Casar ou não, eis a questão: os casais e as mães solteiras escravas no litoral
sul-fluminense, 1830-1881
A escravidão brasileira, uma prática que perdurou por mais de trezentos anos,
sempre despertou o interesse de estudiosos. Entre os trabalhos realizados até a
década de 1970, a promiscuidade era reconhecida como presente no dia-a-dia do
cativeiro, portanto, os casamentos entre escravos seriam pouco comuns. Aquela
promiscuidade resultava ou do estágio de desenvolvimento do negro (Rodrigues,
1988) ou do próprio sistema, por ter retirado o africano de seu ambiente social
e familiar, colocando-o numa nova realidade hostil, junto a pessoas estranhas
(Freyre, 1992), ou ainda porque as condições do cativeiro eram adversas. Deve-
se considerar, também, o desequilíbrio entre os sexos, que decorria da
preferência, pelo tráfico atlântico, por homens que, teoricamente, seriam mais
aptos ao trabalho do eito; desinteresse senhorial, já que a existência de
família poderia dificultar a venda da escravaria; e também dos próprios
cativos, que procuravam evitar a procriação e, conseqüentemente, a escravização
dos filhos (Gorender, 1992; Costa, 1998; Cardoso, 1962).
Essas teses começaram a ser reavaliadas nos últimos vinte anos, quando, então,
os laços familiares tornaram-se tema de pesquisas. Tal movimento inspirou-se em
estudos norte-americanos e associou-se a uma reformulação da visão sobre o
escravo, não como agente histórico somente na fuga, revolta ou roubo, mas no
seu dia-a-dia, ao lado do alargamento de opções de fontes paroquiais (casamento
e batismo), cartorárias (inventários post-mortem), censos populacionais,
processos criminais, entre outras, e releituras críticas de relatos de
viajantes e cronistas (Faria, 1997).
Os registros de casamento passaram a ser minuciosamente analisados, como, entre
outros estudos, os de uma Paróquia em Vila Rica (MG), entre 1727 e 1826 (Luna
& Costa, 1981), e os de treze localidades de São Paulo, nos anos de 1776,
1804 e 1829 (Luna, 1990). As demais pesquisas realizadas, incluindo os
inventários como fontes, trataram, dentre outras, de localidades como Paraíba
do Sul (RJ), entre 1830 e 1872 (Fragoso & Florentino, 1987); o Nordeste
colonial e açucareiro (Schwartz, 1995); Santana do Parnaíba (SP), entre fins do
século XVIII e princípios do seguinte (Metcalf, 1990); e Campinas (SP), no
século XIX (Slenes, 1987). Constatou-se que, em meio a dificuldades como a
desproporção entre os sexos, com o predomínio de homens, existiam espaços menos
adversos para a formação de famílias legais e, conseqüentemente, para maior
presença de crianças legítimas e de cativos casados e viúvos, como, por
exemplo, entre propriedades médias e grandes de Campinas (ibidem:218), de
Bananal (SP), nos anos de 1801, 1817 e 1829 (Motta, 1999:304-308) e de Lorena
(SP), no ano de 1801 (Costa, Slenes & Schwartz, 1987:254).
Tais dados explicam-se com base na constatação de que, no Brasil, havia uma
clara tendência a casamentos "intra-propriedades" (Slenes, 1999;
Motta, 1999; Metcalf, 1990; Schwartz, 1995), ou seja, em escravarias maiores,
maiores seriam as chances de localizar possíveis parceiros (Slenes, 1987). O
contrário também era verdade: quanto menor a propriedade, maior a freqüência de
mães solteiras, logo, de crianças "naturais". Essas características
foram confirmadas em estudo sobre Campos dos Goitacazes, no Norte fluminense,
nos séculos XVII e XVIII, quando se verificou que "eram os tipos de
produção, as localizações das áreas, o tamanho das unidades produtivas e o
período que, dependendo de determinadas combinações, influíam nas
possibilidades de casamento dos escravos" (Faria, 1998:323). Por exemplo,
áreas com ilegitimidade superior a 66% eram aquelas próximas a "portos
recebedores de africanos, e de bispados" (ibidem:323), pois a proximidade
do bispado levaria à maior interferência da Igreja nas relações entre senhores
e escravos, podendo aumentar o controle sobre a venda, separadamente, de
escravos casados, prática censurada pela Igreja.
Portanto, os estudos reconhecem o casamento religioso como recurso presente
para uma parcela da população escrava, embora também considerem como famílias
as unidades constituídas por mães solteiras. Porém, existem controvérsias no
que diz respeito, por exemplo, ao significado daquela instituição. Para
Florentino & Góes, a intensa chegada de africanos, considerados como
estrangeiros, criava um campo de conflito, contornado mediante a criação de
laços familiares, quando o desconhecido tornava-se conhecido e, portanto,
fundando a paz. Desta forma, as famílias acabavam por auxiliar na reprodução do
sistema escravista, tendo um papel estrutural (Florentino & Góes, 1997).
Perspectiva criticada por Slenes, que acreditava que a família, embora
respondesse a uma estratégia senhorial de formação de reféns, tanto dos anseios
dos escravos quanto dos proprietários, apresentou-se como espaço em que
experiências e memórias eram transmitidas e como possibilidade de escravos
obterem o mínimo de autonomia, possuindo uma função
"desestabilizadora" (Slenes, 1999). Ao contrário de estar relacionada
à vivência do cativeiro, Castro considerava que, à medida que favorecia a
obtenção de roças e moradias separadas, os escravos envoltos em laços
familiares adquiriam certo destaque junto à escravaria e acabavam vivenciando
uma aproximação com o mundo dos livres (Castro, 1995).
Frente ao atual estágio das pesquisas sobre o tema, faz-se necessário conhecer
como os cativos que viviam em diferentes realidades se comportavam diante do
casamento, e quais as mulheres que, por opção ou não, se encontravam excluídas
da oficialização de suas uniões. Em relação aos escravos, o que teria
significado o casamento? Existiriam critérios na escolha de companheiros? Até
que ponto haveria uma intervenção, por parte dos senhores, nos casamentos de
seus escravos? Em que medida o contexto da segunda metade do século XIX atingiu
os matrimônios sancionados pela norma em Mambucaba? Estas são algumas das
questões tratadas a seguir.
A população mambucabense e de todo o litoral sul-fluminense,1 quando do início
da "febre cafeeira", seguiu a tendência, comum às outras partes, de
plantar café. Sobre isso, Castro verificou que, com a expansão e a qualidade
advinda do cultivo em áreas serranas, o café plantado em Capivari (atual Silva
Jardim, RJ) foi prejudicado pela temperatura e umidade elevadas, pois
"comprometia a qualidade da produção cafeeira local que pouco a pouco se
voltava para o mercado interno" (Castro, 1987).
