encontradas na arquitetura do poder. Um dos princípios mais prevalecentes por
trás dos monumentos do poder é a sua visibilidade, essencial para o seu
reconhecimento. Para que uma edificação seja notada e ateste a grandeza de seu
patrocinador, deve ser chamativa e causar uma forte impressão estética, usando
tamanho, forma e aparência externa para imprimir uma imagem imponente e
memorável na consciência coletiva. O volume - ou aquilo que Tafuri designa como
"a metafísica da quantidade"28 - também é importante na construção
arquitetônica do poder, já que os governantes promovem campanhas de construção
maciça para demonstrar sua energia e sua força.
O número de projetos relacionados à Olimpíada de Pequim é impressionante e sem
precedentes, sublinhando a importância do evento como uma vitrine da capacidade
do Estado chinês. Com seus inúmeros recordes arquitetônicos, os colossais
megaprojetos de Pequim não deixam nenhuma dúvida sobre a ambição e a audácia de
seus patrocinadores. Seu monumentalismo reflete o dinamismo, a autoridade e a
força de vontade do governo, bem como atesta seu desejo de ser levado a sério
no cenário mundial. Também assinala enfaticamente a constante presença do
Estado na paisagem urbana, reforçando no dia a dia a vigilância e a habilidade
do poder estatal.
O monumentalismo encontrado no urbanismo olímpico, especialmente na localização
dos projetos e no prolongamento do eixo imperial até o Parque Olímpico, reforça
ainda o elo entre a transformação de Pequim e o desejo do Estado de
legitimação. Os projetos olímpicos estão em sua maior parte assentados em
vastas praças abertas, desconectados de seu entorno, o que amplifica sua escala
e sua dramaticidade. O alongamento do eixo imperial, como o espaço simbólico e
privilegiado do poder imperial, reflete um anseio da liderança política de se
posicionar na linhagem das dinastias do passado, que remodelavam a capital à
sua própria imagem. O fato de esse novo eixo ter sido projetado por Albert
Speer, filho e homônimo do arquiteto de Hitler, aumenta o poder simbólico desse
gesto espetacular no sentido de ressaltar Pequim como o centro do poder
político chinês.
Paradoxalmente, a imagem desses projetos espetaculares, que conta com formas
ousadas e inovação acanhada, também indica um rompimento radical com a história
e afirma o compromisso da liderança com a modernidade. Ao não fazer nenhuma
concessão ao passado ou à ideologia socialista, essa nova arquitetura se
contrapõe à velha imagem da China como uma nação pobre, terceiro-mundista,
autocentrada e retrógrada. Ao recrutar o trabalho de celebridades da
arquitetura internacional e de expoentes da vanguarda arquitetônica global, as
elites chinesas também fazem uma declaração veemente sobre suas disposições e
aspirações cosmopolitas, o que lhes faculta se distanciar de seus predecessores
mais conservadores. Esse gesto vigoroso lhes dá certa quantia de capital
simbólico, testemunhando sua abertura, seu discernimento e sua sofisticação.
Além disso, a iconografia ostentosa dos projetos olímpicos de Pequim corrobora
o poder da capital na nova sociedade chinesa e declara sem pejo que, de fato,
enriquecer é glorioso. Com sua etiqueta de preço exorbitante, sua aparência
suntuosa e seus contornos reluzentes, eles simbolizam a impetuosa busca de
riqueza e o apetite por luxo da China, sugerindo que a frugalidade não é mais
um valor professado. Dessa forma, a arquitetura espetacular de Pequim não só
contribui para consolidar o poder político do Estado, mas também legitima o
papel ascendente do capital na reconfiguração da paisagem urbana.
Os projetos olímpicos foram em sua maior parte construídos por meio de
parcerias público-privadas, que fizeram dos atores do setor privado os
principais beneficiários dos investimentos públicos na Olimpíada. A rápida e
amplamente não regulada transformação de Pequim possibilitou a investidores
privados remodelar a paisagem urbana a serviço de seus próprios interesses
econômicos. Vários equipamentos urbanos também foram privatizados após os
Jogos, uma vez que empreendedores responsáveis por supervisionar sua construção
se tornaram seus administradores, operadores e efetivos proprietários por um
período previsto em contrato. Ao alocar capital em determinados setores da
cidade, a reestruturação olímpica contribuiu para concentrar ativos econômicos
nas mãos de umas poucas elites econômicas com ligações estreitas com o Partido.
