As "escravas perpétuas" & o "ensino prático": raça, gênero e educação
no Moçambique colonial, 1910-1930
Uma das pedras angulares do discurso colonial foi a promoção do ensino a fim de
dotar os colonizados deste instrumento "civilizador". Entretanto,
geralmente as palavras não passaram para as ações concretas. Em Moçambique,
como de resto nas demais colônias portuguesas, pouco realmente foi feito
durante todo o período da dominação colonial em matéria de ensino,
principalmente nas décadas iniciais do século XX. Diante da inoperância do
Estado colonial, o reduzido número de mulatos e negros com alguma instrução
passou a reivindicar, com freqüência e denodo, a instalação de escolas e a
extensão do ensino em toda a Colônia, particularmente a partir do momento em
que tiveram um jornal para lhes servir de porta-voz. A primeira edição de O
Africano(OA), sintomaticamente publicado no dia de Natal de 1908, anunciava que
seu objetivo era lutar pela educação dos indígenas. E da reivindicação passaram
imediatamente à prática: o número seguinte, que saiu em março de 1909,
noticiava, com destaque, a abertura, por iniciativa do Grémio Africano recém-
fundado, de uma escola que levaria o nome de António Ennes e funcionaria na
própria sede do Grémio, no Alto Mahé, em frente ao Quartel da Polícia. A sede
ficava num bairro popular que, à época, se encontrava fora, mas bem perto dos
limites da chamada Avenida da Circunvalação que definia as fronteiras entre a
cidade e os subúrbios, e esta sua localização indicava simbolicamente a
realidade social vivida por seus membros: entre o universo da cultura européia,
representada pela cidade, e a africana, representada pelos subúrbios.
A escola foi aberta sem a autorização do Conselho Inspector de Instrucção
Pública, presidido pelo Bispo de Siene, Prelado de Moçambique, porque não tendo
obtido resposta ao pedido, decidiram abri-la à revelia do que estabelecia a
Portaria que Freire de Andrade editara em 1907. A escola teria aulas diurnas,
para as crianças, e noturnas para os adultos. Os pais que desejassem ter os
seus filhos na escola deveriam contribuir com no mínimo 500 réis mensais e os
adultos, para assistirem às aulas noturnas, além desse montante, deveriam pagar
uma cota mensal para o Grémio de igual valor. Tendo-se em conta que o salário
mínimo praticado em Lourenço Marques era de cerca de 200 réis diários, a
mensalidade da escola poderia ser considerada razoável, pois correspondia a
dois dias e meio de trabalho (OA, 25/12/1908 e 1/3/1909). Dar à escola o nome
de António Ennes, que tinha sido ao mesmo tempo jornalista e líder, na condição
de Comissário Régio, na ocupação militar portuguesa no Sul de Moçambique, era
um indicativo de que os membros desta pequena burguesia filha da terra não
questionavam a presença colonial, da qual eram frutos, e a qual, apesar de suas
mazelas, era vista como a portadora do progresso.
Diante do descaso com que a educação era tratada pelas autoridades, o Grémio
Africano procurava alternativas que julgava adequadas para financiar o ensino
para os indígenas, propondo, por exemplo, que o dinheiro do espólios dos
mineiros mortos nas minas, que não tinham famílias ou que não tinham sido
encontradas, e cujo valor, em 1911, era estimado em £.10 mil, fosse aplicado na
educação "porque este dinheiro é de pretos e deve ser empregado em
benefício deles" (OA, 15/12/1911). Esta proposta nunca foi levada adiante
pelas autoridades, que incorporavam os espólios não reclamados no orçamento da
Colônia e o gastavam de acordo com os interesses da administração e dos colonos
brancos que não eram nem os mesmos da pequena burguesia filha da terra, nem os
dos indígenas que ela pretendia representar e defender. Propostas de
autofinanciar as próprias escolas também não faltaram. Logo em 1912 O Africano
anunciou, em português e inglês, a realização de um concurso esportivo e um
programa de festas, cujas rendas reverteriam a favor de um "Fundo Auxiliar
da Instrucção", que o jornal criaria, esperando também receber donativos,
que foram raros e parcos, como o oferecido, por exemplo, em 1924, pelo Centro
Republicano Português no valor de £.2 e Esc. 1.200$00, para ajudar no
funcionamento da escola mantida pelo Grémio Africano.