Por certo, a produção cafeeira de Mambucaba seguia essa característica. Da
mesma forma, a produção de alimentos, como feijão, arroz, e a atividade
pesqueira eram direcionadas para autoconsumo, sendo o excedente vendido na
localidade. Outras propriedades, definidas como voltadas para a agricultura
comercial, especializaram-se no abastecimento do mercado interno. Se o café
local era de qualidade duvidosa, o produzido no Vale do Paraíba, principalmente
o paulista, tinha como um dos pólos de escoamento, rumo ao Rio de Janeiro, o
porto localizado na Freguesia, o que dinamizava a vida econômica local por meio
do emprego de indivíduos da comunidade e da venda de excedentes àqueles que
subiam e desciam a serra.
Sobre os caminhos ligando Mambucaba ao interior, contamos com as observações
feitas por Zaluar, que, entre 1860 e 1861, visitou o Vale do Paraíba. No caso
de Barreiro, "para transportar os seus produtos a Mambucaba, que é o porto
mais próximo, mantém caminhos que confluem de diversos pontos do município às
estradas Cesárea e de Areias a Mambucaba" (Zaluar, 1975:54). O viajante
citou, também, as vias de comunicação entre Areias e Mambucaba, "as
estradas mais importantes do município são a Estrada Geral de São Paulo e a
chamada Cesárea, que comunica esta localidade com o porto de Mambucaba, e por
onde se faz a importação dos produtos comerciais e agrícolas" (ibidem:55-
60). Da mesma forma, Mambucaba mantinha comunicações com Lorena e Silveiras
(ibidem, p. 76).
O porto de Mambucaba vinha se destacando desde 1830, entre aqueles localizados
no município de Angra dos Reis, e chegou a ser considerado o segundo em
importância após o do centro de Angra (Mendes, 1970:358). Em 1847, Mambucaba
possuía seis armazéns de café e, em 1850, já eram oito, de um total de 25 em
todo o município, doze na Freguesia da Conceição de Angra dos Reis e cinco na
freguesia da Ribeira (Ipanema & Ipanema, 1990, 1991, 1992).2
Para a verificação do movimento portuário de Mambucaba, contamos com o mapa do
arrolamento feito pela Coletoria de Angra dos Reis, contendo informações da
origem dos cafés, nome dos seus donos, províncias de procedência e as arrobas
embarcadas nos portos de Mambucaba, Jerumerim, Ariró e Itanema. Mediante a
contagem das cargas que chegavam ao litoral, vê-se que grande parte do café
transportado pelo porto mambucabense provinha de São Paulo. Para o geral das
províncias de Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais, Mambucaba foi o
segundo porto em ordem de embarques, após o de Jerumerim (Pereira, 1977:56-70).
Em 1864, as linhas da Estrada de Ferro D. Pedro II chegaram a Barra do Piraí,
em 1871 a Barra Mansa e, em 1877 a Queluz (El-Kareh, 1982). Analisando as
entradas no porto do Rio de Janeiro de embarcações provenientes do litoral sul-
fluminense, vemos que, até 1860, houve um aumento do movimento portuário local:
de 1828-1838 para 1839-1849, de mais de 72 entradas, do último subperíodo para
1850-1860, de 78. A partir de 1860, observamos uma queda de 272.3
A produção cafeeira, que até então era escoada, entre outros, por aqueles
portos, passou, gradativamente, a ser conduzida pelo transporte moderno, mais
rápido e seguro. Ao lado disso, com o fim efetivo do tráfico externo de
escravos, em 1850, e, grosso modo, com o encarecimento da mão-de-obra escrava,
os pequenos produtores escravistas tiveram maior dificuldade de obtenção de
cativos, sendo que muitos acabaram vendendo seus escravos para o tráfico
interno, gerando "um recrudescimento do número de brancos empobrecidos,
nas diversas situações rurais, locais e regionais" (Castro, 1995:104). A
junção desses elementos conduziu a região ao processo gradual e lento de crise,
que só começaria a ser revertido a partir da década de 1920 (Capaz, 1996:201-
213). Como ilustração, podemos citar que, a partir de 1870, "em Angra dos
Reis, os casarões assobradados, que tinham depósitos de café na parte térrea,
foram sendo abandonados e começaram a ruir" (ibidem:202). Mesmo destino
tiveram as estradas que conduziam as produções até o litoral, como as de Ariró,
de Mambucaba e de Parati, que foram se arruinando pelo mau estado de
conservação (ibidem:203).
A população livre, que havia aumentado em 4.550 indivíduos, passando de 12.050
para 16.600, entre 1840 e 1856, elevou-se em apenas 689 pessoas, entre 1856 e
1872, chegando a 17.289. Ou seja, a alteração no quadro econômico local,
iniciado no contexto da segunda metade do oitocentos, veio desestimular a ida
de forasteiros à região, situação não verificada até 1856. Ao mesmo tempo, o
número de escravos decresceu, correspondendo, entre 1840 e 1856, a menos 893
indivíduos, passando de 10.552 para 9.659, e entre o último ano e 1872,4 de
menos 5.115, chegando a 4.544.5 A diminuição do movimento portuário e o fim
efetivo do tráfico de escravos criaram, cada vez mais, condições adversas aos
livres, que não conseguiam repor sua mão-de-obra quer via tráfico interno, quer
via nascimentos. Muitos deveriam estar vendendo seus cativos, em momentos de
expansão do preço dos escravos, às áreas de ponta na economia imperial,
tentando, assim, amenizar os impactos de um processo de empobrecimento a que
muitos estavam vulneráveis.6 Outros possíveis destinos aos cativos
desaparecidos poderia ter sido a alforria, a fuga ou a morte.
Ao lado disso, via-se uma diminuição da parcela de africanos entre a escravaria
mambucabense: se em 1856 havia 45,4% de africanos contra 54,6% de crioulos, em
1872, os crioulos chegaram a 83,2% contra 16,8% de africanos.7 A
representatividade de escravos nascidos no Brasil, na década de 1870, foi comum
às outras áreas estudadas, e não seria de esperar o contrário, pois já se
haviam passado vinte anos do fim efetivo do tráfico externo e, portanto, de
suspensão da entrada de africanos no Brasil. Magé, por exemplo, possuía uma
população crioula maior que a de Mambucaba: eram 89,08% de cativos desta origem
(Sampaio, 1998:129).