Também intensificou a proeminência desses novos atores econômicos na economia
simbólica da cidade, assim como lhes conferiu maior influência no processo de
tomada de decisões.
A RECEPÇÃO LOCAL AO ESPETÁCULO OLÍMPICO
Além de confirmar a supremacia política do Estado e legitimar o crescente poder
de atores econômicos, o espetáculo arquitetônico de Pequim cumpriu um
importante papel de despolitização, contribuindo para distrair a atenção
pública das mazelas da reurbanização intensiva. A despeito de um alarmante
registro acerca de despejos à força, exploração de trabalho e violações de
direitos29, os megaprojetos olímpicos de Pequim geraram uma oposição
surpreendentemente pouco manifesta e pouco organizada - sobretudo em face da
onda de iniciativas civis para combater a reurbanização em toda a China -, com
raros casos de mobilização coletiva contra a sua implantação30.
A relativa exiguidade de oposição pública pode ser explicada, ao menos em
parte, pela conjuntura patriótica da Olimpíada, apresentada na propaganda
oficial como um evento de relevância histórica para a China, uma ocasião única
para obter retribuição por cem anos de humilhação, semicolonização e injustiças
sob o domínio de potências ocidentais. Um desempenho olímpico bem-sucedido não
somente possibilitaria à China reafirmar sua legítima posição na ordem
geopolítica global, mas também mudaria as percepções históricas sobre os
chineses como "os doentes do Leste Asiático", obliterando o caráter tímido das
aparições iniciais da China na cena esportiva internacional31. Essa construção
ideológica do evento como algo fundamental para a construção da identidade
nacional garantiu um apoio maciço aos Jogos, enquadrando toda forma de crítica
manifesta e de oposição organizada como antipatriótica.
O poder desmobilizador do espetáculo também contribuiu para a ausência de
debate e crítica popular acerca dos projetos olímpicos. Ao recrutar
celebridades arquitetônicas canonizadas para realizar seus vaidosos projetos,
os dirigentes chineses e seus aliados lograram conferir uma fachada aceitável à
reurbanização especulativa e convencer a população das virtudes e dos
benefícios de tais investimentos destinados à imagem. Fantasiada com o garbo
requintado da "astroarquitetura" [starchitecture] contemporânea, a
reurbanização especulativa foi despolitizada e legitimada em virtude do poder
da arte. A imagem espetacular desses projetos ajudou a desviar a atenção das
externalidades dissimuladas que eles geraram, na forma de exclusão social, de
malversação de recursos públicos e de uma enorme dívida governamental. Desse
modo, a arquitetura espetacular contribuiu para intermediar percepções da
reurbanização olímpica ao eclipsar as condições sob as quais os projetos foram
implantados.
O espetáculo também ajudou a desvirtuar qualquer discussão profunda dos
impactos socioculturais e econômicos da reurbanização ao deslocar o foco das
atenções para questões arquitetônicas. As reações mais veementes à remodelação
espetacular de Pequim partiram do interior da comunidade arquitetônica local e
suscitaram acalorados debates públicos, especialmente com relação à seleção de
arquitetos estrangeiros para projetar a Pequim do século XXI. Muitos arquitetos
locais se sentiram injustiçados pela preferência de seu governo por arquitetos
mundialmente renomados e ressentiram-se de ter de competir com profissionais
estrangeiros em seu próprio país. Eles acusaram os arquitetos estrangeiros de
oportunismo, de tirar vantagem da situação privilegiada de seu país e de usar a
China como um campo experimental para testar novas técnicas e concretizar suas
próprias ambições artísticas. Eles denunciaram a ambição imperialista de seus
competidores globais. Entre eles, Wu Chen, filho do reputado arquiteto e
intelectual Wu Liangyong, acusou arquitetos estrangeiros de tomar parte em uma
nova forma de colonialismo cultural, ao impor seus próprios valores, e de
aviltar a cultura chinesa, ao contribuir com a homogeneização da paisagem
urbana da China32.
