Mestiçagem arqueológica
Introdução
N
este artigo pretendo refletir sobre o atual papel da ideologia de branqueamento
e da mestiçagem, para isso utilizo o discurso acadêmico e de autoridades de
Estado no Fórum Internacional de "História e Cultura no Sul da Bahia, Os
Povos da Formação do Brasil (nações indígenas, africanas e européias)".1
Tento mostrar como alguns autores vêem a relação entre mestiçagem e
branqueamento, aqui vistas como lados da mesma moeda, e como essas relações
passam por um momento de renovação e refinação para, no entanto, permanecerem
como a base do sistema de opressão racial brasileiro. Através do posicionamento
de intelectuais, representantes do governo baiano e das universidades
envolvidas no Fórum em relação à mestiçagem analiso novos modos de recolocá-la
positiva e acriticamente no centro da representação da nação, o que implica em
também reforçar (disfarçada ou inconscientemente) as idéias de branqueamento.
Segundo Ribeiro (1997), a questão da raça e da mestiçagem entre intelectuais
brasileiros e americanos passa por uma questão valorativa, um "cabo de
guerra" de preferências entre sistemas raciais à brasileira ou à
americana. Para alguns acadêmicos, apesar do racismo, a sociedade brasileira
teria um modelo de relações raciais superior ao modelo norte-americano. Essa
suposta superioridade entra em rota de colisão com o discurso de diversos
movimentos negros que condenam o modelo brasileiro. Por outro lado, autores
americanos reiteram, de certa forma, o futuro mais americano das relações
raciais no Brasil ao afirmarem que os negros transformarão o sistema brasileiro
em algo mais parecido com o americano. Melissa Nobles (1999:7), por exemplo,
afirma que, como aconteceu nos EUA,
[...] uma grande identidade negra, para a qual os mulatos podem ser
atraídos, vai surgir no Brasil, mas apenas se os ativistas negros
brasileiros forem capazes de convencer os mulatos de que sua cor os
deixa em desvantagem.
Ou ainda, como afirma Jeffrey Lesser (1999:7).
O que está acontecendo é que a maioria está agora começando a
reconhecer o multiculturalismo, embora esse multiculturalismo
estivesse já no Brasil, continue no Brasil e de certa forma seja o
Brasil.
Enquanto isso, na academia brasileira,
[a]pesar de rejeitarmos o arcabouço teórico de Freyre (seu luso-
tropicalismo e seu elogio obsessivo da miscigenação), a fábula [das
três raças] em realidade informa a academia brasileira também, se
considerarmos que a academia sempre foi entre nós um locus
privilegiado de construção e reelaboração da nação no
pensamento". (Ribeiro 1997:83)2
Com ajuda desses mesmos intelectuais, a formação da nação foi necessariamente
vinculada à idéia de miscigenação, impedindo o surgimento de discursos que
ressaltassem a diferenciação. É por isso que, segundo Ribeiro, "O discurso
do movimento negro atinge diretamente a raiz da construção da nacionalidade
brasileira: a não-diferenciação" (idem). Assim, a "questão
racial" incide diretamente sobre a construção da nacionalidade, limitando
as possibilidades de discursos que a contestem nos termos em que está
consagrada.
Porém, a retórica da nacionalidade sempre está em mudança e seu locus principal
é a academia. Nesse trabalho proponho uma interpretação sobre as facetas desse
discurso da nacionalidade, através da análise sobre o Fórum Internacional, que
marcaria a inauguração de uma série de eventos para comemorar os
"descobrimentos" portugueses e a própria nacionalidade brasileira, no
qual pude perceber mudanças nessas retóricas. Tento ver como essas visões sobre
a formação do Brasil celebram uma miscigenação que aparece já realizada, como
arqueológica, como formadora de uma nação que hoje não pensaria no problema das
desigualdades sociais que atingem principalmente os negros brasileiros. É como
se a miscigenação tivesse, de fato, branqueado o país, numa fictícia realização
dos sonhos de intelectuais do final do século passado (ou seja, houve uma
miscigenação, embora ela não tenha deixado o país branco).
Pretendo investigar um o discurso racista elaborado num contexto acadêmico.
Embora Ribeiro acredite que a nacionalidade brasileira surja em oposição ao
essencialismo americano, devendo celebrar a mistura e o mestiço, espero mostrar
que essa celebração pode ser jogada num "passado fundador",
simultaneamente à visão de um país "branqueado". Se os dois pólos a
celebração e a danação da especificidade brasileira deveriam ser mediados por
algum outro discurso para Ribeiro (um discurso que fugisse à oposição sistema
racial brasileiro versus sistema racial norte-americano), vemos que isso
acontece ao celebrar-se a miscigenação como coisa do passado e,
simultaneamente, negá-la como fato presente. Mostro que o sistema racial como
forma cultural hegemônica é hoje necessariamente composto pelos dois pólos, que
não são necessariamente antagônicos.
Sobre a Mestiçagem ou Guerra de Posições
Nessa parte investigo o Fórum Internacional de "História e Cultura no Sul
da Bahia, Os Povos da Formação do Brasil (nações indígenas, africanas e
européias)"e os acontecimentos em seu redor como um palco privilegiado à
analise das diferentes visões sobre mestiçagem (e, portanto, de nação). Através
de vozes oficiais de representantes do governo e das comissões para os
descobrimentos, mapeio o discurso que se pretende hegemônico e uma nova
formulação do discurso sobre a mestiçagem da qual identifico, nesse Fórum, os
sinais iniciais. Em contraposição, uso pequenos fragmentos de contra-discursos,
manifestações e falas isoladas captadas em torno do Fórum.
Começo por analisar a distribuição de falas, a organização das mesas e a
iconografia do Fórum, entendendo que a disposição e escolha das mesmas indicam
o que se quer dizer e comemorar, sendo um primeiro mapa da intenção dos
organizadores. Esse esqueleto é uma carta de intenções, uma declaração oficial
de como se considera a formação do país. No entanto, o preenchimento desse
esqueleto pode não corresponder às intenções de quem o organiza, como veremos
nalgumas das poucas falas dissonantes. Após o mapeamento do esqueleto, analiso
o conteúdo das falas e debates, todos gravados e documentados (em MD ou em
vídeo). Por fim, exploro os acontecimentos em torno do Fórum, principalmente em
Porto Seguro, onde se promovia uma programação cultural através de uma Feira
das Nações montada em função do encontro, juntando-se às comemorações oficiais
do 22 de abril.