As dificuldades, entretanto, prosseguiam e se aprofundavam com o crescente
racismo. A educação, neste contexto, ganhava estatuto de ser o problema mais
pungente que se colocava diante da pequena burguesia filha da terra, neste
"século das luzes". Sugestões e planos mirabolantes de
"subscrições públicas" se sucederam, para contornar o racismo que não
só dificultava o ingresso no ensino aos "de cor", como os impedia de
continuarem seus estudos, por falta de recursos da família e de apoio do
governo. Em 1919, em Inhambane, projetou-se a criação de um fundo a ser
constituído por meio de cotas não inferiores a Esc. 10$00 mensais, que se
destinaria a custear a educação, na Europa, não só dos filhos dos subscritores,
com também dos "filhos das pretas com europeus, espalhados pelo mato,
gênero promíscuo que se topa a cada canto", para que recebessem uma
educação mais sólida que lhes permitissem "meios de se governarem e
tornarem-se elementos primordiais na sua terra", ao se tornarem médicos,
veterinários, mecânicos, agricultores e operários em todas as especialidades (O
Brado Africano, 9/8/1919). Veja que a proposta só previa a educação de mulatos
cujos pais europeus os haviam abandonado aos cuidados das mães africanas. É
provável que os autores do projeto, imbuídos da convicção racista predominante,
não viam com bons olhos esta situação vivenciada por tais indivíduos que, ainda
que mestiços, comportavam-se como indígenas. Solução semelhante voltou à tona,
em 1930, pela mão de Mário Ferreira, que propunha a criação de uma lista de
contribuições que rodaria a Colônia e que, esperava-se, juntaria, no mínimo,
vinte mil libras, com as quais se tencionava mandar anualmente para estudar na
Europa "meia dúzia de rapazes pretos, de preferência pobres", para
cursarem engenharia, direito, marinha, comércio, "enfim, para todos estes
lugares que pesam na balança do mundo científico" (idem, 5/7/1930). Embora
o termo "preto" aqui usado não se referisse exclusivamente aos
indivíduos de pele negra, é de se notar que esta proposta não pretendia
beneficiar somente os mulatos, como a que foi formulada uma década antes em
Inhambane. O certo é que nenhuma destas propostas se concretizou, mas não
faltaram iniciativas mais modestas, como rifas e festas, para angariar fundos
para ajudar a manutenção das escolas (idem, 26/3/1932). Nem todos, contudo,
eram favoráveis a estas iniciativas, julgando que isto significava "fugir
à luta contra os reaccionários mascarados de liberais" que, em pleno
regime republicano, preconizavam "distinções de cores" e abandonavam
os indígenas à própria sorte (idem, 29/3/1924).
A pequena burguesia filha da terra partilhava da crença iluminista de que a
felicidade do povo decorria da difusão da educação, e não do simples
"aproveitamento da sua produção braçal por uma minoria de classe que se
obstina em conservar em si o saber e as faculdades precisas para tornarem
eficaz o trabalho nacional" (idem, 6/11/1920). A educação seria o meio,
fundamental e adequado, para transformar o indígenanum cidadão; ela teria o
condão de converter quem aprendia a ler e a escrever em "alguém",
passando este a se distinguir dos demais, distinção obtida "pelo estímulo
que a escola lhe infiltrou e pela maior facilidade de encontrar trabalho
remunerado" e que se traduzia quer num comportamento social diferenciado,
quer no trajar à européia (OA, 4/11/1916). A educação era vista como fonte de
emancipação e libertação social. Acreditavam que só a leitura e os estudos
transformariam os indígenas em "homens" capazes de se defenderem dos
"maltratos e vexames" de que eram alvos (O Brado Africano, 1/9/1928).
