Viagens do Rosário entre a Velha Cristandade e o Além-Mar
Devoção à Virgem Maria e ao seu Rosário na Europa Moderna
Com o movimento reformista se espalhando pela Europa, a contestar as figuras
santificadas pela Igreja Católica, salvo o Cristo, o culto a Maria ganhou novo
reforço e novo papel, escolhido como arma contra-reformista. Assim, o seu culto
foi se transformando em símbolo da identidade religiosa, de fidelidade à Igreja
Católica na luta contra os protestantes.
Diferenças à parte, a Igreja Católica da época moderna estava marcada pelo
espírito do Concílio de Trento, pela defesa do catolicismo frente ao avanço
protestante. Era uma Igreja inquieta com a distância que a separava dos fiéis.
E foi pelo espírito da missão que o projeto da Reforma católica penetrou nas
colônias ibéricas. A evangelização pôde, então, contar com uma imagem que era
símbolo da discordância entre católicos e protestantes: a Virgem Maria.
A expansão ocidental coadunava-se com as idéias de universalidade, integração e
unidade, tão caras ao cristianismo da época moderna. A cristandade tinha uma
dimensão social que devia ser cumprida. Para Baeta Neves (1978), essa dimensão
social refere-se à expansão do universo cristão no mundo profano, tirando deste
a sua disformidade e traduzindo-o ao idioma missionário. Assim, territórios
eram atravessados para anunciar o Evangelho, onde ele não era conhecido,
impondo ao mundo uma homogeneidade ideológica.
O culto à Virgem tornava-se, com a expansão ultramarina, bandeira da conquista
espiritual portuguesa, funcionando como poderoso elo entre a cruz e a espada.
"A popularidade e fervor do culto da Virgem não perdeu nada com a
emigração através dos Sete Mares e, se possível, teve tendência a
aumentar" (Boxer, 1977:130).
Senhora dos mares, rainha da paz e da guerra, durante as cruzadas ajudara os
cristãos na luta contra os infiéis e continuaria atuando nas guerras santas
entre católicos e protestantes. Mas, se no contexto da Reforma católica sua
imagem e força estavam ainda ligadas à sua presença e intervenção nas batalhas,
o espírito contra-reformista encontraria eco em uma devoção que, como pretendo
sugerir, punha em relevo questões importantes para a Igreja Católica. Refiro-me
à devoção ao rosário, método de oração e meditação ensinado, segundo a
tradição, pela Virgem Maria e para seu louvor.
Desde meados do século XII vinham surgindo movimentos que criticavam a
estrutura hierárquica da Igreja, que reclamavam sua pobreza absoluta ou que
rechaçavam abertamente seus fundamentos, como era o caso dos cátaros, também
conhecidos como albigenses, por ser Albi, no Sul da França, a cidade onde mais
proliferaram. Domingos de Gusmão, em inícios do século XIII, foi para a região
e ali desenvolveu intensa atividade no sentido de combater tais heresias e
reconverter a região. Apesar dos seus esforços, as dificuldades eram grandes e,
certo dia, segundo a tradição, enquanto rezava, apareceu ao religioso a Virgem
Maria e ensinou-lhe um método de oração, dizendo que homens e mulheres
invocariam sua ajuda com as contas que lhe entregava. Desde Pio V, os papas vêm
descrevendo as origens do rosário, em suas exortações, ligadas a essa aparição,
e muito se tem representado a imagem de Domingos de Gusmão, aos pés da Virgem,
recebendo o colar de contas.
O fato é que a data e o local exatos da introdução do rosário na cristandade
ocidental não são conhecidos, mas, segundo Warner (1991), o colar de contas é
originário da Índia brahmânica e do hinduísmo, seu uso se estendeu ao budismo e
mais tarde ao islã.
O colar se assemelha às contas de âmbar que, por toda Grécia, Ásia e
Norte da África, os homens nas mesas de café movem através de seus
dedos para acalmar seus nervos, como um cigarro, mas enquanto nestes
países adquiriu um caráter laico, se converteu no Ocidente em um
hábito exclusivamente religioso. (Warner, 1991:394)
Assim, ainda que não seja exato, atribui-se geralmente aos cruzados a extensão
do uso do colar de contas, tomado dos mulçumanos.