Sobre o Esqueleto
A primeira impressão, no folder,é causada pelo desenho da capa, do cartaz e de
tudo que se referiu ao Fórum. Um desenho, a meu ver de mau gosto, mostra
representantes das três "raças" formadoras da nação. Aparecem no seu
"devido lugar": todos em perfil, o europeu em primeiro plano, o índio
em segundo e o negro por último. Ao fundo uma caravela, com as cruzes de Malta.
Esse é o mote da representação no interior do folder no qual, como na capa, o
europeu é representado por inteiro, e o índio e o negro apenas em partes.
A carta de apresentação anuncia uma reflexão crítica "sobre a nossa
brasilidade, à luz da história passada, presente, para uma perspectiva de
futuro" (folder:3). Ou seja, o encontro se imagina formando novas
perspectivas a serem elaboradas criticamente, "evocando o tema do encontro
de culturas a partir da chegada dos navegantes portugueses, para uma
reavaliação dos primórdios à contemporaneidade" (idem). Os objetivos
expressos no folder são, entre outros,
valorar e valorizar a presença das diversas nações na história do
Brasil, refletindo sobre as influências, heranças e imagens
recíprocas entre alguns desses povos que contribuíram para a formação
da cultura brasileira, numa região a costa do descobrimento [...].
(folder:4).
No total das falas (falas principais + comunicações), 33% do assunto foi sobre
a Europa, 18% sobre os povos indígenas e 8% sobre os povos africanos no Brasil.
O restante das falas teve temas variados, desde a imigração brasileira até
falas diplomáticas sobre a relação entre Brasil e países da CPLP. Assim, vemos
que a capa do projeto é bastante otimista, pois as imagens que representam os
povos indígenas e africanos deveriam estar bastante mais apagadas que a imagem
completa do europeu. Foram dez palestras, delas apenas uma falava sobre
africanos no Brasil, tendo a mesma relevância que a presença britânica,
espanhola e holandesa, por exemplo; duas palestras eram sobre a importância da
França, enquanto nenhuma falava diretamente sobre os povos indígenas. Dos cinco
painéis organizados, dois falavam sobre europeus no Brasil; um sobre
brasileiros em Portugal; outro sobre imigração portuguesa e o último sobre
turismo cultural. Das duas mesas redondas, uma tratava do futuro das relações
diplomáticas entre o Brasil e vários países, e a outra sobre povos indígenas e
questões identitárias. Essa última foi a única situação em que a temática dos
povos indígenas hoje em dia foi levantada (não por acaso esse foi o evento mais
polêmico do Fórum).
Nas sessões de comunicações, que totalizaram 15 trabalhos, 4 tratavam de
indígenas e um era sobre heranças africanas. Ou seja, do total das 39 falas, 7
referiam-se aos povos indígenas e 3 aos povos africanos (em relação à formação
do país); 13 referiam-se aos povos europeus. Se pensarmos nas 24 falas
principais,3 uma trata de africanos, 3 de povos indígenas e 13 de povos
europeus. Deve-se perceber que o centro duro do Fórum foi as falas principais,
e nessas a representatividade entre falas sobre africanos, índios e europeus é
ainda mais brutal. Apenas na parte mais periférica do evento é que não aparecem
textos sobre europeus e uma proporção maior de apresentações sobre africanos e
índios. Analisarei, a seguir, o conteúdo das falas principais.
Falas Oficiais
Passemos às falas que chamarei de "oficiais", aquelas proferidas por
autoridades nas aberturas ou nos encerramentos (em Ilhéus e Porto Seguro) e as
da coordenadora oficial, Jane Voisin, que participou de quase todos os eventos,
sendo uma espécie de supramediadora que, em momentos de tensão, impunha sua
fala sobre os coordenadores da mesa, dando a visão dos
"organizadores".
Logo na abertura, as apresentações reafirmam a idéia do descobrimento. Para o
comitê de organização, a carta de Caminha é a certidão de nascimento do Brasil.
Nas palavras de Simões,4 "Muito menos que comemorar, é nossa intenção
discutir, refletir sobre a nossa historicidade, sobre a nossa identidade, sobre
a nossa brasilidade". Como vimos, a brasilidade existe desde o nascimento
do Brasil, desde sua certidão de nascimento fato que parece negar a vontade
de historicizar manifestada na fala. Na abertura oficial do evento, Simões
menciona o lançamento de uma revista para crianças, que narra o
"descobrimento". A respeito dessa revista e do seguinte episódio
narrado por Simões, temos o mote de algumas futuras discussões. A história é
que a neta de Simões, ao ler a revista, perguntou: "Vô, não acredito que
eles[os índios] não deram nenhuma flexadinha!". Ao que Simões dá a
seguinte declaração, na abertura do congresso.
E eu disse que admitíamos que não tínhamos quem contasse a história
pelo olhar do índio e foi aí que comecei a pensar que alguém deveria
ter escrito, ou deve escrever, pois nunca é tarde, a carta do índio,
falando de uns barbudos brancos, que um dia chegavam pelo mar [...].
(Simões, MD 1, 9: 10:00)
Uma das questões levantadas por Simões foi sobre a possibilidade de achar o
outro documento de formação do Brasil, aquele de seu "primeiro
habitante". Mas seria, de qualquer forma, um documento narrado não por
qualquer povo indígena, mas pela própria comissão dos descobrimentos da UESC,
pois, como afirma Simões, achar essa outra versão é uma tarefa a ser feita
ainda, como parte dos esforços para a comemoração. A possibilidade efetiva de
poder narrar a história da invasão a partir do ponto de vista do índio, de
antemão afirmada pela comissão, será, na mesa-redonda sobre identidade
indígena, o principal fator de discussão, como veremos mais adiante.
Mas essa introdução, a ser confirmada na fala do secretário estadual de cultura
da Bahia, anuncia o grande objetivo do congresso: narrar a descoberta de um
ponto de vista hegemônico, europeu e branco, narrar a história do que ele chama
de um "encontro de 500 anos". Esse encontro é narrado, é enunciado, e
os povos envolvidos são também narrados e enunciados e, assim, suas falas
obscurecidas. Esse grande interesse está claro no fato das palavras
descobrimento e encontro andarem juntos o tempo todo, sem nenhum questionamento
crítico por parte dos organizadores do evento.