Sob esta ótica, a educação não podia ser deixada ao arbítrio individual e nem a
sua difusão poderia ser vista somente como uma responsabilidade do Estado,
passando, ao contrário, a ser encarada como um compromisso pessoal daqueles que
já detinham certo nível educacional que, apregoava O Brado Africano, deveriam
ter a obrigação, "como já civilizados", de trabalhar ativamente para
que nenhum "africano, preto ou mulato" deixasse de freqüentar a
escola, até, no mínimo, "saber ler, escrever e contar em português";
nenhum pai e nenhuma mãe deveriam deixar de mandar seus filhos à escola, pois o
"nativo português, que não sabe ler e escrever português, está fora da
civilização" e não poderia esperar que o tratassem como civilizado.1
Embora o jornal publicasse uma coluna em ronga, só admitia que o
"landim" fosse ensinado nos dois primeiros anos escolares, até que os
alunos tivessem aprendido, ainda que pouco, a língua portuguesa que daí em
diante deveria ser a única a ser usada no ensino. Depois dos dois anos
iniciais, eram partidários de que o ensino de português deveria ser ministrado
por professor português europeu e de preferência por aqueles que nada
conhecessem das "línguas de preto", pois julgavam que a maioria dos
professores indígenas, que ensinavam outros indígenas, não tinha o necessário
domínio da língua portuguesa. Os membros desta pequena burguesia filha da terra
insinuavam que havia uma intenção oculta quando se negava "aos nativos até
mesmo os lugares de contínuos e guardas de W. C.", mas os nomeavam para
ensinar a outros nativos.2 Apesar deste purismo, até certo ponto nacionalista,
o Grémio Africano acabou por sucumbir às prementes necessidades de seus sócios
ao inaugurar, em fevereiro de 1923, classes com aulas de inglês para dotar seus
membros de um saber que os capacitasse a enfrentar, mais bem armados, a feroz
concorrência e o racismo que os empurrava para fora do mercado de trabalho
assalariado (O Brado Africano, 10/2/1923).
O apelo às mães para que não deixassem de enviar seus filhos à escola não era
gratuito. Estavam conscientes de que as mães, mais do que reprodutoras
biológicas, eram reprodutoras ideológicas, função que transcendia em muito a
anterior.3 Eram de opinião de que para se conseguir atingir os fins e objetivos
que esperavam da educação era necessário, antes de tudo, difundir a educação
feminina, vista, mesmo por alguns colonos, como Augusto Baptista, como sendo
"uma questão basilar na civilização das raças inferiores" (OA, 10/9/
1913). O principal defensor da tese da educação feminina, contudo, foi João
Albasini. Para ele, a primeira escola a ser aberta em Lourenço Marques para
formar indígenas deveria ser um internato para moças, pois acreditava que era
preciso isolar as alunas do convívio familiar para poder educá-las com rigor e
eficiência. Tal educação viria suprimir o lobolo, o que tiraria as mulheres
indígenas da situação de "escravas perpétuas" dos homens a quem davam
de comer e vestir, para quem criavam os filhos e de quem aturavam as bebedeiras
(OA, 15/10/1913).4 Esta situação da mulher indígena e a supressão ou manutenção
do lobolo foi uma preocupação latente da pequena burguesia filha da terra e
diversas vezes emergiu, nas páginas d'O Africano e d'O Brado Africano, ao longo
das três primeiras décadas do século XX.