Ironicamente, foi um dos autores do mais famoso projeto olímpico que manifestou
as críticas mais incisivas à espetacularização da paisagem de Pequim. O artista
chinês Ai Weiwei, um colaborador próximo no projeto do Estádio Olímpico, veio a
se tornar um dos seus mais virulentos detratores, denunciando na mídia
internacional a apropriação política da Olimpíada por dirigentes políticos
demagógicos. Um ano antes dos Jogos de 2008, Weiwei decidiu se afastar do
projeto ao perceber que tinha entrado numa barganha faustiana e se acumpliciado
com o regime autocrático da China. Ele criticou outros artistas e arquitetos
olímpicos por permitir que seus talentos fossem usados em benefício da
propaganda política e do poder econômico33.
De modo geral, porém, o enquadramento da crítica em torno das diretrizes e da
estética da produção arquitetônica acabou por monopolizar o debate público,
desviando-o de questões sociais, culturais, políticas e econômicas mais
profundas a respeito da reurbanização olímpica de Pequim. Problemas de
desalojamento de comunidades, destituição social, exploração de mão de obra,
destruição de patrimônio, promoção de desigualdade socioespacial e malversação
de recursos públicos foram efetivamente eclipsados nas discussões públicas pelo
poder do espetáculo.
REVERTENDO O OLHAR, RESISTINDO AO ESPETÁCULO
Entretanto, é evidente que os pequineses estavam longe de ser uma massa
indiferenciada de indivíduos passivos e iludidos, internalizando sentido
hegemônico acriticamente. Muitos membros da sociedade ficaram alertas à
reurbanização olímpica ao monitorar os grandes projetos e inspecionar os gastos
olímpicos. Ao longo do processo de construção, acadêmicos, intelectuais,
preservacionistas, arquitetos locais e outras figuras públicas proeminentes
expressaram suas preocupações, assinando petições ao governo central para
contestar projetos arquitetônicos, opor-se à demolição de marcos tradicionais
da paisagem urbana ou exigir revisões orçamentárias34. Muito embora essas ações
jamais tenham logrado impedir a construção de projetos, resultaram em
importantes reavaliações de gastos e em consideráveis modificações de projetos.
Essas e outras evidências sugerem que os Jogos Olímpicos, como um megaevento
global exaustivamente acompanhado pela mídia, podem ter contribuído
efetivamente para restringir o poder do espetáculo ao ensejar uma reversão do
olhar para os produtores do espetáculo35. Organizadores de megaeventos como as
Olimpíadas são submetidos a um exame intenso não apenas por parte de
organizações supranacionais, como o Comitê Olímpico Internacional, mas também
da mídia estrangeira e de analistas locais e internacionais. Em Pequim, a
constante e minuciosa avaliação das ações das autoridades locais pressionou-as
a "se abrir", a agir de modo mais transparente e a fazer uma maior prestação de
contas aos cidadãos. Isso fez com que o espetáculo ganhasse uma dimensão
"produtiva" e se tornasse um fator de mudança social, cultural e política.
Para Susan Brownell, a Olimpíada de Pequim teria contribuído para uma evolução
do processo político, já que pressionou a China a se adequar a normas
internacionais relativas ao Estado de direito, à preservação ambiental e aos
direitos humanos36. Outros consideram que o nacionalismo suscitado pelos Jogos
Olímpicos ajudou a forjar o engajamento cívico, levando a uma maior consciência
dos direitos de cidadania, na medida em que os chineses se tornaram mais
cônscios de seu direito de ter acesso a informações, de questionar as
autoridades e de ser protegidos de retaliações37. Para eles, esse crescente
engajamento cívico pode estimular o crescimento da sociedade civil e opor uma
efetiva contenção ao autoritarismo do Estado.
Embora ainda seja cedo para averiguar essas hipóteses, é evidente, sob vários
aspectos, que as autoridades estatais internalizaram o olhar reverso do
espetáculo para frear algumas de suas ambições, pois temiam que qualquer uso de
violência ou abuso de poder associado aos Jogos pudesse atrair uma atenção
negativa da mídia e comprometer seus dispendiosos esforços de construção de
imagem. Preocupadas com a vigilante presença da imprensa internacional e sua
ânsia de expor quaisquer falhas na organização do evento, estreitamente
controlada, as autoridades locais se determinaram a suavizar a reputação da
China e a atingir um delicado equilíbrio entre seu desejo de sediar os Jogos
Olímpicos harmoniosamente e seu receio de apresentar ao mundo a imagem de um
Estado policial.