O contraste é que o ponto de vista do "índio" pode ser encontrado
(desde páginas da internet que oferecem uma outra visão dos
"descobrimentos" até discursos de lideranças), mas, no entanto, não
são legítimas ou legitimadas pelo falar oficial. O secretário de cultura do
Estado da Bahia declarou que
Esse país pode dar exemplos à humanidade, de que as raças diferentes
podem conviver, diferente do que a gente assiste a todo dia no
mundo... mesmo tendo passado por alguns problemas raciais, até mesmo
com os índios, esse é um país onde se pode conviver... todos estão
adaptados a um Brasil multirracial, a um Brasil que não têm uma raça
única, é um Brasil composto. (Secretário MD 1, 10: 06:17)
Ele continua: "Nada melhor que essa universidade para fazer a carta do
Índio, saber o que existia antes (dos descobrimentos), como era antes de os
brancos destruírem uma série de coisas..." (idem). Ou seja, o papel da
universidade é falar pelo índio que vivia aqui antes dos descobrimentos, por
que depois é como se já não existissem. A lembrança de alguns deles hoje em dia
é apenas um embaraço, como foi na missa comemorativa dos 500 anos, rezada por
padre português em Porto Seguro, missa invadida pelos Pataxós, como forma de
protesto.5 A carta, a voz do índio é apenas uma voz enterrada em sedimentos
arqueológicos, uma voz perdida, que cabe à universidade encontrar. A voz do
índio vivo hoje em dia é apenas um falso discurso de falsos índios. E ela
também é usada para fazer esquecer do problema do racismo e da discriminação e
deslegitimar a voz do negro como válida como algo a ser considerado. Essa nem
ao menos mereceu ser narrada pela universidade.
O recurso de uso abundante do papel do índio, em relação ao papel do negro (e
do europeu em relação aos dois) é bastante recorrente na história intelectual
brasileira e sul-americana. Como afirma Matory,
[...] mitos e literaturas indianistas fortes surgiram em lugares onde
índios foram efetivamente exterminados [...] e onde brancos locais,
por meio desse simbolismo indianista, resistiram à concessão de
direitos de cidadania aos negros (como no Brasil, na república
Dominicana e nos Estados unidos do Século XIX)". (Matory, 1999:
69)
Só que, nesse caso, a questão não é evitar os direitos (o que já foi feito),
mas sim o acesso a uma construção histórica do passado de "formação da
nação" que seja mais democrático e menos branco. Sim, a ênfase no papel
dos índios na formação do país é igual ao obscurecimento do papel do negro
nessa mesma história.
Falas Acadêmicas
A palestra inicial de Gerd Borheim discutiu o conceito de descobrimento. Para o
filósofo, a realidade do descobrimento deve ser analisada na sua globalidade,
podendo ser melhor evidenciada tomando pontos de partidas filosóficos. É
sintomática a abertura do Fórum com essa palestra, como a legitimar e des-
ideologizar o ideológico uso da palavra "descobrimentos". Assim,
podemos continuar todo congresso sem mais nos perguntarmos: "existiu algum
descobrimento?", já que o descobrimento objeto do Fórum é o descobrimento
de uma nação. No entanto, Borheim se refere ao descobrimento do Outro. O
descobrimento do Outro e da ciência antropológica pelo europeu. Embora ele não
faça uma elegia, não questiona a efetividade do descobrimento, pois faz a
reflexão como se fosse um europeu, para quem descobrir o Outro foi o fator que
detona uma série de questionamentos sobre a humanidade.
Curiosamente, Jane Voisin perguntou a Borheim sobre a polêmica em torno da
palavra descobrimento. Borheim afirmou (MD 2, 6: 2:00) que o descobrimento do
Outro é um avanço, um progresso, é a possibilidade de "abrir as
culturas", pois até então todas eram fechadas. Vemos retomada aqui a idéia
de missão civilizatória européia que, mesmo cometendo violências, faz a
conquista intelectual ao encontrar o Outro ou seja, os descobrimentos foram
essencialmente bons para a ciência e, portanto, para a humanidade. Nos debates6
novamente o fato é levantado nos questionamentos sobre a intencionalidade ou
não nos descobrimentos de Cabral: a pergunta era se esse foi ou não proposital.
Dessa forma, toma-se por fato consumado que tenha ocorrido.
Paulo Roberto Pereira, por sua vez, fez uma análise da imagem do índio a partir
dos relatos produzidos na viagem de Cabral como se o índio fosse o primeiro
brasileiro. De certa forma, é um esforço para descobrir o índio e sua
"carta", os traços perdidos do índio verdadeiramente brasileiro (não
o índio vivo atualmente). Sua fala repetiu a narrativa conhecida entre índios
tapuia e tupinambá (acrescentada de pérolas como esta):
[...] os viajantes não faziam diferença entre a antropofagia ritual
de cunho religioso dos tupinambás, e a antropofagia praticada pelos
tapuias, que utilizavam a carne humana como alimento [...]. (MD 2, 6:
2:00)
Salientou as contribuições culturais dos indígenas "brasileiros" à
cultura brasileira, pois, ao contrário de negros, por ter sua pele passível de
ser confundida (!) com a do branco, hoje em dia eles não têm mais visibilidade,
aparecendo apenas nas contribuições à cultura brasileira. É precisamente esta a
mensagem geral do Fórum: os índios não aparecem mais hoje em dia em nações
vivas, são narrados num passado glorioso, nas suas "colaborações".
Na segunda sessão, a temática principal era a contribuição de vários países na
formação do Brasil. Laurent Vidal, por um lado, faz um competente estudo sobre
a presença de franceses no século XVI na costa do que viria a ser o Brasil,
mesmo que tratando anacronicamente essas costas como do Brasil. Toda essa
sessão analisou a presença de estrangeiros nessa perspectiva: pessoas que
vieram ou foram trazidas para uma nação já existente e feita. Nessa sessão já
se notou o olhar arqueológico para a presença de povos na região sul da Bahia,
enfatizando-se sempre que se falava dos primeiros habitantes de um Brasil
seiscentista.