Porém, os dados acima não informam as faixas etárias dos cativos, o que deveria
incluir, portanto, crianças, adultos e idosos. Podemos verificar o percentual
de adultos existentes na freguesia entre 1830 e 1881 por intermédio da contagem
de 1.517 registros de batismo e de 96 de casamento, ambos realizados entre 1830
e 1871, e de 19 inventários post-mortem de proprietários de escravos de
Mambucaba, abertos entre 1840 e 1881. Para isso, os escravos foram agrupados de
acordo com o nome de seus proprietários, que totalizaram 251.8
Para a organização das escravarias, estipulamos alguns critérios: existiram
proprietários que, mediante uma anotação do vigário ou citação em inventário,
constatamos tratar-se de marido e mulher. Neste caso, optamos pela união das
escravarias por corresponder, na prática, à mesma propriedade. Esse foi o caso,
por exemplo, de José Jordão da Silva Vargas e sua esposa Dona Antônia Luiza de
Magalhães. Ocorreram casos de, uma vez falecido o proprietário, a sua viúva ter
passado a ser citada nas fontes, casos em que procedemos da mesma forma. Isto
se deu, por exemplo, com a morte de José da Silva Guimarães, quando cativos com
o mesmo nome e com padrão semelhante de compadrio passaram a ser anotados como
escravos de Viúva Guimarães e Filhos. Ainda surgiram outros problemas, como a
citação ao nome de um determinado proprietário de diferentes formas, como o
caso de Manoel Jordão da Silva Vargas, que apareceu ora como Manoel Jordão e,
outras vezes, como Manoel Jordão Vargas. Somente concluímos tratar-se da mesma
pessoa após o cruzamento dos nomes dos cativos que compareceram às cerimônias,
principalmente, os registros de batismo, grande parte das fontes de que
dispomos.
Feito isso, começamos a rastrear por proprietários os escravos com nomes
semelhantes, cruzamos suas origens e demos um número para cada cativo.
Ocorreram, diversas vezes, casos de escravos com origem indicada num registro e
não estipulada em outro; nestas vezes, verificamos se se tratava da mesma
pessoa; no caso das mães, observamos se a diferença entre um filho nascido e
batizado e outro era acima de um ano, quando consideramos como a mesma pessoa.
No caso de adultos, quando apareciam como padrinhos, somente consideramos a
mesma pessoa quando havia sido batizado anteriormente.9
Enfim, todo esse trabalho nos garantiu diminuir o índice de erro, embora sempre
presente, de contar mais de uma vez a mesma pessoa e de considerar a mesma
pessoa quando eram escravos com mesmo nome, mas indivíduos diferentes.
Posteriormente, contamos todos os adultos, aqueles entre 14 e 40 anos, e os
idosos, com mais de 41 anos,10 cuja origem pudemos identificar. Foram levados
em conta batizandos, pais, padrinhos, madrinhas, noivos e aqueles que
apareceram somente nos inventários, ficando de fora 204 homens e 206 mulheres
sem definição de origem.
Chegamos a 801 (58,8%) escravos vindos do outro lado do Atlântico, dos quais
353 eram homens e 448 mulheres, enquanto 563 (41,2%) eram cativos nascidos no
Brasil, divididos entre 190 homens e 371 mulheres.
Trata-se de uma amostragem que, por certo, deixa muitos outros escravos de
fora, principalmente aqueles que não compareceram a nenhuma das cerimônias
religiosas.11 Mas indica a parcela daqueles que estavam comparecendo à Igreja,
um percentual maior de escravos oriundos do outro lado do Atlântico.
Dentro desse contexto de transformação no panorama econômico local e
demográfico, perguntamos: quais os tipos de casamentos predominantes,
endogâmicos por origem e mistos12 e como se comportaram ao longo dos anos, ou
seja, até que ponto condições adversas vividas pela população livre influiu na
ida de cativos à Igreja a fim de sacramentar suas uniões? Quem eram as mães
solteiras que viviam em Mambucaba? A fim de responder às questões formuladas,
trabalhamos com as informações relativas, primeiro, a todo o período
compreendido pelos registros de casamento, 1830-1871, e, em seguida, comparamos
as variações nos subperíodos 1830-1849 e 1850-1871, para, assim, verificar as
possíveis alterações de acordo com os contextos.13 Quando incluímos na análise
os inventários, os anos em estudo foram ampliados para mais dez, chegando a
1881.14
Dos dezenove inventários trabalhados, a família escrava, formada por pais e
filhos, esteve presente em dezesseis processos, havendo, no total, 51 (80,9%)
famílias matrifocais,15 as únicas entre propriedades com um a três escravos e
quatro a quatorze cativos com, respectivamente, uma e sete famílias desse tipo.
Entre as maiores, aquelas com quinze ou mais escravos, localizamos 43 (78,2%)
constituídas apenas pela mãe e seus filhos e doze (21,8%) por casais com ou sem
filhos.16 Todas essas famílias congregavam 184 (41,2%) pessoas avaliadas.
Cruzando batismos e inventários, encontramos quatro famílias chamadas
fraternas, envolvendo irmãos, totalizando mais doze pessoas e duas famílias
tendo à frente pais viúvos, um homem e uma mulher, ambos com um filho cada, o
que elevava o número de cativos que não se encontravam sozinhos para 200, um
percentual de 44,3% de indivíduos num universo de 451 escravos avaliados.
A organização familiar estava presente para quase metade dos cativos, que
buscavam a socialização, a criação de redes de conhecimento e de auxílio e que
tentavam, em meio ao sistema de dominação senhorial, buscar formas de melhor
levar a vida. Ao mesmo tempo, o percentual de 44,3% representa parte do
contingente aparentado, pois, possivelmente, existiam tios, avós, além de
compadres e comadres, todos esses despercebidos pelos inventários, fonte que,
tradicionalmente, indica apenas os pais e filhos.17
No livro de casamento de escravos da freguesia de Mambucaba encontramos 65
registros de matrimônios realizados entre 1830 e 1871. Desses, dezesseis foram
casamentos coletivos, nos quais se anotou num único registro mais de um casal,
totalizando 96, distribuídos em 37 nos anos de 1830-1839, 36 entre 1840-1849,
19 presentes entre 1850-1859 e quatro entre 1860-1871.
Esses matrimônios envolviam escravos de um mesmo proprietário, o que confirma,
também para Mambucaba, que a escolha de um cônjuge por parte do cativo tinha
restrições impostas pelos limites da propriedade, tal como foram apontados por
Faria (1998:314) e Slenes, que diz: "Os senhores de escravos em Campinas
praticamente proibiam o casamento formal entre escravos de donos
diferentes" (Slenes, 1999:79).
Os escravos deveriam, em tese, escolher seus parceiros de vida entre a oferta
existente na propriedade na qual viviam, o que, no caso de pequenas
escravarias, poderia ser dificultado, ao contrário das maiores. Isso significa
dizer que, nas maiores propriedades, maiores seriam as chances de contrair
matrimônio, constatado por Slenes para Campinas no século XIX: "26% das
mulheres acima de 15 anos são casadas ou viúvas nos plantéis pequenos, e 67%
nos médios e grandes" (Slenes, 1987:218).
Os inventários trabalhados apontam nesse mesmo sentido, já que encontramos
famílias nucleares exclusivamente entre as escravarias com quinze ou mais
escravos, tipo de propriedade em que localizamos também os dois casos de viúvos
com filhos já citados.