Como era de se esperar, as posições acerca do lobolo estavam longe de serem
concordantes, ou de se manterem inalteradas ao longo dos anos. Em 1912, por
exemplo, ainda que por motivos diferentes, muitos pareciam concordar com a
manutenção de tal prática. Um colaborador anônimo de O Africano afirmava que a
mulher indígena, em face do lobolo, era como que um "objecto que se compra
ou se troca para fins de procriação e trabalho", entretanto o "seu
estado de mentalidade, por enquanto, não pode aspirar a outra coisa";
outro afirmava que o lobolo deveria ser mantido, pois era "o único laço
que une os cônjuges indígenas e que por todos é respeitado; por isso, deve ser
conservado e também respeitado por todas as autoridades que orientam o destino
desta gente", pois sua supressão abriria o "caminho da prostituição
para a mulher indígena" (OA, 21/6 e 25/7/1912). Outros argumentavam que
"a mulher indígena não é, em regra, de se casar com um homem contra a sua
vontade; há excepções exactamente como entre os europeus" e que, se o
lobolo não era um bem, não era com certeza um mal, mas sim um costume muito
antigo, não havendo vantagens em destruí-lo, pois além do mais, sob outros
nomes e designações, era uma instituição universal. Argumentava-se ainda que
não era conveniente suprimi-lo, porque era "sabido que o único motivo que
leva[va] um indígena a procurar trabalho [era] o de arranjar um dote para
casar" (OA, 15/6/1912). João Albasini, entretanto, não arredava pé de suas
convicções e invectivava contra o que julgava ser uma atitude de complacência
das autoridades coloniais diante desta instituição indígena, reafirmando seus
antigos argumentos, ao dizer que "o lobolo não é um casamento; é uma
compra, é a escravatura' nua e descabelada sob a protecção das autoridades
cristãs, constitucionais e ultraliberais!".5
Ainda que o tema não tenha desaparecido das páginas d'O Brado Africano, ele
voltou com mais freqüência somente em 1929, numa polêmica que envolveu outros
periódicos.6 Naquela altura, já tendo João Albasini morrido, O Brado Africano,
em editorial, expressou claramente sua posição, afirmando concordar com o
lobolo, pois via nele uma forma de legitimação do casamento e não como uma
compra formal da mulher pelo homem. Dizia que o dote oferecido pelos pais da
noiva, na Europa, era muito mais corrupto que o lobolo e que se este viesse a
acabar não seria por decreto, mas "pela educação tanto do homem quanto da
mulher indígena, que percebendo seus direitos e deveres diante da Lei civil,
que desconhecem por não terem educação e instrucção, deixarão de praticá-
lo" (ibidem, 6/4/1929). Estes parecem ter sido os fundamentos que daí em
diante pautaram as ações do Grémio Africano e d'O Brado Africano. Quaisquer que
fossem os argumentos, o fato é que parecem não ter contribuído para mudar a
situação de subordinação real que as mulheres enfrentavam diante dos homens;
Covane afirma que, até 1996, momento em que escreveu seu trabalho, era comum
ouvir, em shangana, as pessoas se referirem às mulheres casadas através do
lobolo, como "ti-homu ta mina leti" ou "ti-mpondo ta mina
leti" o que significa "este é meu gado ou esta é minha cabeça de
gado" e "estas são minhas libras". Os maridos diziam que tinham
desperdiçado dinheiro quando, eventualmente, casavam com uma mulher que não
lhes dava filhos, que não era hábil cozinheira ou boa no manejo das machambas
(roças, lavouras) (Covane, 1996:36, 80-1)7.
Mas voltemos às teses então defendidas sobre a educação feminina. João Albasini
estava convencido de que a educação da mulher elevaria o homem inculto até ela;
já a educação somente concedida ao homem, por mais perfeita e completa que
fosse, "mais escravisaria a mulher e mais atormentaria o homem";
assim, era de opinião que a educação e instrução deveriam atingir os dois sexos
"para se tirar logo um proveito imediato, porque só a preta educada pode
regenerar o preto"; além disso, "educada, a preta deixará de ser a
mãe desleixada e porca que abandona os filhos à mercê do tempo [...] a negra
educada há de, por certo, levantar o nível moral desse homem" (OA, 29/8/
1912). Além disso, a mulher sem educação tendia a considerar o marido educado
como estando "viciado pelo contacto com gente civilizada" e o
repelia.8 O curioso nestas formulações é que, apesar dos preconceitos
tipicamente colonialistas em relação à mulher e mãe africanas, seus autores, ao
propugnarem pela educação feminina, acabavam por inverter a precedência dada à
educação masculina, reinante na sociedade burguesa da qual faziam parte,
reivindicando a dignificação e melhoria da qualidade de vida para as mulheres,
tema que não estava na agenda social da Colônia.