A única palestra sobre populações africanas de todo evento ocorre na manhã de
terça, proferida por Reginaldo Prandi, que apresentou um trabalho
essencialmente informativo sobre os povos negros, no estilo "contribuições
para a cultura do Brasil". Embora, no início da sua fala, tenha mencionado
que seu interesse é basicamente o negro hoje em dia, sua fala foi
exclusivamente histórica, e não reflexiva sobre as conseqüências da experiência
da escravidão para os negros hoje em dia. Lembrou nomes e fatos que
permaneceram na cultura brasileira, concentrando-se na religião, dança, etc..
Uma fala inventarial, seguida por outra palestra do mesmo tipo, sobre a
presença britânica no Brasil (na qual o expositor, Edmunson, defendia a idéia
de que a modernidade brasileira foi conseqüência da presença britânica no
Brasil). Essa única palestra sobre a presença negra no que seria o Brasil do
século XIX comprova o argumento da mestiçagem arqueológica: interessam as
contribuições de povos que aparentemente se perderam na história após terem
colaborado para a formação do país, como se não tivessem uma continuidade com o
presente.
No entanto, a mesa-redonda sobre populações indígenas abriu espaço para o
debate e em torno da representação oficial sobre os índios e é em torno dessa
que giraram as polêmicas no Fórum. Jane Voisin iniciou a sessão justificando a
ausência de Ailton Krenak,7 alegando a contrariedade das suas bases indígenas.
Era uma decisão política a não participação em qualquer evento que estivesse
relacionado com as comemorações dos 500 anos do descobrimento. Porém, Voisin
salientou as características democráticas do espaço universitário, alertando à
falta que a presença de Krenak faria à apresentação de um ponto de vista
alternativo.
A palestra de John Monteiro foi bastante crítica à idéia de descobrimento,
alertando sobre a importância política da presença de índios e criticando a
visão corrente de que só sobraram vestígios e restos da outrora vigorosa
cultura indígena. Nesse sentido, a sua fala foi bastante semelhante às idéias
aqui levantadas e defendidas contra o olhar arqueológico sobre os povos
indígenas (e na falta de referência aos povos de descendência africana). Os
índios, segundo Monteiro, são sempre apresentados em dois tempos: os do contato
e o tempo atual, vendo-os hoje apenas como resquícios. Esse é um problema, pois
"sempre desloca o campo de ação para os colonizadores" (Monteiro, VD
2, 0:13:54) sem deixar aos índios espaços para serem vistos como autores da sua
própria história. Condena-se os povos indígenas a uma condição de pré-história
perpétua e, assim, perde-se a possibilidade de explicar a diversidade dos
processos que permitem entender a presença do índio hoje.
Assim, "a imagem que se têm dos índios é uma imagem cristalizada de
sociedades fossilizadas num período pré-histórico anterior ao contato, e só
essas sociedades são dignas de serem consideradas indígenas" (ibidem, 0:
31:19). Os povos indígenas foram, segundo Monteiro, inventados pelo contato com
Europeu, fazendo um paralelo à idéia de Edmund O'Gormann, no seu A Invenção da
América. Em seguida, Elisabeth Salgado alertou para a falta de voz do próprio
índio, para uma história etnocêntrica e européia. E foi a partir de uma fala
sua que se deu o debate mais acalorado do Fórum. Afirmou "que nós não
podemos escrever a história a partir do ponto de vista dos índios"
(Salgado, VD 2, 0:44:06), o "nós" referindo-se ao homem branco e
também aos acadêmicos que ali se encontravam. "Só quem pode escrever a
história de ponto de vista do índio são eles" (idem), querendo afirmar o
quanto o índio estava fora de toda a história escrita sobre ele, uma história
narrada pelo colonizador.
Respondendo sobre a falta de representatividade de índios, negros, a super-
representação de europeus e a falta de uma visão indígena, Jane Voisin reafirma
o "espaço democrático" e o cuidado com a representação de todos, como
representante da fala oficial. O discurso corre num sentido cientificista:
foram convidados especialistas no assunto (especialistas querendo dizer
intelectuais). No dizer de Voisin, é como se apenas Krenak pudesse ser
considerado um especialista e, infelizmente, a ausência seria responsabilidade
dele, e o espaço democrático continuava aberto às manifestações. No entanto, já
mostramos como as escolhas das falas foi tendenciosa e ressaltamos a
discriminação que esse cientificismo implica, pois desqualifica qualquer voz
indígena que não tenha um amparo acadêmico. Isso sem falar na total ausência de
um "especialista" negro, talvez querendo dizer que o Fórum não
reconhecia nenhum intelectual negro, ou pior ainda, nem reconhecia o problema
da discriminação e do racismo no Brasil como tal.
Nesse momento, Salgado reitera sua posição: não é possível escrever a história
do ponto de vista do índio. "E o que nos dói de verdade é que eles [os
povos indígenas] não precisam de nós para serem eles próprios" (Salgado,
VD 2, 1:39:30). Novas perguntas foram feitas sobre a falta de participação
indígena e de novo, a resposta de Voisin foi no caminho de afirmar o caráter
acadêmico do encontro, no qual a representação de associações, movimentos
políticos negros e indígenas não caberiam. No entanto, a presença maciça de
diplomatas (não acadêmicos), com cerca de 20% das falas, indicava claramente
que o Fórum não tinha um cunho exclusivamente acadêmico, e que mesmo assim, os
acadêmicos nomeados para falar de índios e negros, como vimos, eram franca
minoria.
Pedro Agostinho (um dos palestrantes) na sua intervenção, critica Salgado,
reafirmando a autoridade do discurso científico e a possibilidade da ciência
produzir relatos científicos da visão dos vencidos. Para ele, a fala de Salgado
indicaria que o agente poderia fazer apenas a história do grupo a que
pertencesse, enquanto Salgado falava não sobre a possibilidade de fazer
história, mas sobre a arrogância de querer fazer a história do vencido (e não a
história sobre o vencido). Agostinho afirmava a necessidade de um treinamento
historiográfico, como se só historiadores de diploma pudessem fazer história.
De fato, afirma a superioridade de um método moderno sobre qualquer narrativa
não oficialmente historiográfica, uma superioridade de um olhar europeu
científico sobre a "voz do povo". E mais, é a imaginação
historiográfica que pode fornecer os elementos políticos para garantir o
direito à diferença de várias etnias num mundo cada vez mais étnico.
