Política transnacional negra, antiimperialismo e etnocentrismo para Pierre
Bourdieu e Loïc Wacquant: exemplos de interpretação equivocada
"The Cunning of Cultural Imperialism" ' ensaio de Pierre Bourdieu e
Loïc Wacquant, publicado em Theory, Culture and Society, fez com que eu me
identificasse, entre diversos outros acadêmicos norte-americanos, com a
reprodução e disseminação do imperialismo cultural dos EUA, através de trabalho
acadêmico que tenta fazer as relações raciais no Brasil se parecerem com o
modelo supostamente bipolar dos Estados Unidos. Ao proceder assim, segundo a
crítica deles, engajei-me em uma forma de chauvinismo nacionalista, que
descrevem como "veneno etnocêntrico" (Bourdieu & Wacquant, 1999).
Um de seus alvos foi meu livro Orfeu e o Poder, com a acusação de que viajei
para o Brasil e usei ' em relação à questão da raça ' uma lente normativa
moldada nos Estados Unidos, com isso exibindo duas formas de comportamento
notadamente imperialista: a) avaliei o Brasil e o movimento negro brasileiro de
acordo com os contornos das relações raciais nos Estados Unidos; e b) fiz
proselitismo em meio ao movimento negro brasileiro, na tentativa de convencê-lo
de que tal movimento deveria se parecer com o "movimento por direitos
civis dos EUA" em estratégia, tática e até classificação racial. Esse
suposto crime é descrito em termos abstratos, na frase de abertura, por
"seu poder de universalizar particularismos ligados a uma tradição
histórica singular, fazendo com que sejam reconhecidos como tais". Os
"particularismos", nesse caso, são estratégias e táticas que
evoluíram da "tradição histórica singular" do movimento pelos
direitos civis dos EUA.
Como observaram diversas pessoas, em resposta à edição especial anterior,
dedicada a esse debate, Bourdieu e Wacquant estão profundamente implicados com
a própria crítica, ignorando heranças do imperialismo francês, colonialismo,
bem como o conhecimento das intrincadas relações raciais no Brasil. As várias
reações aos seus discursos sugerem que as implicações desse debate ressoam nos
quatro cantos do mundo, inclusive em setores acadêmicos muito distantes dos
estudos brasileiros ou latino-americanos. A fim de ampliar a discussão em torno
da arenga de Bourdieu e Wacquant, eu gostaria de fazer uma intervenção muito
específica em resposta ao artigo deles ' a qual não foi elaborada anteriormente
' relativa ao Movimento Negro no Brasil, o movimento por direitos civis nos
Estados Unidos e políticas negras transnacionais. A crítica deles baseia-se em
suposições e métodos analíticos críticos que privilegiam o Estado nacional e a
cultura "nacional" como objetos únicos da análise comparativa e,
conseqüentemente, ignora como a política afro-brasileira, os movimentos por
direitos civis nos EUA, em particular, e a política negra transnacional, de
maneira mais geral, problematizam as distinções fáceis, até mesmo superficiais,
entre Estados-nações e populações imperialistas e antiimperialistas dessa
crítica. Ambos, o Movimento Negro brasileiro e o movimento por direitos civis
nos EUA, são analisados unicamente como fenômenos de territórios nacionais,
inteiramente auto-referentes (ou seja, provincianos), sem ligações entre si.
Esta constelação particular de suposições e métodos expõe uma combinação
latinista de Estado e nação, dentro da qual o popular nacional e o aparato do
Estado não se distinguem um do outro. Em sua visão, as populações nacionais são
alinhadas por fixidez territorial, cultural e no Estado. Assim, os cidadãos
brasileiros e norte-americanos em geral, e os afro-brasileiros e afro-norte-
americanos dos EUA em particular, são divididos de acordo com as coordenadas
acima mencionadas. É impossível, dentro desse molde, identificar e ler
diferenças culturais e ideológicas no interior dos Estados Unidos ou do Brasil.
Também não existe a possibilidade de divisões, interesses coincidentes, pontos
em comum, ideológicos ou culturais, que possam atravessar fronteiras de nação,
"cultura nacional e Estado". Além disso, não se cogita a perspectiva
de distinção interna, a idéia de que o povo de um país possa compartilhar
afinidades e políticas que, de fato, vão contra o Estado, ou mesmo ideologias
populares dominantes a respeito de uma nação ou povo em particular. Isto não só
constituiria uma surpresa para indivíduos, organizações e movimentos dentro dos
Estados Unidos, que há muito tempo resistem a políticas ' domésticas e de fora
' de imperialismo e apartheid social em casa e no estrangeiro, mas também um
insulto. E o principal, em se tratando de avaliar academicamente a crítica
deles, é que Bourdieu e Wacquant ignoram a complexidade ou especificidade da
atuação negra, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, o que os leva a
equacionar transnacionalismo negro com imperialismo e política externa dos EUA.
Em sua versão do etnocentrismo político, são privilegiadas as políticas dos
Estados-nações, enquanto mobilizações de atores não estatais são negligenciadas
e, quando identificadas, precariamente compreendidas.
1. A Tese da Incorrigibilidade versus Política sem Delimitação
O argumento de Bourdieu e Wacquant retoma, sob certos aspectos, o que Charles
Taylor chamou de "tese da incorrigibilidade", em que a cultura serve
como linguagem, símbolo e prática de uma comunidade delimitada, demarcada. Essa
forma de comunidade acaba gerando um fosso, quando justaposta a outras
comunidades da mesma espécie. Cria-se não só uma situação do tipo Babel, de
impossibilidade de compreensão mútua, mas também possibilidade de interpretação
equivocada, com base na presunção de superioridade cultural. As tentativas de
intercâmbio de uma cultura dominante com uma outra, subordinada, são
particularmente afetadas pelo perigo de violência na interpretação quando os
intérpretes de uma cultura dominante assumem que seu papel é
[...] corrigir a autocompreensão dos que dominam menos, substituindo-
a pela sua própria. O que ocorre, de fato, nesse caso é simplesmente
o seguinte: nós somos capazes de reconhecer em nossos próprios
termos; e as autodescrições deles estão erradas na medida em que se
desviam das nossas. Os estudos transculturais tornam-se campo de
exercício de preconceito etnocêntrico. (Taylor, 1985:124, ênfase no
original)
No âmbito do método, Taylor tenta fazer a ponte entre o "nós" e o
"eles" através de um processo de compreensão crítica, mutuamente
engajada, segundo o qual não se pode empreender a interpretação de uma outra
cultura "enquanto também não tivermos nos compreendido melhor" (idem:
129). Taylor, é claro, utiliza a sua própria abordagem interpretativa como
antídoto para a noção de que a diferença cultural exclui a possibilidade de
qualquer pessoa empreender uma análise de uma outra sociedade, civilização e
cultura sem ficar tão cega pelo próprio chauvinismo de modo que suas
observações se tornem, logo de cara, suspeitas. Há mais de trinta anos atrás,
quando este artigo foi publicado pela primeira vez, diversas noções
antropológicas, bem como noções mais ligadas ao senso comum, de diferença
cultural, supunham que as culturas constituíssem processos discretos,
separados. O argumento de Bourdieu e Wacquant contém traços da tese da
incorrigibilidade, na medida em que nacionalidade ou "nacionação"
serve como forma de distinção cultural (história, política e cultura da nação)
que radicalmente diferencia uma formação nacional de outra, neste caso, o
Brasil e os brasileiros, dos EUA e os americanos. A versão deles é
complementada por um cenário-caso "empírico": o Estado americano,
seus cidadãos, escravos, indígenas e outros povos dominados, bem como os
capitalistas com base nos EUA, que evoluíram e se tornaram corporações
multinacionais. Todos estes acima não são apenas indistinguíveis, mas
intercambiáveis.
A tese da incorrigibilidade de Taylor e a crítica de Bourdieu e Wacquant
compartilham uma forma comum de lógica. Ambas as formulações pressupõem
formações culturais estáveis e internamente coerentes, na medida em que a
diferença cultural se baseia em uma oposição binária "nós" versus
"eles". Em termos analíticos, a diferença cultural também coincide
com a distinção espacial, de tal modo que a idéia de diferença cultural é
delimitada por diferença territorial, que é, por sua vez, presidida por um
Estado, cujas políticas (imperialistas, antiimperialistas etc.) determinam a
disposição ideológica nacional do(s) povo(s) ao(s) qual (is) assegura cidadania
ou dominação. Aqui, a distinção crucial é que Taylor coloca sua tese com o fim
de transcendê-la, enquanto Bourdieu e Wacquant assumem como verdadeiros os
preceitos epistemológicos da tese. Assim, os Estados Unidos constituem uma
homologia; seus intelectuais, seus ativistas e sua gente comum têm
necessariamente de refletir as ideologias dominantes, imperialistas, do Estado,
da sociedade nacional e da cultura dos EUA. Sua "nacionação" supera
quaisquer posições e distinções culturais, políticas ou ideológicas que possam
vir a possuir e articular.