Percebe-se ainda o lado produtivo do espetáculo em algumas das reações por ele
provocadas, que também podem suscitar mudanças positivas. Na China, diversas
pessoas conceberam estratégias para resistir ao espetáculo e transcendê-lo,
reinterpretando símbolos que codificavam sentidos específicos na paisagem
urbana. Muitos arquitetos locais, por exemplo, cultivaram uma recatada
resistência à sociedade do espetáculo ao adotar uma abordagem arquitetônica
mais crítica, que resgata uma dimensão ética38. Uma nova geração de arquitetos
chineses, formada por profissionais jovens e cosmopolitas, desenvolveu uma
visão arquitetônica alternativa que evolui por fora da economia simbólica
global e não tem nenhum compromisso com o poder nem se pauta por vaidades. Ao
enfocar projetos em pequena escala, específicos ao lugar e localmente
embasados, esses profissionais estão criando uma nova identidade para a
arquitetura chinesa, uma linguagem arquitetônica autenticamente contemporânea,
que retém um grau de continuidade com o tecido urbano existente sem cair nas
armadilhas da nostalgia e do localismo. Usando humor, tecnologia moderna e
materiais com ressonância histórica, eles também restituem uma escala humana ao
gigantismo da China metropolitana. Sua perspectiva crítica e autóctone
possibilitou-lhes desenvolver uma resposta sensível, inovadora e com
especificidade histórica à atual situação de sua nação. Alguns deles, a exemplo
de Pei Zhu, recusam-se a colaborar com a espetacularização do ambiente urbano e
a destruição da paisagem histórica, propondo o reuso criativo de arquiteturas
do pós-guerra em contraposição a extravagâncias insustentáveis39. Nesse
sentido, o espetáculo olímpico de Pequim pode ter contribuído para o avanço da
arquitetura chinesa contemporânea.
A Pequim pré-olímpica também foi marcada por estratégias menos visíveis para
escapar à dominação e usurpar sentido, as quais também atestam o papel
produtivo do espetáculo. Um frequente recurso de contestação, de sinalizar
insatisfação com a reurbanização olímpica, foi o uso de apelidos jocosos para
ridicularizar os novos monumentos do poder, como veremos adiante. Essa prática
da renomeação não raramente implicou um détournement40 da interpretação oficial
proposta por arquitetos e dirigentes políticos, com a produção de um discurso
alternativo ou um contradiscurso.
Assim como ocorre com toda arquitetura pública e todo monumento do poder, os
projetos olímpicos de Pequim foram fantasiados com artifícios retóricos numa
rebuscada construção narrativa muito antes de se tornarem públicos e abertos à
interpretação popular. Esse discurso, no mais das vezes interesseiro e
refletindo o estrito ponto de vista dos autores e patrões dos projetos, buscava
codificar determinado sentido acerca do objeto arquitetônico a fim de ditar sua
interpretação. Apoiando-se em mitos, alegorias e metáforas visuais para
transfigurar a imagem e criar associações positivas, essa interpretação era
reiterada na mídia e nutria a percepção popular na esperança de que o público
em geral a aceitasse como consensual e fiel41.
Contudo, nem todas as pessoas internalizaram esse discurso hegemônico ou foram
mistificadas por ele. Assim como todos os discursos, o sentido simbólico da
arquitetura é altamente volátil, instável e efêmero. Jamais completo ou
definitivo, ele é constantemente questionado e transfigurado por
contrainterpretações. Narrativas divergentes e discursos paralelos em geral se
desenvolvem à medida que oponentes, usando suas próprias metáforas populares e
linguagem mimética, questionam a interpretação oficial. O sentido é então
alterado, retrabalhado e subvertido em atos populares de resistência ou
reapropriação estratégica.
