A construção sociológica da raça no Brasil
O primeiro ato moral consiste em não sobrepor a dupla do bem e do mal à dupla
do 'eu' e do 'outro'.
(Tzevan Todorov).
Tanto pelos bons quanto pelos maus motivos a formação nacional brasileira desde
muito interessou pesquisadores e ideólogos para além das fronteiras nacionais.
A mitologia da brasilidade mestiça, integradora de todas as etnias e ponto de
equilíbrio das diferenças culturais, canonizada por Gilberto Freyre em Casa
Grande & Senzala, constituiu, em muitos momentos da história recente, a
imagem contrastiva, ora latente, ora intrigante, dos discursos identitários em
nações que, sob todos os demais aspectos, pareciam, a seus próprios membros,
muito melhores que o Brasil. Assim, no âmbito do "Projeto Unesco",
conforme se lê na reconstrução esclarecedora de Maio (2000), as Nações Unidas
buscavam estudar e apresentar ao mundo aquilo que se considerava uma
experiência "singular e bem-sucedida" de acomodação de diferenças
raciais e étnicas. Anos antes, por razões opostas, o modelo brasileiro havia
interessado aos pesquisadores raciais do Terceiro Reich (Krieger, 1940). Trata-
se, nesse âmbito, da condenação enfática e veemente do festejamento político da
"mistura racial" e da ênfase na necessidade de preservação da
"integridade genética" dos brancos de ascendência ariana, aos quais
caberia liderar o processo de condução do Brasil ao desenvolvimento.
Tratado, portanto, numa perspectiva histórica, a crítica conjunta do sociólogo
francês Pierre Bourdieu, recentemente falecido, e do antropólogo Loïc Wacquant
(Bourdieu & Wacquant, 1998) à nova geração de pesquisadores estadunidenses
e brasileiros dedicados ao estudo das "relações raciais" no Brasil
não chega propriamente a constituir uma novidade. O que há de novo na polêmica
é que o caso brasileiro é tomado pelos dois intelectuais franceses com o
objetivo de demonstração empírica da tese mais ampla que procuram desenvolver,
a saber, a constatação da existência de um imperialismo cultural e acadêmico
dos americanos no mundo contemporâneo.
A intervenção etnocêntrica estadunidense ganharia, segundo Bourdieu e Wacquant,
particular nitidez nos estudos sobre as desigualdades "etno-raciais"
observadas no Brasil. Aqui, através do patrocínio de instituições filantrópicas
como a Fundação Ford e a Fundação Rockefeller, bem como por meio do treinamento
de cientistas brasileiros e da produção intelectual de pesquisadores norte-
americanos, muitos deles afro-descendentes, o imperialismo americano se
manifestaria na construção do campo de estudos das relações raciais, guiado
pelo imperativo de que se interprete as relações sociais no Brasil a partir da
dicotomia bipolar branco-negro própria da sociedade americana. Uma tal
transposição imprópria e obtusa de modelos analíticos seria operada
exemplarmente por Michael Hanchard (1994), o qual estudaria a história do
movimento negro brasileiro como se tratasse do "Civil Rights
Movement", ignorando que
[...] no Brasil, a identidade racial é definida por referência a um
continuum de "cor", isto é, através do uso de um princípio
flexível ou difuso que, levando em conta traços físicos, como a cor
da pele, a textura do cabelo e a forma dos lábios e do nariz e a
posição de classe (os rendimentos e a educação notadamente) engendra
um grande número de categorias intermediárias. (Bourdieu &
Wacquant, 1998:112)
Os artigos reunidos no número especial da revista Theory, Culture and Society
(vol. 17, nº 1, 2000) parecem mostrar, de forma convincente, que o conceito de
"imperialismo", em qualquer das conotações que mereceu
historicamente, não traduz de forma adequada as relações entre cientistas
sociais e movimentos sociais do Norte e do Sul, no mundo atual. Ainda que não
sejam simétricas, tais relações encerram vicissitudes que extrapolam o tipo de
dominação unilateral expressa pelo conceito de imperialismo, em suas diferentes
extrações. Todas as sociedades contemporâneas contêm, em alguma medida, um
componente pós-nacional, de sorte que tanto as agendas de pesquisa quanto os
atores sociais se constituem no campo de tensões entre determinantes internos e
externos às fronteiras nacionais (sobre a "constelação pós-nacional",
ver Costa, 2001b). Somente quanto se toma em consideração o complexo jogo de
interpenetrações sociais e alianças transnacionais é que se pode entender, por
exemplo, por que temas como o meio ambiente, a igualdade de gênero ou a luta
contra a discriminação racial ganham, nas agendas política e acadêmica
brasileiras, uma importância desproporcional ao peso político dos atores
sociais que as representam no contexto nacional. Há, seguramente, nesses casos,
uma conexão entre as agendas dos movimentos sociais na França, Alemanha ou
Estados Unidos e países como o Brasil que não pode, é óbvio, ser condenada
politicamente como expressão imperialista.
A inadequação conceitual parece constituir, contudo, a dimensão menos relevante
da crítica de Bourdieu e Wacquant ao imperialismo americano, a qual parece
orientada, no âmbito da Realpolitik acadêmica, muito mais pela
"responsabilidade" que pelo "convencimento". Necessita, por
isso, ser interpretada a partir da lógica e dos nexos internos do
"campo" acadêmico, tarefa que só pode ser realizada adequadamente por
cientistas que conhecem as vicissitudes dos ambientes institucionais em tela,
como bem demonstra a análise de Wieviorka (2000). Limita-se, por isso, aqui aos
aspectos teórico-metodológicos da crítica, buscando fazer do debate presente o
mote para uma discussão, exploratória e sujeita a revisões, dos usos da
categoria raça no âmbito dos estudos raciais relacionados com o Brasil.
De início, há que se constatar que não há monolitismo teórico, político ou
quanto à qualidade dos trabalhos recentes produzidos no campo de pesquisa aqui
denominado de estudos raciais. Trata-se, na verdade, de um conjunto variado de
contribuições que ganham novo impulso ao final dos anos 70 através dos
trabalhos de Carlos Hasenbalg e Nelson do V. Silva (cf. Hasenbalg, 1979;
Hasenbalg & Silva, 1988; Silva & Hasenbalg, 1992; Hasenbalg, 1995,
Silva & Hasenbalg, 1999; Silva, 2000) e que têm como ponto de partida comum
a compreensão de que o viés "racial" das desigualdades sociais no
Brasil não constitui uma mera reprodução de desvantagens históricas; o
desfavorecimento dos grupos não-brancos continua embutido nas relações sociais.