Mas que tipo de ensino deveria ser destinado às mulheres? As opiniões eram
bastante assemelhadas: o ensino da mulher indígena deveria ser como o do homem,
essencialmente prático. Como propunha, em 1911, o colaborador P. F., as
mulheres deveriam ser educadas nos princípios rudimentares da religião cristã,
para que substituíssem "as crenças e costumes selvagens" que a
impediam de "entrar no convívio da civilização"; e instruídas nos
deveres de uma boa dona-de-casa, capacitadas para os trabalhos de corte e
costura, o que tornaria fácil a ela e os seus filhos trajarem-se "à
europeia" (OA, 2 e 30/9/1911). Poucas eram as mulheres que opinavam nas
páginas do jornal, mas, quando o faziam, suas opiniões acerca deste assunto não
destoavam das propaladas pelos homens. A colaboradora Luiza, em artigo
publicado em 1915, argumentava que a principal tarefa do Governo, na Colônia,
seria a de construir escolas para "raparigas", nas quais estas
deveriam aprender corte e costura, cozinhar, lavar e passar, enfim, todo
"ensino caseiro" e, simultaneamente, aprender a ler e escrever
português e moral religiosa (OA, 23/1/1915). A educação da mulher tinha ainda a
"boa qualidade de acabar com o grande contingente de desgraçadas que bem
podem tomar o caminho honesto, serem boas mães, educadoras dos filhos" e,
além do mais, seriam úteis "a esta colónia onde se não tem uma criada, uma
cozinheira, uma engomadeira, uma ama, uma parteira, onde a rapariga só cresce
para o regalo da carne"; aliás, diante da negligência do Governo em
relação à educação feminina, João Albasini, concluía: "a prostituição faz
parte, infelizmente, da nossa administração" (OA, 15/10/1913 e 25/2/1914).
A educação feminina tal como concebida nas teses acima, não visava melhorar as
técnicas ou práticas próprias do universo da domesticidade das mulheres
indígenas, mas suprimi-las e substituí-las pelos valores e moralidade cristãos
e por hábitos de vestuário e alimentação considerados mais adequados à vida
moderna e urbana, enfim, civilizados. Não se tratava de propor melhorias neste
ou naquele processo de cozimento e conservação dos alimentos, mas de trocar o
fogão sobre as pedras pelo fogão de aço, mudar os referentes culinários
substituindo o cozido de farinha, a matapa, o caril e o amendoim, pelo pão,
pela batata e, se possível, pelo azeite e pelo bacalhau, alterando gostos,
impondo paladares e comportamentos gastronômicos. Algumas das habilidades
propostas não só visavam alterar hábitos seculares, mas o atendimento de
necessidades resultantes da colonização e urbanização, como a confecção de
roupas em substituição à capulana enrolada ao corpo, que não pedia agulha e
linha, goma ou ferro de passar. O domínio deste novo universo da domesticidade
prepararia a mulher para entrar no "convívio da civilização", quer
como consumidora, quer como força de trabalho, cujas habilidades eram
demandadas pelos lares brancos ou, mesmo, de alguns membros da pequena
burguesia filha da terra.
A educação feminina era vista também como uma fator de libertação da mulher,
quer em relação às práticas ancestrais, quer modernas. João Albasini e seus
companheiros esperavam que a mulher africana do futuro, educada nos valores
cristãos e treinada com as habilidades domésticas européias, pudesse tomar
consciência de sua situação de escrava e objeto dos homens, imposta tanto pela
manutenção do lobolo, quanto pela introdução e alastramento da prostituição e,
ao se libertar de ambas, a nova mulher tornar-se-ia útil à sociedade como
trabalhadora e educadora das gerações futuras. Se, por um lado, a educação das
almas libertaria o corpo, por outro a concepção do universo doméstico se
confunde, numa operação única, com a domesticação das almas e comportamentos.
