Idéias fora do lugar e o lugar do negro nas ciências sociais brasileiras
Introdução
Gostaríamos de assumir, neste artigo, a radicalidade da crítica de Bourdieu e
Wacquant à importação de categorias de análise sociológicas transplantadas de
contextos históricos distintos e aplicadas a realidades diferentes (Bourdieu
& Wacquant, 1998). Estes autores argumentam contra o chamado imperialismo
cultural norte-americano e dão especial ênfase à transposição de categorias
raciais do contexto norte-americano para o brasileiro. Apesar de discordar dos
resultados da análise dos autores, devemos concordar com a fundamentação que
utilizam para esta crítica.
O Imperialismo cultural repousa no poder de universalizar os
particularismos associados a uma tradição histórica singular,
tornado-os irreconhecíveis como tais. (Bourdieu & Wacquant, 1998:
17)
Desenvolveremos, nas páginas seguintes, o argumento segundo o qual o poder de
universalização de categorias históricas como categorias universais, parte da
estratégia de definição de um modelo de conceituação ou recorte da realidade
como um modo de dominação, pode ser entendido como um dos efeitos da
colonialidade do poder1 que se expressa internamente ao campo das Ciências
Sociais brasileiras, entendido como um campo social e historicamente
determinado. Neste sentido, as categorias sociológicas, notadamente as
mobilizadas para a compreensão das relações raciais domésticas, seriam
expressão da hegemonia branca na sociedade e no campo acadêmico brasileiros. Ou
seja, seria preciso historicizar e recolocar diante de seus próprios contextos
as categorias "nativas" que têm servido para a descrever e analisar
as relações raciais no Brasil. Por outro lado, livros como o de Michael
Hanchard (Hanchard, 2001) podem ser interpretados como participando desse campo
na medida em que entram no jogo acrescentando novas categorias e tensões ao
ambiente já complexificado internamente pela demanda de sujeitos sociais negros
ou afrodescendentes.
Durante toda a história intelectual brasileira o cânone do pensamento
sociológico estabeleceu-se tomando como parâmetro modelos estrangeiros. Todo o
edifício do pensamento racial construiu-se assim. Agora, ao que parece,
reivindicamos uma nova transversalidade histórica para reconstruir uma forma de
abordagem da problemática racial que procura revelar os determinantes raciais
para a formação do campo acadêmico. A importação de categorias estrangeiras,
porventura, nos ajudará a historicizar e relativizar nossas próprias
categorias, excessivamente comprometidas com a manutenção do satus quo racial
local. Este compromisso, além de um prejuízo político, é um dano para a
compreensão adequada dos processos sociais em questão.
Nas próximas páginas procuraremos desenvolver este argumento, provisório e
prospectivo, em dois momentos: primeiro, discutindo a constituição do campo
acadêmico das Ciências Sociais no Brasil por meio de uma crítica do
conhecimento como uma crítica da sociedade (Habermas, 1982); segundo,
explorando a noção de colonialidade do poder/saber para discutir a relação
centro-periferia e a subordinação relativa da reflexão crítica latino-
americana. Concluiremos, apontando para a relação enunciada entre as idéias
fora do lugar e o lugar do negro nesta arena de discursiva.
Campo Acadêmico e Crítica Ideológica
Um campo científico está claramente definido como:
Um sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas
anteriores), é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O
que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da
autoridade científica definida, de maneira inseparável, como
capacidade técnica e poder social.(Bourdieu, 1983:122)
Sendo assim, é um arranjo que através de regras próprias define interesses
particulares e os encaminha por meio de estratégias legítimas. Este campo
organiza-se na forma concorrencial na qual o valor em jogo é definido em termos
da capacidade de impor um real determinado como tecnicamente irrefutável e
socialmente legitimado. O que de fundamental se disputa no campo é, entretanto,
a definição legítima do que se está pondo efetivamente em jogo; neste sentido,
todos os envolvidos são parte interessada, o que coloca questões interessantes
na medida em que é da natureza do campo se definir como uma arena em que os
únicos consumidores e avaliadores legítimos ou autorizados são os pares/
concorrentes.
A estrutura do campo apresenta-se como uma ordem consumada, determinada pelo
vínculo entre ordem científica e ordem social, uma vez que o campo não se
descola das estruturas sociais circundantes, mas transfere e retira poder desse
vínculo. A ilusão internalista que pressupõe que a ciência avança a partir de
seus próprios processos internos se esquece de que é sobre o solo
indiferenciado da doxa que qualquer ciência pode se estabelecer, assim como
esquece que ciências se constituem também como redes de instituições e
privilégios acadêmicos distribuídos em institutos, postos e funções que são
instituições mergulhadas no entorno social. No caso das Ciências Sociais, a
relação entre ordem social e norma dominante parece mais evidente na medida em
que aquelas teriam o poder de definir a representação legítima do mundo social,
reproduzindo, no interior do campo, as disputas pela definição legítima da
ordem social e mesmo da realidade como fundamento para a ordem social. Para que
o efeito de representação legítima desta ordem social seja mais eficiente, esta
deve ser apresentada como particularmente neutra ou livre de interesse,
exatamente o oposto do que é, ou seja, uma forma de representação dominante da
realidade social como forma de determinar o que pode ser posto em questão em
cada momento. O que não pode ser posto em questão se define como a doxa, o
campo do inquestionado que permanece silenciado como parte da estrutura de
desvendamento do mundo como o ocultamento das instâncias que o determinaram.