2. O Movimento por Direitos Civis: Esse Obscuro Objeto do Imperialismo dos EUA?
O movimento por direitos civis dos EUA serve como importante símbolo e
dispositivo retórico no argumento de Bourdieu e Wacquant, no sentido de
identificar um sintoma do imperialismo dos EUA, um exemplo paradigmático de um
tipo particular de protesto político e social aparentemente peculiar dos
Estados Unidos, uma espécie de marcador, indicador estável, confiável,
"dado" de uma formação ideológica singular. Depois de me acusar de
"aplicar categorias raciais norte-americanas à situação brasileira" e
tentar transformar a "história particular do movimento por direitos
humanos nos EUA em padrão universal para a luta de todos os grupos oprimidos
com base em cor (ou casta)" (Bourdieu & Wacquant, 1999:44), eles
colocam a seguinte questão retórica:
[...] na verdade, o que pensar de pesquisadores norte-americanos que
viajam ao Brasil para estimular líderes do Movimento Negro a adotar
táticas do movimento afro-norte-americano por direitos civis e
denunciar a categoria de pardo[...] com o fim de mobilizar todos os
brasileiros dedescendência africana em torno da oposição dicotômica
entre "afro-brasileiros" e "brancos" no mesmo
momento em que, nos Estados Unidos, gente de origem mista, inclusive
os chamados negros, estão se mobilizando para obter do Estado norte-
americano (a começar pelo órgão do Censo), o reconhecimento oficial
dos americanos "mestiços", deixando de os classificar à
força como "negros".
Embora seja, sem dúvida, plausível e, em alguns casos, verdadeiro que certos
defensores do movimento por direitos civis dos EUA, particularmente nos fóruns
internacionais, coloquem o ativismo por direitos civis nos Estados Unidos como
modelo para o ativismo negro em outras partes do mundo, podendo-se, portanto,
considerar hegemônicas suas aspirações, seria, porém, o caso de se julgar, de
modo muito específico, a particularidade da intervenção, em vez de simplesmente
atribuir tais aspirações a uma forma de política de identidade (nação, raça) de
todo um agrupamento ou congregação política.
O uso que fazem da expressão "movimento por direitos civis dos EUA" e
"afro-norte-americano" fornece outra chave para a nuvem de hipóteses
sem fundamento que paira em torno do argumento deles. Embora o fato de ser
"norte-americano" ou, mais especificamente, "afro-norte-
americano" pudesse servir para se localizar uma categoria em particular de
cidadão/súdito dos EUA, isto não chega a significar sequer um passo inicial
para se identificar, localizar e, em última instância, discernir, uma posição
política. Em outras palavras, apesar de o racismo em uma sociedade tal como a
dos Estados Unidos criar condições materiais para que possam emergir e, de
fato, emerjam certos modos de consciência, ele não dita, em última análise,
estados de consciência oucomo indivíduos e grupos reagem a essas condições.
Assim, aquilo que para esses críticos serve como variável explicativa é, na
verdade, uma categorização totalizante, que requer, ela própria, explicação e
qualificação.
No caso de afro-norte-americanos dos EUA (leitores, por favor, notem a
distinção), a análise "afro-norte-americana" seria integracionista ou
nacionalista negra, marxista, liberal ou conservadora ' só para mencionar
diversas de muitas possibilidades ideológicas? Esse tipo de especificidade
seria de rigueur para a crítica séria nas Ciências Sociais e Humanidades, o
primeiro "corte" de qualquer investigação revisionista,
historiográfica, sociológica, que tentasse situar um modo particular de análise
dentro de uma tradição intelectual específica. E, no entanto, tal requisito,
prima facie, parece estar suspenso das críticas de Bourdieu e Wacquant. Seria
possível levar a sério uma pessoa que analisasse a França moderna e
argumentasse que o que Bataille, o conde Gobineau, Julia Kristeva e Henri
LeFebvre fazem ' citando apenas quatro pensadores ' é algo que remotamente
lembre um modo "francês" de análise? A sutil e detalhada resposta de
Robert Stam e Ella Shohat a Bourdieu e Wacquant enfatiza e põe a salvo o lado
francófilo do debate franco-americano, de modo que não estenderia meu argumento
nessa direção (Shohat e Stam, 2001). Levanto essas questões porque provêem
lente mais ampla para minha resposta às afirmações de Bourdieu e Wacquant a
respeito do imperialismo supostamente inerente na transmissão e emprego de
modos de prática política do movimento por direitos civis dos EUA utilizados
com bom resultado em outros lugares.
Neste caso, as afirmativas dos dois críticos trazem falta de familiaridade com
o meu trabalho ' pré-requisito para se fazer crítica desse tipo. Tenho
consistentemente sublinhado a equação problemática da América com os Estados
Unidos e argumentado, como Richard Moore, o radical afro-caribenho dos anos
1930, 1940 (Moore, 1992), ou, mais contemporâneos, Caetano Veloso e Pablo
Milanés, que o conceito de América, e até mesmo o de América do Norte, abrange
muito mais que os Estados Unidos. Em um ensaio escrito há mais de dez anos
argumentei a favor do uso da expressão afro-norte-americano e norte-americano
como designação hemisférica, em vez de nacional, e tenho, de maneira
consistente, utilizado a expressão afro-norte-americano nas minhas referências
à maior parte (embora não todos) dos povos de descendência africana nos Estados
Unidos (Hanchard, 1990). Assim, o primeiro exemplo de interpretação equivocada
da parte desses críticos, à primeira vista menor, não deixa, porém, de sugerir
formas mais visíveis de má intepretação, que se seguirão.
Em prol da argumentação, quero tornar clara a condicional embutida na questão
retórica deles, reproduzida no início desta seção: e se alguém dos Estados
Unidos, familiarizado com a luta negra pela igualdade racial, saísse dos
Estados Unidos e sugerisse a membros e ativistas de um outro grupo subordinado
em função da raça que as táticas praticadas nos EUA podem ter alguma
viabilidade política em outros lugares? Mas a questão que está, de fato, em
pauta é se livre associação, identidade cultural, reunião política e protesto
constituem assuntos tão específicos, em termos culturais, a ponto de serem
incorrigíveis e, conseqüentemente, imutáveis. Inúmeros exemplos sugerem que não
é esta, necessariamente, a conseqüência do deslocamento de estratégias, táticas
e filosofias da práxis. As táticas de Ghandi de desobediência civil, informadas
em parte pelos escritos de Henry David Thoreau, não o transformam em um
"norte-americano", nem transformam a Índia, da luta nacionalista, em
Estados Unidos. Tampouco a resistência anti-racista de Ghandi aos bôers, na
África do Sul, converte a Índia na União da África do Sul.
As idéias, táticas e estratégias da maior parte dos movimentos pelos direitos
civis e nacionalistas negros não emanam do Estado nem do capital, mas da
interação da luta popular com as filosofias da práxis que tiveram dimensões
locais, nacionais e transnacionais. Talvez me falhe a memória, mas não me
lembro da Monsanto ou Dow Chemical, de Richard Nixon, Lyndon Johnson ou
quaisquer outros atores político-econômicos da era do movimento moderno por
direitos civis a advogar disseminação global de idéias e táticas de atores
políticos negros dos Estados Unidos. Utilizando a velha distinção de Miliband
(1983), com exceção de umas poucas organizações e indivíduos ligados ao FBI e à
CIA, os movimentos sociais negros da era dos direitos civis não trabalharam,
nem a mando, nem a favor do capital ou do Estado. Se determinados comentaristas
e estudantes da época buscaram, nos sentidos literal e figurado, universalizar
suas estratégias, crenças e táticas no diálogo com movimentos em outras partes
' é outra questão. Mas eu aqui gostaria de levar minha resposta mais um passo
adiante; a circulação de idéias, táticas e filosofias das lutas por direitos
civis negros nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar é útil para a
circulação contínua da discussão sobre a relação entre poder e cultura na
esfera pública transnacional negra. É um passo em direção à transcendência (se
é que é possível) das limitações de ambos os argumentos: de um lado, os
direitistas, sobre a inferioridade cultural ou biológica de uma espécie de
sujeitos, africanos e descendentes de africanos; de outro, os esquerdistas
(europeus e outros), que relegam a política transnacional negra ao reino do
sempre exótico, ou pior, "provinciano".