Como ponto de partida da análise desenvolvida no presente artigo, sugere-se
distinguir, entre os estudos raciais, aqueles trabalhos que dirigem seu foco
para o diagnóstico das desigualdades raciais daqueles que procuram fazer da
idéia de raça uma categoria geral de análise da sociedade brasileira,
estendendo seu âmbito de interesse a um espectro amplo de temas inter-
relacionados, tais como o racismo e anti-racismo (Guimarães, 1999), a formação
nacional brasileira (Guimarães, 2000, 2000a), o movimento negro (Hanchard,
1994), a identidade afro-descendente (Ferreira, 2000), além de estudos de casos
(Twine, 1998) e abordagens comparativas (Winant, 1994).
Deve-se ressalvar, contudo, que a linha que separa os dois conjuntos de
trabalhos referidos nem sempre é nítida. O mais adequado, por isso, seria dizer
que as considerações críticas que se seguem dirigem-se, primordialmente, a esse
segundo momento teórico dos estudos raciais, quando a categoria raça passa a
ser utilizada como instrumento analítico geral, referindo-se abaixo a certos
problemas legados por tal procedimento. Trata-se, inicialmente, da compreensão
incompleta de alguns desenvolvimentos recentes relacionados ao processo de
formação nacional, mostrando-se aqui como a centralidade da categoria raça
ofusca dimensões fundamentais de um fenômeno multifacetado. Em seguida,
procura-se evidenciar que o uso da categoria raça leva a que se estabeleça uma
relação de subordinação da cultura à política e que se construa uma escala
evolutiva entre as diferentes formas culturais de vida existentes, projetando-
se, a partir daí, modelos identitários que passam ao largo das aspirações de
reconhecimento2 das populações desfavorecidas pelas desigualdades raciais.
Nacionalidade e Raça
O tom e os termos dominantes no debate racial brasileiro nas últimas décadas do
século XIX e primeiras décadas do século XX já foram adequadamente
reconstruídos e são hoje bem conhecidos (ver, entre outros, Schwarcz, 1993;
Munanga, 1999; Hofbauer, 1999). O diagnóstico hegemônico até esse período
apontava a inferioridade de fundo biológico dos negros e mestiços, enquanto os
prognósticos variavam de uma avaliação pessimista das possibilidades de se
construir sobre tal base humana uma nação progressista nos trópicos (Nina
Rodrigues, 1935) até a expectativa positiva de que a miscigenação levaria ao
embranquecimento ' no sentido cromático e genético ' paulatino da população
(Oliveira Vianna, 1923).
Os desenvolvimentos que se seguem a essa fase de dominação do racismo
biologicista, que toma a carga genética manifesta nas características físicas
como adscrições infensas à ação política ou individual, são interpretados de
forma controversa na literatura. Interessa aqui reconstruir, ainda que
brevemente, a visão oferecida por publicações recentes associadas ao campo das
relações raciais, valendo-me, sobretudo, dos trabalhos de Guimarães (1999,
2000, 2001) que, nesse aspecto, parecem expressivos do conjunto de
interpretações existentes.
Guimarães (2001:20), apoiando-se em J. Skurskie e R. Noiriel, percebe os
reflexos da Guerra Franco-Prussiana e da disputa entre o modelo de constituição
nacional na França e na Alemanha no processo de formação da identidade nacional
no Brasil. Segundo o autor, a nacionalidade brasileira teria sido influenciada
diretamente pelo esforço francês em construir uma comunidade nacional integrada
não pelas origens, mas pelo contrato, diferenciando-se, assim, do nacionalismo
alemão de corte étnico-racial. Contudo, para Guimarães a idéia de nação que
acaba prevalecendo, historicamente, na França, é ambígua, preservando-se a
referência implícita a uma "raça histórica" construída a partir
"de memórias coletivas, de experiências históricas e do culto aos
ancestrais".3
Os trabalhos de Gilberto Freyre nos anos 30 refletiriam tal influência
francesa, herdando dela a ambigüidade no tratamento da raça. Ou seja, ao
contrário de muitos intérpretes de Freyre (ver, p. ex., Araújo, 1994),
Guimarães não entende que o autor opera uma inflexão definitiva no discurso
racista dominante. Segundo ele, Freyre rompe com o biologicismo, mas não com a
idéia de raça. Para Guimarães, Freyre defende uma "concepção eurocêntica
de embraquecimento" que:
[...] passou, portanto, a significar a capacidade da nação brasileira
(definida como uma extensão da civilização européia em que uma nova
raça emergia) de absorver e integrar mestiços e pretos. Tal
capacidade requer, de modo implícito, a concordância das pessoas de
cor em renegar sua ancestralidade africana ou indígena.
"Embranquecimento" e "democracia racial" são,
pois, conceitos de um novo discurso racialista. (Guimarães, 1999:53)
Seguindo as pistas de Freyre, a produção subseqüente, segundo Guimarães,
mostrou-se pouco atenta ao caráter racial do modelo de nacionalidade cunhado
nos anos 30, identificando a persistência do tratamento desigual como
preconceito de cor e não de raça e, mesmo quando mais tarde, na forma como
Florestan Fernandes denunciaria o mito da democracia racial, ele acabaria
subsumindo o racismo nas diferenças de classe, negando-lhe um caráter
estrutural, genético para as relações sociais.
Nos anos recentes, os estudos sobre desigualdade racial, bem como os avanços
políticos observados no interior do movimento negro, teriam colocado
definitivamente em xeque o mito da democracia racial. Assim, se a nacionalidade
brasileira foi construída historicamente como identidade mestiça no
[...] espaço de representação demarcado por três pólos raciais ' o
branco, o negro e o índio ', se distanciando cuidadosamente de cada
um deles [...], [atualmente] o branco de classe média busca sua
segunda nacionalidade na Europa, nos Estados Unidos ou no Japão ' ou
cria uma xenofobia regional racializada; o negro constrói uma África
imaginária para traçar sua ascendência, ou busca os Estados Unidos
como meca afro-americana; os índios recriam a sua tribo de origem.
(Guimarães, 2000a: 28)
A incursão dos estudos raciais no processo de formação nacional apresenta de
saída um mérito digno de nota: eles identificam o núcleo heterofóbico das
concepções de Freyre. Constituem, assim, um valioso contraponto às tentativas
impróprias observadas nos últimos anos de reabilitação do pensamento político
do autor como se se tratasse de expressão da tolerância e do apelo pela
convivência plural, havendo mesmo referências a Freyre como idealizador de algo
como um pós-colonialismo avant la lettre (como faz mesmo um autor criterioso
como Pieterse, 1998). Analiticamente, contudo, a leitura da obra dos anos 30 de
Freyre e do processo de constituição nacional desde então, quando fixada na
lente da categoria raça, acaba por identificar como construção do mito da
democracia racial um fenômeno de dimensões múltiplas e desdobramentos extensos.