A relação entre conhecimento e interesse já foi denunciada por Habermas como
sendo sempre interessada (1982). Para este autor, o conhecimento é ligado à
reprodução da vida como vida social. Na medida em que o gênero humano assegura
sua sobrevivência e sua reprodução através dos medium do trabalho e da
linguagem, o conhecimento existe como manifestação do interesse operado através
destas instâncias. A estrutura geral da sociedade dá os contornos para a
produção do conhecimento como produção de verdades acordadas. É através destes
meios da linguagem e do trabalho que o homem constrói a si mesmo e a si mesmo
como sujeito do conhecimento, e esta constituição só pode se dar em meio ao
ambiente social no qual estão embebidos os agentes:
O medium no qual estas relações dos sujeitos e dos grupos são
reguladas normativamente é a tradição cultural; ela forma os
conjuntos semânticos da comunicação a partir dos quais os sujeitos
interpretam a natureza a si próprios em seu meio ambiente. (Habermas,
1982: 68)
Estes meios da linguagem e do trabalho, historicamente sedimentados,
constituem-se como campo em que as proposições se enraízam. Este é um campo
fraturado pelo conflito, nele os sujeitos que se mediam pelo trabalho aparecem
exteriorizados de si mesmos. Através do processo de alienação a sociedade de
classes produz seus sujeitos como objetos uns para os outros, surgindo, nesse
campo, como exteriores a si próprios porque expulsos de si mesmos pelo trabalho
alienante e só podendo se dar ao conhecimento na exterioridade de seus
produtos. Sendo assim, as condições e possibilidades de produção de
conhecimento, travestidas de imperativos ontológicos, são o efeito de arranjo
determinado da produção da vida social que aparece como manifestação do
conhecimento social. A autoconsciência emancipadora, interesse prático
fundamental advogado por Habermas é possível na medida em que: "se
reconhece a si mesma como resultado da história da consciência emergente das
classes e, através disso liberta-se como autoconsciência da aparência
objetiva" (Habermas, 1982:76).2 Voltamos a insistir: para Habermas, a
crítica radical do conhecimento deve ser uma crítica societária que poderia se
dar pelo reconhecimento do vínculo entre o a priori da experiência e o a priori
da argumentação, ou seja, a relação entre a anterioridade doxológica e o jogo
concorrencial no campo acadêmico.
As relações sociais de todo tipo são constituídas simbolicamente e o arcabouço
geral da vida social são interações significativas baseadas no caldo movediço
dos sentidos historicamente sedimentados. Este a priori da experiência não se
constitui como um real social essencial. Não existindo um "real
social" anterior à simbolização, não temos como escapar para uma
anterioridade não simbólica, quer dizer não ideológica, para realizarmos a
crítica das ideologias ou uma crítica da ciência como ideologia. O preconceito,
na tradição interpretativa hermenêutica, deve ser entendido em um sentido
positivo como a "estrutura de antecipação" que nos permite
compreender efetivamente, a partir de nossa relação de pertença, o mundo ou os
eventos ou textos e fazer sentido. Para Habermas, por outro lado, o preconceito
objetivado no contexto, ou história efetual (ou história da eficácia ou
resultados encarnados na história e no contexto, etc.), revela-se como uma
densidade urdida por elementos da linguagem estruturados pelo poder. A crítica
situa-se como uma tarefa da dissolução de constrangimentos institucionais
tornando transparente o contexto da vida social (Stein, 1987; Habermas, 1987;
Ricouer, 1990).
No momento da crise do fundamento, que dissolve a correspondência ontológica
entre significante e significado, que tipo de conhecimento pode ser possível,
que não pareça apenas o fruto espúrio de um jogo de interesses travado nos
bastidores ideológicos da cultura? Na tentativa de isolar um núcleo de
significação originário para determinar o vínculo social do pensamento e a
condição de possibilidade de qualquer hermenêutica Habermas coloca: o contexto
da tradição, base de onde partiríamos para a interpretação, é um contexto
concreto, estruturado pelo trabalho, pelo poder e pela linguagem. O ponto de
partida ou fato originário da compreensão é, dessa forma marcado pela
violência. O fundo último de um contexto para interpretação é a alienação ' em
relação aos meios de produção e ao próprio Ser do Homem! ' e a dominação '
determinada pela natureza do desenvolvimento do capital mediada pela
linguagem.