As suposições de Bourdieu e Wacquant a respeito do "movimento por direitos
civis dos EUA" tornam-se ainda mais sem sentido quando se considera o
caráter globalizado da luta negra nos Estados Unidos, não só durante a era do
movimento dos direitos civis, mas ao longo de pelo menos dois séculos. A
armadilha que armaram para si mesmos com a categoria analítica de nação
territorial os leva a aprisionar a política e o pensamento afro-norte-
americanos dos EUA dentro das fronteiras geográficas dos EUA. Suas afirmações,
porém, provêem a oportunidade de se considerar o assim chamado movimento por
direitos civis dos EUA dentro do contexto mais amplo da luta por igualdade
racial, ação e consciência coletiva entre afro-norte-americanos dos EUA face à
supremacia, indiferença e condescendência brancas e como esse contexto se
encaixa na paisagem ainda mais ampla do transnacionalismo negro, de que fazem
parte tanto atores políticos afro-brasileiros como afro-norte-americanos dos
EUA.
Um dos pilares filosóficos da mais conhecida tradição de ativismo político
negro, a saber, a desobediência civil da Southern Christian Leadership
Conference ' SNCC e do Student Non-Violent Coordinating Committee ' SCLC foi a
filosofia da desobediência civil de Mohandas Ghandi, ele próprio influenciado
por Henry Thoreau e Ralph Waldo Emerson. Idéias "estrangeiras" das
obras de Frantz Fanon, Albert Memmi, Ho Chi Minh e Amilcar Cabral (incluindo
até mesmo autores franceses, como Sartre e Régis Debray), penetraram nos
debates no interior de movimentos e associações como Panteras Negras, Exército
Simbionês de Libertação, Oficina de Escritores Watts (Watts Writers Workshop),
Oficina de Escritores do Harlem (Harlem Writers Workshop) e outros grupos,
durante os anos 1960, e integraram o desenvolvimento ideológico e tático da
luta pela libertação dos negros. Quando se leva em conta que afro-norte-
americanos que não são dos EUA freqüentemente ocuparam posições intelectuais e
estratégicas significativas em várias tendências no interior da luta negra por
igualdade racial nos EUA ' de gente como Kwame Toure (née Stokely Carmichael) a
Cyril Biggs e Claudia Jones ', então, o "movimento afro-norte-
americano", ou seja, o citado "movimento por direitos civis dos
EUA", foi plural, tanto em termos ideológicos quanto etno-nacionais.
Como a maioria dos estudiosos do período pós-Segunda Guerra nos Estados Unidos
sabe, a época conteve, porém, muitas tendências ideológicas e de mobilização,
algumas não diretamente ligadas ao movimento por direitos civis: nacionalismos
negros de vários tipos, a nação do islã, estratégias revolucionárias utilizando
luta armada, entre outras. Mal se pode pensar em reagir à idéia de um movimento
por direitos civis dos EUA (capitalizar?) como sendo uma entidade monolítica
com, na melhor das hipóteses, dois núcleos principais, o SNCC e o SCLC, ou
talvez três, incluindo-se as causas e ideologias do Black Power, a não ser que,
mais uma vez, se vá repreender esses críticos por sua falta cabal de
familiaridade com os contornos mais amplos da luta negra nos Estados Unidos.
Isto deveria estar óbvio para quem tem familiaridade, mesmo ligeira, com a
história dos EUA. Menos óbvio é como dois estudiosos como Bourdieu e Wacquant,
que se criaram no interior de e em relação com um ex-poder imperial como a
França, conseguiram escapar do vício das mitologias nacionais francesas e
lógicas culturais corporativistas. Se o discurso de Bourdieu tem como origem o
Sudoeste da França, ele deveria sentar-se, com um copo de Jurancon ou Madiran
(para manter a integridade regional), e levar em consideração a obra de Robin
D. G. Kelley (1999), Kelley e Tiffany Patterson (2000), Penny von Eschen
(1997), Winston James (1998), Mark Naison (1984), Cedric Robinson (1983) e
Michael Dawson (2001), entre outros, para compreender o que muitos nos EUA e
outros lugares já entenderam há muito tempo: o assim chamado movimento por
direitos civis dos EUA não ficou limitado aos Estados Unidos, e a luta
"negra" não foi inteiramente negra. Isto contraria diretamente a
sugestão de Bourdieu e Wacquant de que a transmissão de idéias sobre luta
social entre os Estados Unidos e o resto do mundo tem sido
"unidirecional" ou unilinear. A suposição de Bourdieu e Wacquant de
que a simples perspectiva de tática móvel é uma estratégia que emana dos
Estados Unidos, não passando de "veneno etnocêntrico", exemplifica
sua falta de imaginação política.
A segunda parte da colocação sobre a astúcia do imperialismo dos EUA refere-se
ao papel das instituições de custeio, publicação e pesquisa que operam como
cadeia de transmissão para que o "doxa racial" dos EUA seja empurrado
Brasil abaixo. A ortodoxia que imputam aos EUA quanto ao princípio que rege a
distribuição da verba não tem o apoio da evidência de um leque diversificado de
suporte a miríades de iniciativas para incrementar não só o trabalho acadêmico,
mas a presença de brasileiros negros e mulatos nos programas de pesquisa de
pós-graduação em Ciências Sociais e Humanidades, bem como a proliferação de
Organizações Não-Governamentais e atores que defendem causas relativas aos
direitos humanos e têm preocupações que afetam os negros e mulatos brasileiros.
A versão de Bourdieu e Wacquant da tese da incorrigibilidade exclui a
possibilidade de instituições de financiamento sediadas nos EUA de fato se
colocarem na posição de promover, mais que perverter, o ativismo nacional e/ou
local, mas, mais uma vez, as implicações internacionais e transnacionais da
política racial no Brasil ' assim como o financiamento não- governamental em
todo o mundo ' são bem mais complexas do que revelam seus argumentos. Para dar
alguns exemplos concretos, a Fundação Ford tem financiado diversos programas de
pós-graduação em várias universidades, em várias partes do país, a fim de
aumentar a presença de brasileiros negros e mulatos na academia brasileira que,
historicamente, ainda que informalmente, tem estado fechada aos negros e
mulatos brasileiros. Antropólogos "estrangeiros", como Peter Fry e
Livio Sansone, com outros acadêmicos brasileiros, têm apoiado a pesquisa e a
edição de livros sobre aspectos mais antropológicos da identidade e da
identificação raciais no Brasil e, nesse processo, ajudaram a treinar alguns
dos melhores jovens acadêmicos da Antropologia ' entre eles, diversos afro-
brasileiros. Temos tido desacordos amigáveis e não tão amigáveis ao longo dos
anos a respeito de nossas perspectivas concorrentes sobre relações raciais no
Brasil, como pode atestar qualquer pessoa que realmente tenha lido nosso
trabalho. Assim, poderia a Fundação Ford ser acusada de ajudar a patrocinar
debate acadêmico saudável, mas doxa? Acho que não.
Dando outro exemplo, mais voltado para políticas, o Centro de Articulação de
Populações Marginalizadas, na Lapa, Rio de Janeiro, conhecido pela abreviatura,
em português, CEAP, recebeu patrocínio de fundações sediadas nos EUA e na
Europa com o fim de prosseguir a luta pela educação do público brasileiro e
defender os direitos das crianças de rua, além de coordenar campanhas
educativas sobre a história dos negros no Brasil, entre diversas outras
iniciativas. Assim, o apoio estrangeiro, não apenas o apoio proveniente de
fundações e instituições com base nos EUA, na verdade ajudou diversas
organizações e instituições não-governamentais brasileiras a aumentar o nível
do debate sobre desigualdade racial nas trincheiras das políticas públicas,
aumentar o número de acadêmicos brasileiros negros e mulatos, bem como expandir
e aprofundar a agenda de pesquisa sobre tópicos relacionados com raça no
Brasil.
Nenhum dos indivíduos e organizações mencionados poderia ser acuradamente
caracterizado como simples imitador de paradigmas raciais originários dos EUA.
No caso do CEAP, seu diretor e fundador, Ivanir dos Santos, foi órfão que viveu
na rua e em diversos orfanatos durante a ditadura. Ao sair de um dos abrigos
mantidos pelo estado ' a Funabem, Santos decidiu reunir ex-internos de asilos
governamentais, como ele próprio, numa organização (Santos, 1998)dedicada aos
setores marginalizados da sociedade brasileira, entre eles os afro-brasileiros.