Para que estas sugestões fossem ouvidas, protestos e mais protestos se seguiram
e, finalmente, em 1922, o Alto Comissário, Brito Camacho, instalou a Escola
Agrícola do Umbeluzi, masculina, e, a seguir, uma escola feminina instalada no
prédio do Grémio Africano, que recebeu o nome do mais ilustre membro da pequena
burguesia filha da terra, João Albasini, morto nesse mesmo ano. Em 1930, diante
de insistentes reclamações, o Governo decidiu apoiar, com verbas oficiais, a
construção de um novo prédio para que a escola pudesse implantar um regime de
semi-internato, tal como pensara o seu patrono (O Brado Africano, 14/7/1922 e
24/12/1930).
No início dos anos trinta, um colaborador, António Maria da Silveira, também
defendeu a tese de que a educação fosse estendida aos filhos dos régulos, não
para fazer deles "umas sumidades", mas para que, uma vez dotados dos
"princípios rudimentares de instrução primária" e de conhecimentos
úteis para a sua vida prática, deixassem de ser obtusos e boçaise se tornassem
eficientes agentes em prol de uma "mais rápida civilização dos seus"
(idem, 14/11/1931). Décadas depois, esta proposta acabou por ser implementada
pelo Estado.
Os filhos da terraconsideravam que a educação teria a capacidade de converter
em "utilidades reais as faculdades e aptidões nativas dos mesmos
indígenas" e, para que isto se concretizasse, partilhavam a opinião de que
a educação deveria ser "moral e cívica" e a instrução mais
profissional que literária, sendo que e o instrumento para isto seria a
instalação de escolas de artes e ofícios, repudiando o culto à "vida fácil
das secretarias" e o "vício da emprego público", tão enraizados
e, particularmente, visíveis em Lourenço Marques, por sua condição de
entreposto comercial e sede da burocracia colonial.9 Viam na aquisição, pelos
negros, de um ensino prático e útil ' a despeito do menosprezo e do horror que
"n'esta terra tem-se [...] às profissões manuais" ' não só um caminho
para a elevação cultural, mas uma condição para que a "gente da
terra" pudesse "lutar com vantagens contra os imigrantes", ao
menos, nos setores menos controlados pela rede de apadrinhamento então
existente (OA, 10/5/1912 e 3/7/1915).
Por se tratar de uma instituição eminentemente literária, O Africano se opôs,
em 1914, à criação do Liceu, pois temia que nem todos os alunos dali saídos
tivessem onde empregar "as suas prendas", já que o meio burocrático
era controlado pelos colonos brancos vindos da Metrópole. Opinava que, em seu
lugar, deveriam ser erguidas escolas de artes e ofícios, das quais sairiam
pessoas com habilidades técnicas, aptas a iniciarem os seus próprios negócios,
sem dependerem dos empregos públicos (OA, 5/12/1914). João Albasini, que era um
homem "das letras", defendia o ensino de ofícios nas escolas oficiais
ou nas missões, pois acreditava piamente que era o "trabalho que [haveria]
de regenerar uma raça indolente; só ele [teria] o condão de acabar de vez com
as superstições e fazê-la entrar no convívio franco da civilização".10
Estas teses seguiram pelos anos afora, mas, apesar disso, o Governo só havia
instalado quatro escolas "práticas" até o início dos anos 1940,
certamente porque, como lamentava João Albasini, para Moçambique estava
canalizada uma imigração de indivíduos de todas as nacionalidades, portadores
de todas as ciências, artes e ofícios, daí o Governo temer dar "à gente da
terra, aos nacionais, educação e instrucção condignas, de modo a poderem lutar
com vantagens contra os imigrantes!". Em resumo, temia-se a concorrência
(OA, 3/7/1915).