Em Pequim, a maioria dos autores dos projetos olímpicos - ou ao menos seus
assessores chineses no caso dos arquitetos estrangeiros - sabia muito bem da
propensão dos chineses para fazer analogias na apreciação de obras
arquitetônicas. Os arquitetos estrangeiros frequentemente apresentavam seus
projetos mediante um discurso exótico que se baseava no simbolismo asiático e
na cultura chinesa. Com o uso de metáforas visuais apropriadas de um imaginário
familiar, não ameaçador, eles souberam criar um subtexto evocativo para
apresentar seus projetos sob um aspecto positivo e em termos que achavam
culturalmente atraentes para um público chinês. Norman Foster, por exemplo,
afirmou que seu aeroporto assumia a forma de um dragão, um imponente símbolo
chinês de sorte, poder e riqueza, e ao mesmo tempo assemelhava-se ao caractere
chinês para "portão de entrada" (men). O arquiteto francês Paul Andreu, por sua
vez, descreveu seu Teatro Nacional (agora conhecido como Centro Nacional de
Artes Cênicas [NCPA - National Centre for the Performing Arts]) como uma pérola
disposta num estojo de joias quadrado, fazendo um jogo com representações
cosmológicas do céu com formato redondo e da terra com formato quadrado. No
entanto, essa tática dissimuladora de fantasiar projetos estrangeiros não
convencionais como tributos à cultura chinesa pode ser enganosa, dando margem a
associações tanto positivas como negativas. O público rapidamente extraviou
essas imagens cuidadosamente cunhadas, substituindo-as por suas próprias
representações visuais para desmascarar justificativas governamentais e
ridicularizar argumentações dos arquitetos.
Bem antes da construção de alguns dos projetos mais grandiosos, seus críticos
cunharam para eles apelidos carregados de ambiguidade e duplo sentido, que
rapidamente foram assimilados pela população em geral. Essa práticas de dar
novos nomes aos projetos muitas vezes usurpavam a interpretação oficial
proposta pelos designers e por líderes políticos.
Um dos principais alvos desses ataques verbais foi o controverso projeto para a
China Central Television, a principal máquina de propaganda do Partido. O
colossal edifício de 700 milhões de dólares teve uma recepção popular mordaz,
suscitada por sua semelhança prosaica, degradante até, com um banquinho, um
homem de joelhos ou um par de calças. A usual referência ao edifício como
weifang - o prédio perigoso ou torto - expressa a desconfiança geral sobre sua
integridade estrutural e critica a demagogia do Estado ao escolher um projeto
tão exótico. O uso desse epíteto em particular é também um perspicaz comentário
sobre os numerosos despejos requeridos pelo projeto, já que o termo weifang é
comumente empregado para designar casas destinadas a demolição, rotulando-as
como precárias e impróprias para habitação.
O Centro Nacional de Artes Cênicas, outro edifício relacionado à Olimpíada,
também sofreu escárnio público42. O projeto foi fortemente criticado por seu
custo exorbitante e por seu design futurista, inadequado para a sua localização
próxima à Praça Tiananmen. As metáforas poéticas usadas para descrever sua
cúpula de titânio, tais como "gota d'água" e "pérola", foram retrabalhadas na
forma de apelidos populares ferinos e por vezes vulgares, conferindo-lhes um
quê de ridículo e absurdo. Estendendo-se desde a leve zombaria, com
denominações como "a bolha", "o disco voador" ou "a caixinha de comprimidos",
até variações mais pejorativas em torno da noção de ovo e evocações menos
equívocas no sentido de "tumba" ou "urna funerária", essas renomeações
sarcásticas contêm um comentário político mais profundo. Mais do que uma
simples referência ao formato do Centro Nacional, suas representações como
"tumba" revelam uma crítica mordaz ao presidente Jiang Zemin, que financiou
esse vaidoso projeto situado a uma curta distância do mausoléu de Mao para
imortalizar seu reinado e assegurar sua promoção ao panteão chinês dos líderes
políticos veneráveis.
Esses atos de resistência verbais não são ações coordenadas, mas são tramados
furtivamente e se espalham como incêndio florestal por meio de boca a boca ou
da internet. Eles ganham destaque mediante a sua reiteração coletiva,
especialmente quando a mídia os repercute, confirmando-se assim a sugestão de
Debord de que às vezes o espetáculo deve ser combatido por meios espetaculares.