Não se pode considerar isto cópia do NAACP ' o programa Great Society, da
política de reforma do bem-estar de Bill Clinton, mas resultado positivo da
confluência de iniciativas políticas afro-brasileiras, dos espaços entre o
Estado brasileiro e a sociedade civil e a globalização (sim, globalização) de
concessões e competição de patrocínio de fundações internacionais. A categoria
de nação fica, mais uma vez, sem delimitação. Os pontos de convergência
política na sociedade civil são forjados por tópico (falta de lar, crianças de
rua, discriminação social etc.), em vez de por nacionalidade ou prerrogativa do
Estado. As formas locais e internacionais de engajamento político têm
interseção e se congelam dentro da categoria nação. Isso sugere, ao contrário
da tese de Bourdieu e Wacquant, que o local pode ser estimulado, não
necessariamente violentado, através do engajamento com formas extra ou
transnacional de pensamento político e engajamento com instituições e pessoas
cujos compromissos materiais e políticos as colocam em conflito com as práticas
ou políticas dos estados de sua origem territorial. Tal visão do local não deve
se confundir com provincianismo.
Hardt e Negri captam, de maneira sucinta, os problemas conceituais e
epistemológicos inerentes às justaposições de global e local, que, nesta
instância, situam os Estados Unidos como poder monolítico, e o Brasil, vítima
local de tendências do tipo rolo compressor, totalizantes, corporativistas (se
não imperialistas):
[...] o problema se situa em uma falsa dicotomia entre o global e o
local, pressupondo que o global acarreta homogeneização e identidade
indiferenciada, enquanto o local preserva heterogeneidade e
diferença. Freqüentemente, implícita nesses argumentos está a
hipótese de que as diferenças do local são, de certa forma, naturais,
ou pelo menos, sua origem permanece fora de questão. [...] Essa visão
pode facilmente desembocar em uma espécie de primordialismo, que fixa
e romantiza as relações e identidades sociais. O que precisa ser
examinado, em vez disso, é precisamente a produção da localidade, ou
seja, as máquinas sociais que criam e recriam as identidades e
diferenças que são compreendidas como o local. (Hardt & Negri,
2001:45)
A produção do local, neste caso, está nas relações de raça no Brasil, em
justaposição não só com os Estados Unidos, mas uma história de ideologias
antiafricanas, antinegro, indo do aparentemente benigno (o igualitarismo racial
de Freyre, a raça cósmica de Vasconcelos) até o mais sinistro (fascismo,
nazismo, neonazismo e outras formas de supremacia branca). Muitos conservadores
da excepcionalidade brasileira concentram-se na primeira justaposição ' os EUA
' e não na segunda. Como conseqüência, eliminam não só os paralelos entre
políticas raciais nos EUA e no Brasil, mas entre outros Estados-nações nos
quais a raça de fato importa.
3. Um Debate Revisitado ' O Movimento Negro Brasileiro e a Corrupção
Estrangeira
A história das acusações de influência deletéria afro-norte-americana dos EUA e
outras formas de influência estrangeira, reais ou imaginadas, sobre o movimento
negro brasileiro vai muito mais longe e fundo que o presente debate. Para os
leitores que não têm familiaridade com a história e a literatura do Movimento
Negro brasileiro, apresento um fragmento traduzido de uma entrevista com o
falecido José Correia Leite, honrado membro fundador da Frente Negra
Brasileira, o primeiro partido político negro no Brasil, formado em São Paulo,
em 1931. Em E disse o velho militante José Correia Leite (Leite e Cuti, 1992),
ele recorda como notícias e informação a respeito de transnacionalismo negro
fora do Brasil entraram pela primeira vez no discurso político afro-brasileiro.
De acordo com Leite, um baiano de nome Mário de Vasconcelos introduziu diversos
textos de afro-norte-americanos dos EUA no Movimento Negro de São Paulo e da
Bahia. Vasconcelos traduziu trechos de The Black Worlde outros textos
transnacionais negros para uma seção do jornal Clarim intitulada O mundo negro,
tradução portuguesa do título da publicação da UNIA. Mas, como observa Leite
"[...] isso se deu em condições controversas".
A maioria dos negros brasileiros não aceitou as idéias apresentadas por Garvey,
achando que Leite "queria fazer um movimento que era importado, um
movimento de outros interesses que não eram os nossos. Eles disseram um monte
de coisas. Que eu estava criando uma questão racial. Propondo um modelo racista
de outro lugar" (idem). Jornais como o Clarim d'Alvorada, órgão da Frente
Negra Brasileira, refletiram o caráter transnacional do ativismo negro
brasileiro desde os anos 1920. Ao introduzir as idéias de Marcus Garvey no
contexto, através das páginas do Clarim d'Alvorada, Leite observa que Garvey
foi recebido com grande reserva nos Estados Unidos, apesar de ter encontrado
apoio para fazer um grande trabalho. Mas foi combatido por muitos negros norte-
americanos, que o consideravam "um aventureiro".1 As recordações de
Leite são interessantes por diversas razões pertinentes a este debate. Em
primeiro lugar, os paralelos que traça entre si e Garvey, enquanto visionários,
tentando mover-se para além dos limites da subordinação racial que os
confinava, no Brasil e nos Estados Unidos respectivamente, de modo implícito
informam o que se torna mais explícito adiante, no texto: que a Frente Negra
Brasileira, como a UNIA de Garvey, era considerada um gesto temerário, com
pouco apoio popular. Além disso, sua relevância para as idéias de Garvey de
emancipação racial era considerada comparativamente. Assim, ao contrário de
Bourdieu, Wacquant e diversos brasilianistas, Leite tinha consciência do
alcance dos debates a respeito do garveyismo nas duas sociedades. Sua
disposição de apresentar as idéias de Garvey ao discurso público negro no
Brasil sugere uma profunda consciência da importância da circulação de idéias
dentro das redes políticas transnacionais negras, mesmo idéias impopulares '
isso, em uma nação onde a noção de afro-brasileiro enquanto entidade política e
cultural separada do Estado-nação brasileiro, já avançando nos anos 1980, era
considerada um ato de heresia.
Em terceiro lugar, o comentário de Leite sugere, entre muitos outros
vislumbres, nesta breve passagem, que o importante em Garvey não era sua origem
nacional ou local de residência, mas seu compromisso com a luta pela igualdade
racial para os povos de ascendência africana, a qual não se restringia à
demarcação territorial nacional. Leite foi capaz de ver o garveyismo, entre
muitos outros produtos artísticos, estéticos e políticos da diáspora africana,
como implemento de luta e reflexão. Leite procurou e encontrou-se com muitos
artistas, intelectuais e figuras do mundo negro. Nicholas Guillen, o poeta
afro-cubano, passou uma temporada em São Paulo com Leite e outros membros da
Frente. O nacionalismo brasileiro, como a maior parte dos nacionalismos, é,
entre outras coisas, uma ideologia de inclusão, e é por isso que, como o
próprio Leite comentou, ele e outros eram acusados de importar idéias
estrangeiras, de importar racismo, enquanto, junto com outros ativistas negros
brasileiros, estavam tentando demonstrar ao seu Estado-nação que o racismo já
tinha existido no Brasil. Que o seu patriotismo e lealdade à nação fossem
postos em questão, com acusações de bolchevismo levantadas contra eles, é
consistente com a reação nacionalista brasileira à articulação de uma visão
transnacionalista negra brasileira.
Através do século XX, as gerações subseqüentes de ativistas brasileiros negros
(que é como muitos deles se referem a si mesmos) continuaram o diálogo
transnacional da política negra. Nos anos 1970, por exemplo, membros do
Movimento Negro do Rio de Janeiro e São Paulo deram início à campanha "Sou
negro", com o objetivo de tornar visível a presença invisível, reprimida,
de negros e mulatos brasileiros na vida pública e argumentar em prol da
conscientização de uma identidade afro-brasileira distinta e de uma política
baseada na história da escravidão racial, nas práticas religiosas e culturais
de origem africana e em uma conexão com povos de descendência africana em
outras partes do mundo. Também convocavam brasileiros que não se consideravam
negros ou mulatos, e até brancos, a fazerem o mesmo. Ativistas negros como
Vanderlei José Maria, Hamilton Cardoso e Deborah Santos dedicaram-se ao debate,
à literatura e retórica transnacionais negras (Hanchard,1994). Como na sutil
descrição de Manthia Diawara das próprias experiências ' criado na Guiné,
incorporou o modo de se vestir, a música e outros ícones culturais de
identidade e resistência negras da experiência afro-norte-americana dos EUA
(Diawara, 1998) ' os afro-brasileiros inscreveram-se no discurso público negro
transnacional de raça, nação, identidade e solidariedade, fundindo esses
símbolos e práticas políticas e culturais às próprias experiências. Mas, como
Diawara e seus contemporâneos afro-brasileiros usaram afro nesse período,
acredito que Wacquant e Bourdieu também os considerariam imperialistas.