Ou seja, se Casa Grande & Senzala pode ser tomada, da mesma forma que a
ficção fundacional em outros países, como um manifesto de (re)fundação da
nação, o conjunto de transformações políticas coetâneas à obra não pode ser
interpretado como processo de construção de uma ideologia racial. Trata-se, na
verdade, no final da década 1930, de uma inflexão profunda e definitiva no
processo de redefinição da identidade nacional. Constitui-se, nesse momento, as
bases de uma ideologia da mestiçagem que, em seus aspectos culturais,
orientaria a ação dos governos brasileiros pelo menos até o fim da ditadura
militar (cf. Costa, 2001a). Em tal corpo ideológico, a afirmação de uma
"brasilidade mestiça" como unidade da diversidade ' nos termos
sistematizados intelectualmente por Freyre ' é mantida como pré-requisito da
constituição da comunidade política nacional.4 Não obstante, em sua
transposição para a política, tal ideário ganha novas determinações; a
principal delas corresponde à crença na construção de um futuro próspero comum
como objetivo universal e lugar imaginário no qual todos os membros da nação,
separados pelo passado distinto, se encontrariam.
Parece ser essa orientação para o futuro que constitui o principal legado
francês à formação nacional brasileira. Giesen, estudando o Iluminismo e o
processo de formação do Estado Nacional na França e na Alemanha, pontua
diferenças que nos ajudam a compreender a ideologia que refunda a nação
brasileira nos anos 30 e 40. No caso francês, ele mostra que o ideal iluminista
é cosmopolita na medida em que vê os diferentes povos nos diversos continentes
' em que pesem as disparidades regionais de desenvolvimento explicadas não
pelas desigualdades de aptidão inatas, mas pelas possibilidades desiguais
oferecidas pela natureza ' atados pelo futuro comum que os une como membros da
humanidade. Ipsis verbis:
É do futuro e não do passado que se tomam as categorias universais,
com as quais a realidade contingente do presente é percebida e
julgada, é no futuro e não no passado que se encontra o elo que
congrega e une a humanidade. (Giesen, 1999:146)
No caso alemão, os intelectuais iluministas modificam os termos da relação
entre humanidade e natureza, acentuando o paradoxo entre a natureza humana
idiossincrática e individual e a artificialidade do mundo burguês, surgindo daí
o traço romântico que iria marcar mais tarde a constituição da nação alemã. A
nação representada pelo povo unido pela cultura e pela ancestralidade comum se
tornaria o terreno idealizado no qual a natureza individual e o mundo exterior
se reconciliariam. A relação da concepção romântica da nação com o futuro, no
caso alemão, é exatamente oposta àquela que se verifica no iluminismo francês.
Para os românticos alemães, a Idade Média é recoberta de um brilho que se
perdera, é no passado que eles vão buscar as tradições que se quer reviver no
âmbito da busca por "individualidade e autenticidade" (ibidem:178).
Parece evidente que é o desejo de sobrepor a força do progresso ao passado
opressivo e a construção de uma identidade voltada para o futuro, próprios ao
iluminismo francês, e não a ênfase na ancestralidade comum dos românticos
alemães que marcam a reconfiguração da nação brasileira a partir dos anos 30.
Não se trata, por isso, da construção de uma ideologia racial como afirma
Guimarães, mas de uma ideologia nacional não racial, no sentido preciso de que
"evita" a raça (Davis, 1999), enquanto critério legítimo de adscrição
social ' a meta-raça a que se refere Freyre ou a professada "unidade da
raça" do discurso varguista (Carneiro, 1990:35) viram uma metáfora da
nacionalidade, não são, portanto, conceitos raciais, mas não-raciais, a
despeito de se valerem da semântica da raça. Isto é, raça só faz sentido no
corpo de uma ideologia que diferencia e segmenta os grupos humanos conforme
adscrições naturais, um discurso que rompe com tais distinções é um discurso
não racial, o que não significa, obviamente, que se trate de uma ideologia
anti-racista ou não racista, ou mesmo que ela seja neutra com relação à
permanência das desigualdades raciais. Enfatize-se, contudo, que não se trata
de uma ideologia racial, mas de uma ideologia nacional, com múltiplas
dimensões.
Em sua dimensão política, a ideologia nacional que se constrói a partir de 1930
apresenta o caráter inclusivista/assimilacionista do modelo francês,
dispensando claramente o requisito da ancestralidade comum como condição de
pertença à nação. Os traços que distinguem os dois modelos são a ênfase na
participação cívica e na igualdade substantiva entre todos os cidadãos,
ausentes do modelo brasileiro. Como se sabe, à igualdade jurídica não
corresponde, no Brasil, uma igualdade efetiva no que tange ao gozo dos direitos
civis e políticos.
A ideologia da mestiçagem comporta, como em outros países latino-americanos
(cf. Martinez-Echazábal, 1998), uma dimensão de gênero. Tanto no trabalho de
Freyre quanto no âmbito do esforço consistente de institucionalização de uma
ideologia nacionalista no Estado Novo, reifica-se a imagem da mulher sem
subjetividade própria e sem vida cívica e política autônomas; nesse constructo,
a mulher realiza-se e se completa enquanto objeto do desejo masculino.5
Em sua expressão social, a ideologia da mestiçagem é aristocrática, romantiza
as desigualdades, banalizando-as. Não há, contudo, uma justificativa moral para
as desigualdades que esteja apoiada na crença em alguma hierarquia natural/
biológica entre os diferentes membros da nação, como se se acreditasse que os
miseráveis fossem feitos de um "barro diferente", conforme a imagem
de Souza (2000). Para que se transforme numa questão moral, a igualdade social
precisa ser politicamente construída e individualmente internalizada como um
valor, o que simplesmente não se deu na história brasileira. A justiça social
não é um bem natural, é um valor político que determinada sociedade pode
construir ' ou não.
Em sua face cultural, tal ideologia procura disciplinar a heterogeneidade
existente, selecionando, através da ação discursiva e política sistemática,
aquelas manifestações que conformam a identidade nacional, restringindo-se
expressões divergentes, daí seu traço heterofóbico. Não me parece haver aqui
uma supressão preferencial da ancestralidade africana ou indígena como sugerem
os estudos raciais, o que há é uma integração hierarquizada dos diferentes
legados e a obliteração das marcas étnicas que pudessem ser entendidas como
desagregadoras da nação idealizada. Sob tal aspecto ' e somente sob tal aspecto
' não há uma penalização maior dos indígenas e afro-descendentes que dos demais
imigrantes não europeus (ver, a respeito, a cuidadosa análise de Lesser, 1999)
ou da população-alvo da Campanha de Nacionalização varguista (Seyferth, 1997).
Em sua dimensão racial, a ideologia da mestiçagem caracteriza-se por banir o
conceito raça do debate público, o que apresenta obviamente resultados
ambíguos. De um lado, o racismo biologicista perde sua legitimidade imanente;
de outro, o racismo presente nas relações e nas estruturas sociais permanece
intocado. No âmbito de tal ideologia e do conjunto de práticas políticas que a
acompanha, a ênfase no branqueamento, no sentido biológico até então dominante,
é substituída pelo discurso da modernização, no sentido econômico e social.