A qualidade prosaica dessas estratégias de resistência criativas e seu caráter
aparentemente apolítico possibilitam a transmissão de uma mensagem subversiva
em segurança, sob a proteção do anonimato e sem o medo da repressão. Muito
embora o impacto desses atos de détournement,
no sentido de solapar a representação oficial e subverter a hegemonia do
espetáculo, seja limitado, eles cumprem um importante papel produtivo, mesmo
que simbólico. Ao propiciar que as pessoas expressem suas frustrações e
critiquem por procuração o regime que promoveu tal transfiguração, eles
potencialmente as aproximam um pouco mais da oposição organizada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Guy Debord e outros teóricos críticos advertiram sobre a capacidade do
espetáculo de obscurecer a natureza e o efeito do poder e das espoliações do
capitalismo, observando que o espetáculo tem a ver tanto com visibilidade
quanto com encobrimento43. Sob vários aspectos, a reconstrução olímpica de
Pequim atuou como uma cortina de fumaça para esconder as mazelas da vertiginosa
mercadização da China, acompanhada de especulação fundiária desenfreada,
corrupção, crescentes desigualdades e polarização socioespacial. Ela obscureceu
o fato de que boa parte da nova riqueza adveio diretamente à custa dos pobres,
na medida em que com frequência os governos locais despejaram moradores e
venderam os terrenos para projetos de desenvolvimento privados.
A arquitetura cumpriu um papel essencial na espetacularização do ambiente
urbano de Pequim, tanto na qualidade de corporificação do poder como na de um
mecanismo para encobrir a expansão e os interesses predatórios da autocracia
integrada da China. A "astroarquitetura" contemporânea foi instrumentalizada
pelo espetáculo de várias formas, tornando-se subserviente às metas da economia
transicional da China. O grandioso espetáculo oferecido pela imagem olímpica da
nova Pequim logrou desviar a atenção das crescentes contradições na sociedade
chinesa. Ao projetar a realidade construída de uma sociedade economicamente
bem-sucedida e em bom funcionamento, a arquitetura espetacular encobriu as
crescentes desigualdades sociais que caracterizam a sociedade chinesa
contemporânea. A distração oferecida por essa arquitetura da imagem desviou a
atenção das reais motivações da reurbanização especulativa e ajudou a
naturalizar as condições de exploração e exclusão que contribuíram para
produzir essa nova paisagem.
Com a transformação do Estado e a crescente soberania dos detentores de poder
econômico, as arquiteturas e os espaços do espetáculo se tornam mecanismos
essenciais para encobrir essa mudança no equilíbrio do poder. De modo similar,
o urbanismo sedutor que está transformando as cidades chinesas atua como uma
cortina de fumaça para encobrir o fantástico crescimento do poder corporativo
autocrático. Ele ajuda a legitimar os poderosos interesses dos empreendedores
imobiliários e contribui para a reprodução da ordem estabelecida, enquanto a
perpetuação da dominação permanece oculta. A reurbanização olímpica de Pequim
terá assim contribuído para o crescente poder do capital, atribuindo aos
empreendedores privados um papel cada vez maior nos negócios públicos e ao
mesmo tempo enfraquecendo a autonomia do Estado para governar.
No entanto, este artigo sugere que o espetáculo também teve um papel produtivo
em Pequim, pressionando os produtores do espetáculo a fazer uma maior prestação
de contas e abrindo espaço para diversas formas de resistência, contestação e
mudança. Ao suscitar essa reversão do olhar para seus produtores, o espetáculo
plantou as sementes de uma importante mudança social, cultural e política, que
pode ter repercussões concretas a longo prazo. Assim, este artigo tanto
corrobora a permanente relevância da noção de espetáculo como um instrumento
analítico para conceitualizar e desconstruir estruturas de poder em diferentes
culturas políticas, como também sugere que é preciso empreender investigações
mais aprofundadas para expandir a teoria do espetáculo, explorando seu aspecto
produtivo e verificando como ele pode contribuir para transfigurar, usurpar ou
retrabalhar estruturas de poder.
ANNE-MARIE BROUDEHOUX é professora da Escola de Design da Universidade de
Quebec em Montreal, Canadá.
[*] Artigo publicado originalmente em Journal of Architectural Education, vol.
63, nº 2, 2010, pp. 52-62.
[1] Essa definição é baseada na interpretação de David M. Boje em Theatres of
capitalism. San Francisco: Hampton Press, 2002.
[2] John MacAloon acertadamente critica abusos do conceito de espetáculo, que
segundo ele passou a representar uma série de termos críticos, tais como
comercialização, alienação, hegemonia, cultura de massa, simulacros,
comoditização, midiatização e globalização, por vezes até passando por um tropo
abrangente para o declínio da esfera pública. Cf. MacAloon, John. "The theory
of spectacle: reviewing olympic ethnography". In: Tomlinson, Alan e Young,
Christopher (orgs.). National identity and global sports events: culture
politics and spectacle in the Olympics and the Football World Cup. Nova York:
State University of New York Press, 2006, pp. 15-39.