Finalmente, os argumentos levantados contra Leite e a Frente Negra Brasileira
parecem-se com a crítica que Bourdieu e Wacquant fazem a acadêmicos afro-norte-
americanos dos Estados Unidos, como eu. São argumentos invariavelmente
nacionalistas e estatistas, assemelhando-se ainda ao modelo colonial francês do
imperialismo cultural. Diferentemente do inglês ou holandês, por exemplo, o
modelo colonial francês impôs aos súditos das colônias a noção de que estas
eram parte integral da nação francesa, não somente na forma de um Commonwealth,
como no caso dos ingleses, mas em termos normativos e pseudo-espaciais,
enquanto departamentos da própria nação França. É mais que coincidência,
portanto, que durante o período dos movimentos nacionalistas pan-africanistas
na África colonial, um dos principais argumentos dos imperialistas franceses
fosse o de que as colônias africanas francesas eram tão fundamentalmente
diferentes das colônias britânicas, holandesas, belgas e portuguesas, que a
idéia da "unidade pan-africana" não só era impossível e inaplicável,
como redundante: os africanos franceses já tinham uma nação. O que eu sugiro
aqui é que assim como a idéia imperial de nação francesa competia com
nacionalismos africanos e pan-africanismos, também as idéias brasileiras negras
de identidade racial e diáspora entram em conflito com o imaginário
nacionalista do freyreanismo e neofreyreanismo, bem como o imaginário colonial
e neocolonial do luso-tropicalismo. Não seria possível que o desprezo de
Bourdieu e Wacquant pela colaboração transnacional entre membros de um grupo
marginalizado em termos raciais contivesse uma espécie de resíduo cultural
(colonialismo francês) que eles próprios não identificam?
4. Orfeu e o Poder, Transnacionalismo Negro e a "Questão Cultural"
Uma vez que Orfeu e o Poder utilizou uma metodologia concebida inicialmente por
um italiano e o tema da minha pesquisa eram os norte-americanos de tipo
diferente daqueles nos Estados Unidos, como, exatamente, consegui tornar-me o
imperialista que me pintaram?
Para quem não conhece, o argumento formulado em Orfeu e o Poder é o seguinte: a
hegemonia racial brasileira, da qual a ideologia da democracia racial é uma
parte, é um processo político e cultural que: a) enfatiza as contribuições
afro-brasileiras à cultura nacional brasileira como traços naturais da
identidade afro-brasileira; b) produz e mantém condições de desigualdade; e c)
nega as perspectivas de identidade e política afro-brasileiras como fenômeno
distinto da política nacional. Este último ponto é consistente com um modelo
latino de pluralidade e diversidade dentro de um modelo que enfatiza
homogeneidade nacional, característica de ambos os modelos coloniais '
português e francês ' e, em menor grau, do espanhol, completando os pontos em
comum franco-ibéricos com respeito à lei colonial.
Concluo que, em resposta a tais condições, ativistas e organizações afro-
brasileiros no Rio de Janeiro e em São Paulo utilizaram práticas culturais
para: a) promover e estimular a idéia de identidade e consciência afro-
brasileiras, distinta das mitologias do Estado nacional de democracia racial e
identidade nacional; e b) mobilizar brasileiros negros e mulatos contra
práticas correntes de discriminação racial. O que me colocou em tantos
problemas junto a diversos brasilianistas foi minha sugestão de que: a) o
movimento negro, ou movimento dos pretos, reproduziu parte da preocupação com a
identidade cultural encontrada em nível nacional; e b) freqüentemente enfatizou
culturalismo, acima de política cultural.
Alguns interlocutores, e agora Bourdieu e Wacquant, afirmam que, ao sugerir
maior polarização na política racial brasileira e a necessidade de afastar o
movimento da política culturalista, não só eu estava "norte-
americanizando" as relações sociais no Brasil, mas de alguma maneira
privando o ativismo afro-brasileiro de uma de suas principais diretrizes
organizadoras e um de seus principais dispositivos políticos ' a cultura,
enfatizando aspectos ligados a bens, serviços e recursos da articulação
política, em vez de desempenho e reconhecimento cultural. Isto, diversos
comentaristas atribuíram à minha "norte-americanidade", em vez de a
uma problemática mais geral, envolvendo grupos sujeitos a discriminação racial
e questões de poder político. Laura Segato me identifica como "afro-norte-
americano" em um artigo de 1996,
[...]apontando para a especificidade da experiência do contingente
africano (sic) nos EUA e a porção comum de história que compartilham
com os brancos neste país. Ou seja, a história de um tipo peculiar de
capitalismo, de sacralização do mercado, da conseqüente crença na
guerra e nos meios violentos, de endosso de uma máquina estatal
agressiva em relação ao exterior, de um caráter nacional de um modo
geral beligerante, antipacifista [...]. (Segato, 1996:2-3)
Todos devem conhecer este tipo de crítica, baseada na caricatura dos Estados
Unidos e seus povos, e na "porção comum de história", compartilhada
por brancos e negros.
Já Peter Fry foi mais ponderado ao falar, de modo em parte autobiográfico, do
meu trabalho, contando um incidente no Rio, quando viajava com um amigo negro,
em que ele, um branco "naturalizado" brasileiro, testemunhou um caso
constrangedor motivado por questão racial, nas mãos da polícia. Depois do
incidente, entrou em um
[...] bar cheio de gente de todo o tipo possível de 'aparência':
jovens, velhos, mulheres, homens, de todas as cores possíveis. O
ambiente animado, de convívio, constituía um antídoto perfeito para o
constrangimento policial. (Fry, 1995-1996)
Fry conclui o artigo sugerindo que sua experiência também constituía antídoto
perfeito para a minha análise da "política racial brasileira"
(expressão que emprego em meu trabalho), provando que eu estava
"importando" categorias estrangeiras para a discussão da sociedade
brasileira, uma vez que não existe tal coisa ' política racial ' no Brasil.
Levando-se em conta os diversos países, dos assim chamados ciganos aos
palestinos e judeus, que nacionalidades ou minorias étnicas negociaram e
garantiram direitos civis e humanos somente, ou em grande parte, através da
prática e distinção cultural? Nenhuma. A expressão da diferença cultural,
religiosa, sequer garante o caminho necessário rumo à igualdade política e
socioeconômica. Na verdade, historicamente, a diferença cultural marcou grupos
no sentido da marginalização e exploração, ou da oposição erotização/repulsa,
mas nunca os marcou como iguais aos opressores. Assim, parte do meu argumento
em Orfeu e o Poder é que o Movimento Negro do Brasil precisou de um sentido
mais comparativo do relacionamento entre política e cultura como problemática
dos grupos raciais e étnicos marginalizados vivendo em sociedades multiétnicas
e multirraciais. O Brasil talvez seja caso anômalo, mas há anos, desde a
publicação de Orfeu e o Poder, a explosão de organizações, pesquisa e
iniciativas de políticas públicas criadas por mulheres e homens afro-
brasileiros ao longo do eixo dos bens, serviços e direitos, sugere que os
movimentos sociais afro-brasileiros, bem como os atores políticos nos partidos
políticos, que por muito tempo defenderam a população negra e mulata brasileira
(assim como outras populações historicamente marginalizadas), ampliaram seu
território político. Os críticos podem afirmar que isso demonstra que o
Movimento Negro não teve tendência culturalista, mas simplesmente se engajou
nas práticas políticas permitidas durante o longo período da ditadura.
Justamente isso, porém, fazia parte do meu argumento. O único caminho para o
movimento negro desafiar, de maneira mais direta, a desigualdade racial e a
discriminação no Brasil, era fazer política aparentemente contrária à sua
existência e formação: a política dos poderosos. As limitações das políticas de
identidade afro-brasileiras são emblemáticas das limitações das políticas de
identidade de um modo mais geral, independentemente da raça ou cor dos que a
elas aderem; a preservação, o resgate e a reforma cultural, por si mesmos,
podem ajudar a transformar uma determinada população, mas não transformam
necessariamente uma política ou sociedade, nem libertam essa sociedade de seus
costumes racistas.
Vamos considerar as tensões entre política e cultura no movimento negro no
Brasil a partir de outro ponto de vista, em relação ao transnacionalismo negro:
as formações literárias da Renaissance do Harlem e do movimento da Negritude
Francófona, dois dos movimentos mais famosos gerados entre as populações da
diáspora negra. A gênese de ambos foi uma combinação de expressão artística e
repressão política. A princípio, o uso de métodos surrealistas na poesia da
Negritude foi, em parte, de acordo com Aimé Cesaire, uma maneira de
"esmagar os padrões 'normais' da linguagem, na tentativa de criar uma
forma nova". Na introdução de Retorno à minha Terra Natal, de Cesaire,
Mazisi Kunene escreve que Cesaire achava que "quebrando os padrões cuja
ordem lógica tinha afirmado o racismo, ele tinha dado ao surrealismo um
propósito" (1969:24), uma resposta estética à brutal repressão da França e
da Bélgica aos movimentos anticoloniais africanos.