Importa, no entanto, aqui, marcar que essa devoção ganhou força no contexto da
Reforma católica. Por volta de 1470, o dominicano Alano de Rupe publicou uma
obra que despertou a crença nos poderes do rosário como meio de obter graças e
a proteção da Virgem Maria, sobretudo em Colônia e Augsburgo. Seu livro
inspirou outras obras e missionários, em especial os dominicanos. Em 1475,
Jacob Sprenger, dominicano, caçador de bruxas e um dos autores do célebre
Malleus Malleficarum, fundou a primeira confraria devotada ao rosário, em
Colônia, na Alemanha. Vinte anos depois, Alexandre VI, primeiro papa a
mencionar o rosário, aprovou a prática, que rapidamente se expandiu.
O rosário foi invocado nas políticas da Reforma católica. O Papa Pio V permitiu
a festa de Nossa Senhora da Vitória, em todas as igrejas que tivessem um altar
do rosário, para comemorar a derrota dos turcos na batalha de Lepanto, em
outubro de 1571, minando o poder destes no Mediterrâneo. Segundo o papa, a
vitória teria se dado graças à intercessão da Virgem, em resposta aos rosários
a ela oferecidos. A festa deveria ser celebrada todos os anos no primeiro
sábado de outubro, dia da semana em que se deu a batalha de Lepanto. Pio V
mandou inserir, ainda, na ladainha lauretana, a invocação "Auxílio dos
cristãos, rogai por nós".
Em 1573, Gregório XIII mudou o nome da festa para Nossa Senhora do Rosário,
reforçando o rosário como arma da vitória, e transferiu a festa para o primeiro
domingo de outubro. Na primeira década do século XVIII, o Papa Clemente XI
estendeu a festa ao conjunto da Igreja, período em que as frentes católicas
venceram os turcos em Petrovaradin, alijando-os de Corfu, seguindo-se outros
pequenos triunfos, até a batalha decisiva em Belgrado, que forçou os turcos à
paz de Passarowitz, em 1718. "A vitória de Lepanto sobrevive na lenda
católica como a última cruzada heróica levada a cabo pelo homem para a
instauração do Reino de Deus na terra" (ibidem:398).
Desde o Papa Pio V, como já foi dito, foi descrita a origem da devoção quando
da aparição da Virgem a São Domingos, conferindo ao rosário um caráter sagrado
que confirmava o amor especial da Virgem por ele e o tornava emblema do direito
divino na batalha contra os inimigos. "Desde a batalha de Lepanto, a
Virgem e sua oração particular, o rosário, têm sido continuamente associados
especialmente à luta católica contra seus inimigos" (idem:405).
A devoção ao rosário cresceu, então, quando a Igreja se sentia fraca e a
apontava para uma disposição combativa. O método de oração proposto pelo
rosário valorizava, ao lado da repetição das ave-marias, a meditação,
restabelecendo a contemplação interior. A Virgem e o rosário foram, portanto,
armas em um tempo em que, cada vez mais, os católicos pareciam acreditar na
exterioridade da fé e na compra de indulgências para alcançar a salvação.
Segundo Julita Scarano (1978:39), divulgada a devoção na Península Ibérica, a
Senhora do Rosário, em Portugal, foi adotada como padroeira de vários grupos,
como o dos marinheiros no Porto, e em quase todas as cidades criaram-se igrejas
a ela dedicadas. Em Lisboa, o convento dominicano tornou-se famoso por causa de
uma imagem da Virgem à qual se atribuíam milagres. Logo surgiram irmandades e,
entre as dedicadas à Virgem, a de Nossa Senhora do Rosário foi das mais
importantes, rivalizando em número com as irmandades do Santíssimo Sacramento e
das Almas, ainda mais populares. As irmandades
[...] de Nossa Senhora do Rosário dos pretos surgiu em Portugal a
partir de uma transformação gradativa, nascendo realmente das
irmandades de brancos que já tinham a mesma invocação. No esforço da
Igreja católica de integrar o africano recém-chegado ao Reino,
atraiu-o para as irmandades e, nesse sentido, os dominicanospodem ter
tido mais sucesso em fazê-los ingressar nas associações de seus
conventos. Assim, os negros participaram, inicialmente, das
irmandades de brancos e, aos poucos, com o aumento numérico daqueles,
talvez com apoio dos dominicanos, passaram a se reunir em núcleos
separados, formando suas próprias confrarias. É possível que questões
de auxílio mútuo e proteção de seus interesses os tenham levado a se
desligar dos brancos e a pedir graças e mercês reais para nova
associação. (ibidem:40-43)
No Brasil, a devoção ao rosário foi introduzida pelos missionários e a devoção
a Nossa Senhora do Rosário acabou tendo grande penetração entre os escravos,
sendo várias as irmandades de negros consagradas a Nossa Senhora do Rosário na
América portuguesa.