Souza (2000, cap. 8) mostra que é a aquisição e adesão a isso que se idealizou
serem as habilidades e os valores modernos que estrutura as hierarquias sociais
no Brasil já desde o Século XIX. Essa dimensão da ideologia da mestiçagem,
enquanto aposta no futuro e decorrente reificação da modernidade, parece-me,
passadas tantas décadas, continuar relativamente intocada. É ainda a
"religião civil" brasileira, elege presidentes, legitima políticas
públicas excludentes e torna os "atrasados" culpados por sua miséria.
É na conjunção com o nacionalismo modernizante que se reformulam e se
generalizam adscrições sociais negativas de fundo racial e regional. Assim, no
catálogo dos preconceitos estabelecidos, o negro em qualquer região carrega o
estigma do atraso, o nordestino no Sul se transforma em sinônimo de
subdesenvolvimento,6 e o país como um todo, diante de um mitificado "mundo
desenvolvido", mais tarde "Primeiro Mundo", se auto-representa
como a encarnação do atraso.
O mito que persistiu desde os anos 30 e que parece ir se desconstruindo a
partir dos finais dos anos 70 é o da brasilidade inclusiva e aberta, capaz de
integrar em seu interior harmonicamente as diferenças. De fato, fenômenos como
a rearticulação do Movimento Negro, o surgimento de um movimento feminista, a
tematização pública do homossexualismo, o crescimento das igrejas não
católicas, o fortalecimento do movimento indígena, a reconstrução de uma etnia
quilombola e a recuperação de uma etnicidade híbrida por parte de descendentes
de imigrantes conformam um contexto de pluralismo cultural que contrasta com a
imagem, que se estrutura desde Vargas, da nacionalidade unitária capaz de
retraduzir todas as reivindicações de reconhecimento da diferença sob a chave
da brasilidade. Trata-se, portanto, não da afirmação do caráter multirracial do
Brasil, como sugerem os estudos raciais, e da decomposição decorrente dos
elementos raciais que teriam composto a nação ' branco, negro, índio ', mas de
uma desconstrução étnico-cultural e da afirmação do caráter multicultural em
oposição à ideologia da mestiçagem que fundira ' e ao fazê-lo apagara ' as
diferenças. Com efeito, o índio não se reidentifica como raça, mas como
Munduruku ou Xavante, o branco se reidentifica como descendente de italianos ou
alemães e, mesmo a reidentificação dos afro-descendentes, apesar da referência
discursiva à raça como substituto das pertenças étnicas obliteradas pela
escravidão, não se dá, como se mostrará mais adiante, necessariamente no termos
da construção de uma identidade racial. A mulher, por sua vez, busca também
conquistar uma posição na gramática nacional distinta daquela que lhe conferiu
a ideologia da mestiçagem, afirmando sua autonomia emocional e sua condição de
sujeito. É esse mito da democracia cultural, isto é, a crença compartilhada
coletivamente de que o Brasil aceita e alimenta a diversidade, que vem perdendo
sua eficácia simbólica nos últimos anos.
O mito de que o país não é racista aparece enquanto elemento constitutivo de
uma construção política mais abrangente e começa a ser desfeito, pelo menos no
plano cognitivo, desde o estudo piloto da UNESCO, pioneiro em indicar o racismo
ocultado sob o discurso da democracia racial. Obviamente não se está afirmando
que o Brasil se tornou menos racista depois que, nos anos 1950, começaram a vir
à luz as desigualdades raciais. Assim como o familismo, o clientelismo ou o
personalismo, as adscrições raciais atuam como prática social que molda as
oportunidades individuais, além e acima dos méritos pessoais. Como essas outras
práticas, o racismo é, há algum tempo, reconhecido socialmente e condenado
publicamente pela maioria das pessoas, como indicam recorrentemente os surveys
de opinião.7 Ou seja, a ausência de racismo, assim como a ausência de familismo
ou de clientelismo, permanecem como valor e ideal, malgrado sua fraca
materialização nas práticas sociais. A justiça social, em contrapartida, não
parece ter o estatuto de uma questão moral para a sociedade, na medida em que
as desigualdades sociais são explicadas pelo rasgo modernizante da ideologia da
mestiçagem, mantido infenso às desconstruções da identidade nacional.
Esse desfecho não tem o sentido de reduzir a importância do combate ao racismo
ou de dizer que sua superação é um problema de segunda ordem. Já está
sobejamente demonstrado que as desigualdades raciais não desaparecem com a
modernização, ao contrário, se agravam com ela, clamam, por isso, por medidas
específicas de tratamento como a reeducação cívica, as políticas de ação
afirmativa etc. É nesse âmbito que os estudos raciais revelam sua importância
teórica e política; é também nesse espaço que se sustenta a plena legitimação e
justificação das ações de instituições e fundações ' sua procedência, se
brasileira ou estrangeira, não apresenta aqui qualquer relevância ' que apóiam
o combate ao racismo.
Raça e Identidade Afro-Descendente
A raça não tem, no âmbito do campo dos estudos raciais no Brasil, um estatuto
biológico, ou seja "as raças não são um fato do mundo físico, elas
existem, contudo, de modo pleno, no mundo social" (Guimarães, 1999:9ss.),
produtos de formas de classificação sociais com implicações substantivas para
as oportunidades individuais no interior dos diferentes grupos sociais. Por
decorrência, o racismo é entendido como "uma forma bastante específica de
'naturalizar' a vida social, isto é, de explicar diferenças pessoais, sociais e
culturais a partir de diferenças tomadas como naturais".
O uso sociológico da categoria raça como polarização branco/não branco seria
legitimada pela constatação dos chamados estudos "estruturalistas"
(cf. Winant, 1994), no final dos anos 70, de que as desigualdades sociais entre
os diferentes grupos étnico/cromáticos distinguidos nas estatísticas oficiais
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ' preto, branco,
amarelo, pardo e indígena ' poderiam ser reunidos em dois grandes grupos, ora
chamados de brancos e não-brancos, ora chamados de brancos e negros. Isto
refutaria as constatações dos estudos qualitativos que indicam uma gradação
cromática nas adscrições sociais, de forma crescente do escuro para o claro '
ou seja, quanto mais claro mais valorizado socialmente ' e que dão sustentação
à tese de que o que existe no Brasil é preconceito ou discriminação de cor e
não discriminação racial. Ao mesmo tempo, ficaria demonstrado que a
discriminação dos não-brancos não se subsume na classe: mesmo isolando-se os
fatores de classe, persistem desigualdades que só poderiam então ser explicadas
quando se introduz o par branco/não branco como ordem classificatória.