Ora, então é realmente a ciência que deve salvar o mundo? Pois lembremos
Latouche, ao afirmar que
Com a descolonização, os missionários chutados do Ocidente deixaram o
centro do palco, mas o "Branco ficou nos bastidores e puxa os
cordões". Essa apoteose do Ocidente não é mais a presença real
de um poder humilhante por sua brutalidade e sua arrogância. Ela se
apóia nos poderes simbólicos cuja dominação abstrata é mais
insidiosa, mas por isso mesmo menos contestável. Esses novos agentes
da dominação são a ciência, a técnica, a economia e o imaginário
sobre o qual elas repousam: os valores do progresso. (Latouche, 1994:
26)
Outras Visões
Na tarde de terça, na abertura da sessão de comunicações, uma primeira voz
dissonante: o coordenador, Augusto Oliveira, lê a carta dos índios, anunciada
no dia anterior (dia do índio e de aniversário da morte do pataxó Gaudino8).
Aquela que pode ser a carta do índio, em contraponto àquela que a universidade
pretendia fazer a respeito da visão do índio. Vale transcrever aqui o conteúdo
dessa carta.
Carta de Abril.
Caciques dos povos Pataxó e Pataxó Hã Hã Hãin
Nós, caciques Pataxó e Pataxó Hã Hã Hãin, reunidos em Anápolis, no
dia 13, 14 e 15 de abril de 1999, no auditório do Sebrae, para
avaliar a situação de nosso povo e planejar nossas ações para o
referido ano, vimos a público denunciar a situação de abandono que se
encontra as comunidades do sul e extremo sul da Bahia, aproveitando a
oportunidade para relatar o seguinte:
1) A maioria das terras indígenas na chamada Costa do Cacau e Costa
do Descobrimento se encontram invadidas e sem providências para sua
demarcação ou desenclusão [sic] em desrespeito à Constituição Federal
de 1988, que demarcou um prazo de 5 anos para demarcação e
regularização de todas as terras indígenas no Brasil.
2) A maioria de nossas comunidades se encontram sem a mínima
assistência na educação, saúde ou subsistência, ou quando ocorre, as
condições oferecidas são precárias e totalmente fora de nossa
realidade sociocultural.
3) Por ocasião da comemoração dos quinhentos anos da chegada dos
colonizadores ao Brasil, nós, representantes indígenas perguntamos:
comemorar o que? O extermínio de vários povos indígenas? A imposição
cultural e religiosa? O roubo de nossas terras e riquezas do solo e
subsolo? A escravidão do nosso povo e dos nossos irmãos negros? Não
temos nada a comemorar, vamos sim celebrar a nossa resistência, a
nossa luta e as nossas conquistas. Nós queremos ajudar a construir um
Brasil diferente, por isso exigimos das autoridades brasileiras a
demarcação e regularização de nossas terras, a assistência à saúde e
educação e à agricultura, respeitando as especificidades, o respeito
à nossa cultura e tradição tanto nos bens materiais e imateriais, a
imediata aprovação do estatuto do índio, baseado na proposta
encaminhada pelas organizações indígenas ao Congresso Nacional.
Solicitamos o apoio da sociedade brasileira, especialmente da
população do sul e extremo sul da Bahia, na luta pela reconquista das
nossas terras tradicionais e pelos nossos direitos constitucionais,
só assim quando todos tiverem seus direitos garantidos, vamos juntos
comemorar a alegria de um Brasil que respeita o povo brasileiro.
Esperamos contar com o apoio de todos nessa luta.
Anápolis, 15 de abril de 1999.
Lembrando exatamente a não representação e o cinismo do pedido da carta do
índio de Simões, Augusto Oliveira traz uma possível voz e carta do índio (dos
índios Pataxó) para dentro do evento. O conteúdo não fala de um passado
enterrado, fala de um presente vivo e dolorido, a vontade de nãocomemorar. Essa
voz, trazida pelo antropólogo, no entanto, foi uma voz perdida na profusão de
falas em Ilhéus, e só na quinta-feira, em Porto Seguro, ouviríamos de novo algo
a respeito da voz do índio.
Outras contra-vozes quiseram se fazer ouvir em Porto Seguro. Podemos narrar a
manifestação conjunta de Pataxós e de movimentos negros, ocorrida durante a
missa de comemoração dos 500 anos. Essa missa fazia parte das comemorações
oficiais, estando ligada ao Fórum, através de uma loja na Feira das Nações.
Essa loja chamava-se "500 anos de evangelização" da Igreja católica e
apresentava um roteiro paralelo de comemoração, com o ponto alto na missa no
dia 22. Pois bem, essa missa foi escolhida, não por acaso, como palco da
manifestação política de pataxós e negros. Eles invadiram a missa, apesar de
grande repressão policial (que agrediu e chegou a furar os pneus dos ônibus que
traziam os manifestantes). Pedindo a demarcação de todas as terras indígenas no
Brasil, como na carta de abril, e denunciando a falta de respeito aos direitos
humanos dos índios do sul e extremo sul da Bahia, cerca de 100 pataxós de três
povos invadiram a missa e tomaram a cena. Sua repercussão foi, entretanto,
ignorada no Fórum, onde o protesto Pataxó nem ao menos foi mencionado. No
entanto, jornais baianos e a Folha de S. Paulo divulgaram a invasão e não o
Fórum.
Assim, podia-se passar pelo Fórum que pretendia discutir criticamente a
formação do país sem ouvir das ruas as versões críticas desta mesma. O máximo
possível era, nalguma brecha imprevista, ouvir ecos de visões destoantes
daquela que permeou todo o Fórum: a idéia de um encontro harmônico, onde a
miscigenação resolveu os problemas raciais do país, e onde o presente
problemático deveria ser apenas esquecido. O fim da carta de protesto do MNU,
distribuída durante a invasão da missa, de fato transforma em projeto futuro o
que é passado resolvido na versão do Fórum: "queremos comemorar o nosso
sonho de superar a discriminação e a exploração e construir um Brasil justo e
fraterno. Um Brasil democrático plural, pluriétnico, no qual a democracia
racial realmente exista".
Mestiçagem Arqueológica
Parto do ponto de vista que a idéia da mestiçagem e da democracia racial
configuram um centro de disputa política de significado, um nexo de contendas
por visões hegemônicas (Fox, 1990). Se não devem ser vistas apenas como
ideologia "que mascara", não se pode deixar de vê-las enquanto tal.