Em Portugal, os brancos, temendo ser prejudicados nas esmolas ' que
em grande parte eram o sustentáculo das irmandades ' queriam uma
união, uma vez que, dentro de uma associação predominantemente de
brancos, os pretos teriam posição subalterna. Na Colônia, pelo
contrário, preferiram manter a separação, preservando assim suas
vantagens, dado o perigo representado pelo elevado número de homens
de cor. (idem:44)
Cabe, então, ainda investigar os motivos e os instrumentos pelos quais a
devoção ao rosário penetrou entre os negros escravos. Segundo Arthur Ramos, os
escravos de procedência banto, principalmente os da Angola e os do Congo, foram
mais receptivos porque já haviam tido contato com a devoção à Senhora do
Rosário ' e a tinham como padroeira ' no Continente africano,dado que o rosário
fora levado para lá pelos colonizadores portugueses e primeiros missionários
empenhados em convertê-los.
Conquista e Missionação Portuguesa na África Ocidental
Até 1460, ainda com o Infante D. Henrique, a exploração da costa africana
alcançou o golfo da Guiné. Com D. Afonso V, a conquista prosseguiu com Alcácer-
Quibir, em 1468, onde a mesquita local foi sagrada como igreja de Santa Maria
da Misericórdia, e Arzila e Tânger, em 1471. Sob o reinado de D. João II,
Azamor foi conquistada em 1486. O domínio de Safim, em 1508, e Mazagão, em
1513, com D. Manuel, manteve o projeto português de conquista do Marrocos e
duas frentes de penetração no Continente: uma pelo Norte da África e região
meridional e outra ao Sul do Senegal e das terras da Guiné.
Para J. F. Marques, pode-se identificar, do ponto de vista missionário, três
zonas geográficas de atuação. A primeira delas seria a região da diocese de
Ceuta e Tânger. "Terra de cultura vincadamente moura e de fé
mulçumana" (Marques, 1992:125). Eram cidades-fortaleza isoladas, nas quais
o catolicismo levado pelos missionários esteve sempre sitiado diante do poder
mouro. A atividade dos religiosos, segundo J. F. Marques, ante a vigilância
militar, não conseguiu expandir a evangelização das populações de Marrocos e
Fez. "O que acontecia, de fato, era a impossibilidade material de uma
catequese missionária" (ibidem:126).
A segunda zona ocuparia o extremo Sul da Mauritânia, incorporando o reino de
Benim ' aí a influência árabe tinha penetrado com algum sucesso. Antes da
expansão portuguesa, uma expansão interior mercantil mulçumana repercutiu,
segundo A. Vasco Rodrigues (1992:553), no plano cultural e no mundo das
crenças. E era o mulçumano ' mercador, guerreiro ou pregador do islã ', inimigo
tradicional dos portugueses, que lhe fazia concorrência na região.
As influências das civilizações da África mediterrânea chegaram a
atingir, para sul, a civilização Nok, a nigeriana e a de Benim. Por
vezes tais influências remontam ao Egito faraônico e só encontram
explicação nas rotas mercantis que demandavam o ouro e o marfim.
(ibidem:543)
Desse modo, os portugueses já encontraram presente a idéia do monoteísmo em
muitas áreas costeiras da África ocidental, mas passada pelos mouros,
exercendo, pois, os princípios do Corão, anterior ao catolicismo português, uma
poderosa influência nessas populações.
Os primeiros missionários nessas áreas foram os navegadores e mercadores ainda
ligados à idéia das Cruzadas. Não raro esses navegadores utilizaram-se do
recurso de levar nativos para Portugal para prestarem informações e serem
catequizados. De volta às suas terras, esses homens podiam servir como
intérpretes, auxiliando os portugueses na sua empresa. Mas, para J. F. Marques,
também, só muito escassamente foi bem-sucedida a evangelização na Guiné,
Senegal e Benim, por causa da influência mulçumana.
Só a partir das duas últimas décadas do século XV a cristianização da África
negra conheceu medidas e resultados consistentes. Com D. João II e D. Manuel I,
o esforço apostólico da Coroa portuguesa passou dos atos isolados à adoção de
uma política assentada, em traços gerais, na conversão dos reis gentios e na
formação de um clero nativo (Riley, 1998:162).
Assim, ao lado das feitorias e dos interesses mercantis, seguiram a construção
de igrejas e capelas e a educação na fé católica de crianças e jovens,
transformando-os, posteriormente, em missionários em suas terras de origem. No
Senegal, chegou-se a construir o convento de S. Vicente do Cabo, destinado à
formação de clero negro.