Portanto, os cativos que viviam e trabalhavam em terras mambucabenses, quando
encontravam um possível parceiro para a vida, e estes eram de outros senhores,
acabavam estabelecendo relações diferentes do casamento sancionado pela Igreja,
situação que diminuía quando compartilhavam, além do destino de escravos, a
mesma propriedade. Os casamentos entre escravos de diferentes propriedades,
inexistentes na freguesia em estudo, deveriam criar situações que trariam
"dor de cabeça" para os senhores envolvidos, como quando do
nascimento dos filhos ou até reivindicações de maridos e esposas, desejosos por
morar ao lado de seus parceiros, em uma das propriedades. Mas, se as
intervenções senhoriais se alastrariam a outros aspectos do casamento, como
definir com quem um cativo deveria se casar?
Embora fosse provável que alguns dos casamentos realizados resultassem de
indicações dos proprietários, considerar que todos os matrimônios
representariam uma imposição senhorial seria pensar nos cativos tal como
"seres manipulados", quando sabemos que se tratava de homens e
mulheres atuantes em suas vidas, negociando concessões com seus proprietários,
assim como respondiam à importante estratégia de controle, evitando, inclusive,
uma possível fuga do cativo. Existiam, dentro dos limites impostos a seres
escravizados, momentos de relativa manifestação de suas vontades, como na
introdução de algumas preferências na hora da escolha do cônjuge: o casamento
endogâmico foi uma delas.
Entre 1830 e 1871, casaram-se 48 africanos entre si, correspondendo a 61,5% das
uniões; os crioulos, entre si, uniram-se dezoito vezes ou 23,1%, fazendo com
que os casamentos endogâmicos por origem chegassem a 66 (84,6%) contra doze
(15,4%) mistos, divididos entre sete (8,9%) casais, nos quais as mulheres eram
africanas e seus noivos crioulos e cinco (6,4%) mulheres crioulas com noivos
africanos.
Para a elaboração do cálculo, foram levados em conta os registros que tiveram
indicação de origem dos noivos e aqueles cujas origens, mesmo sem a referência,
foi possível localizar mediante o cruzamento com registros de batismo e
inventários, ficando dezoito de fora da contagem, que não conseguimos rastrear.
Havia uma preocupação dos cônjuges em criar laços com outros de mesma origem,
pois 84,6% das uniões eram endogâmicas contra 15,4% mistas. Vemos uma
predisposição à escolha a partir da origem, determinando um possível parceiro
em detrimento de outro.
Se observarmos os casais que não passaram pelo casamento entre os anos
demarcados, mas que haviam conduzido seus filhos ao batismo ou foram avaliados
em inventários, constatamos semelhanças em relação ao comportamento acima
apresentado. Foram 42 (57,5%) casais africanos, dez (13,7%) casais envolvendo
cônjuges crioulos, correspondendo ambos a 52 (71,2%) de uniões endogâmicas. Em
contraposição, 21 (28,8%) uniões eram mistas, distribuídas em oito casais
(11,0%) de mulheres africanas e homens crioulos e treze (17,8%) de mulheres
crioulas casadas com homens africanos. Aqui, a endogamia continua sendo a
principal característica quanto à origem dos casais, embora sofra uma queda de
13,4% na comparação com os registros de casamentos entre 1830 e 1871. De fato,
as origens eram fatores de aproximação entre os escravos de Mambucaba. Porém,
entre os cônjuges que haviam se casado antes de 1830 ou que teriam chegado à
Freguesia nessa condição,18 a segunda maior freqüência de casais envolvia não
homens e mulheres crioulos, tal como visto nos registros de casamento entre os
anos de 1830 e 1871, mas mulheres crioulas e homens africanos, resultado,
talvez, da falta de mulheres africanas para os homens africanos, ou de homens
crioulos para as mulheres crioulas.
Retornemos aos registros de casamentos entre 1830 e 1871. O fato de, por
exemplo, africanos recusarem o "outro", no caso, os crioulos, conduz
à percepção de identificação entre eles. Sabemos que o ser africano foi uma
construção advinda da sociedade escravista do século XIX, consolidando seu
significado somente na segunda metade do século, já que eram de tantas e
variadas etnias. Será que, então, suas diferenças étnicas eram
"superadas" pela caracterização deles, na região, como
"estrangeiros" em relação aos crioulos?
O processo estaria associado às possibilidades de localizar um parceiro dentro
da propriedade em que viviam e trabalhavam. Os africanos, quando chegavam a
Mambucaba, seriam "forasteiros", sem laços familiares, o que
permitia, em tese, o matrimônio com qualquer escravo da propriedade. Em tese,
porque, dentro da oferta de noivos e noivas, tendiam a optar por outros
africanos, dado explicado pelo número predominante destes em idade apta ao
casamento, além de se reconhecerem como "forasteiros". Esse foi o
caso verificado entre a escravaria de Joaquim Coelho dos Santos. Em 1838,
Sabina, africana de Benguela, foi batizada; um ano depois foi a vez de José,
também africano, mas de Moçambique, com dezoito anos. No ano de 1842, casaram-
se e batizaram seus filhos, Alexandre, em 1844, e João, em 1846.19
Os crioulos, por sua vez, estariam limitados na escolha, pois encontrar-se-iam
associados por outros laços familiares com cativos da propriedade, o que
impossibilitava o casamento; daí o estabelecimento de laços para fora da
propriedade, que, como vimos, não passava pelo casamento sancionado pela Igreja
(Faria, 1998:336). Mas também deveriam reconhecer-se como "iguais" e,
portanto, "diferentes" dos africanos.
Muitas foram as crioulas nessas condições, e não foram poucas que assim
permaneceram, solteiras.20 Citamos alguns casos: Fertuliana, escrava de
Custódio José da Silva e de sua esposa Rosa Maria, foi batizada em 1837 como
filha "natural" de Vitória africana. Ela apareceu na mesma
propriedade, já com aproximadamente dezessete anos, batizando a filha também
"natural" Sabina. Tratava-se de uma propriedade que contava, a levar
em conta os registros paroquiais, com a sua família e outra constituída por
cônjuges africanos casados por volta do ano de 1845. Ou seja, a propriedade não
lhe dava possibilidades de unir-se a alguém da própria escravaria e, por isso,
ela deve ter buscado um parceiro fora dos seus limites.21
Na propriedade de Francisco Soares Ferreira, encontramos uma história
semelhante. Catarina, africana de Angola, batizou sua filha "natural"
Antônia, em 1849. Essa, em seus dezessete anos, apareceu como mãe solteira,
batizando Vitalina, em 1864. Esta escravaria, assim como a primeira, não
apresentava a Antônia muitas possibilidades de encontrar parceiro, pois, além
de sua família, existia a de Graça, africana da Guiné, que batizou três filhos,
sendo que um destes, anos depois, veio a ser padrinho de escravos, e uma mulher
de nome Maria, com origem desconhecida, mas todos envolvidos por laços de
compadrio.22
O padrão de endogamia não foi exclusivo de Mambucaba, alguns estudos sobre o
tema também verificaram uma tendência igual, embora variassem quanto às
explicações.