Na análise sobre o Fórum podemos perceber como essas idéias são alvo de
diferentes interpretações, tendendo de um lado à ideologia (por parte dos
organizadores desse simpósio) e, de outro (por militantes do MNU), à projeto
político. De fato, Wade também vê a democracia racial e a miscigenação como
ideologia, no sentido que aqui propomos, implicando práticas sociais.9
Também na Colômbia a mestiçagem foi vista como solução hegemônica para as
tensões dos sistemas raciais, como também em outros países como México e Cuba
(Martinez-Echazábal,1996). Como Wade afirma em sua etnografia sobre Chocó, na
Colômbia,
detrás de este discurso democrático de lo mestizo, que oculta la
diferencia, yace el discurso jerárquico del blanqueamiento, el cual
hace notar la diferencia racial y cultural, valorizando lo blanco y
menospreciando lo negro y lo indígena. Las ideas acerca de
nacionalidad y mezcla de razas tienen entonces dos caras. Una,
democrática, que encubre la diferencia, pretendiendo que esta no
existe. La otra, jerárquica, que realza la diferencia para
privilegiar lo blanco. (Wade 1996: 50)
O autor afirma que a idéia de uma nação mestiça colombiana expele os negros e
índios da imagem da nacionalidade. Como demonstra Seyferth (1998) também no
Brasil o discurso da miscigenação esteve vinculado à formação da nação,
relacionado ao branqueamento da população. No simpósio essa mesma tendência foi
explicitada de novas formas, por meio da re-elaboração da idéia de miscigenação
como mestiçagem arqueológica.
Ao descrever o Fórum pudemos identificar novas formas de ver a formação do país
(que podem "dar certo" ou não), com implicações sobre como conceber
nossa população e como (não) considerar os problemas atuais. Demonstrei como
essa visão estava oculto nas falas, na organização das mesas e nas ausências. O
tema central sendo o encontro de culturas revela o interesse subjacente que
marcaria todo o congresso: evitar o enfrentamento e as duras realidades
resultantes da colonização. O modo encontrado não é negar toda história
sangrenta, mas relegá-la a um passado arqueológico que pode ser encontrado em
vestígios, fotos, descrições de viajantes, danças para turistas. Um passado que
parece ter, apesar de tudo, resolvido os problemas raciais do país. Essa é a
idéia central: é como se a miscigenação tivesse, num passado remoto, resolvido
e criado um povo brasileiro que, embora misturado, quer ter uma cara branca,
européia (a velha e conhecida idéia de branqueamento). Joga-se para um passado
remoto o conflito e deixa-se implícito que a história o resolveu. Embora
algumas poucas palavras tenham lembrado a situação atual de populações negras e
indígenas, todas as situações de conflito foram sufocadas no encontro, com a
mágica da expressão "águas passadas não movem moinhos".
As frases curtas e sintomáticas do folder traziam uma evocação do encontro (a
palavra foi destacada em azul), remetendo a um campo semântico muito nosso
conhecido, ao tratar da formação brasileira. Como não podia deixar de ser, o
encontro é a saudável miscigenação de Gilberto Freyre (1990). Falar em encontro
é deixar de falar oficialmente em embates, mortes, opressão, dominação e
exploração. A promessa no folder de explorar imagens recíprocas (dando uma
idéia de igualdade em sua produção) é apenas uma ilusão, pois o que de fato
tivemos, como me esforcei em demonstrar, foi a visão de brancos sobre índios,
negros e europeus do passado. Nenhum palestrante negro (que falasse em nome da
visão do negro sobre o europeu) e nenhum índio, pois mesmo Ailton Krenak, que
havia sido convidado para uma mesa-redonda, preferiu não compactuar com as
comemorações.
E isso não quer dizer alguma coisa sobre os interesses de quem pensou esse
congresso? Aparentemente, o espaço reduzido para índios e negros reflete uma
vontade de apagamento dessa realidade. Vejamos: se as intenções básicas foram
supostamente discutir os povos na formação do país, por que motivo negros foram
menos representados que a presença francesa? Porque, na verdade, não se quer
discutir uma formação, mas inventá-la com um olho no futuro da nação. Como
projetar para o país uma imagem européia e moderna (a representação excessiva
da Europa nos permite dizer isso, se soubermos que das treze falas, apenas duas
trataram explicitamente da "herança portuguesa"), com a população
negra e com a visibilidade da situação indígena? Transformando a mestiçagem em
coisa do passado, esquecendo de pensar no presente e projetando um futuro mais
branco, em que mesmo as manifestações culturais de negros e índios são, por
meio do turismo cultural, transformadas em peças de museu, em representações de
um passado selvagem que sobreviveram curiosamente em algum lugar remoto do
país.
No entanto, o problema é pensado com outras estratégias: índios, hoje em dia,
são vistos também como resquícios de um passado remoto. Mesmo admitindo o
genocídio sistemático aqui ocorrido, o que se pode fazer é preservar o que
sobrou. O grande sintoma da vontade de apagamento é a falta de representação da
presença africana, apagando o problema racial que era possível verificar na
composição física do Fórum vários negros como trabalhadores braçais e apenas
dois com direito à fala principal: os dois estrangeiros da África de língua
oficial portuguesa, o secretário executivo-adjunto da CPLP, de São Tomé e o
adido cultural angolano. Paradoxalmente, apenas brancos estão a falar e
representar índios e negros.
Mesmo a preocupação com os índios pareceu mascarar a falta de discussão em
torno do problema do negro. É como se o problema do índio, mesmo que tratado
superficialmente, apenas servisse para não dizer algo sobre questões de racismo
e da atual situação do negro. Sintomático é o fato de um representante da visão
dos "descobrimentos" dos índios tenha sido chamado à mesa, enquanto
nenhum ativista de qualquer movimento negro tenha sido convidado. O caráter
político dessa situação parece tão evidente que Krenak recusou-se a comparecer,
alegando uma estratégia política, citando a Carta de Abril lançada pelos povos
indígenas. Mais revelador é o fato dos protestos ocorridos em Porto Seguro
durante essa semana terem sido conjuntamente organizados por movimentos negros
e indígenas. A percepção política desses grupos deixa claro que qualquer
referência aos "descobrimentos" deve levar em conta a situação atual
desses dois conjuntos de populações.