A essa "realidade estrutural" das desigualdades raciais se seguem
conseqüências políticas. Isto é, se a classificação racial branco/não branco é
determinante das oportunidades sociais, então ela deve também conformar as
identidades políticas, rompendo a cortina ideológica do mito da democracia
racial que permite, no plano político, que a ordem racial desigual seja
reproduzida. Por isso, para "os afro-brasileiros, para aqueles que chamam
a si mesmos de 'negros', o anti-racismo tem que significar [...], antes de
tudo, a admissão de sua 'raça', isto é, a percepção racializada de si mesmo e
dos outros" (Guimarães, 1995:43). Essa construção identitária determinada
pelo imperativo político de combater as estruturas que reproduzem as
desigualdades raciais seria animada, tanto a partir da "cultura afro-
brasileira" quanto pelo "legado cultural e político do 'Atlântico
Negro' ' isto é, o Movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos, a
renascença cultural caribenha, a luta contra o apartheid na África do Sul
etc." (ibidem). Esse modelo racializado de identidade deveria ser tanto
encorajado pelo Estado (Guimarães, 1999:190), quanto pela ação do Movimento
Negro. Hanchard (1994:162), não obstante, orientado pela noção gramsciana de
bloco histórico, pondera que a identidade negra a ser construída no Brasil deve
ser menos "diasporic" e mais nacional, apostando na formação de um
leque amplo de alianças.
O processo de construção da "identidade racial" afro-descendente foi
estudado também no plano psicológico-pessoal. Partindo de estudos prévios
elaborados nos Estados Unidos, como aqueles apresentados por Cross Jr. (1995),
Ferreira (2000) mostra que, no Brasil, a construção da identidade afro-
descendente desenvolve-se de maneira distinta daquela estudada no contexto
norte-americano. Não obstante, percebe verificarem-se, também no Brasil, as
fases distinguidas para o caso estadunidense e que ele traduz como: i)
submissão, caracterizada pela internalização dos valores "brancos";
ii) impacto, fase marcada pelas experiências que tornam inevitável o
reconhecimento da discriminação; iii) militância e identidade autocentrada,
quando a cultura branca é absolutamente negada; e iii) articulação, a fase da
alteridade.
Retomando-se aqui aquela distinção estabelecida no início deste artigo, entre
os diversos trabalhos e momentos agrupados no campo dos estudos raciais
percebe-se problemas e méritos analíticos diversos nas várias contribuições e
dimensões de tal campo de pesquisa. Se a categoria raça constitui recurso
metodológico indispensável para a identificação das desigualdades raciais, o
mesmo não se pode dizer, todavia, do uso do conceito como categoria geral de
análise da dinâmica da sociedade brasileira.
Com efeito, estudos como o trabalho de Hasenbalg & Silva (1988) e as
atualizações recentes (ver, p. ex., Silva & Hasenbalg, 1999; Silva, 2000)
corrigem a visão de senso comum de que as "desigualdades raciais"
foram herdadas do passado escravocrata e que tendem a desaparecer. Tais estudos
evidenciam que as chances de ascensão social para "pretos" e
"pardos" continuam muito menores que para os brancos, mesmo quando se
isolam os determinantes ligados à origem social. Ao mesmo tempo, quando se
restringe ao estudo das desigualdades raciais, o agrupamento das categorias
utilizadas pelo IBGE "pardos" e "pretos" no pólo "não
branco", em contraposição a "branco", confere visibilidade às
adscrições raciais que co-determinam as injustiças sociais no Brasil,
constituindo, ao contrário do que afirma a crítica de Bourdieu e Wacquant
referida acima, contribuição analiticamente legítima e, do ponto de vista de
uma política anti-racista, preciosa e indispensável.
Os problemas teóricos surgem quando se deduz do exercício metodológico de
agrupar polarizadamente as diferenças estruturais a categoria raça como chave
interpretativa para se estudar a sociedade brasileira.
Em primeiro lugar, há que se dar conta de que, conforme os dados coligidos por
Schwartzman (1999), algumas diferenças sociais entre "brancos" e
"amarelos" em favor dos amarelos são semelhantes àquelas existentes
entre brancos, de um lado, e pretos e pardos, de outro.8 Ao mesmo tempo, o fato
de o grupo indígena apresentar perfil de desfavorecimento social semelhante
àquele dos pardos e negros não autoriza a tratá-los como não-brancos, logo
negros, esquecendo-se do viés étnico evidente da categoria indígena.9 Por outro
lado, o cruzamento entre o nível de renda e a "origem" (se árabe,
japonesa, espanhola, africana etc.), possivelmente em função das redes sociais
próprias a cada um desses grupos populacionais, pode também ter um peso
importante na co-determinação das desigualdades sociais (cf. Schwartzman 1999:
94).
Ressalte-se ainda com muito mais ênfase, dada a sua abrangência e sustentação
na bibliografia, a clivagem de gênero como igualmente determinante das chances
sociais, para além dos méritos pessoais. Como mostra Lovell (1995), as mulheres
sofrem discriminação ocupacional ' medida através da chance de obtenção dos
postos mais cobiçados ', e salarial ' avaliada pela comparação entre os
rendimentos de pessoas com igual nível de qualificação ', que têm mecanismos
distintos, mas cujo grau de injustiça é comparável àquele que afeta a população
afro-descendente.10
A existência da clivagem de gênero, das clivagens de classe e de outras
possíveis clivagens como a de "origem" ' a ser ainda adequadamente
estudada ' mostram que, do ponto de vista de sua reprodução estrutural, outros
fatores concorrem com a raça como determinantes estruturais das desigualdades
sociais no Brasil. Nesse sentido, a reunião dos diferentes grupos populacionais
nos pólos branco/não-branco ' recurso indispensável para desnudar a dimensão
racial das desigualdades sociais no Brasil ' revela-se insuficiente como matriz
analítica explicativa das múltiplas estruturas hierárquicas existentes no País.
A objeção, por assim dizer, construtivista à generalização do uso sociológico
da categoria raça associa-se ao modo como, no âmbito dos estudos raciais, as
relações entre estruturas sociais e relações sociais são interpretadas. Chama-
se a atenção, aqui, para o fato de que, sem o apoio em estudos qualitativos que
permitam identificar a forma como a dinâmica racial efetivamente opera no plano
das relações sociais, não se pode pressupor, a partir da possibilidade de
agrupamento das desigualdades nos pólos branco-não branco, que a sociedade
efetivamente funciona com base nessa polaridade. Ou seja, níveis e mecanismos
de desigualdade semelhantes não correspondem a processos de desfavorecimento e
de discriminação, no plano das relações sociais, necessariamente símiles.11 Se
se ignora tais distinções, raça acaba funcionando como um mal sucedâneo da
categoria classe na sociologia marxista, na medida em que abrange e subsume
todas as outras adscrições sociais (sobre tal problema, ver Wade, 1997:112).
O problema teórico que se detecta aqui é o de tomar a realidade social como um
reflexo unilateral da estrutura socioeconômica, não levando em conta a forma
como os agentes sociais decodificam as estruturas e constroem os significados
que orientam seus comportamentos e escolhas.