As missões católicas, ao menos em palavras, não esperaram qualquer reforma para
voltarem suas energias no sentido de dar ao indígena uma educação para o
trabalho. O superior da Missão de S. José de lhanguene, a principal instituição
para indígenas mantida pela Igreja Católica no Sul de Moçambique, era de
opinião que sem a instrução profissional a educação literária seria de pouco
proveito para o indígena e de "poucos e benéficos resultados futuros será
para a província". Julgava que seria pela instrução profissional que o
indígena teria que ser "levantado do estado social atrasado, em que se
encontra, e não pela instrucção literária apenas", pois esta só teria
"o condão de o lançar na miséria, enquanto aquela, fazendo dele um súbdito
laborioso e prestimoso, o lançará na senda da vida, aprestado para a grande
lucta humana".11Isto, entretanto, não passava de declarações de intenções,
pois a regra nas Missões católicas era outra; não só fracassavam em fornecer o
ensino regular, como até mesmo em incutir valores cristãos e comportamentos
tidos como civilizados. Anti-clericalismo à parte, o administrador da
Circunscrição do Bilene, em 1911, referindo-se à Missão São Paulo de Messano,
que atuava há mais de doze anos na área sob sua jurisdição, informava que
"difficil, senão impossível, será encontrar um só indivíduo que, pelo
benefício da sua acção, se distingua dos demais indígenas" e que na
população "nenhuma modificação se nota na sua maneira de proceder e viver,
o que bem demonstra serem nullos os effeitos da referida missão".12
O ensino missionário católico era extremamente precário, fútil e superficial: o
Governador Geral Brito Camacho afirmou que, ao visitar a escola da Missão de S.
José de lhanguene, em princípios dos anos 1920, as duas primeiras questões
postas pelo padre missionário foram: "O que são palavras exdrúxulas?"
e "O que são palavras polyssilábicas?" (Camacho, 1926:266-67).13
Mesmo os ex-alunos das missões católicas protestavam contra a artificialidade
do ensino ministrado, pois nelas aprendiam "um português, pouco menos que
mascavado" (OA, 9/9/1911) e onde "só ensinam a ler, escrever e
contar, quando na verdade o que nós o que desejamos não é só saber ler,
escrever e contar, mas sim escolas onde nos ensinem serviços, trabalho e
ofício, para tirarmos proveito da ciência de ler, escrever e contar".14
Esta reivindicação de um ensino mais instrumental por parte dos membros da
pequena burguesia filha da terra não coincide, embora algumas vezes se
confunda, com reivindicação semelhante feita pelos representantes da ideologia
colonial.
O Governador Geral Freire de Andrade, de quem João Albasini era bastante
próximo,15 era de opinião de que a educação que se deveria dar ao indígena era
no sentido de torná-lo um trabalhador útil que contribuísse para a riqueza da
Colônia e não de "lhe enraizar no espírito a falsa ideia de que é igual ao
branco e tem os mesmos direitos que este" (Andrade, 1950, vol. 2:74 e
ss.). Governo e colonos viam, no ensino eminentemente literário, um perigo à
disponibilidade de força de trabalho barata e submissa. O administrador da
Circunscrição do Marracuene, Roque Francisco d'Aguiar, em seu Relatório de
1910, publicado n'O Africano dois anos depois, afirmava que a instrução
proporcionada pela leitura era boa e útil para os "espíritos esclarecidos,
para as raças civilizadas, que sabem conjugar o estudo e o trabalho", mas
para as "raças atrasadas" essa instrução não bastava e poderia até
ser prejudicial, porque poderia "formar indivíduos cheios de falsas
teorias, exigentes porque se illustraram, descontentes porque não realizam as
suas aspirações e vadios porque não sabem aplicar a sua actividade, visto que a
escola lhes não criou hábitos de trabalho".16 De forma ainda mais
explícita, um colono, e dos mais progressistas, porque acreditava na evolução
dos indígenas, se manifestava nas páginas de O Africano, afirmando que, em
razão do "estado de civilização em que se encontra o indígena desta
colónia", o ensino literário não teria grande valor para ninguém. Segundo
argumentava, o indígena pouco aproveitaria e
[...] os que do indígena tem que servir-se não aproveitam muito mais.