A falta de discussão a respeito da propriedade do rótulo
"descobrimento" (com exceção da palestrante Eneida Cunha Leal), no
Fórum, leva a dois problemas: 1) a evidente superioridade que se confere à
sociedade européia, capaz de descobrir uma terra habitada e imensamente
povoada. Evidencia-se, assim, o ponto de vista eurocêntrico (Amin, 1989), que
só faz reforçar as diferenças hierarquizadas e valorizadas entre brancos,
negros e índios expressa na capa do Fórum. Por outro lado, 2) incorre-se no
erro anacrônico de imaginar que o Brasil já existia em 1500 e foi descoberto
por meia dúzia de intrépidos portugueses. Essas duas estratégias escondem o
processo histórico de formação da nação, que passa por duros períodos de
exploração durante a Colônia, para gradualmente ganhar uma configuração
nacional com a vinda da família imperial, depois com a Independência e
finalmente com a República. O Brasil só existe de fato, como nação, no século
XIX.
Nossa análise permite-nos dizer que reforçar a idéia de descobrimento é querer
apagar o processo histórico que criou a nação. Querer apagar esse processo é
ignorar o preço pago para fazê-la: genocídio, escravidão, opressão. Ignorar o
preço pago é evitar a realidade que ela causou: a situação da maior parte da
população negra e indígena nesse país. Como escreveu Wolf, "El supuesto
antropológico tácito de que gente como esta es gente sin historia, es tanto
como borrar quinientos años de confrontación, matanza, resurreicción y
acomodamiento" (1994:33).
Evitar essa realidade é perpetuar o racismo, descaso e exploração, o sistema
racial definido por Sansone (1996).10 Por isso, o caminho seguido é ofuscar até
mesmo o mito da miscigenação inventando um modo de vê-lo como um fóssil
enterrado num dos montes da costa da invasão. Assim, tudo se resolveu e podemos
planejar o futuro, o futuro mais europeu possível. A população negra e indígena
é assim retirada da imagem da nação. Se o objetivo foi discutir a identidade
nacional, vimos acima que a composição do evento conduziua discussão para a
elaboração de um tipo de imagem sobre a identidade, que chamei de mestiçagem
arqueológica.
Na Feira das Nações, por outro lado, viu-se a apresentação de um "festival
de cultura popular". Apresentações de capoeira, de danças de cadomblé, de
folias de reis, etc. Todas desempenhadas por negros. Eis aí o lugar dado e
limitado ao negro, como ator e artífice da manutenção de uma cultura fóssil,
como agente que mantém vivas tradições antigas e primitivas, que têm suas
razões de ser, hoje em dia, não em seus valores intrínsecos, mas apenas num
novo valor de espetáculo chamado de turismo cultural. Várias manifestações de
algo que se pressupõe cultural são retiradas de seu contexto natural de
acontecimento para serem vendidas ao turista em busca do exótico. Assim, danças
de caráter religioso tornam-se um batuque de carnaval, simplesmente para
deleitar o turista cultural ou, no caso do Fórum, professores estrangeiros, de
outras regiões do país, e mesmo da Bahia.
Esse processo cruel de ossificação de tradições não estáticas é uma prova cabal
do tipo de imagem que se pretende dar: um país onde todos sabem seu lugar, onde
ao negro cabe vender sua "cultura" e representar a subalternidade em
busca de uma sobrevivência econômica (não estou a criticar o aproveitamento
econômico daqueles que vivem desse comércio cultural, já que parece ser uma das
poucas formas de sobrevivência em lugares como esse). No entanto, esse processo
solidifica e rotula culturas em movimento, fazendo de seus atores eternos
submissos da sede de exotismo de uma "cultura branca", num inevitável
lugar de superioridade, com suas máquinas fotográficas registrando
inadvertidamente qualquer teatro de representação das "verdadeiras
raízes".
Esses rituais modernos de exotismo de uma cultura negra que se faz submissa
nesses grandes teatros, ao estarem conectados com as atividades oficiais do
Fórum, dão uma dimensão do que chamamos de mestiçagem arqueológica. Ali
representadas nas danças "folclóricas" estão os vestígios de um
"encontro" do qual resultou uma raça brasileira feliz. Mas um
encontro do passado, diferente do futuro que se imagina, ou da imagem que se
vende. Os mesmos negros atores dessa farsa cultural só podem se ajeitar
economicamente através da submissão a esse jogo de opressão e, fora desses, não
encontram espaço para serem representados, são a imagem a se apagar, a ser
suprimida. Por isso mesmo, só têm espaço quando o seu papel é representar o
passado morto, ossificado, fossilizado.
Conclusão
Pretendemos ter aqui refletido em termos gramscianos, ao imaginar os sistemas
raciais como elementos da hegemonia cultural.11 Assim, são elementos da
revolução passiva burguesa que, para garantir sua reprodução social, necessita
constantemente renovar suas estratégias de dominação e refinar seus conceitos
hegemônicos. Juntas, as idéias de democracia racial e mestiçagem fundamentam o
sistema racial brasileiro e a imagem de nacionalidade, como afirmam Ribeiro
(1997) e Seyferth (1998). Essas idéias são constantemente renovadas por
intelectuais "orgânicos" e criticadas pelos movimentos negros. O que
vimos no Fórum pode ser encarado como uma tentativa de reposição (e refino)
dessas duas idéias básicas do sistema racial. Assim, recolocam-se
simultaneamente e num novo patamar as idéias de branqueamento e mestiçagem.
Como um dos elementos dos aparelhos de hegemonia (Buci-Glucksmann, 1980),
vende-se a mestiçagem arqueológica como a nova versão para recompor o mesmo
sistema racial. No entanto, essas mesmas idéias podem ser transformadas em
bandeira de luta política pelos próprios "agentes subalternos" do
sistema racial: ao defender a idéia de democracia racial veementemente, mas não
no presente, nem no passado, mas sim como projeto político, reverte-se em
subversiva e transformadora uma idéia que originalmente era mais um elemento de
dominação ideológica.
Como Hall (1992) afirma, hegemonia cultural sempre trata do balanço de poder
nas relações de cultura e nas disposições e configurações de poder cultural,
referindo-se às idéias de Gramsci sobre guerra de posições. Na leitura de Hall
(idem:24) a hegemonia cultural não é apenas uma vitória pura ou dominação pura,
mas é algo que reflete o balanço de poder nas relações culturais; hegemonia
trata da mudança nas disposições e configurações do poder cultural (uma guerra
de posições).A possibilidade da mestiçagem servir como "ideologia"
positiva num país profundamente racista coincide com o que Gillian (1995: 527)
chama de Narrativas Mestras de nação que postulam a classificação do negro como
"algo" negativo a ser superado. Algo a ser superado historicamente,
como a idéia de mestiçagem arqueológica parece querer fazer. É a reatualização
de um mesmo sistema de opressão racial, porém em termos mais condizentes com os
novos tempos. Mestiçagem é luta por hegemonia cultural.