Como poderia o conhecimento pretender a universalidade se na sua base se
encontra a pressuposição da introdução no pertencimento, na tradição ou na
autoridade, que sempre é particular e contextual? Para Habermas só podemos
assumir a universalidade da Hermenêutica se reconhecermos que o contexto da
comunicação humana é sempre "perturbado" pela inverdade e por
violências constantes e repetidas. Nesse sentido, a condição de produção da
verdade repousa sob um lastro último de violação. A produção da verdade
dissimula, em resumo, a sua condição de produção: "Verdade é a coação
peculiar ao reconhecimento universal isento de coação" (Habermas, 1987:
64). O contexto social tradicional ou histórico efetual é assim determinado por
um conteúdo concreto de relações sociais que produz sua imagem como ciência ou
como ideologia, ou, como parece ser o caso, como ciência e como ideologia.
Seguindo o desenvolvimento de décadas de pesquisa sobre Relações Raciais no
Brasil pressuporemos ' em concordância com as sucessivas descrições que têm
mostrado a persistência e a intensidade das desigualdades de base racial no
Brasil3 ' a prevalência generalizada do racismo. Caberia perguntar qual a
relação entre este contexto determinado ' configurado como uma "estrutura
de antecipação" ou preconceito ' e o modo de produção e reprodução do
conhecimento legítimo sobre as relações raciais no Brasil?
De certo ponto de vista podemos, talvez, considerar o racismo como a violência
originária fundamental ' em termos lógicos e históricos ' que instaura este
contexto. Este racismo, poderíamos pensá-lo desdobrado em três planos de
descrição: 1) a figura histórica da escravidão africana como motor de
desenvolvimento do processo social brasileiro; 2) a realidade social das raças,
ela mesma uma violência e uma contradição em relação aos ideais de
universalismo; 3) o racismo desdobrado em sua práticas cotidianas na
atualidade, em suas estruturas historicamente definidas, e em discursos que '
como gostaríamos de enfatizar ' são tanto abertamente violentos e excludentes,
quanto aparentemente benignos, festivos ou indulgentes.
O caso dos estudos de relações raciais na Bahia é particularmente eloqüente
porque foi prioritariamente, a partir dos estudos empíricos ali realizados, que
se configurou a base interpretativa sobre as relações entre negros e brancos no
Brasil. Isto fez com que Costa Pinto mencionasse o esforço empreendido por ele
para que as pesquisas proposta pela UNESCO não fossem realizadas apenas na
Bahia, uma vez que naquele estado ainda predominavam as relações raciais
tradicionais, sem que ainda pudessem ser constatadas as alterações resultantes
das transformações estruturais ocorridas na sociedade brasileira.
De acordo com o autor, podemos caracterizar uma primeira fase dos estudos sobre
os negros no Brasil como um período em que os pesquisadores se limitavam a
encarar o negro como um "espetáculo", dando particular ênfase ao que
havia de bizarro, exótico e ao que particularmente separava negros e brancos.
Não se pode separar as orientações dessa fase e esse tipo de estudos
sobre o negro no Brasil da atitude mental que ela reflete e que, por
sua vez, é produto direto do quadro tradicional das relações de raça
no Brasil [...]. (ibidem:58)
Costa Pinto considera que essa forma de pensamento etnocêntrica resulta,
fundamentalmente, do modo como negros e brancos entraram em contato no Novo
Mundo, no qual o negro passou a existir historicamente como propriedade do
branco.
Noutros termos, isto significa, em última análise, que a maior parte
dos estudos sobre o negro no Brasil refletem o modo como o branco
[...] da posição social dirigente que sempre ocupou, encara um grupo
estranho. (ibidem:59)
Já Bacellar (1981) considera que a sociologia do negro na Bahia tem surgido em
si mesma como um problema e como tal deve ser tratada, a questão da adequação
das ciências sociais à questão racial é assim um problema que se impõe. Os
congressos afro-brasileiros dos anos 30 são apontados como o momento de
definição desse campo oscilante entre um modelo racialista antigo ' típico em
Nina Rodrigues ' e o modelo sociológico ou culturalista emergente ' típico em
Artur Ramos; nesse momento, ainda segundo Bacellar, teria se consolidado uma
técnica de dominação social nova adequada às transformações sociais em curso.