A Renaissance do Harlem surgiu após um período de repressão selvagem de
populações negras através dos Estados Unidos no período posterior à Primeira
Grande Guerra, quando muitos soldados afro-norte-americanos retornaram do front
europeu e encontraram a mesma discriminação que tinham deixado para trás,
revoltando-se contra a posição contraditória do Estado dos EUA de exortá-los a
lutar pela liberdade de outras pessoas e não pela própria. Nas palavras de
Alain Locke, seu líder, a Renaissance do Harlem recebeu apoio de uma coda do
Novo Negro, que buscava paridade para o negro através da expressão artística.
Ao mesmo tempo em que falava da importância do transnacionalismo negro (o que
chamava de "consciência de raça") e de um incipiente terceiromundismo
entre povos não brancos, em plano global, Locke deixava entrever dúvidas a
respeito das perspectivas de tais caminhos para a remoção das
restriçõesnacional-territoriais sobre os afro-norte-americanos nos Estados
Unidos. Referindo-se a garveyismo e consciência de raça global, escreve:
[...] a participação construtiva nessas causas não pode deixar de dar
ao negro valioso incentivo de grupo [...] mas no presente, a
esperança mais imediata repousa na reavaliação por brancos e negros,
igualmente, do negro, em termos de seus dotes artísticos e
contribuições culturais, do passado e para o futuro. (Locke, 1925:
15)
Mais adiante, Locke especula sobre ganhos políticos e sociais possíveis através
da expressão cultural negra:
[...] especialmente o reconhecimento obtido no nível cultural
deveria, por sua vez, provar-se chave para a reavaliação do negro, a
preceder ou acompanhar qualquer subseqüente melhoria considerável das
relações raciais. (ibidem)
A atuação pessoal e política de Locke excluía as possibilidades de ação
política e confronto diretos. Ele pode ter sido um homem da raça, mas, ao
contrário de Garvey, não era um homem da massa. No entanto, considerou a
produção cultural como caminho da autodeterminação, em um momento particular na
história dos EUA, quando outros atalhos para a autodeterminação de afro-norte-
americanos dos EUA estavam ou fechados ou impedidos. Em última instância, Locke
viu a produção cultural como complemento do protesto político formal e da
mobilização social.
Seria possível tensões semelhantes informarem a história do Movimento Negro no
Brasil? Poderia ser que o lento desenvolvimento da sociedade civil, junto com a
negação da existência de racismo na sociedade brasileira, tanto entre a
esquerda quanto entre a direita, fossem os equivalentes brasileiros dos
caminhos bloqueados rumo à articulação política, destramente analisados por
historiadores como Kim Butler (1998) ' o que tornou a política culturalista
mais plausível e, aparentemente, mais viável que outras formas de política?
Analisando-se populações marginalizadas do mundo moderno, independentemente de
cor ou nacionalidade, não seria possível que em muitas delas a expressão
autoconsciente de diferença cultural tenha se moldado, em parte, em função do
grau de subordinação a um grupo dominante (numérica, política ou
economicamente)? Na ausência de poderio militar e recursos naturais (a saber,
minerais, petróleo, pedras preciosas), a cultura não poderia se tornar o
instrumento escolhido pelas populações marginalizadas por formar a última
barreira ' além dos próprios corpos ' entre elas e os que as dominaram e
continuam a fazê-lo ' o último recesso, o final, do terreno político, no qual o
dominado não é inteiramente vencido?
Com exceção da moderna diáspora judia, para a qual o fato histórico e as
imagens simbólicas do Holocausto moderno tornaram inevitável a (re)presentação
da violência, as descrições populares da maioria das populações da diáspora na
história moderna fixaram-se de maneira obsessiva ' ou pelo menos concentrada '
em noções de identidade e cultura, em vez de, digamos, sua relação com o
sistema de Estados-nações, modo de produção ou violência e coerção distribuídas
por um estado ou população nacional-territorial. Assim, a resistência é muitas
vezes colocada em termos de práticas culturais ' as "armas dos
fracos" (Scott, 1985) ' como se fossem o único modo de se relacionar com
grupos sociais dominantes. Essa reação à opressão, porém, como argumentei,
contém no seu bojo ambas, a perspectiva de resistência, assim como a lógica da
dominação. O "como" as pessoas resistem, as "armas"
escolhidas, dizem tanto sobre a natureza e as condições da luta social e
política como os próprios atos específicos de resistência. Estudos e práticas
de grupos subalternos freqüentemente contêm preconceito em relação a modos mais
informais, menos diretos de protesto político, como o caso dos afro-brasileiros
até o crepúsculo da ditadura. Enfocar tópicos como "política
cultural" e "cultura de resistência" em diversas disciplinas e
campos é, em parte, conseqüência desta virada.
Uma das conclusões da minha pesquisa foi: o confronto direto com o Estado
brasileiro e a sociedade civil quanto a questões de desigualdade racial
requereria, dos brasileiros negros e mulatos que procuravam rever as
desigualdades, organização política enquanto grupo, para confrontar a quimera
da igualdade racial mantida pelas elites brasileiras e rejeitar as distinções
categóricas entre negro e mulato. Parte da razão dessa conclusão está na
pesquisa demográfica conduzida por acadêmicosbrasileiros referentes à muito
citada ideologia da democracia racial, em que aqueles classificados
comopardosoumulatos de algum modo se encontravam em melhor situação, em termos
materiais, que os brancos ou negros no Brasil. A segunda justificativa para a
minha conclusão foi numérica, nada tinha a ver com fenótipo, raça ou cor.
Simplesmente faz sentido no caso de atores políticos em busca de maior poder
político e econômico para tentar ampliar sua clientela política e cultural.
Conforme observa John French em sua bem elaborada crítica da obra de Bourdieu e
Wacquant (French, 2000), a tese da "saída mulata" inicialmente
colocada por Carl Degler há mais de trinta anos (Degler, 1971) ainda se mantém
como proposta teórica. Como Thomas Skidmore observou há muito, a tese nunca foi
provada e há dados demográficos que sugerem outras coisas. A pesquisa
demográfica de Paes de Barros (s/d), Peggy Lovell (1991) e Edward Telles (1988)
sobre distinções socioeconômicas entre pretos e pardos sugere que, enquanto
existem diferenças significativas entre pretos e pardos nos indicadores de
qualidade de vida, os pardos tendem a ser mais como os negros que como os
brancos em termos de renda. Por contraste, o sociólogo Nelson do Valle Silva,
analisando dados do recenseamento de 1960 e 1976 (que utilizaram categorias
preto e pardo) conclui que "negros e mulatos são igualmente discriminados.
Isto claramente contradiz a idéia de uma saída mulata como essência das
relações de raça brasileiras" (Silva, 1985:54-55). Um trabalho mais
recente em colaboração com Carlos Hasenbalg e dados do recenseamento de 1987
reafirma conclusões anteriores (Silva e Hasenbalg, 1999). A força e a
repercussão da tese da "saída mulata" de Degler é inerente à sua
aceitação social e cultural, tanto no plano nacional como no transnacional,
apesar da ausência de qualquer possibilidade de verificação empírica, ou seja,
da falta de "dados" que, de alguma maneira, comprovem que os mulatos
no Brasil, independentemente de classe, educação e posição socioeconômica,
vivessem vidas mais agradáveis. Como sugeri em Orfeu e o Poder, a tese da saída
mulata é basicamente uma formação ideológica de elite; sua força reside na sua
articulação hegemônica como senso comum, não em sua materialidade. Em última
análise, o debate contemporâneo sugere que essa tese, intensamente debatida
dentro do Brasil, não se configura como o ponto pacífico freqüente e
grosseiramente apresentado para consumo externo.
Encontra-se, porém, na raiz dessa formulação de senso comum, uma hipótese
básica sobre a relação entre "mistura de raça" e engenharia social, a
que Nancy Stepan se referiu como miscigenação positiva (Stepan, 1991). Uma
questão que os autores não colocam e que, comparando-se, une ambos, o caso
brasileiro e o dos EUA, é se existe correlação entre classificação de cor e
igualitarismo racial, ou seja, a multiplicidade de categorias fenotípicas
conota maior ou menor igualdade racial? Ou, em linguagem mais corrente:
mestiçagem, crioulização, hibridez e mulatização são indicadores de maior
diversidade e tolerância racial? Onde as tendências dos estudos culturais luso-
tropicalistas neofreyreanos brasileiros, de Bourdieu e Wacquant e pós-
estruturalistas se cruzam é na prontidão para considerar a classificação racial
"mais fluída" como uma forma de jogo profundo, um jogo de coquinhos
de Bahktin de "monty de três cartas", em que as relações de poder são
radicalmente afetadas meramente mudando-se os modos de classificação humana de
acordo com a cor ou o fenótipo. Ah, se a mudança na posição do sujeito fosse
tão simples...