A terceira zona identificada por J. F. Marquesabrangia o reino do Congo e a
ponta meridional costeira da África. A chegada ao Reino do Congo, depois de
meio século de investidas para o reconhecimento da costa ocidental da África e
do golfo da Guiné, revelou aos portugueses uma área na qual não havia a
influência islâmica.
Em fins do século XV, D. João II mandou a primeira expedição,1 sob o comando de
Diogo Cão, que saiu do Tejo em direção à feitoria da Costa da Mina. Após curta
estada, Diogo Cão rumou para o Sul e alcançou a foz do Rio Congo. Desembarcou
na margem esquerda e erigiu em Mpinda, porto de desembarque que seria de
passagem obrigatória nos séculos XV e XVI, o padrão de S. Jorge. Ali, entrou em
contato com Nsoyo, chefe da localidade e soube que no interior ficava a Corte
do mani Congo, Nzinga-a-Nkuwu, chefia máxima do reino. O reino do Congo,
naquelaépoca, abrangia grande parte da África centro-oriental e se dividia em
províncias, como a de Nsoyo, administradas por linhagens nobres. Mbanza Kongo
era a capital, centro de poder de onde o mani Congo administrava a confederação
juntamente com um grupo de nobres que formavam o conselho real (Vainfas &
Souza, 1998:97).
Diogo Cão enviou emissários portugueses rio acima, levando, segundo a crônica
de João de Barros, um presente ao rei da terra. Como não regressaram dentro do
prazo, Diogo Cão voltou ao Reino português levando alguns nativos como reféns.
De volta ao Congo, esses homens foram integrados em uma embaixada de D. João II
ao mani Congo. Segundo a famosa crônica de Garcia de Resende, do século XV, o
rei português ofertava sua amizade e convidava o rei congolês à fé cristã,
recomendando-lhe que deixasse os "ídolos e feitiçarias" que adoravam
em seu Reino. Diogo Cão desceu em terra os congoleses que levara para Portugal
e recolheu os portugueses que tinham ficado da sua primeira viagem. As
informações obtidas pelos dois lados facilitaram a ulterior recepção do mani
Congo, tendo cumprido aí papel importante os reconduzidos reféns congoleses.
Assim, para Julieta Araújo e Ernesto dos Santos (1993:642), dois aspectos
marcam o início da exploração da região. Por um lado, a penetração fluvial com
a exploração do estuário do Zaire. Diogo Cão subiu o curso do rio até as
cataratas do Yelala, atingindo o extremo navegável do rio. Por outro, a
penetração terrestre em direção a Mbanza Kongo, que mais tarde seria rebatizada
de São Salvador.
Na volta a Portugal, foi a vez do Mani Congo mandar sua embaixada a D. João II.
Junto dos presentes, pedia "que lhe mandassem logo frades e clérigos e
todas as coisas necessárias para ele e os de seus reinos recebessem a água do
batismo", solicitando igualmente o envio de pedreiros, carpinteiros e
lavradores que ensinassem em seus reinos a tratar da terra, mulheres para
ensinarem a amassar pão, "porque levaria muito contentamento por amor dele
que as coisas do seu reino se parecessem com Portugal" (ibidem:643). Em
1490, partiu para o Congo uma expedição sob o comando de Gonçalo de Sousa,2 na
qual retornou a comitiva congolesa, assim como foram enviados os primeiros
missionários.3 A expedição chegou ao porto de Mpinda e foi recebida pelo chefe
da província de Nsoyo, tio do mani Congo. Ele e seu filho foram os primeiros a
serem batizados, recebendo o nome de Manuel, o mesmo do irmão da rainha de
Portugal. Com isso, abria-se o caminho para a conversão. Dali partiu a
expedição para a capital real. O mani Congo quis ser batizado imediatamente, no
que foi atendido e, seguindo o padrão analógico dos primeiros tempos da relação
entre os dois reinos, recebeu o nome do rei de Portugal.
D. João I, no entanto, logo abandonaria o cristianismo, pressionado por certa
facção da nobreza apegada às tradições bakongo e receosa de perder suas
posições com a "nova ordem cristã" que se avizinhava. Foi com seu
filho, Afonso, que reinou entre 1506 e 1543, que as bases da catolização foram
sedimentadas. Ainda durante o reinado de seu pai, D. Afonso entrou em conflito
com seu irmão, governador de Panga, que rejeitara a fé católica e tinha muitos
seguidores. A luta ganhou intensidade com a sucessão no poder. Restabelecida a
paz, D. Afonso mandou erigir a igreja de Santa Cruz, templo no qual foram
batizados muitos súditos. D. Afonso ordenara ainda aos governadores que
entregassem todos os objetos que pudessem lembrar as antigas crenças. "O
monarca mandou queimar tais objetos, distribuindo em seguida imagens de santos,
cruzes, rosários, etc. Mandou, além disso, erigir três igrejas: a de São
Salvador, a da Virgem Maria e a de São Jaime" (idem:651).