Esta técnica teve o concurso dos intelectuais envolvidos na formação do campo e
apóia-se em uma leitura culturalista da tradição de origem africana, invocada
para constituir o edifício teórico-ideológico da democracia racial. Bacellar
comenta:
A sócio-antropologia baiana, ao invés de desfazer a trama das
representações ideológicas, dificultou a elaboração de uma
interpretação correta da situação do negro na Bahia. A situação
racial esteve sempre marcada por profundas ambigüidades e a ciência,
ao invés de esclarecer, confundiu, ainda mais, as dimensões
significativas do real. (Bacellar, 1981:275)
Este tipo de crítica parece assemelhado àquele intentado por Alberto Guerreiro
Ramos, anos antes, no sentido de apontar a participação das Ciências Sociais na
produção de má compreensão sobre a questão racial. Na verdade, o arcabouço
maior da crítica de Guerreiro Ramos refere-se ao caráter importado, ou
"enlatado", da reflexão sociológica brasileira, que seria uma
"pseudomorfose", uma formação falsa, desconectada da realidade e dos
problemas sociais nacionais, além de engessada por conceitos metodológicos
eleitos como ortodoxia invariavelmente estrangeira. Ora, assim é com o problema
do negro, estudado de uma perspectiva eurocêntrica. Neste caso, a antropologia
é a grande vilã:
As categorias de nossa antropologia têm sido literalmente
transplantadas de países europeus e dos Estados Unidos. Ora, de todas
as chamadas ciências sociais, a antropologia, naqueles centros, é a
que se tem menos depurado de ingredientes ideológicos. De modo geral,
a antropologia européia e norte-americana tem sido, em larga margem,
uma racionalização ou despistamento da espoliação colonial. (Ramos,
1995:165)
Estes aspectos configuram a alienação social como a patologia racial no Brasil,
na qual o negro procura negar e esconder sua origem racial e o branco imita e
adora tudo que vem dos centros da civilização branca. Ramos não deixa de
observar que foi na Bahia, terra de maioria negra, que o pensamento
folclorizante e canônico sobre o "O Problema Negro" se formou como o
privilégio branco de ver o negro. Para Ramos a sociologia do negro brasileiro
tem sido a ilustração desse privilégio. Ora, como se quebraria esta cadeia
patológica de inferiorização e alienação? Através do niger sum, ou seja, da
tomada de posição ou de assunção de certa posicionalidade negra (ainda que
Ramos não use esse termo).
Sou negro, identifico como meu o corpo em que meu eu está inserido,
atribuo à sua cor a suscetibilidade de ser valorizada esteticamente e
considero minha condição étnica como um dos suportes de meu orgulho
pessoal ' eis aí toda uma propedêutica sociológica, todo um ponto de
partida para a elaboração de uma hermenêutica da situação do negro no
Brasil. (Ramos, 1995:199)
Com relativa antecipação Ramos advoga que a emancipação da sociologia
brasileira da alienação patológica ilustrada na sociologia do negro passa pela
ruptura de um pressuposto universalizante interior ao discurso acadêmico
brasileiro. Essa universalização não passaria, na verdade, de uma imitação de
pontos de vista e valores transplantados dos centros de dominação mundial, por
isso mesmo carregados dos desvios que sua origem representa, são expressões do
colonialismo, são conceitos elaborados para compreender e submeter o mundo e a
realidade segundo os interesses e perspectivas próprios dos contextos sociais
onde foram forjados. O pensamento branco os adota porque, como veremos na seção
seguinte, se instaura como um pastiche dos modelos de pensamento ocidentais,
folclorizando ou dando as costas para a rica realidade histórica e cultural
presente no processo social brasileiro.
Não existe, ao que parece, campo exterior à representação para pensar o
conjunto dos problemas que estamos considerando destacados de sua contingência
e de sua materialidade. Nesse sentido, a representação do negro no Brasil é
parte integrante e posicionada da história das lutas raciais. Não existindo
saber político fora de sua representação, o momento da ação política "deve
ser pensado como parte da história de sua forma de escrita" (Bhabha, 2000:
15). O campo das Ciências Sociais brasileiras, notadamente no que se refere aos
estudos de relações raciais, faz parte da história das relações de raça no
Brasil. Tanto alimenta as interpretações que entram nas disputas efetivas,
extrapolando o campo acadêmico propriamente dito, como, constituindo modelos de
leitura legítimos para a realidade, ajuda a ocultar o que deveria esclarecer:
as relações entre a produção do conhecimento e a estrutura desigual da
sociedade brasileira, racialmente marcada.
A história do campo pode ser, então, entendida como solidária ao contexto da
violência racial que tornou seu meio envolvente. As categorias sociológicas
formadas nesse contexto, marcado pela atração da teoria estrangeira e rejeição
da realidade nacional, não parecem menos espúrias do que aquelas que agora se
transmigram ao Brasil, com uma diferença importante, enquanto que anteriormente
a posição de poder implicada no ideal de universalização e normatividade das
categorias sociológicas brancas permanecia inquestionada, dissimulada e
estrategicamente retirada da cena, as novas categorias, muitas vezes
resultantes da luta política pela emancipação em outros contextos, ou seja,
categorias críticas, surgem plenamente conscientes de sua historicidade e
posicionalidade o que certamente deverá parecer muito aberrante para os poderes
constituídos na nossa topografia epistemológica. Como, aliás, pareceu aberrante
a reivindicação de uma questão racial no Brasil, durante muito tempo e com
muita ênfase vista como importação de uma problemática estrangeira (cf. Silva,
1988).
Colonialidade do Saber
O mundo moderno de um modo em geral, mas notadamente o Novo Mundo, é aquele
fundamentalmente marcado pela experiência colonial. As categorias sociais
operantes que se desenham contra o fundo da globalização ao definirem as
hierarquias globais são categorias coloniais como negro, índio, branco,
crioulo, mestiço. A essa presença da ordem simbólica colonial engendrando a
máquina das hierarquias culturais políticas e econômicas modernas Anibal
Quijano chamou de "Colonialidad del Poder".