Num artigo do New York Times sobre o filme brasileiro "Orfeu Negro",
Caetano Veloso coloca que minhas conclusões em relação ao uso que faz o
Movimento Negro brasileiro do preto tanto para negros como para mulatos
brasileiros simplificavam a realidade brasileira, podendo levar à
"intolerância racial" (Veloso, 2000). As premissas do argumento de
Veloso compõem um paralelo com as de Bourdieu e Wacquant: o Brasil é um local
de miscigenação; os EUA, com a hipodescendência como característica de
codificação racial, não é. Além disso, a hibridez exemplifica jogo e fluidez,
não desigualdade. Vamos considerar a premissa de Veloso em si mesma, em
perspectiva comparativa, sem nos referirmos nem aos Estados Unidos e nem ao
Brasil. Se se fosse aplicar a premissa do sr. Veloso ' miscigenação racial
igual a democracia racial ' para encarar as relações de raça na África do Sul
ou no Haiti, por que a miscigenação não levou, aí, nesses dois locais, ao
igualitarismo racial? Estendendo a correlação aos lugares de influência ibérica
no Novo Mundo, como explicaríamos a coexistência de preconceito antinegrocom
celebração nacional da miscigenação em pontos tão distintos quanto Venezuela,
Equador e Cuba? Voltando aos Estados Unidos, as categorias mulato, oitavão e
quadroon (filho de branco com mulata) eram classificações operativas de
"cor" e "raça" na simbologia e sociologia do apartheid
social e da segregação, mas duvido um comentarista sério da história dos EUA
sugerir que a presença de oitavão e quadroons levasse à igualdade racial.
Veloso ' e outros, que tiraram conclusões semelhantes ' negligenciam as
implicações das próprias afirmações sobre racismo na sociedade brasileira. O
racismo contra os afro-brasileiros, que o próprio Veloso muitas vezes reportou
em sua música e em entrevistas, já existe no Brasil. Assim, se a celebrada
hibridez racial coexiste com intolerância racial, o que isso nos diz sobre a
plausibilidade da sugestão de que ou a hibridez racial e a intolerância racial
são antitéticas uma em relação à outra ou a hibridez racial leva à tolerância
racial?
Ao considerar o Brasil do ponto de vista da política racial comparativa,
acredito que ambos os cenários são altamente improváveis, na verdade,
inexistentes, nas políticas multiraciais, nas quais descendentes de escravos
africanos habitam o mesmo espaço que descendentes de grupos indígenas e
descendentes de europeus. A discriminação racial contra os negros tem
coexistido com modelos multipolares, bem como bipolares de classificação
racial. O erro analítico cometido por Bourdieu e Wacquant, bem como alguns
defensores baseados nos EUA da miscigenação e hibridez como melhoria de
condições raciais, é a equação de classificação racial ou fenotípica ' que é
uma faceta putativa da dinâmica racial ' com a totalidade das interações dos
grupos citados. Essa equação é uma forma de hipóstase, e base insuficiente para
acessar a totalidade da experiência das relações raciais no Brasil ou qualquer
outro lugar.
O desafio específico para muitos acadêmicos brasileiros/brasilianistas, ao
considerar os movimentos sociais negros brasileiros como faceta da política
negra transnacional, está em ver a participação de organizações tais como a
Frente Negra Brasileira não só como forma de apresentação de história nacional
e regional, mas também como faceta integral de uma comunidade multinacional,
multilingüe, ideológica e culturalmente plural ' uma comunidade imaginada, se
quiserem, mas não necessariamente limitada por um país territorial singular. A
segunda conceituação exige que vejamos no transnacionalismo negro, não um
aspecto disparatado, isolado, ou das histórias nacionais ou da história das
relações internacionais, mas como traço contínuo, recorrente, da política dos
séculos XIX, XX e, agora, XXI, em que tópicos como livre associação,
reconhecimento cultural e religioso, autonomia territorial e acesso igual a
bens, serviços e recursos manifestam-se, completamente ou em parte, como foi o
caso em movimentos sociais na África do Sul, Jamaica, Brasil, Colômbia, Reino
Unido e muitos outros Estados-nações. Os elos transnacionais entre atores
políticos africanos, caribenhos e norte-americanos mostram grande semelhança
com outros elos transnacionais, não governamentais, da primeira metade do
século XX ' anarco-sindicalismo, comunismo, sindicalismo e outros movimentos
globais seculares.
A política negra transnacional, ou o que caracterizei em outro ponto como afro-
modernidade (Hanchard, 2000) ajuda a sublinhar aquilo a que Jorge Castañeda se
refere como "nacionalismo longitudinal" (1994:308): o desenvolvimento
de relações horizontais, sem base estatal, entre atores políticos em vários
Estados-nações, com o propósito de desafiar ou derrubar políticas em um ou mais
Estados-nações. As filiações cruzadas através e acima de fronteiras
territoriais problematizam qualquer caracterização de relações internacionais e
inter-Estados como interação de entidades soberanas, politicamente discretas em
termos de território. Conceituada desta maneira, a questão da nacionalidade ou
da origem pode ser efetivamente traduzida no contexto analítico mais amplo da
interface de uma população-sujeito particular, de um lado (sul-africanos
negros, por exemplo), com um regime (apartheid) de maioria racial politicamente
dominante (africâners). Dessa maneira, os métodos utilizados para responder a
condições particulares de desigualdade são, ao mesmo tempo, codificados de
maneira universal e cultural, na medida em que fenômenos tais como marchas,
greves, rebeliões, freqüentemente operam lado a lado com formas de religião,
dança, expressão corporal e atos cotidianos de resistência, com o fim de
articular a natureza específica local de sofrimento e protesto.
Em muitos países, os transnacionalistas negros têm operado nos interstícios das
relações internacionais inter-Estados por bem mais que um século e
freqüentemente fundido política antiimperialista com política anti-racista. Em
muitas sociedades plurais, onde descendentes de africanos autoconscientes se
viram em posição relativamente impotente em relação a outro grupo étnico, são
diversas as histórias de tentativas (algumas bem-sucedidas) de criação de
coalizões que ultrapassam linhas raciais, étnicas e fenotípicas: de negros e
mulatos no Haiti, durante a Revolução Haitiana; de afro-trinidadianos e índios
do leste de Trinidad; de modo semelhante, na Guiana e de negros e mulatos na
Jamaica. Sugiro esses exemplos do Novo Mundo porque não só atravessam
fronteiras nacionais, mas também, ao que se presume, fronteiras
"culturais" e coloniais. Minha conclusão, em parte, baseou-se nessa
história comparativa mais ampla. Aqui nos defrontamos com uma questão
conceitual de raiz: a capacidade dos estudiosos de se deslocarem para além de
categorias sociológicas e políticas já prontas, com o fim de apreender
fenômenos identificados sob os rótulos movimento por direitos civis dos EUA e
transnacionalismo negro e examinar fenômenos políticos, sociais e culturais
associados a locais e épocas específicos ao lado de fenômenos presumivelmente
distintos por formas de demarcação lingüística, territorial ou outras. Esse
desafio não cabe apenas aos acadêmicos que tratam da história, mas também aos
teóricos da maneira como o estudo do transnacionalismo negro de várias maneiras
desafia os caminhos conhecidos para se analisar movimentos nacionalistas ou de
"questão única", permitindo-nos considerar certas formas de
solidariedade e mobilização políticas através de fronteiras nacionais como
agrupamentos e congregações não meramente coincidentes com o sistema do Estado-
nação. Assim, enquanto Bourdieu e Wacquant vêem o movimento por direitos civis
dos EUA como filosofia da práxis unificada e até mesmo hegemônica, no interior
do lexicon da luta social em todo o mundo, eu vejo o movimento por direitos
civis dos EUA como agrupamento ou congregação de diversas tendências
ideológicas e políticas, com suas próprias valências internacionais e
transnacionais.
Comentários Finais
O ataque de Bourdieu e Wacquant em alguns aspectos tem relação com o hábito que
Wacquant demonstra de descontextualizar a produção cultural negra e apresentar
essa descontextualização como virtude ou força, conforme evidenciam alguns de
seus escritos sobre boxe nos Estados Unidos. Essa ligação final é crucial,
acredito eu, para o entendimento de como o uso indiscriminado das categorias
sociológicas e a recusa em incorporar as peculiaridades específicas das tensões
entre política e cultura no Brasil são sintomáticos de uma interpretação, de um
modo geral equivocada, da atuação negra no trabalho de Wacquant.