Diante das dificuldades e do precário contingente de missionários, Afonso I
pediu ajuda à Coroa portuguesa. O rei D. Manuel mandou, então, formar um grupo
de moços no convento de Santo Elói de Lisboa, o primeiro seminário europeu para
o clero indígena. Entre esses rapazes estava o filho de D. Afonso I, Henrique,
que mais tarde seria consagrado bispo titular de Útica.
Em seu reinado, a conversão dos senhores do Congo e seus súditos significou não
só mudanças na vida espiritual, mas também em aspectos materiais, incluindo
desde a alimentação, vestuário e construções, até a reforma administrativa do
Reino, que se reorganizou à semelhança do de Portugal.
Segundo A. Custódio Gonçalves (1992:533), com a tentativa de transformar o
Congo em um reino cristão, "ponta de lança da conquista espiritual da
África", acreditou-se que a introdução de novos modelos culturais através
da ação missionária o tornaria uma réplica do reino português. A missionação, a
par das deficiências, facilitou a abrangência da educação e a entrada dos
modelos de organização política, administrativa e judicial, com a instituição
da nobreza, cortesãos e dignatários, insígnias e distintivos de todos os graus
hierárquicos, criando no Congo a Corte de São Salvador, cujo rei se dizia irmão
do monarca português.
Anterior ao achamento do Brasil e ao domínio da Índia, a descoberta
de um espaço geo-humano, tão vasto e receptivo como o oferecido pelo
Congo, proporcionaria a possibilidade de materializar um eficaz
projecto de aculturação jamais acenado ainda a Portugal. (Marques,
1992:131)
A colonização do território de Angola teve sua base inicial nos contatos com o
reino do Congo. A ex-província Ngola, após sua independência do reino do Congo,
mandou uma embaixada a Portugal pedindo missionários para instruírem o reino de
Angola na fé cristã. Segundo Araújo & Santos (1993:653), entretanto, mais
que o interesse na conversão, o soberano de Angola, reconhecendo a importância
que as relações com Portugal conferiam ao rei congolês e buscando afirmar sua
independência, tentava, com a embaixada, reatar o tráfico de escravos na região
e com isso ganhar poder econômico e político em relação ao rei do Congo. Em
1559, foi enviada uma missão chefiada por Paulo Dias de Novais para, entre
outros fins, converter o rei angolano e suas gentes.
Embora ao longo de todo o século XVI os portugueses continuassem a enviar
escravos a partir do porto de Mpinda e do Loango, via S. Tomé, depois da
fundação de Luanda, em 1575-76, Angola tornou-se o principal fornecedor de
escravos.
No Congo, como em Angola, a missionação esteve presente junto aos primeiros
esforços colonizadores, mas encontrou muitas dificuldades com o passar dos
anos. E não se pode deixar de enfatizar que o maior problema da missionação,
sem dúvida, foi a escravatura, da qual os religiosos não puderam passar ao
largo.
O Rosário de Vieira
Embora, originariamente, tenham sido os dominicanos os principais promotores da
devoção ao rosário, com a multiplicação das irmandades além-mar eles perderam,
se não a primazia, a exclusividade. Julita Scarano diz que desde o século XIV
eram numerosos os conventos da ordem dominicana em Portugal, e tanto eles como
as associações por eles criadas contribuíram em muito para estimular a devoção
ao rosário no reino e no ultramar. Assim, desde 1556 havia confraria dessa
invocação em Chaul e em outras regiões da África e Ásia onde se estabeleceram
os dominicanos. Mas outras ordens também criaram irmandades do rosário, como os
agostinianos e franciscanos. Na América portuguesa, a irmandade do rosário
"[...] foi trazida, sobretudo, pelos jesuítas e é mesmo possível que tenha
vindo com confrades saídos de Portugal, empenhados em introduzir essa piedade
nos lugares que procuravam" (Scarano, 1978:47).
Foi, portanto, pela obra dos missionários que o culto se expandiu nas terras
americanas e, através do culto à Senhora do Rosário, os negros rearticularam
suas crenças, reinterpretando os rituais de devotamento ao rosário da Senhora.