La formación del mundo colonial del capitalismo dio lugar a una
estructura de poder cuyos elementos cruciales fueron, sobre todo en
su combinación una novedad histórica. De un lado, la articulación de
diversa relaciones de explotación y de trabajo [...] en torno del
capital y de su mercado. Del otro lado, la producción de nuevas
identidades históricas. Indio', negro', blanco', mestizo',
impuestas después como categorías básicas de las relaciones de
dominación y como fundamento de una cultura de racismo y etnicismo.
(Quijano, s/d.)
Esta formação desenrolou-se com a constituição do mundo global moderno,
unificado pelo avanço do capital. A formação dos Estados nacionais latino-
americanos se deu sob esta égide. As elites brancas locais, mais ou menos
mestiças ou crioulas, construíram Estados e ordens nacionais preservando as
hierarquias coloniais anteriores, substituindo-se uma elite européia pelos seus
descendentes. Cada formação nacional específica desenvolveu seus modelos
próprios de organização em torno da subjugação de sujeitos coloniais
determinados. A história desses sujeitos é intrinsecamente vinculada à história
colonial das nações ou territórios relacionados. Assim, sujeitos coloniais
norte-americanos seriam os negros e porto-riquenhos, enquanto a história da
ocupação francesa na Argélia, por exemplo, faz dos árabes argelinos o alvo de
todo tipo de estereótipo, estigma e subjugação social (Grosfoguel & Georas,
2000). Estas questões parecem fundamentais para a consolidação da democracia na
América Latina onde, para Quijano, se faria necessária uma revisão radical da
narrativa de emancipação modernista buscando uma outra racionalidade histórica
em uma leitura divergente e alternativa da modernidade. Na verdade, é preciso
ressaltar, o sistema-mundo atual vive sob a ilusão do fim do colonialismo.
The dominant representations of the world today assume that
"colonial situations" ceased to exist after de demise of
"colonial administrations" fifty years ago. This mythology
about the so-called "decolonization of the world" obscures
the continuities between the colonial past and current global
colonial/racial hierarchies and contributes to the invisibility of
"coloniality" today. (Grosfoguel & Georas, 2000: 88)
O caso brasileiro não parece discrepante dessa interpretação geral. O Estado
nacional constituiu-se simbólica e materialmente como garantidor dos
privilégios e prerrogativas dos brancos. Na verdade, formou-se pela
subordinação cultural de populações dominadas politicamente e subalternizadas
culturalmente: africanos, indígenas e seus mestiços mais evidentes (cf. Maio
& Santos, 1996). Deste modo, a consciência nacional no Brasil passou a ser
a consciência dessa hegemonização que retira um de seus conteúdos mais
marcantes do sentimento de deslocamento, estranhamento e de um certo complexo
de inferioridade vivido pelas elites intelectuais. De certo modo, o preço pago
pela colonização interna que as elites brancas (ou assim supostas) perpetraram
foi o mal-estar permanente de uma camada pensante e dirigente diante de um país
de estranhos, quase estrangeiros. Não é preciso repetir aqui todo o repertório
histórico do preconceito branco diante das manifestações culturais, da vida
associativa e mesmo da reivindicação de diferença por parte daqueles repostos
como diferentes exatamente pela mesma estrutura que tem nos negado um lugar
como protagonistas políticos e sujeitos do discurso. Grande parte da história
cultural no Brasil poderia talvez ser contada como a história das admoestações
feitas pela opinião pública branca contra a "barbárie africana" ou a
"preguiça do povo", a "incultura das massas" etc. Não fosse
trágico, seria até mesmo irônico perceber como mesmo aqueles setores mais
progressistas ou esquerdizantes sucumbiram ante a certeza de que uma nação
moderna seria culturalmente homogênea e eurocentrada.
P. E. S. Gomes descreve com maestria este mal-estar crônico em "Cinema:
Trajetória no Subdesenvolvimento":
Não somos europeus nem americanos do Norte, mas destituídos de
cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa
construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o
não ser e o ser outro (Gomes, 1996: 90).
Esta alienação psicológica e cultural fez Gobineau, como Caetano Veloso (1999)
recorda, ver o brasileiro como um homem que sonha em morar em Paris:
O Imperador resolve perguntar a Gobineau: "Afinal, o que acha
dos brasileiros?" "Vossa Majestade permite-me ser
sincero?", "Certamente". "Pois bem. O brasileiro
é um homem que sonha em viver em Paris". "O Senhor tem toda
a razão" e riu durante um quarto de hora. (Readers, 1997:41)
O jogo proteiforme das identidades nacionais parece oscilar entre a
originalidade necessária para a reivindicação de um "espírito
nacional" e a filiação das elites à matriz cultural e política do
Ocidente. A reivindicação da originalidade determinaria a condição para a
fundação da identidade nacional, assim como garantiria o direito/dever das
elites em comandar um povo a ela pretensamente associado por uma cultura e
passado comuns (Hannerz, 1996). Essa dialética complexa reveste-se de
afastamentos diferenciais que repõem sempre um centro e uma periferia. Se
"nós" somos periferia em relação ao centro metropolitano, estamos
centralizados como representação legitimada da civilização e da nacionalidade
diante de Outros, cultural e politicamente periféricos. Este jogo parece
fortemente balizado pela colonialidade do poder, em um teatro de operações
marcado pela relação entre modelo e cópia como uma versão da relação centro/
periferia. (Richard, 1995).