Atentando para a relação entre democracia racial e mito do branqueamento,
Maggie (1998) nos diz que, ao se enfatizar a cor, evita-se a oposição negro
versus branco, "fundando uma sociedade povoada de claros e escuros que
deve ser um dia totalmente branca, sem diferenças" (ibidem:226). Ou seja,
o branqueamento12 é a idéia a ser mantida através das recolocações da
mestiçagem através do tempo, permanecendo como fundadora das relações raciais,
organizando o discurso da sociedade como um todo, mudando para continuar a
mesma.
Se em 1988, ano da comemoração do centenário da abolição, Hasenbalg imaginava
que o mito da democracia racial ainda persistia, "mesmo surrado e na
defensiva" (1991: 191), e continuava implícito como substância de um pacto
entre brasileiros de todas as cores, nosso exemplo demonstra que se o mito
esteve realmente na defensiva, agora está em evidência como o centro da
representação da nação, e se repõe modernamente em novostermos, que evidenciam
mais claramente a subjacente idéia (e "outro lado da moeda") de
branqueamento. E se o mito parecia a Hasenbalg "ter perdido terreno como
recurso de legitimação simbólica à disposição das elites brasileiras"
(ibidem:192), podemos dizer que aquele era apenas um momento conjuntural, que
foi gradualmente sendo superado pela explicitação cada vez menos culpada da
democracia racial agora arqueológica por parte das elites políticas,
artísticas e da mídia em geral.
Notas
1.
Primeiro evento oficial patrocinado pela Comissão Institucional para as
Comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil. Com o apoio integral da
Universidade Estadual de Santa Cruz, da Comissão Nacional para as Comemorações
do V Centenário do Descobrimento do Brasil, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, CPLP, várias embaixadas e do
ministério da cultura, o Fórum aconteceu na semana de comemoração dos
"descobrimentos", entre os dias 19 a 24 de abril de 1999. Teve início
na própria UESC e depois se mudou para Porto Seguro, local do descobrimento do
Brasil, marcando o início das comemorações oficiais dos 500 anos.
2.
Claro, não são todos os intelectuais que compartilham esses discursos, afinal
há vozes críticas.
3.
Consideramos falas principais aquelas proferidas por convidados financiados
(todos os nomes com exceção dos apresentadores de comunicações).
4.
MD 1, 5: 04.04. As referências às falas seguem a seguinte lógica: MD significa
Mini Disc e o número a seguir é o de catalogação nos arquivos do CEMI
(subentendendo-se que todas as citações não especificadas são sobre o Fórum), o
número após a vírgula é a faixa no MD e a numeração seguinte é momento preciso
da fala na faixa. Também citaremos falas que foram gravadas em vídeo, com a
seguinte seqüência: VD (vídeo) X (número da fita na catalogação), XXXX
(marcação da aparição da fala na fita).
5.
Embaraço maior ainda no ano seguinte, durante as comemorações oficiais dos 500
anos em Porto Seguro, quando todo o aparato policial requisitado para abafar o
protesto indica o desprezo com o qual indígenas e negros são tratados no Brasil
oficial.
6.
Não acompanharemos aqui todas as palestras, para tal temos as gravações no
acervo do CEMI. Interessa-nos apenas algumas passagens reveladoras de algumas
falas.
7.
Krenak é uma reconhecida liderança indígena, com certa circulação pela mídia.
8.
Gaudino foi queimado vivo em 1998, em Brasília, por um punhado de jovens que
queriam se divertir. Na alegação de defesa os jovens afirmaram não saber que se
tratava de um índio, pensaram que era apenas um mendigo(!).
9.
Portanto, a separação que faz Hasenbalg entre ideologia e prática social
(1998, nota 3), ao ver o uso de Wade de miscigenação como não apenas ideologia,
mas também como práticas sociais, é inócua. "Gramsci estende a análise dos
aspectos mais conscientes das ideologias a seus aspectos inconscientes,
implícitos, materializados nas práticas, às normas culturais aceitas ou
impostas. As ideologias funcionam como agentes de unificação social, como
cimento de uma base de classe. Mais ainda: a ideologia tendencialmente
identificada à concepção de mundo de uma classe impregna todas as atividades,
todas as práticas" (Buci-Glucksmann, 1980:83-84).
10.
Para Sansone, no Brasil, "desde a época colonial, as relações raciais,
bem como as outras relações de poder, parecem ter sido caracterizadas pela
relativa ineficácia de regras universais com respeito aos direitos de cidadania
[...] e, do ponto de vista dos negros e mestiços, pela preferência de soluções
individuais para fazer frente à opressão racial, combinada com momentos de
resistência silenciosa e, por vezes, de rebelião. Esta situação produziu no
Brasil [...] um sistema racial não polar, caracterizado por um alto grau de
miscigenação; uma tradição sincrética no campo da religião e cultura popular;
um continuumde cor e uma norma somática hegemônica que têm historicamente
colocado fenótipos negros na escala inferior da noção de 'boa aparência'. Em
torno deste sistema, como produto das tradição [sic] das relações raciais, tem-
se constituído um conjunto de regras sobre as quais existe um certo e
problemático consenso, o qual podemos chamar de habitus racial" (Sansone,
1996:207).
11.
Sobre hegemonia em Gramsci, ver Buci-Glucksmann (1980). Esse conceito, segundo
a autora segue dois movimentos: o de constituição de classe à problemática do
Estado, e o de aparelho de hegemonia que se complementa por "estrutura
ideológica de classe", no qual vários subsistemas (entre eles poderíamos
pensar os sistemas raciais) constituiriam a hegemonia. "O aparelho de
hegemonia, complementado assegura uma teoria da eficácia das ideologias e de
sua realidade material" (ibidem:70).
12.
Ver também Ramos (1998), Seyferth (1998) e Schwarcz (1998). Ver também a
definição de "ideologia racial brasileira" de Guimarães (1995) que,
para este autor, tem como base a tese do embranquecimento. O mesmo diz Skidmore
(1993).