Os negros, segundo Megale (1998:431), usavam o rosário pendurado no pescoço e,
ao final do dia, reuniam-se em torno de um "tirador de reza" e ouvia-
se nas senzalas o sussurrar das ave-marias e pai-nossos.
Várias foram as irmandades de negros consagradas a Nossa Senhora do Rosário na
América portuguesa, o que, aliás, nos faz pensar sobre o lugar central ocupado
pelas irmandades nesse cotidiano religioso colonial. Em todos os quadrantes da
América portuguesa elas preencheram inúmeras necessidades de culto, mantiveram
viva a chama do catolicismo, erigiram igrejas, empreenderam obras pias,
garantiram enterros cristãos, assistiram os necessitados, substituíram, enfim,
em diversos aspectos, a débil estrutura eclesiástica que os portugueses
estabeleceram aqui.
Segundo Arthur Ramos, a obra dos missionários no Congo preparou a aceitação de
várias devoções que chegaram à América portuguesa. Frei Agostinho de Santa
Maria, no início do século XVIII, entretanto, tinha uma outra explicação para o
início do culto entre os negros. Segundo ele, foi uma imagem resgatada em Argel
que deu início ao culto e levou os negros a escolherem-na como padroeira. Gomes
& Pereira (1992:346) relacionaram a ligação da festa de Nossa Senhora do
Rosário com os negros a partir de um relato do surgimento da imagem nas águas.
Segundo o relato, para louvar a Mãe de Deus, os brancos trouxeram banda de
música e cantaram suas loas, chamando a Virgem ' mas a imagem não se movia.
Vieram, então, os negros do Congo, batendo seus instrumentos em ritmo
acelerado, e a Senhora moveu-se apenas lentamente, permanecendo nas águas. Foi
somente a batida lenta dos tambores do Moçambique que tirou a imagem das águas.
Aí, os brancos levaram a imagem para capela, onde o padre a benzeu. Mas a
imagem desapareceu do altar e voltou às águas até que os negros a retiraram,
desta vez definitivamente, para torná-la sua padroeira.
Uma opção da Igreja pela Virgem, ou uma opção dos negros por ela, fez da
Senhora do Rosário uma devoção especial? Aqui importa pensar as estratégias de
promoção do culto na América portuguesa e, desta maneira, reconhecer nos
missionários jesuítas seus principais promotores, na medida em que tiveram
papel preponderante na ação evangelizadora aqui difundida.
Para pensar a ação jesuítica nesse texto, no entanto, o caminho será servir-se
de um dos seus maiores expoentes: Antonio Vieira, que foi, talvez, a maior
figura intelectual luso-americana no século XVII. Mas a escolha do seu nome
deve-se a uma série de trinta sermões que escreveu sobre o rosário, publicados
originalmente em dois volumes, em 1686 e 1688, com o título Maria Rosa Mística.
Nesses sermões, Vieira escreveu sobre a importância da oração verbal e da
oração mental; e como no rosário ambas se conjugam, dizia que este era o meio
mais eficaz de os católicos guardarem os Mandamentos; também desenvolvia a
idéia de como, através da oração do rosário, se poderia combater as heresias.
Preocupava-se, pois, em divulgar a devoção ao rosário e em demonstrar os
poderes da oração através dele.
No sermão XII, um dos poucos datados, pregado em 1639, na Sé da Bahia, Vieira
dizia que, em 1475, estando a cidade de Colônia bloqueada por todas as partes,
devastada e ocupada pelo exército de hereges, apareceu a Virgem Maria a Jacob
Sprenger e mandou que ele pregasse e exortasse a devoção ao rosário e que
prometesse, em seu nome, que, por meio dela, toda a província ficaria livre das
armas inimigas. E assim a Virgem teria cumprido a promessa, pois a vitória foi
obtida com a expulsão dos hereges. Ora, assim como a Virgem ordenara que
Sprenger pregasse o rosário em Colônia, da mesma forma mandava que Vieira o
pregasse na Bahia. Do mesmo modo, ainda, como em vários episódios de batalhas
anteriores, em outros lugares da Europa, diante da ameaça herege em Pernambuco,
cabia aos nossos soldados colocar a figura da Senhora nas bandeiras e usar o
rosário a tiracolo, pois, assim, mesmo em desvantagem numérica, poderiam
alcançar a vitória.
Mas, nos sermões XVI, XX e XXVII, Vieira parece ter preocupações para além das
exegéticas. Neles, Vieira relacionou a devoção ao rosário ao cativeiro dos
negros pela escravidão.