A conseqüência imediata de tal operação sociológica é de que se trata
indiferenciadamente como racismo múltiplas adscrições negativas ' de natureza
cultural, de gênero, étnica ' que, mesmo que possam ter conseqüências
distributivas semelhantes, não são indiferenciadas, quando observadas do ponto
de vista das pessoas concretas nelas envolvidas. Nesse caso, como conceito
geral, parece-me que a categoria segregação traduz melhor a realidade social
das relações desiguais, na medida em que comporta simultaneamente a relação
moral de reprodução das hierarquias e as formas diversas em que a assimetria
social se expressa materialmente ' o acesso desigual a bens sociais como
escola, equipamentos urbanos, rendimentos etc. Permite também a construção de
atributos que qualifiquem a situação particular de humilhação moral e de
desigualdade social, podendo-se referir a uma segregação de gênero, social,
cultural, étnica, espacial e uma propriamente racial, que seria adequadamente
chamada de racismo.
Note-se que, mesmo no caso particular do racismo, ou seja, a adscrição negativa
baseada naqueles traços fenotípicos que o senso comum classifica como raça,
parece não se observar uma dinâmica de segregação fundada na polarização
branco/negro. Isto é, quando se considera ambas as dimensões da segregação
racial ' a estrutural e a moral ' observa-se que, ainda que possa haver, no
plano material, uma dinâmica polarizada de reprodução das desigualdades, os
estudos qualitativos revelam que, no plano moral, o racismo obedece a regras
múltiplas e que variam conforme a esfera social considerada (cf. Sansone,
1996).
A concepção de identidade cultural e, como se viu, também pessoal, subjacente a
alguns estudos raciais, reflete igualmente o objetivismo estruturalista, na
medida em que estabelece, a partir do grau de conhecimento e da internalização
da polarização branco/negro, uma escala evolutiva que permite falar de níveis
distintos de "consciência racial" (Hanchard, 1994, cap. 4). Ao
hierarquizar os modelos identitários, os estudos raciais incorrem em problemas
variados.
Em primeiro lugar, verifica-se que os estudos raciais hipostasiam a dimensão
racional-cognitiva da identidade, fazendo dela a matriz a partir da qual as
escolhas estéticas, simbólicas, culturais devem ser feitas. Ora, como se sabe,
no mais tardar desde a consolidação da perspectiva construtivista no âmbito dos
estudos de gênero, a "identidade de um grupo não se define por um conjunto
de fatos objetivos, ela é o produto de significados experenciados" (Young,
1995:161). Corresponde, por isso, a processos pessoais e coletivos de busca e
conquista de reconhecimento social e envolve, assim, um conjunto complexo de
escolhas e negociações múltiplas e simultâneas, que são informadas por mitos,
desejos, experiências e conhecimento. Não há, nesse sentido, um ponto
arquimediano fora da história e fora das relações sociais que permita julgar as
experiências sociais e coletivas, qualificando de falsa consciência aquelas
construções identitárias não articuladas a partir do conhecimento legado por
uma leitura sociológica particular das relações sociais no Brasil. Seguramente,
é desejável que as desigualdades raciais sejam analisadas em todas as suas
dimensões e que os resultados de tais estudos sejam amplamente divulgados,
permitindo que tanto os que sofrem, quanto os que se beneficiam da opressão
racial possam rever suas concepções. Não cabe, contudo, aos cientistas sociais
construir, artificialmente, um lugar epistemológico acima dos processos
históricos concretos, julgando a partir dele quais são as escolhas identitárias
e as formas culturais de vida válidas.
Analiticamente, a superposição entre raça negra, cultura negra e identidade
negra postulada por alguns estudos raciais é também problemática. Isto é, a
suposição de que a promoção de uma identidade coletiva apoiada na cultura afro-
brasileira e no legado do "Atlântico Negro" reconstruirá o elo entre
o grupo populacional que carrega no corpo aqueles traços físicos responsáveis
pelo desfavorecimento estrutural e a "consciência racial" encontra
difícil sustentação empírica.
Como mostra Gilroy (2000, esp. cap. 7), o autor que melhor sistematizou a tese
do "black Atlantic", as expressões culturais da diáspora africana
conformam um campo complexo, marcado por múltiplas determinações como o viés de
gênero e a "axiologia do mercado" (ibidem:268). Ao mesmo tempo, o
legado cultural do Atlântico Negro tornou-se uma metalinguagem de protesto
polivalente contra situações opressivas diversas como mostra, por exemplo, a
expansão do rap entre os descendentes de imigrantes marroquinos ou argelinos na
periferia de Paris, ou a invenção do oriental hip hop pelos jovens turcos em
Berlim que, se autodenominando negros alemães, buscam cindir o ideal de pureza
que orienta a construção da nacionalidade na Alemanha e impede sua plena
integração cultural (cf. Greve, 2000). Não existe, portanto, um vínculo linear
e imediato entre o legado cultural do Atlântico Negro e um grupo populacional
que, por apresentar determinadas marcas fenotípicas, deve tomar consciência de
sua "raça".
Parece igualmente equivocado tratar os processos culturais de
"reafricanização" verificados no Brasil contemporâneo como
genericamente orientados pela perspectiva da "racialização das relações
sociais". Trata-se, na verdade, de processos de construção de uma
"etnicidade negra" (Sansone, 1999), nos quais a cultura não é uma
variável dependente da política anti-racista e a estética não é um mero
instrumento da "consciência racial". Tais manifestações têm uma
lógica e uma dinâmica culturais próprias, não são, portanto, uma variável
dependente da ação política.
Ao hierarquizar as escolhas e os padrões identitários efetivamente existentes,
alguns estudos raciais acabam traduzindo as diferenças substantivas entre a
auto-identidade dos afro-descendentes brasileiros e a imagem idealizada do
afro-descedente "consciente de sua raça", como um lapso temporal que
faz a construção identitária efetivamente existente no Brasil um pré-estágio
"alienado" da "identidade oposicionista afro-brasileira"
(French, 2000:118). Esse tipo de posição é recusada mesmo por estudiosos das
desigualdades raciais, uma vez que, conforme Hasenbalg (1992:159) "passa
um trator em cima da identidade que as pessoas têm". J. Batista Félix,
conhecida liderança negra paulistana, manifesta insatisfação semelhante
mostrando, ao estudar os bailes "black", que:
Quando olhamos internamente o que temos é um grupo bem heterogêneo.