[3] Para Setha Low, a formação de espaços espetaculares é essencial para a
legitimação performativa do Estado. Ela se refere a esses espaços como "espaço
corporificado", o local onde a experiência e a consciência humanas assumem
forma material e espacial. Cf. Low, Setha M. "Anthropological theories of body,
space, and culture". Space and Culture, vol. 6, nº 1, 2003, pp. 9-18.
[4] Benjamin, Walter. Illuminations: essays and reflections. Nova York:
Schocken, 1968, pp. 165-67.
[5] Cf. Judd, Dennis. The infrastructure of play: building the tourist city.
Nova York: M.E. Sharpe, 2003; Ashworth, G. J. e Voogd, H. Selling the city:
marketing approaches in public sector urban planning. Londres: Belhaven Press,
1990.
[6] Cf. Chalkey, Brian e Essex, Stephen. "Urban development through hosting
international events: a history of the Olympic Games". Planning Perspectives,
vol. 14, nº 4, 1999, pp. 369-94; Hiller, Harry H. "Mega-
events, urban boosterism and growth strategies: an analysis of the objectives
and legitimations of the Cape Town 2004 Olympic bid". International Journal of
Urban and Regional Research, vol. 24, nº 2, 2000, pp. 439-58;
Whitson, David e Macintosh, Donald. "The global circus: international sport,
tourism and the marketing of cities". Journal of Sport and Social Issues, vol.
20, nº 3, 1996, pp. 278-95.
[7] Em referência à renascença urbana por que passou a cidade espanhola após a
construção, concluída em 1997, de um museu de arte espetacular projetado pelo
arquiteto Frank O. Gehry.
[8] Cf. Crilley, Darrel. "Architecture as advertising: constructing the image
of redevelopment". In: Kearns, Gerry e Philo, Chris (orgs.). Selling places:
the city as cultural capital, past and present. Oxford: Pergamon Press, 1993; Miles, Steve e Miles, Malcolm. Consuming cities. Nova York:
Palgrave Macmillan, 2004; Evans, Graeme. "Hard-branding the
cultural city: from Prado to Prada". International Journal of Urban and
Regional Research, vol. 27, nº 2, 2003, pp. 417-40.
[9] Leach, Neil. The Anaesthetics of Architecture. Cambridge: MIT Press, 1999.
[10] Nas palavras de Leach, a estética da arquitetura ameaça tornar-se a
"anestética" da arquitetura.
[11] Benjamin, Walter. "The work of art in the age of mechanical reproduction".
In: Illuminations, op. cit., pp. 217-52.
[12] Cf. Julier, Guy. "Urban designscapes and the production of aesthetic
consent". Urban Studies, vol. 42, nº 5-6, 2005, pp. 869-87.
[13] Boorstin, Daniel J. The Image: A Guide to Pseudo-events in America. Nova
York: Atheneum, 1961.
[14] Baudrillard, Jean. Le système des objets. Paris: Denoël/Gonthier, 1968;
idem. La Société de consommation. Paris: Gallimard, 1970.
[15] Baudrillard, Jean. Simulacres et simulation. Paris: Galilée, 1981.
[16] Debord, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992 [1967] .
[17] Cf. idem, ibidem, cap. 1, tese 5.
[18] Idem. Commentaires sur la société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992
[1988].
[19] Hui, Wang. China's new order: society, politics, and economy in
transition. Org. Theodore Huters. Cambridge: Harvard University Press, 2003.
[20] Idem, ibidem, p. 91.
[21] Harvey, David. A brief history of Neoliberalism. Oxford University Press,
2005, p. 122.
[22] Cf. Wu, Fulong. "Place promotion in Shanghai, PRC". Cities, vol. 17, nº 5,
2000, pp. 349-61; Xu, Jiang e Yeh, Anthony G. O. "City
repositionning and competitiveness building in regional development: new
development strategies in Guangzhou, China". International Journal of Urban and
Regional Research, vol. 29, nº 2, 2005, pp. 283-308.
[23] Cf. Hui, op. cit.
[24] Ma, Laurence J. C. e Wu, Fulong. Restructuring the Chinese city. Londres:
Routledge, 2005.