No sermão XVIII, dirigido aos negros escravos, Vieira elegeu como assunto a
carta de alforria oferecida a eles pela Senhora do Rosário. O jesuíta dizia
que, ao ver os negros tão devotos à Senhora, como filhos dela, concluiu ser
"o cativeiro da primeira transmigração [...] ordenado por sua misericórdia
para a libertação da segunda". Mais do que isso: sua carta de alforria não
só era promessa de liberdade eterna na outra vida, mas de os escravos se
livrarem do maior cativeiro desta vida. Vieira, então, cita Homero e Sêneca
para dizer que os escravos não eram escravos em tudo: a melhor parte do homem,
que é a alma, é isenta de todo domínio alheio e não pode ser cativa. Desse
modo, os negros, por mais que padecessem no cativeiro, deviam se lembrar que
aquele não era um cativeiro total, senão que meio cativeiro.
Ora, Vieira defendia a idéia de que havia dois tipos de cativeiros: o do corpo,
no qual os corpos eram cativos involuntariamente e escravos dos homens, e o da
alma, em que as almas, por vontade própria, se faziam cativas e escravas do
demônio. Se a alma era melhor do que o corpo, e o demônio pior senhor que o
homem, se o cativeiro dos homens era temporal e o do demônio, eterno, o maior e
o pior cativeiro só podia ser o da alma. A Senhora do Rosário, então, segundo
Vieira, haveria de libertar, tornar forros os negros do maior cativeiro. Os
negros deviam, assim, cativarem-se para se libertarem e se fazerem escravos da
Virgem do Rosário para não o serem do demônio; apagarem a marca do demônio, que
era a marca dos cativos, e colocarem em seu lugar a marca do rosário, essa,
sim, a marca dos libertos.
Segundo Saunders (1982:66), Gomes Eanes de Zurara foi um dos grandes defensores
da idéia de que os africanos eram escravos por causa do pecado. Seguindo os
filósofos escolásticos, acreditava que ao pecar o homem podia cair no estado
servil e justificava a escravidão por ela poder transformar os negros em
cristãos e por poder fazer com que usufruíssem de um nível superior de
existência material. Para Saunders (idem:68), no que respeita ao século XVI, a
justificação suprema para o tráfico de escravos era a que sustentava ser a
escravização um método eficaz para trazer os negros à luz da fé cristã.
David Brion Davis (2001:109) diz que muitos historiadores exageraram a antítese
escravidão versus doutrina católica. A defesa da escravidão esteve entrelaçada
com conceitos religiosos, e este amálgama, que se desenvolvera na Antiguidade,
estava prefigurado no judaísmo e na filosofia grega. A escravidão, desse modo,
em um certo sentido era vista como uma punição resultante do pecado, ou de um
defeito natural da alma, que impedia uma conduta virtuosa. Era também vista
como um modelo de dependência e de submissão. Mas, ainda em outro sentido, a
escravidão situava-se como ponto de partida para uma missão divina. Foi da
escravidão do corpo corrompido de Adão que Cristo redimira a humanidade.
Vieira, no XXVII sermão, seguindo a visão neoplatônica da distinção entre corpo
e alma, defendeu a idéia de que a real escravidão era a da alma, e desta só se
livrariam convertendo-se à fé católica, representada pela devoção a Nossa
Senhora e ao rosário, possivelmente os maiores símbolos da Igreja Católica
missionária e contra-reformista. Na luta pela liberdade da alma, valia mesmo,
segundo Vieira, não obedecer ao senhor quando este os levasse a ofender
gravemente a alma e a consciência. O jesuíta aproveitava para criticar os
senhores que não deixavam serem ministrados os sacramentos para os escravos,
que os deixavam sem conhecimento da doutrina, que não os deixavam ir à igreja e
os deixavam viver em pecado. Cabia ao escravo, portanto, não ofender a Deus e,
caso fossem por isso castigados, deveriam sofrer "animosa e
cristãmente", ainda que por toda vida, pois estes castigos eram martírios.
No sermão XX, Vieira tomou como questão qual das irmandades, a de negros ou de
brancos, é mais favorecida da Virgem Senhora. Para comprovar o amor da Mãe de
Deus pelos escravos, Vieira lembraria do episódio da Anunciação, no qual Maria
respondeu ao Anjo: "Eis a escrava do Senhor!". Vieira argumentaria,
então, que a razão pela qual Maria se declarou escrava antes de conceber o
Filho de Deus teria sido "porque o parto, segundo as Leis, não segue a
condição do pai, senão da mãe". Assim, ao fazer essa declaração
antecipada, ela quis
[...] que o Filho, que havia de ser seu, como filho de Escrava,
nascesse Escravo nosso. Enquanto Filho de seu Pai, é senhor dos
homens; mas enquanto Filho de sua Mãe, quis a mesma Mãe, que fosse
também Escravo dos mesmos homens.