Esta diversidade precisa ser entendida como uma forma legítima de
existência. Assim não é legítimo simplesmente assumir que todos são
simplesmente "negros" [...]. Propomos que os estudos sobre
identidade levem em conta, definitivamente, este "arco-
íris" como forma característica brasileira de proceder em nossa
sociedade. Ela não é só uma forma de não-dizer, de não-ser, muito
pelo contrário. Muitas vezes, esta nossa particularidade afirma e
revela muita coisa. (Félix, 2000:163)
Ressalte-se que nem mesmo o pragmatismo político pode justificar o objetivismo
evolucionista constatado em muitos estudos raciais. Afinal, a relação causal
entre a racialização das relações sociais e a reversão da situação de
desfavorecimento dos afro-descendentes pode ser tratada no máximo como hipótese
de trabalho ou desiderato político.12 Isto é, na medida em que nunca foi
aplicada ao caso brasileiro, a tese de que o fortalecimento da consciência
racial e a decorrente "racialização das relações sociais" constituem
o caminho por excelência para combater o racismo apresenta o mesmo estatuto
teórico da tese oposta, a qual sustenta que o racismo será vencido não através
da promoção de uma política identitária, mas por meio da criação de condições
político-institucionais para que o fenótipo não tenha qualquer influência sobre
o exercício da cidadania, defendida por autores como Reis (1997).13
Por último, se se toma por base o estudo criterioso de Hofbauer (1999) sobre o
branqueamento e, particularmente, sua análise comparativa entre a Frente Negra
Brasileira ' FNB dos anos 1930 e o Movimento Negro Unificado ' MNU
contemporâneo, percebe-se que as relações entre raça e identidade cultural não
seguem, no discurso das lideranças negras contemporâneas, o esquema
evolucionista e instrumental propugnado por Guimarães, Hanchard ou French.
Conforme o autor, "diferentemente da FNB que percebia claramente um hiato
entre os valores da 'civilização' (= 'cultura') ansiados e propagados pelo
grupo e os valores vividos pela grande maioria dos 'negros atrasados', a nova
militância pressupõe uma essência valorativa comum em todas as manifestações
empíricas do negro", incluindo-se aqui o conjunto de expressões culturais
do mundo do Cadomblé e uma cosmovisão correspondente, no interior da qual não
cabe, conforme mostra Hofbauer, a polarização branco/negro. Pode-se afirmar
assim que, ao contrário da instrumentalização do repertório cultural afro-
brasileiro e do Atlântico Negro para a construção da "consciência
racial" e o restabelecimento do nexo (socio)lógico entre cultura negra,
raça negra e identidade negra preconizado por alguns estudos raciais, os
discursos das lideranças do MNU pesquisado por Hofbauer indicam que estas
reconhecem a pluralidade das formas culturais de vida dos diversos segmentos da
população afro-descendente, atribuindo a todas eles um valor intrínseco.14
Conclusões
A julgar pelas reações despertadas (French 2000), a crítica de Bourdieu &
Wacquant (1998) aos estudos raciais, nos termos em que foi construída, prestou-
se unicamente à reafirmação da oposição artificial entre os supostos defensores
da "democracia racial" brasileira, de um lado, e os autores sensíveis
à "opressão racial" efetivamente existente, de outro ' para se valer
aqui dos termos através dos quais Hanchard (1996) resumira, anos atrás, uma
polêmica semelhante com o antropólogo Peter Fry, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
Esse tipo de redução discursiva que transforma o debate acadêmico numa (falsa)
disputa moral em torno do monopólio de proteção das vítimas de alguma forma
social opressiva, seja ela o racismo brasileiro ou o imperialismo americano,
pouco ajuda a reflexão teórica em torno das mazelas sociais existentes e dos
meios políticos adequados para combatê-las.
Procurou-se, neste artigo, restringir-se ao exame de alguns dos desdobramentos
analíticos dos estudos raciais. Conforme se mostrou, o conceito não biológico
de raça utilizado pelos estudos raciais desde finais dos anos 70 constitui
contribuição fundamental para desnudar o viés racista que marca a produção e a
reprodução das iniqüidades sociais no Brasil. Quando se trata da perpetuação
das desigualdades estruturais, no lugar do recorrentemente reclamado
"continuum de cores", pode-se enxergar efetivamente, ao lado de
outras clivagens, a polarização racial. É exatamente nesse âmbito que se situa
o campo de validação teórica da idéia de raça.
Quando transformada, contudo, em categoria analítica geral, utilizada para o
estudo de outros fenômenos sociais, a idéia de raça perde sua eficácia teórica.
Assim, quando é acionada para interpretar a formação nacional brasileira, a
categoria conduz a uma interpretação reducionista do ideário nacional de
dimensões múltiplas, construído a partir de 1930, levando a que alguns
fenômenos recentes, melhor caracterizados como processos de desconstrução
discursiva da nação, sejam tratados como afirmação do caráter multirracial do
país. De forma análoga, o uso da noção de raça como matriz explicativa última
de todas as adscrições sociais negativas faz com que diferentes processos de
segregação sejam inapropriadamente traduzidos como um racismo fundado na
oposição branco/não-branco.
Por último, a centralidade analítica conferida à raça nos estudos raciais leva
a uma visão evolucionista da "autoconsciência" da população afro-
descendente, transformando a identidade pessoal e cultural em dimensões
subordinadas e instrumentais ao objetivo político de internalizar a polaridade
estrutural entre brancos e não-brancos.
A ênfase na importância da pluralidade cultural defendida nesse artigo não
denota nenhuma resignação política ou teórica, como se a crítica social não
fosse possível e todas as formas de sociedade, incluídas aquelas segregadoras e
racistas, por definição legítimas. A perspectiva crítica deve ser construída,
contudo, em conexão com as aspirações por reconhecimento efetivamente dadas,
não pode se basear unilateralmente num projeto teórico-político anterior e
externo aos processos sociais concretos.
Notas
1.
Além do parecer anônimo da EAA, este artigo se beneficiou dos comentários de
Wivian Weller, Jessé Souza, Myrian Santos, Omar Ribeiro Thomaz, Ursula
Ferdinand, Renate Rott, Sérgio Luis Silva, Luis Edmundo Moraes e Andreas
Hofbauer. Registro meu agradecimento aos colegas, sem fazê-los naturalmente co-
responsáveis por eventuais incorreções constantes da presente versão.
2.
Mesmo que não possa ser adequadamente desenvolvida nos limites desse artigo,
registre-se que a idéia de reconhecimento social aqui utilizada remete,
fundamentalmente, a Charles Taylor (1994) e Axel Honneth (1994a, 1994b) e diz
respeito, no plano epistemológico, ao lugar de ancoramento social de uma
perspectiva teórica crítica (tal argumento encontra-se melhor desenvolvido em
Costa & Werle, 2000).
3.
Concebida de tal maneira, "raça histórica" corresponde às definições
de etnia que se tornaram clássicas, como aquelas reunidas por Hutchinson &
Smith (1996). Como mostrar-se-á mais adiante, a indistinção entre etnia e raça
leva a uma superposição entre cultura e traços fenotípicos, analítica e
politicamente problemática.
4.