Ser da periferia é ter o centro como modelo. Nesse sentido, as culturas
periféricas latino-americanas não teriam a anterioridade do original, seriam
culturas de imitação, o que pareceria a certos autores como uma pré-figuração
da pós-modernidade, de modo que na América Latina ' a terra do "Realismo
Fantástico" por excelência ' o simulacro teria prioridade sobre a
realidade antes de sua vitória definitiva ter se estabelecido no Ocidente.
"We Brazilians and other Latin Americans constantly experience the
artificial, inauthentic, and imitative nature of our cultural life"
(Schwarz, 1995:264). Esse caráter inautêntico faz com que brasileiros
instruídos tenham a experiência do mal-estar crônico já referido.
O final do século XIX parece ser o momento crucial de cristalização do dilema
característico entre ideais modernizantes e uma estrutura social que garantiria
essas mesmas elites através dotrabalho escravo, do latifúndio e do favor,
elementos estruturais claramente antimodernizantes. No Brasil combinaram-se
formas arcaicas de organização social em harmonia com formas modernizantes;
esta contradição seria, na verdade, a contradição de um sistema econômico
inserido no sistema da economia mundial em bases contraditórias à racionalidade
pretendida para esse sistema. A ambigüidade brasileira seria a ambigüidade da
acumulação capitalista apresentada como racionalidade emancipadora, mas
projetando um fundo de atraso e violência essenciais. Assim, as elites viviam
(ou vivem?) a tensão entre "deprecating the bases of its social
preeminence in the name of the progress, or deprecating progress in the name of
its social preeminence" (ibidem: 276). Neste caso, o ideal nacional
coloca-se propriamente como importado e eventualmente fora do lugar. Habitando
o coração desta ambigüidade, o problema não é, no caso, a imitação, presente em
qualquer formação sociocultural, mas o tipo de imitação, constrangida pela
estrutura social do país. Esta tem em suas bases a estrutura do colonialismo e
do trabalho escravo (Schwarz, 1981; 1995).
Em certo sentido, a questão da modernização não pode ser evitada. E ao que
parece é importante discutir como a modernização se deu na América Latina de
forma aparentemente tão anômala ou incompleta em relação aos países do
capitalismo central. A interrogação sobre "nossa modernidade" não é,
todavia, exclusivamente nossa, mas uma dimensão importante dos debates pós-
coloniais, por exemplo, na Índia. A imbricação entre colonialismo e modernidade
faria esta última aparecer estranhamente deslocada ou viciada na Índia. De modo
que indianos, em um ambiente no qual a modernidade não significou liberdade de
expressão, ou prevalência da racionalidade, se percebem como meros
"consumidores" e não como "produtores" de modernidade.
Neste caso, uma modernidade "por importação" que na verdade se
configura como dominação.
Let us remind ourselves that there was a time when modernity was put
forward as the strongest argument in favor of the continued colonial
subjection of India: foreign rule was necessary, we were told,
because Indians must be first enlightened. (Chatterjee, 1997:19)
O que gostaríamos de ressaltar é que a "White man's burden" no Brasil
foi carregada pelas elites brancas, ocupadas em ocidentalizar, civilizar,
esclarecer as massas. Essa ocidentalização muitas vezes ' mas não apenas '
tomou a forma de uma desafricanização dos escravos e seus descendentes, como
demonstra, por exemplo, o livro de Wlamyra Alburque (1999) sobre as
comemorações da Independência na Bahia (assim como muitos trabalhos sobre a
repressão a práticas culturais negras, p. ex., Ferreira Filho, 1998-1999;
Braga, 1995; Rodrigues, 1984). Esse aspecto "assimilacionista", para
muitos uma herança de nossa colonização portuguesa, torna bastante evidente o
peso que a colonialidade do poder tem na configuração específica que as
relações entre dominantes e subalternos assumem no Brasil, uma configuração que
apesar de "assimilacionista" têm logrado repor as diferenças sociais
como diferenças culturais ao longo de todo o século XX, na medida em que os
negros continuam a ser socialmente produzidos como economicamente expropriados
e culturalmente subalternizados (Fry, 1991).
Na estrutura da sociedade escravista entre o latifundiário e o escravo, lembra
Schwarz, estava o homem livre pobre. A base de regulação da vida política
nestas esferas deu-se no modelo do favor pessoal. Assim, a burocracia e amplo
conjunto de relações sociais processavam-se de modo aparentemente
contraditório. No plano das idéias a adesão furiosa ao receituário liberal da
burguesia moderna, no plano da prática a dependência estreita do braço escravo.