A reputação emergente de Wacquant enquanto intelectual-boxeador deve-se
principalmente a três anos de trabalho de campo participante-observador na zona
sul de Chicago, treinando em vários ginásios de boxe, principalmente o
Stoneland Boy's Club (Wacquant, 1998:329). Como praticante, o próprio Wacquant
se aproxima do boxe através do que chama de sociologia carnal, uma sociologia
do desejo corporal de distinguir sua consideração do esporte da maior parte da
literatura jornalística sobre boxe. Ele caracteriza o boxe comoofício corporal,
uma forma de capital do corpo que, segundo conclui, os afro-norte-americanos
têm em abundância.
De atletas em geral e atletas afro-norte-americanos em particular, Wacquant
escreve que são performáticos e entretenidores, não líderes carismáticos, como
são aqueles "que constituem as verdadeiras forças revolucionárias da
história" (Wacquant, 1996:6):
Os atletas não mobilizam o povo, nem oferecem uma nova visão de mundo, mas
inscrevem a própria individualidade no mural da cultura pública, transformam as
suas vidas e provêem modelos de autodomínio, para que os outros também tentem
alcançar um bom desempenho. Não são de outro mundo, são deste mundo. "Não
são transgressores da tradição, mas expressões dela; não inovadores, mas
ritualistas. Isto é particularmente verdadeiro da cultura e da história
africana-norte-americanas [...]". (ibidem:7, ênfases minhas).
A verdade afirmada aqui ' que cultura e história afro-norte-americanas são
fonte de ritual, mas não de inovação ' é espantosa, por vários motivos.
Vislumbra-se ingenuidade antropológica no bojo da premissa de que a
"tradição" de qualquer cultura possa ser vazia de inovação. Para os
fins da minha resposta, porém, eu gostaria de enfocar apenas duas facetas dessa
"verdade", que apontam a leitura duplamente equivocada da articulação
cultural e política afro-norte-americana dos EUA. A distinção implícita em
Wacquant entre política e cultura se manifesta na distinção entre carisma e
persona: liderança carismática se alinha com a primeira; persona, com a última.
No entanto, como se pode manter tal distinção avaliando uma população cuja
própria relação com a articulação política e cultural nunca foi tão claramente
dividida? Os atletas negros (homens e mulheres), sem falar nos pregadores,
agentes funerários e outras ocupações profissionais, tinham muito mais status
nas comunidades negras que sua contrapartida na sociedade e nas instituições
brancas dominantes, levando alguns comentaristas, como E. Franklin Frazier, a
chegar ao ponto de concluir que a burguesia negra não era uma burguesia de
verdade. Não é preciso defender as conclusões de Frazier para conhecer a
disjunção sociológica entre posições de status nas comunidades branca e negra.
A distinção sociológica genérica de Wacquant entre carisma e persona e entre
inovação e ritual, só seria acurada se existisse simetria de correlação de
status entre brancos e negros.
Muitos atletas afro-norte-americanos dos EUA têm capital político e cultural
que em muito ultrapassa o espaço das traves, da quadra de tênis, da quadra de
basquete, campo de beisebol ou ringue de boxe ' de Paul Robeson até um negro
conservador contemporâneo como J. C. Watts. A mudança do mundo dos esportes e
suas implicações culturais e políticas para a arena dos negócios e partidos
políticos, com suas próprias implicações, é uma transição que os atletas afro-
norte-americanos dos EUA fazem com cada vez mais freqüência. O esporte
representa um dos poucos caminhos de sucesso para negros na sociedade branca. O
capital social e cultural acumulado numa esfera da sociedade, mesmo o capital
corporal do atleta profissional, invariavelmente vem à tona e é questionado e
utilizado em outras esferas. As vidas públicas ' e, às vezes, particulares ' de
Jack Johnson, Althea Gibson e Joe Louis, entre outros, ilustram como é
problemático o raciocínio de Wacquant de distinção persona/carisma para o
atleta profissional afro-norte-americano nos EUA. Não só o expõe a uma
interpretação equivocada da importância simbólica e política dos atletas afro-
norte-americanos dos EUA dentro do domínio do esporte, mas também fora dele, na
política formal e em movimentos sociais, tais como "o movimento por
direitos civis" a que se refere.
Se aceitássemos a distinção de Wacquant, uma figura como Muhammed Ali não seria
carismática; Joe Louis, que representou a vitória dos EUA sobre o fascismo
alemão através do sucesso e das vitórias arduamente conquistados, seria, de
acordo com a tipologia de Wacquant, deste mundo e não de outro mundo. Sugar Ray
Robinson, até hoje expoente em qualquer forma de arte marcial, capaz de
nocautear um oponente andando para trás seria também exemplo de pessoa que não
está entre os "transgressores da tradição, mas expressões dela; não
inovadores, mas ritualistas".
Alguns leitores poderiam achar que falar dos escritos de Wacquant sobre boxe e
esporte em geral é uma digressão do debate sobre imperialismo cultural dos EUA
no Brasil. Mas, como sugeri, no início, as implicações de seu ataque se
estendem para além das fronteiras do Brasil e dos Estados Unidos. Também estão
em questão temas como presunção, intenção e método. Nem nos EUA, nem no Brasil,
a população de descendência africana opera fora dos papéis sociológicos
dominantes, do senso comum, já prescritos para ela na academia e na sociedade.
O que os define é unicamente a relação com a cultura nacional, a sociedade e o
Estado e, por implicação, as instituições dominantes, costumes e valores das
respectivas sociedades. Como eu, o "norte-americano" ou a
"pessoa de cor" só existem dentro de categorias analíticas
individuais ("o atleta negro"). Em suma, são estáticos. Não têm
papéis múltiplos ou identidades multifacetadas, nem servem de produtores
culturais ou atores políticos fora de uma "incumbência do papel
social" dahrendorfiana. Os atletas homens africano-norte-americanos dos
EUA e os atores políticos negros no Brasil são mais multifacetados, dinâmicos
e, em última instância, "progressistas" do que permitiriam Wacquant e
as sociologias de Wacquant e Bourdieu.
Como explicar essa lacuna entre a sociologia de Wacquant e a experiência vivida
por afro-norte-americanos dos EUA e afro-brasileiros? Se o imperialismo
cultural pode ser caracterizado como nivelamento ou atenuação da diferença
através da racionalização de imperativos culturais e políticos alternativos,
então as intervenções de Bourdieu e Wacquant são, sem dúvida, cabíveis; como os
casos reais de imperialismo cultural, suas perspectivas e descartes têm impacto
sobre mais de uma localidade e são transnacionais em escala, utilizando as
categorias de nação, cultura e imperialismo para, em suas próprias palavras,
"universalizar particularismos ligados a uma tradição histórica singular,
fazendo com que sejam reconhecidos como tais". No entanto, uma vez que
eles não são nem capitalistas, nem representantes do Estado, talvez seja melhor
caracterizar sua crítica como meramente imperiosa, não imperialista.
De minha parte, concluo que as presunções de Bourdieu e Wacquant em relação ao
movimento por direitos civis dos EUA, o movimento negro no Brasil e a política
cultural afro-norte-americana dos EUA formam uma ilha de etnocentrismo e
incorrigibilidade cultural sem pontes nem barcos para atravessar a distância.
As limitações de interpretação de "The Cunning of Cultural
Imperialism" brotam da incapacidade de identificar e reconhecer formas de
cultura e política não necessariamente coincidentes com política partidária,
nacionalista (identidade) e sindicalista classista, formas de política das
quais, na maior parte do século XX, as populações negras dos Estados Unidos,
Brasil e até mesmo França, ficaram, em larga medida, excluídas e até mesmo
marginalizadas. Assim, com amigos como Bourdieu e Wacquant, os atores e
organizações políticos negros, as comunidades que os produziram, bem como
aqueles que dedicam parte de suas vidas a estudar seus movimentos, não precisam
de inimigos.
Notas
1.
Segue o texto em português: "Nos Estados Unidos, o Garvey foi recebido
com muita reserva, apesar de ter encontrado apoio para fazer um grande
trabalho. Mas foi combatido por muitos negros norte-americanos, que o achavam
um aventureiro [...] Como Marcus Garvey foi considerado um visionário, e eu
acabei ficando um pouco visionário aqui, querendo fazer um movimento que era
importado, um movimento de outros interesses que não eram propriamente nossos.
Disseram uma porção de coisas, que eu estava criando um quisto (sic) racial,
propondo um modelo racista para cá. E ficou muito confuso por aí".