[25] Cf. Cartier, Carolyn. "Transnational urbanism in the reform-era Chinese
city: landscapes from Shenzhen". Urban Studies, vol. 39, 2002, pp. 1.513-32.
[26] Para uma descrição detalhada dos projetos, ver Broudehoux, Anne-Marie.
"Spectacular Beijing: the conspicuous construction of an olympic metropolis".
Journal of Urban Affairs, vol. 29, nº 4, 2007, pp. 383-99;
ver também Ren, Xuefei. "Architecture and nation building in the age of
globalization: construction of the National Stadium of Beijing 2008 Olympic
Games". Journal of Urban Affairs, vol. 30, nº 2, 2008, pp. 175-90.
[27] Cf. Broudehoux, Anne-Marie. "Learning from Chinatown: the search for a
modern architectural identity, 1911-1998". In: Alsayyad, Nezar (org.). Hybrid
urbanism: on the identity discourse and the built environment. Westport,
Londres: Praeger, 2001, pp. 156-80; Hung, Wu. Remaking
Beijing: Tiananmen Square and the creation of a political space. Londres:
Reaktion, 2006.
[28] Tafuri, Manfredo. Architecture and utopia: design and capitalist
development. Cambridge: MIT Press, 1979.
[29] Ver Broudehoux, "Spectacular Beijing...", op. cit.
[30] Para uma descrição detalhada das formas de resistência à reurbanização
olímpica de Pequim, ver Broudehoux, Anne-Marie. "Seeds of dissent: the politics
of resistance to Beijing's Olympic redevelopment". In: Butcher, Melissa e
Velayutham, Selvaraj (orgs.). Dissent and cultural resistance in Asian cities.
Londres: Routledge, 2009, pp. 14-32.
[31] A primeira delegação chinesa a participar dos Jogos Olímpicos, na edição
de 1932, não conseguiu levar sequer uma medalha para casa, e foi somente em
1960, em Roma, que um atleta chinês ganhou uma medalha olímpica. Ver Brownell,
Susan. Beijing's Games: what the Olympics mean to China. Lanham, Maryland:
Rowman & Littlefield, 2008.
[32] Cf. Ren, Xuefei. "La ville chinoise et ses 'grands projets' urbains:
l'architecture internationale en question". La Vie des Idées, nº 12, 2006, pp.
77-83.
[33] Cf. Watts, Jonathan. "Olympic artist attacks China's pomp and propaganda".
The Guardian, 09/08/2007, p. 5; Weiwei, Ai. "The Olympics are a propaganda
show" entrevista a Andreas Lorenz. Der Spiegel, 29/01/2008, p. 11.
[34] Ver Broudehoux, Anne-Marie. "Delirious Beijing: euphoria and despair in
the Olympic metropolis". In: Davis, Mike e Monk, Daniel (orgs.). Evil
paradizes: dreamworlds of neoliberalism. Nova York: New Press, 2007.
35] Abidin Kusno chamou-me a atenção para essa dimensão do espetáculo.
[36] Brownell, op. cit.
[37] Esse entendimento foi externado, por exemplo, por Zhu Xueqin, professor da
Universidade de Xangai; cf. Meng, Sue. "An Olympic force for change".
Washington Post, 20/04/2008, p. B-7. Ver também Cervellera,
Bernardo. "Chinese dissident: criticism of Beijing's repression is the true
sign of the Olympic spirit". Asia News, 07/04/2008.
[38] Entre eles, estão os arquitetos Yung Ho Chang, Pei Zhu, Wang Hui, Liu
Jiankun, Zhang Yonghe, Wang Shu e Qinyun Ma.
[39] Cf. Ren, Xuefei. "Architecture and China's urban revolution". City, vol.
12, nº 2, 2008, pp. 217-25.
[40] Na noção de Debord, détournement é um ato ou processo de desvio ou
deflexão do espetáculo.
[41] Nessa abordagem beneficiei-me de Ghirardo, Diane. "Introduction". In: Out
of site: a social criticism of architecture. Seattle: Bay Press, 1991, pp. 9-
16.
[42] Para mais detalhes sobre essa controvérsia, ver Broudehoux, Anne-Marie.
The making and selling of post-Mao Beijing, Londres/Nova York: Routledge, 2004,
pp. 229-34.
[43] Para o etnógrafo olímpico John MacAloon (op. cit.), o espetáculo
simultaneamente diz respeito a vista, visão e supervisão.