Em "Idéias fora do Lugar" Schwarz coloca como as idéias européias
liberais pareciam se adequar e mesmo justificar o favor. "Assim, com
método, atribui-se independência a dependência, utilidade ao capricho,
universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio,
etc." (Schwarz, 1981:18). Assim o ideário liberal, ainda que postiço passa
a fazer parte do sistema, de modo que a ideologia liberal meritocrática e
racional faz o jogo do favor, colaborando para sua reprodução. Esse casamento é
explicado pela inserção do processo social nacional no capitalismo
internacional sob os auspícios do colonialismo.
Partimos de uma observação comum, quase uma sensação, de que no
Brasil as idéias estavam fora de seu centro em relação ao uso
europeu. E apresentamos uma explicação histórica para esse
deslocamento, que envolvia as relações de produção e parasitismo no
país, a nossa dependência econômica e seu par a hegemonia intelectual
da Europa, revolucionada pelo Capital. (ibidem:24)
A colonialidade do Poder no Brasil poderia ser, assim, descrita como
manifestando um tipo específico de relação entre o mundo das idéias e o mundo
da vida. Esta relação, como tem sido repetidas vezes apontada, padece de um
mal-estar, malaise crônica, que se apresenta como o sentimento de inadequação
da vida intelectual "civilizada" em nosso solo. Ora, essa inadequação
é fruto da inserção colonial do Brasil no sistema mundial. Para fora, esta
inserção marca a periferalidade nacional, o sentimento de inferioridade e
desterro dos intelectuais locais. Para dentro essa inserção implica, como
aponta Schwarz, a inadequação ou uso espúrio ou desfocado de idéias importadas
como um imperativo de civilização, perfeitamente adaptado ao nosso ambiente de
colonialidade. Periferalizada no conjunto hegemônico das nações capitalistas, a
consciência intelectual nacional periferaliza seus próprios sujeitos coloniais
repondo o negro como uma categoria, vamos dizer, alegórica dentro do campo das
Ciências Sociais. Assim, os negros foram, em sucessivos momentos, a
representação do atraso e da barbárie, a condenação moral e histórica do Brasil
como nação viável, o fundo perdido e mítico da nacionalidade dissolvido pela
mestiçagem, o mais essencialmente "cultural", autêntico ou primitivo
de nossos valores culturais etc. (cf. Schwarcz, 1996; 1999).
Como enfatizou Alberto Guerreiro Ramos, o Problema do Negro na sociologia
brasileira é função de nossa "patologia" particular, precisamente
descrita como a adesão irrefletida a categorias e modelos de pensamento
alienígenas. Para Ramos, como sabemos, o negro era o povo verdadeiramente
nacional. As elites brancas, dentre estas os intelectuais brancos, mesmerizados
pela cultura central da Europa, alternativamente oprimiram, desbarataram e
ocultaram a manifestação da vida social afrodescendente e, do mesmo modo,
representaram, alegorizaram e objetificaram o negro como alteridade interna,
passível de representação como um objeto sociológico plenamente constituído,
mas impossibilitado de se colocar como sujeito do discurso, como artífice de
uma crítica social em primeira pessoa. Talvez pudéssemos descrever essa
situação como aquela na qual a colonialidade do poder se transfere como
colonialidade do saber.
Gostaríamos de concluir esta seção indicando uma possível relação entre a
formação do campo acadêmico das Ciências Sociais e o desenvolvimento desse
processo (de alienação intelectual), notadamente no que se refere ao
"nation building". As Ciências Sociais no Brasil, fortemente
institucionalizadas a partir dos anos 30 (Limongi, 1989; Massi, 1989), têm uma
relação intensa com os discursos formadores da nacionalidade. A Antropologia
brasileira especificamente tem-se voltado para temas nacionais, revelando um
apetite normativo nesse processo. Peirano coloca: é possível uma antropologia
nacional ou brasileira, ou ainda local, ou nativa? A antropologia brasileira se
moveria, nesse dilema, entre uma participação intelectual (portanto política)
na construção da nação e uma lealdade a modelos de análise estrangeiros. Como
fazer antropologia "de ponta" e ao mesmo tempo nacional ou
"nossa"? Esta autora também comenta a sensação de estranhamento, já
nossa conhecida, que intelectuais brasileiros sentiam em relação ao seu país.
Como fundar uma sociologia "made in Brazil" com aulas em francês? Que
tipo de paradoxo coloca o fato de que a mais prestigiosa instituição
universitária brasileira, a USP, ter sido fundada por uma "missão
cultural" francesa? A autora considera ainda fundamental desenvolver uma
linha de argumentação que satisfaça as condições de revelar a vinculação do
desenvolvimento da antropologia em relação ao processo social brasileiro amplo.
Ou de ver o pensamento antropológico como embebido na configuração
sociocultural. Esta é, no Brasil, marcada, de um lado, pelo papel dos
intelectuais na construção de ideais de nacionalidade ou modelos de explicação
de nossa identidade cultural; de outro, pela violência e opressão
características da marca que o trabalho escravo deixou na formação social
(Peirano, 1981, 1999).