Entre 1734 e 1802, em Campos dos Goitacazes, dos 2.244 casamentos envolvendo
escravos, 81% referiam-se a cativos africanos, dado que Faria associa ao
predomínio numérico destes, às facilidades na escolha de possíveis parceiros,
quase sempre africanos, dentro das propriedades e, inclusive, de mesma origem
étnica, e termina afirmando que: "os africanos, habilmente, utilizavam o
código social e ritual do homem branco para ter condições de estabilizar sua
organização familiar" (Faria, 1998:336). Em contrapartida, os crioulos
tenderam a buscar parceiros fora da propriedade, porque estariam envoltos em
laços familiares e, quando apareciam nos registros, geralmente, seguiam a
endogamia com base no critério da cor.
Na busca de uma resposta para o mesmo padrão de endogamia, por origem
encontrada para o agro fluminense entre 1790 e 1830, Florentino & Góes
recorreram a viajantes. Verificaram que o dia-a-dia entre africanos e crioulos
não era dos melhores. Sobre isso, afirmava Jean Baptista Debret, na primeira
metade do século XIX, que "os negros no Brasil julgavam seus irmãos de
sorte, os mulatos, como 'monstros', uma raça maldita" (Florentino &
Góes, 1997:34). Esse "conflito" poderia estar associado à preferência
dada pelos senhores por crioulos, mais do que africanos, no desempenho de
atividades domésticas e qualificadas, e na concessão de alforrias (Slenes,
1995:12). Da mesma forma que "a seletividade na escolha dos parceiros
significava uma opção preferencial por iguais, isto é, exprimia um duplo e
simultâneo movimento de constituição e recusa do outro" (Florentino &
Góes, 1997:35).
Em Campinas, embora com padrões de casamentos mistos na ordem de 31,1%, em
1801, e 47,4% em 1842-1844, a endogamia foi verificada, ao passo que o
percentual de crioulas casadas em relação às africanas demonstraria uma certa
"intransigência" no momento de escolha do cônjuge. Porém Slenes
relativiza a tendência à endogamia, evitando associá-la a possíveis conflitos
de origem, pois,
num contexto social que juntava, à força, 'estrangeiros', para, logo
em seguida, começar a transformá-los em 'comunidade': isto é, numa
agremiação imperfeita, crivada por competições internas, como todas
as 'comunidades' reais, mas nem por isso dividida em grupos de
identidades fortemente opostas (Slenes, 1999:78).
José Flávio Motta, em estudo sobre Bananal, certificou-se de que, em 1801, 1817
e 1829, os africanos tenderam ao casamento endogâmico: em 1801, foram 69,1%;
1817, 77,7%; e 1829, 85,4% (Motta, 1999:342).
No que diz respeito aos índices de nupcialidade, incluindo a variável idade e
tamanho de propriedade, Slenes constatou que, em 1801 e 1819, homens crioulos
apresentavam um índice maior que os africanos, enquanto, entre as mulheres, a
tendência seria para o predomínio das africanas. Tais cifras tenderam a
aumentar nas maiores propriedades (10 ou mais cativos) e entre os cativos acima
dos 15 anos. Em 1801, eram 43,3% de homens crioulos casados ou viúvos contra
26,5% de africanos, 52,8% de mulheres crioulas contra 79,8% de africanas. Em
1829, 47,1% de homens crioulos contra 23,9% de africanos, e, entre as mulheres,
foram 61,5% de crioulas e 66,7% de africanas (Slenes, 1999:76).
Quando vemos os casais que apareceram em registros de batismo e inventários de
Mambucaba e que, portanto, não se casaram entre 1830 e 1871, localizamos um
predomínio de africanos: os homens e mulheres africanas eram, respectivamente,
55 (70,5%) e 50 (79,4%) e os homens e mulheres crioulas chegaram a 23 (29,5%) e
13 (20,6%).
Entre aqueles que se casaram no período pesquisado, as mulheres africanas
somaram 55 (70,5%), os homens de igual origem foram 53 (67,9%), os homens e
mulheres crioulos, respectivamente, chegaram a 25 (32,1%) e 23 (29,5%). O
predomínio de africanos na cerimônia poderia indicar uma maior predisposição ao
casamento sancionado pela norma? Mas não seriam os crioulos, em tese, os
maiores conhecedores da doutrina católica e, portanto, mais receptivos ao
casamento?
O predomínio de africanos entre os que se casavam refletia, na verdade, a maior
expressividade numérica destes na faixa etária a partir dos 12 e 14 anos,
idades mínimas para contrair o matrimônio. Quando contabilizamos todos os
adultos que compareceram ao batismo, ao casamento ou os avaliados nos
inventários, vimos um predomínio numérico de africanos, o que parece justificar
o predomínio dos "de nação" na cerimônia. Assim como o casamento
deveria representar, para esta parcela da população escrava, a possibilidade de
ressocialização e o caminho para a estabilidade, mais emergenciais do que para
os crioulos, já socializados e inseridos em redes familiares e de amizade.
Porém o perfil é datado, como veremos a seguir.
Passando à análise dos subperíodos de 1830-1849 e 1850-1871, observamos
alterações a respeito dos perfis dos casais que legalizavam suas uniões. No
primeiro, antes do término definitivo do tráfico externo e quando os portos
estavam em fase dinâmica, os africanos eram a maioria, seguidos pelos crioulos.
Posteriormente, esse perfil tendeu a alterar-se, à medida que passava a segunda
metade do século e, portanto, de diminuição de africanos entre as escravarias.
Sobre isso, os registros de casamento nos dão algumas dicas.
Entre 1830-1849, os casamentos endogâmicos entre africanos corresponderam a 42
(66,7%), os endogâmicos entre crioulos foram 11 (17,5%), fazendo com que os
endogâmicos chegassem a 84,2% nesses anos, contra 10 (15,8%) mistos. Entre
1850-1871, os endogâmicos entre africanos corresponderam a seis (40.0%), os
endogâmicos entre crioulos foram sete (46,7%), levando os endogâmicos a 86,7%,
contra dois (13,3%) mistos.
Em números absolutos, os casamentos foram diminuindo, sendo que, no segundo
subperíodo, mais precisamente, após 1860, os africanos não compareceram mais à
cerimônia, tanto para casar com outros de mesma origem quanto com crioulos. Os
crioulos, em contraposição, continuaram a marcar presença mesmo após a data.
O movimento de queda de uniões endogâmicas entre africanos, localizado entre
1830 e 1871, em Mambucaba, seguia a tendência verificada desde 1810, no agro
fluminense, por Florentino & Góes. A partir desse ano, segundo os autores,
a entrada de africanos elevou-se intensamente e, ao contrário, os casamentos
entre eles diminuíram. A explicação para o comportamento seria a urgência
encontrada pelos africanos em socializar-se, "a urgência escrava (e
sistematicamente) de aparentar-se" (Florentino & Góes, 1997:44). Como
resultado, aumentaram as freqüências de famílias matrifocais (mães e filhos) e,
conseqüentemente, a ilegitimidade e o desgaste do projeto do casamento como
"um poderoso agente no desbaste da profunda crosta de hábitos e atitudes
inadequadas ao vir a ser escravo" (ibidem:151), visível pelos autores na
fase de estabilidade do tráfico, de 1790-1807.