A comparação de Senkman (1997:133ss) entre o varguismo e o peronismo é
esclarecedora para mostrar como a lógica identitária em ambos os casos não
"buscava excluir, mas integrar todos os agregados ao povo para redefinir a
nova nação". Assim, se incluem, no caso brasileiro, na nova identidade
nacional, "as massas urbanas de cor", tratadas até a República Velha,
pela oligarquias cafeeiras, como "um Outro no interior da nação" (p.
133).
5.
Não se está afirmando obviamente que o patriarcado foi inventado no Barsil nos
anos 1930. No âmbito do Estado Novo, contudo, a ênfase conferida à pátria e à
família (ver Carneiro, 1990) reconstrói, sob uma chave conservadora, as funções
femininas tradicionais, neutralizando, ideologicamente, as transformações
estruturais modernizantes que, desde o século XIX, redesenhavam o lugar de
inserção da mulher na estrutura social brasileira (ver Costa, E. V., 2000, cap.
10). Com efeito, conforme mostra Levine (1998:120 s), ainda que as mulheres
ganhem o direito ao voto ' de resto, pouco valioso sob a ditadura ' e vejam
crescer significativamente no período sua participação no mercado de trabalho,
sobretudo no setor têxtil, o Estado Novo é marcado pela existência de políticas
sistemáticas voltadas para a promoção do papel da mulher como mãe e dona-de-
casa.
6.
Carece de plausibilidade a subsunção das adscrições regionais no âmbito das
adscrições raciais contra os afro-descendentes operada por Guimarães (1999:55),
ao afirmar que baianos e nordestinos passaram a ser "uma codificação
neutra para os 'pretos', 'mulatos' ou 'pardos' das classes subalternas,
transformados, assim, nos alvos principais do 'novo racismo' brasileiro".
Ainda que possam partilhar de uma adscrição negativa que pode, em determindas
situações, alcançar intensidade equivalente, negros e nordestinos seguramente
não são simbolicamente construídos como categorias símiles e substituíveis no
repertório racista brasileiro. Pelo menos desde o final do Século XIX,
constrói-se a imagem do "Norte", depois do Nordeste, como região
inepta para o progresso e refratária à modernização e é, sob tal chave e não na
polarização branco/negro, que deve ser buscada a explicação para o racismo de
que se tornou vítima o nordestino no Sul e Sudeste do País (ver Albuquerque
Jr., 1999:68ss.)
7.
Lembre-se aqui os dados da abrangente pesquisa do Datafolha (Turra &
Venturi, 1995), segundo os quais quase 90% dos entrevistados admitem que
"os brancos têm preconceito de cor em relação aos negros" no Brasil
(p. 96). A relativização da importância do mito da democracia racial é
constatada de formas diversas. Hasenbalg (1995:367ss.) mostra que há uma
"clara percepção de que as pessoas recebem tratamento diferenciado
conforme sua cor", indicando que a "ideologia racial" que se
mantém é aquela que reifica a ausência de "confronto racial". De
forma similar, Hanchard (1994:43) nota o declínio do mito da democracia racial,
entendendo que o que permanece intocado é o mito da "excepcionalidade
racial" brasileira. Constata-se, no último caso, contudo, a insistência em
subsumir uma ideologia nacional abrangente num ideário racial, enquanto o mais
razoável parece ser precisamente o contrário, ou seja, entender-se o componente
racial ' o banimento discursivo das classificações raciais ' como parte de uma
ideologia nacional.
8.
Conforme os dados da PNAD de 1997, no nível de escolaridade em que as
diferenças de rendimento mais favorecem os "amarelos" ' 4 a 7 anos de
escolaridade ', estes apresentam uma renda média mensal em torno de R$800,00
contra R$350,00 dos brancos, R$250,00 para pardos e também para pretos, e
R$200,00 para indígenas (cf. Schwartzman, 1999:95).
9.
A rigor, nos estudos sobre desigualdade racial, os grupos demográficos
"amarelo" e "indígena" não são incluídos nas comparações, o
que é compreensível quando se trata da comparação e da simulação estatísticas.
Quando se trata, contudo, da utilização de raça como categoria analítica geral,
como fazem os estudos raciais recentes, os problemas aqui levantados ganham
relevância.
10.
Roland (2000) e Soares (2000) mostram, a partir de perspectivas distintas, as
implicações importantes para as lutas anti-racistas decorrentes do duplo
desfavorecimento das mulheres negras.
11.
Winant (1994:138ss) busca resolver o problema de não reduzir raça a uma
categoria estrutural, introduzindo a perspectiva da "formação
racial", segundo a qual raça compreende tanto o plano micro da
"psiquê individual e dos relacionamentos entre indivíduos relações
individuais [quanto] o nível macro das identidades coletivas e estruturas
sociais" (ibidem:139). A sugestão do autor, contudo, parece não solucionar
a dificuldade analítica de compatibilizar a relevância da raça como ordenadora
das oportunidades pessoais e a multiplicidade de fatores que estruturam os
relacionamentos e identidades sociais.
12.
A convicção de que a polarização racial das relações sociais combaterá o
racismo revela, implicitamente, uma concepção do poder e da política semelhante
àquela que Castoriadis (1995) identificou no marxismo. Ou seja, a política é
tratada, na imagem emprestada da Física, como um campo vetorial, cuja
resultante expressa a "correlação de forças" existente, daí a
necessidade de fortalecimento do suposto pólo frágil do campo de forças, de
sorte a fazer a história se mover numa direção determinada. Tal concepção
desconsidera que, nas democracias contemporâneas, a política tornou-se, antes,
o campo de disputas em torno da "construção de espaços sociais de
reconhecimento" (Melucci, 1996:219). Aqui, os atores sociais não
correspondem a vetores num campo de forças que se anulam reciprocamente; ao
contrário, o poder destes é expresso pela legitimidade pública para
"nomear" as experiências coletivas, vale dizer, definir os
significados compartilhados socialmente. Visto sob esta ótica, o eixo da luta
anti-racista no Brasil passa a apoiar-se ' como parece ser a estratégia de boa
parte do movimento negro ' na obliteração da legitimidade imanente de que se
cobrem as práticas racistas e não mais na polarização das relações brancos/não-
brancos propugnada por alguns estudos raciais.
13.
Não se trata aqui da adesão à tese de Reis de que se tome a democracia racial
não como mito, mas como meta a ser alcançada. Conforme se mostrou em outro
contexto (Costa & Werle, 2000), a persistência cultural de hierarquias
históricas, como o "branqueamento", justifica políticas voltadas para
a promoção e valorização de formas de vida historicamente subestimadas. A
referência à importante contribuição de Reis visa aqui evidenciar o fato de que
a tese da polarização racial é apenas uma entre outras formas preconizadas para
o combate ao racismo.
14.
A posição de militantes negros históricos como Abdias do Nascimento
(Nascimento & Nascimento, 2000) parece também dirigida nesses mesmos
termos.