Sabemos, por outro lado, que o processo de formação desse campo, para além de
suas pretensões de originalidade nacional, é marcado de longa data pela relação
com o pensamento sociológico estrangeiro e inclusive norte-americano, e
certamente não terá sido o professor Michael Hanchard o introdutor de estranhas
idéias norte-americanas no panorama intelectual nacional.4 Como parece óbvio,
toda história intelectual é uma história permeada por importações e traduções;
o desconforto específico no meio intelectual brasileiro, ao que parece
involuntariamente repetido por Bourdieu e Wacquant, não tem nada a ver com
isso, mas se relaciona, como Schwarz aponta, com a estrutura social brasileira
e a relação do campo acadêmico com a estrutura social.
Conclusão
Os autores do artigo "Sobre as Artimanhas da Razão Imperialista"
(Bourdieu & Wacquant, 1998) parecem crer que pesquisadores como Michael
Hanchard e outros são responsáveis pela difusão de uma leitura sobre a nossa
realidade racial que, baseada em categorias ou experiência norte-americanas,
nega a especificidade das relações raciais brasileiras e operam com arrogante
imperialismo, pressupondo que o que vale para os Estados Unidos vale para o
Brasil.
Não é de hoje, entretanto, que agentes sociais negros têm insistido em
reinterpretar a dinâmica racial brasileira. Muito desse esforço se beneficiou
de trocas internacionais, não apenas com os Estados Unidos, mas também com a
África e o Caribe. Este campo de lutas e interpretação racial é amplamente
transnacional (cf. Risério, 1981; MNU, 1988; Crook, 1993). A questão é como o
campo acadêmico brasileiro se posiciona diante da demanda crescente por
identidade e protagonismo racial. O que parece fora do lugar não são
necessariamente as idéias, mas o negro quando não está imobilizado como uma
categoria, subjugado como um objeto, ou re-presentado como uma alegoria. Como
dissemos no início, aceitamos as premissas dos autores em questão, é preciso
historicizar, e foi isso que tentamos fazer colocando algumas questões em torno
do lugar no negro nas Ciências Socais brasileiras. Se concordamos com essa
premissa básica, acreditamos que os autores não a empregaram adequadamente no
caso brasileiro, esquecendo a própria história do campo acadêmico local, assim
com a história das lutas raciais no país.
O campo acadêmico brasileiro, formado no transcurso do século passado, poderia,
no argumento que apresentamos, ser compreendido em relação à estrutura social
envolvente, que, permeada pela "história dos efeitos", portaria todas
as marcas do "dilema brasileiro".5 Este campo, além do mais, estaria
acometido pelo sentimento de perpétua inadequação derivado da inserção
periférica do Brasil, como estrutura social, no conjunto mais amplo do
capitalismo mundial. Nessa equação se perceberia uma continuidade colonial que
ocorreria também como Colonialidade de Poder/Saber. O caráter artificioso de
nossa vida intelectual derivaria dessa condição. A "importação", ou
"interdição", de categorias estrangeiras isoladas, pouco efeito teria
sobre a alteração do quadro de alienação em que vivemos. Na verdade, não é isso
que parece estar em jogo na polêmica e em sua recepção no país, mas a
autonomização de uma perspectiva que reivindica centralidade para a
problemática racial no Brasil. Esta reivindicação, baseada em categorias
alienígenas ou nativistas, fatalmente causará desconforto e apreensão entre
aqueles comprometidos ou seduzidos por uma visão do Brasil, e das relações
raciais brasileiras, que para muitos de nós parece, todavia, inaceitável.
Notas
1.Sobre a colonialidade do poder ver as páginas 199 e 200 deste artigo.
2.É importante dizer que para Habermas o conflito de classes se manifesta de
várias formas no seio da sociedade industrializada, recuperado através de
divisões subculturais específicas em cada formação social (Habermas, 1968).
3.É importante destacar que, como Marx apontou, o capitalismo tem sabido
explorar desigualdades de base tradicional, contrariamente a uma tese de que as
divisões de gênero e raça desapareceriam dando lugar à oposição capitalistas x
proletários. Na verdade, vemos complexidades muito maiores. Cf. Castro (1998),
Bairros (1987, 1988), Barreto (1994, 1998), Hossfeld (1990), Tomaskovic-Devey
(1993), entre outros.
4.Os chamados brasilianistas cumpriram também o seu papel. A polêmica
brasilianista despontou e desenvolveu-se à sombra da política externa norte-
americana para a América Latina. A partir da "Aliança para o
Progresso", capitaneada por Kennedy e claramente uma reação à Revolução
Cubana, a polêmica parece estourar. Na verdade a Revolução Cubana ' e as
preocupações que levantou ' é apontada como um dos fatores a explicar o
interesse norte-americano em financiar pesquisas na América Latina, de um modo
geral, e no Brasil em particular. Tal preocupação deu uma série de frutos
visando levantar e armazenar dados confiáveis sobre os países de risco, frutos
como o Projeto Camelot, desenvolvido no âmbito do SORO (Special Operation
Research Office at American University), ou ao famigerado acordo MEC-USAID
entre outros. (cf. Sebe, 1984).
5.No sentido empregado em Souza (2000).