Seria a imensa chegada de africanos a causa da diminuição de casamentos
endogâmicos verificada em Mambucaba? A região vinha de fato recebendo tantos
africanos a ponto de gerar a urgência em aparentar-se? Não contamos com os
números de entrada de africanos na freguesia, mas, sim, 156 registros de
batismo de adultos dessa origem, demonstrando a chegada de
"estrangeiros" entre 1830 e 1859. Esses registros, a levar-se em
conta que, uma vez anotados no livro da freguesia, tratavam de recém-chegados,
pois, ao contrário, já seriam batizados em outras áreas, demonstram números
mínimos, outros poderiam ter vindo, mas já batizados nos portos africanos de
embarque. Por exemplo, no caso dos cativos que embarcaram nos portos congo-
angolanos, havia a tendência a serem batizados antes da viagem; prática que não
teria sido comum em relação aos cativos embarcados da Costa da Mina (Soares,
1997:89-91).
Ou seja, existiriam propriedades que, dentro do contexto de término efetivo do
tráfico externo, em 1850, conduziram-se à obtenção de cativos, mas não o
suficiente para gerar um crescimento populacional, pois, como visto, houve uma
diminuição de 0,2% entre 1840 e 1856, movimento que viria a agravar-se após a
segunda data.23
Cremos que uma das explicações possíveis viria pelo quadro demográfico que se
desenhava na região. O percentual da população africana decresceu de 45.4%, em
1856, para 16,8% em 1872, ou perda, fundamentado nos cálculos sobre os números
absolutos, de menos 510 africanos ou 86,4%. Isso significa, indiretamente, que
a escravaria estava vivendo um processo de crioulização.24
Após 1860, como dito, os africanos desapareceram dos registros, possivelmente,
porque não havia novos africanos, e aqueles que, em Mambucaba, estavam já
tinham se aparentado, via casamento legal ou por uniões consensuais, e passaram
a ser "substituídos" pelos crioulos. Isso explica também a diminuição
de casamentos mistos.
As uniões entre crioulos, embora tenham diminuído em números absolutos após
1850, conheceram uma elevação em percentuais, de 17,5% para 46,7%. Essa
elevação estaria associada à queda dos dois outros tipos de matrimônios,
enquanto que o decréscimo de onze para sete cerimônias ligar-se-ia à queda
numérica de escravos, verificada entre 1856-1872, de 63,3%, dos quais, 312
(44,0%) dos nascidos no Brasil desapareceram.25
Porém, o quadro demográfico seria uma das explicações possíveis, a outra se
ligaria a uma política senhorial no sentido de dificultar que seus cativos se
unissem legalmente. Sheila de Castro Faria explica que esse movimento afetou
diversas áreas a partir da década de 1830, quando o risco de fim do tráfico e o
aumento do preço dos escravos teriam feito com que os senhores dificultassem a
realização dos casamentos de seus escravos. Com isso, os proprietários ficariam
livres de possíveis intervenções da Igreja, quando houvesse necessidade de
venda de um dos cônjuges, prática censurada pela instituição (Faria, 1998:339).
Esse comportamento senhorial seria mais do que coerente numa realidade como a
de Mambucaba, uma área que, no correr da segunda metade do século, conheceu um
quadro de transformação econômica e um processo de empobrecimento dos homens
livres, se levarmos em conta a presença dos inventários com bens seqüestrados
em função de conterem dívidas maiores que os montes.
Por meio dos números absolutos dos casamentos para cada um dos subperíodos,
verifica-se uma diminuição das cerimônias ao longo do tempo. Até 1849, os
casamentos somaram 73, enquanto, de 1850 em diante, não passaram de 23.26
O aumento da ilegitimidade, ou, em outras palavras, a diminuição de casamentos,
foi verificado ainda para áreas de grande lavoura, mais intenso na Província do
Rio de Janeiro do que na de São Paulo, mas presente em ambas. Entre 1872 e
1887, os escravos casados e viúvos tenderam a diminuir em 51,5%, no Alto
Paraíba, 59,4%, na região do Paraíba do Sul, 81,8%, na região do Cantagalo e,
em 67,6%, na Comarca de Campos (Slenes, 1999:86).
A diminuição de casamentos é aqui entendida como uma diminuição de famílias
organizadas em torno das nucleares (pai, mãe com ou sem filhos),27 mas que não
gerou necessariamente a constituição de cativos não aparentados. A modalidade,
uniões sancionadas pela Igreja, era uma das possibilidades de organização
familiar, bem como as uniões consensuais. Infelizmente, esse tipo de associação
não aparece em nossas fontes, pois eram produzidas pela Igreja, que não as
reconhecia. Porém, o silêncio sobre elas pode e será compensado pelas famílias
matrifocais, caracterizadas pela presença da mãe e seus filhos, definidos nos
registros de batismo como "naturais". Essas famílias tanto devem
esconder as tais uniões consensuais quanto as fortuitas.
A redução de casamentos e o número crescente de crianças ilegítimas batizadas
na freguesia, entre 1830 e 1871, não podem ser compreendidos como um processo
de promiscuidade.28 Eles estavam seguindo uma opção contrária à norma, mas não
diferente à de grande parte da população livre da época. A ampliação da
ilegitimidade aparece associada a outro movimento, a ampliação do compadrio
envolvendo escravos, principalmente após 1850.29 Num quadro de diminuição
populacional e de diminuição de casamentos, em contrapartida, de aumento de
uniões que não passavam pela Igreja, as cerimônias de batismo eram momentos em
que as famílias buscavam contrair laços de compadrio com compadres e comadres
também cativos, conhecedores da vida levada em cativeiro, "irmãos" no
destino.
Mesmo com o predomínio de mães africanas casadas, demonstração de maior
facilidade na localização de parceiros dentro da propriedade em que viviam e
trabalhavam, muitas acabaram procriando ilegitimamente, assim como as crioulas.
Foram anotadas, uma única vez, as mães com filhos "naturais", que
apareceram nos registros de batismo, e as mulheres com filhos, quase todos
pequenos e possivelmente pagãos, nos inventários.30
Pelos dados obtidos, muitas mulheres africanas também ficaram de fora do
casamento, 257 ou 49,2%, embora predominassem ligeiramente as crioulas, pois
eram 265 ou 50,8% solteiras.31 Casar estava se tornando uma opção cada vez mais
rara, porém mais difícil era para as crioulas, principalmente, por maiores
dificuldades na obtenção de companheiros nos limites das propriedades; ao
contrário, para as africanas, tal como vimos, havia maiores possibilidades de
contrair matrimônio, mesmo depois de parir um filho ilegitimamente.