No século XVII, a partir da Espanha, teve grande incremento a devoção à santa
escravidão.
Da Espanha, a escravidão mariana passou à França, graças ao Cardeal
de Bérulle e ao Arquidiácono de Évreux, H. Boudon, que em 1667
escreveu o livro Deus Só ou a Santa Escravidão à Admirável Mãe de
Deus, no qual esclarece que essa forma de escravidão consiste num
"santo comércio com a Rainha do Céu e da Terra, pelo qual se
consagra a Ela a própria liberdade para ingressar no número dos seus
escravos, constituindo-A patrona absoluta do próprio coração,
cedendo-lhe o direito que se tem em todas as boas ações, dedicando-se
inteiramente ao serviço de sua grandeza e fazendo disso alto
protesto". (Santos, 1996:134)
Em 1694, D. Pedro II de Portugal chegou a aprovar os estatutos da Confraria dos
Escravos de Nossa Senhora da Conceição então já padroeira do Reino e de seus
domínios na igreja de Vila Viçosa. A escravidão marial ganhou contrafações e
acolhida entre grupos, como o dos quietistas, que foram condenados pela Igreja,
influenciada, em muito, pelo ativismo da Companhia de Jesus. Vieira, se em
outros sermões pregava a prioridade ao fazer, não parece ter se detido na
polêmica entre voluntaristas e quietistas, e, talvez, tenha se influenciado
pela escravidão marial na esteira de Bérulle e Boudon e da escola espanhola.
O sermão XIV também dos poucos datados foi pregado na Bahia à irmandade de
negros em um engenho, no ano de 1633. Nele, Vieira intentou comparar a paixão
de Cristo ao sofrimento dos negros no cativeiro. E, dessa maneira, pode
conjugar a exegese, a propaganda e a escravidão negra, ao falar dos mistérios
contidos no rosário, compará-los ao sofrimento negro na colônia e apontar para
a Virgem como mãe também dos escravos.
A análise da série de sermões Maria, Rosa Mística de Vieira pode iluminar a
importância da devoção ao rosário, porém, mais do que isso, como tal devoção se
conjuminava com as preocupações de uma Igreja ao mesmo tempo inquieta e
expansionista. Mas a penetração da devoção ao rosário e à Senhora do Rosário no
Brasil só pode ser compreendida no espaço mais amplo da velha cristandade, por
um lado, e do Império português, por outro.
A África foi campo de experiências da política de expansão e colonização
portuguesas. Sua anterior conquista, a da América, portanto, não pode ser
esquecida para avaliação também do papel fundamental que coube ao catolicismo
na dominação portuguesa. Mas é ao considerar a concomitante promoção da devoção
ao rosário na velha cristandade e no ultramar que podemos percebê-lo como uns
dos instrumentos principais de propaganda da fé, ligado ao espírito da Reforma
católica.
Notas
1.
Segundo A. C. Gonçalves, os cronistas João de Barros, Rui de Pina e Garcia de
Resende não estão de acordo quanto às datas e número de expedições de Diogo
Cão. "A primeira viagem teria sido 1482 83 e a segunda, na qual subiu o
rio Congo até as cataratas do Yelala, em 1484 85" (Gonçalves, 1992:525).
2.
"Até as ilhas de Cabo Verde, a armada foi comandada por Gonçalo de Sousa.
Mas, tendo falecido este, assumiu o comando Rui de Sousa [...]" (Araújo
& Santos, 1993:646)
3.
"A que Ordem pertenceriam estes três primeiros missionários? Surgem
diferentes possibilidades. João de Barros, na sua Década Primeira, capítulo
III, quando refere a educação, no convento dos Lóios (frades de São João
Evangelista) dos jovens naturais do Congo e do seu baptismo, antes de serem
entregues aos cuidados de Gonçalo de Sousa para os restiuir à pátria, diz que
foi escolhido um dominicano. Os Lóios, por sua vez, reivindicam para a sua obra
a primazia da acção apostólica empreendida e mencionam como superior frei João
de Santa Maria, 'religioso de grandes letras e virtudes', bem como Frei João de
Portalegre, Frei António de Lisboa e o 'Manicongo', Frei Vicente dos Anjos,
assim chamado por ter sido um dos mais notáveis missionários da evangelização
do Congo" (Araújo & Santos, 1993:648).