Algumas dessas mulheres, após gerar filhos "naturais", acabaram se
casando. Nesse caso, incluíam-se 16 mulheres africanas, que se associaram a 14
homens de mesma origem, um homem crioulo e um de origem desconhecida. Das
nascidas no Brasil, seis uniram-se a quatro homens também crioulos e dois
africanos. Com exceção de uma cerimônia, todas se deram antes de 1849, anos em
que o casamento era menos dificultoso.
Geralmente, essas mulheres, africanas e crioulas, tenderam a gerar apenas um
filho ilegítimo antes do casamento, situação vivida por 19, em contraposição a
duas, que tiveram dois, e uma com três crianças.
José Joaquim de Siqueira Pinto viu, entre seus cativos, casos de procriação
antecedendo o casamento. Isabel, crioula, batizou três filhos
"naturais". No ano de 1848, casou-se com José africano e batizaram
mais seis filhos.32
O caso ocorrido na propriedade de Antônio Jordão da Silva Vargas também merece
ser citado. Madalena, africana, batizada como adulta em 1849, teve sua filha
"natural" Rita levada à pia batismal em 1857, e falecida no ano
seguinte. No ano de 1859, Madalena compareceu novamente à Igreja Matriz de
Nossa Senhora do Rosário para casar-se com Calisto, também africano e batizado,
coincidentemente, no mesmo ano que sua cônjuge, em 1849. Alguns anos depois, em
1860, ambos batizaram dois filhos, Faustino e Fabiano, gêmeos, e, cinco anos
depois, foi a vez da criança Romana.33
Esse é um típico caso de família escrava tendo à frente um casal de mesma
origem, em que, antes do matrimônio, a mulher pariu um filho ilegitimamente.
Este poderia ser fruto da união, na época ilegal, entre ela e o escravo que,
posteriormente, viria a ser seu marido. Ambos chegaram na mesma época à
propriedade como "estrangeiros" e, talvez, por essa associação,
aproximaram-se. Seus filhos, tanto a "natural" quanto os legítimos,
foram batizados, respectivamente, por um escravo e uma escrava da propriedade,
um escravo de propriedade diferente, um escravo da propriedade e outro de
propriedade de um parente de Antônio Jordão da Silva Vargas, José Jordão da
Silva Vargas e sua esposa Dona Antônia Luíza de Magalhães. Além de assumirem
laços matrimoniais na propriedade, Madalena e Calisto usaram do compadrio, um
meio de associarem-se a outros escravos, aumentando, assim, o raio de ação de
sua família nuclear.
Caso semelhante ao de Luíza, crioula, escrava de Bernardo Soares Ferreira. A
escrava batizou sua filha Felisbina em 22 de junho de 1834 e, no mesmo ano,
uniu-se em matrimônio com Jacinto crioulo, em 26 de outubro. Posteriormente, em
1838, batizaram Martinho. A primeira filha recebeu como padrinho Antônio José
During, proprietário de escravos, e Delfina Maria, livre, enquanto o filho
legítimo recebeu como padrinhos e madrinhas Rufino e Joaquina, escravos de
Manoel da Costa Lima. Esse perfil de compadrio, variando quanto a filho
ilegítimo e legítimo, não foi exclusivo deles, a tendência a padrinhos livres
entre as crianças ilegítimas foi comum, enquanto que para as legítimas
predominaram, particularmente entre as madrinhas, aquelas também escravas.
Portanto, a ilegitimidade poderia não somente representar uniões fortuitas, mas
uniões que só dependiam da boa vontade senhorial para serem efetivadas; outras,
envolvendo escravos de diferentes propriedades, estavam fadadas a manterem-se
consensuais.
Concluindo, os escravos de Mambucaba, ao se casarem, buscavam cônjuges de mesma
origem. Os africanos, "estrangeiros", uma vez que chegavam sem laços
de amizade e familiar ligavam-se a outros também identificados na região como
"estranhos", afinados por ausência de conhecimentos. Eles possuíam
maiores possibilidades de localizar, dentro da propriedade a que a sorte os
"jogou", futuros cônjuges; primeiro porque, eram em número
representativo, e, segundo, porque não tinham laços familiares estabelecidos, o
que, a princípio, viabilizava o casamento com qualquer um da propriedade. Os
crioulos, por sua vez, também casavam entre si. Estes acabavam sendo menos
presentes nas cerimônias, pois tinham maiores dificuldades em localizar
parceiros nas propriedades em que viviam, conseqüentemente, buscavam
companheiros para além dos limites das propriedades. Como o casamento inter-
propriedades era evitado pelos senhores de escravos, os crioulos tenderam a
estabelecer uniões consensuais.
Para os africanos, "estranhos", o matrimônio significava um dos
caminhos para a ressocialização e oferecia aos envolvidos vantagens emocionais.
Mas existiam outros caminhos para a socialização, como as uniões consensuais,
amizades que iam sendo estabelecidas no decorrer do dia-a-dia e pelos laços de
compadrio, que adquiriam, quer seja como pais de batizandos, quer seja como
padrinhos. Com isso, o "estranho", gradativamente, tornava-se
"conhecido". Para os crioulos, o casamento geraria a ampliação e
confirmação de laços estabelecidos, possíveis também mediante uniões não
reconhecidas pela Igreja e o compadrio. Para ambos, a família seria um lugar de
criação e preservação de espaços de resistências dentro da sociedade
escravista, espaço em que experiências foram passadas aos descendentes, e na
elaboração de um universo próprio a eles.
Para os senhores, representaria um caminho a fim de viverem "melhor"
a escravidão. Porém, dentro desse projeto, estavam excluindo, gradativamente, o
casamento sancionado pela Igreja, no decorrer do século XIX, garantindo a
possibilidade de venda de suas escravarias, caso houvesse necessidade. Esse
tipo de comportamento era coerente no caso de realidades como a de Mambucaba,
onde o contexto da segunda metade do século gerou maiores dificuldades para os
homens livres, constatadas pelos casos de endividamento. Os escravos, por sua
vez, respondiam a essa dificuldade, estabelecendo famílias matrifocais,
elevando a ilegitimidade e fazendo do nascimento de filhos um caminho para
efetivação de laços de compadrio tendentes a serem estabelecidos com outros
escravos, especialmente, no caso das madrinhas.
Notas
1.
A Freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Mambucaba, criada em 1808, em
território do atual município de Angra dos Reis, era fronteiriça a Parati. Em
seu território, estão, hoje, a Vila Histórica de Mambucaba e as Usinas
Nucleares de Angra dos Reis.
2.
Tais livros apresentam as informações contidas no Almanaque Laemmert para
Angra dos Reis entre os anos de 1844 e 1850.
3.
Somando as embarcações que chegaram ao Rio de Janeiro provenientes do litoral
sul-fluminense, ou seja, dos portos localizados em Mangaratiba, Angra dos Reis
e Parati, constatamos: entre 1828-1838, foram 655 entradas, sendo que 74,5%
transportavam café; entre 1839-1849, somaram 727, sendo 94,5% com carregamento
de café; entre 1850-1860, foram 805, dos quais 94,8% com a rubiácea; e entre
1861-1871, 533 entradas com 82,6% de café. Dados extraídos do Jornal do
Comércio, dos meses de março e outubro de 1828 a 1871. Seção de Periódicos da
Biblioteca Nacional, RJ. Para mais, ver Vasconcellos, (2001:52-54).
4.
Quadro Estatístico da população da província do Rio de Janeiro, segundo as
condições, sexos e cores-1840, extraído do Relatório de Presidente de Província
do Rio de Janeiro de 1840 e 1841; Recenseamento da população livre e escrava da
Província do Rio de Janeiro em 1856, presente no Relatório de Presidente de
Província de 1858. Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, RJ.
Recenseamento Geral do Brasil, 1872. Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), RJ.
5.
Tal movimento foi comum a outras regiões da Província do Rio de Janeiro:
Capivary possuía 5.999 escravos em 1856, enquanto em 1872 eram 3.903 (Castro,
1987:39). Assim como em algumas das freguesias do município de Magé, no RJ,
como Piedade e Suruí, que chegaram a 20% de escravos em 1872. Outras conheceram
uma ampliação populacional como a freguesia de Guapimirim, também em Magé
(Sampaio, 1998:124).
6.
Por meio da análise de 19 inventários de proprietários de escravos de
Mambucaba, verificamos que 60,0% de proprietários com até 3 escravos tinham
dívidas superiores aos montes brutos e 22,2% daqueles com 15 ou mais cativos.
Inventários post-mortem de proprietários de escravos de Mambucaba, 1840 a 1881.
Arquivo Nacional e Museu da Justiça do Rio de Janeiro.
7.
Recenseamento da população escrava da Província do Rio de Janeiro em 1856,
presente no Relatório de Presidente de Província de 1858. Seção de Periódicos
da Biblioteca Nacional, RJ. Recenseamento Geral do Brasil, 1872. Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), RJ.
8.
Foram 215 proprietários que enviaram escravos batizandos e noivos, e 36 que
ofereceram exclusivamente padrinhos e madrinhas para o batismo.
9.
A passagem pelo ritual do batismo era uma das condições exigidas para os
indivíduos convidados tornarem-se padrinhos ou madrinhas. Os procedimentos e
critérios adotados foram inspirados no trabalho de Góes, 1993.
10.
Baseamo-nos nas idades estipuladas por Florentino & Góes (1997:66).
11.
Isso porque contamos com maior número de registros paroquiais. Os inventários,
como dissemos, são somente 19, num total de 215 proprietários identificados.
12.
Casamentos endogâmicos por origem envolviam ambos os noivos africanos ou ambos
crioulos e os mistos, noivos africanos e crioulas ou vice-versa.
13.
Livro de Casamentos de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-1871. Convento
do Carmo de Angra dos Reis, RJ.
14.
Inventários post-mortem de proprietários escravistas de Mambucaba. Museu da
Justiça do Rio de Janeiro e Arquivo Nacional. Trata-se de senhores localizados
nos registros paroquiais de casamento e que possuíam propriedades ou viviam na
freguesia.
15.
Chamamos de famílias matrifocais aquelas constituídas por mães solteiras e
seus filhos e as famílias nucleares as que contavam com casais unidos junto a
Igreja, com ou sem filhos.
16.
Optamos pela divisão de escravarias a partir da premissa de que, a fim de
analisar Mambucaba, não seria pertinente dividir por faixas de tamanho de
propriedades pelos números definidos geralmente, quando se estudam áreas de
"plantationsescravista". Baseamo-nos nas afirmações e na organização
efetivada por Castro (1987:31-115).
17.
Para saber sobre famílias extensas e compadrio em Mambucaba, cf.Vasconcellos
(2001).
18.
Acreditamos que, se houvessem casado, após 1830, em Mambucaba, seus registros
estariam presentes no livro consultado. Outra possibilidade seria a da chegada
do casal na região já unidos segundo os preceitos da Igreja Católica.
19.
Livros de Casamento e de Batismo de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-
1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ.
20.
Ao menos nos anos de estudo da pesquisa, pois não as localizamos em nenhum dos
registros de casamento disponíveis.
21.
Livros de Casamento e de Batismo de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-
1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ.
22.
Livros de Casamento e de Batismo de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-
1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ.
23.
Quadro Estatístico da população da província do Rio de Janeiro, segundo as
condições, sexos e cores-1840, extraído do Relatório de Presidente de Província
do Rio de Janeiro de 1840 e 1841 e Recenseamento da população escrava da
Província do Rio de Janeiro, em 1856, presente no Relatório de Presidente de
Província de 1858. Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, RJ.
24.
Recenseamento da população escrava da Província do Rio de Janeiro em 1856,
presente no Relatório de Presidente de Província de 1858. Seção de Periódicos
da Biblioteca Nacional, RJ. Recenseamento Geral do Brasil, 1872. Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), RJ.
25.
Recenseamento da população escrava da Província do Rio de Janeiro em 1856,
presente no Relatório de Presidente de Província de 1858. Seção de Periódicos
da Biblioteca Nacional, RJ. Recenseamento Geral do Brasil, 1872. Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), RJ.
26.
Entre 1830-1849, foram 63 casamentos endogâmicos ou mistos e 10 sem
especificação de origem de um ou dos dois cônjuges, o que totaliza 73
registros; entre 1850-1871, os casamentos endogâmicos ou mistos chegaram a 15,
e aqueles sem especificação de origem de um ou dos dois cônjuges o que
corresponde a 23 registros nos anos definidos.
27.
Cremos que os registros de casamento possam dar uma estimativa sobre os
padrões de organizações das famílias nucleares, da mesma forma que os
inventários post-mortemgarantem um olhar mais amplo, chegando às matrifocais.
Aqui, neste estudo, matrifocais são vistas a partir da freqüência de
ilegitimidade das crianças batizadas.
28.
Segundo os registros de batismo, houve uma ampliação de crianças ilegítimas
batizadas: entre 1830-1849, foram 27,3% de legítimos e 72,7% de ilegítimos;
entre 1850-1871, 9,6% de legítimos contra 90,4% de ilegítimos. Livro de
Registros de Batismo de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-1871. Convento
do Carmo, Angra dos Reis, RJ.
29.
Os padrinhos e madrinhas escravos passaram de, respectivamente, 35,0% e 44,8%,
entre 1830-1849, para 59,3% e 77,6% entre 1850-1871. Livro de Batismos de
Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-1871. Convento do Carmo, Angra dos
Reis, RJ.
30.
Isso significa dizer que a amostragem vai além de 1871, chegando ao ano de
1881, devido à utilização dos inventários.
31.
Não foram contadas 80 mães com origens desconhecidas.
32.
Livro de Registros de Batismos de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-
1871 e Livro de Registros de Casamento de Escravos da Freguesia de Mambucaba,
1830-1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ.
33.
Idem.