O que deste ensino tem visto resultar, na grande maioria dos casos, é
que, o indígena logo que souber ler e escrever e falar mal o
português, despresa o serviço braçal e só quer o serviço de
"costa direita". Ora, isto é um mal maior do que deixá-los
estar como estão, mas como isto não é possível porque o preto é
perfeitamente susceptível de evoluir, e evolui de facto, é necessário
dar à instrucção indígena uma orientação prática ensinando ao preto a
dignidade do trabalho e o amor a este o torne um homem útil a nós que
os dominamos e dirigimos e à sociedade negra que, penso, nós não
podemos privar e extinguir; porque não podemos substituirmo-nos a ela
e por isso nos convém assimilar. (OA, 2/1/1911).
Durante a ditadura do Estado Novo, alguns colonos viram no ensino literário
para os indígenas uma fonte de perigo para o Estado: como o Governo não
empregaria todos os alunos saídos de tais escolas, estes começariam a dele
falar mal, tornando-se "sectários de doutrinas subversivas". Esta
"situação infeliz" só seria evitada com o estabelecimento de
"escolas práticas", que tivessem por objetivo e fim formar
trabalhadores que viessem a "concorrer para o desenvolvimento e progresso
da Colónia" (O Brado Africano, 13/6/1931).
Estes argumentos não eram exclusivos dos portugueses e nem dos católicos e,
embora não tenha feito um estudo comparativo, sou tentado a dizer que tais
idéias povoavam também a cabeça de colonialistas de outras nacionalidades, ao
menos assim deixam claro as palavras do médico-missionário ' protestante '
Albert Schweitzer, para quem não era necessário dar uma "alta
instrução" aos "povos primitivos" na África, pois, dizia ele,
"a civilização não deve começar pelo saber intelectual, e sim pelos
ofícios e pela agricultura"; o problema, porém, era que tanto a
administração quanto o comércio precisavam de indígenas suficientemente
instruídos, o que obrigava as escolas a elevarem o nível, formando ao menos
alguns "nativos capazes de escrever direito a língua dos brancos e fazer
cálculos já um tanto mais difíceis" (Schweitzer, s/d:108).
Alguns funcionários do governo, por seu turno, viam esta questão do ensino
prático e útil a partir de uma perspectiva bem distinta e inversa àquela
defendida pela pequena burguesia filha da terra, como deixavam bem claro as
"Bases para a remodelação da educação na Província de Moçambique",
elaboradas por João Ivens Ferraz de Freitas, em 1913. Seu autor espelhava-se na
África do Sul, "onde as raças não se misturam e se desenvolvem por
igual'", e no caso dos EUA, onde
os quatro e meio milhões de cidadãos de cor preta, devido às leis
severas para evitar a contaminação de raças, vivem no seu meio num
estado de civilização quasi tão avançada como os europeus, felizes e
cheios de orgulho próprio, colaborando com o branco para a grande
prosperidade d'aquella República.17
E, ainda, constatando que, cientificamente, como já havia sido provado que o
isolamento era fundamental para "apuram-se e preservam-se as raças dos
animaes", e, com mais razão, dele se devia lançar mão para se
"preservar as raças humanas", propunha, então, que fossem criados, na
Colônia, dois tipos de escola: uma para a educação indígena, que devia ter um
caráter basicamente instrumental, e outra para a educação dos europeus, que
deveria se pautar pelos liceus europeus e preparar os alunos para as
universidades e escolas superiores técnicas na África do Sul, sendo proibido
negros nas escolas para brancos e vice-versa.18
Embora não fosse oficializada legalmente, esta já era uma prática corrente na
Colônia. Ilustrativo desta situação foi o espanto com que a Comissão Municipal
da Ilha de Moçambique recebeu, em 1917, um pedido de uma mãe branca de Lourenço
Marques para matricular seu filho na Escola de Artes e Ofícios estabelecida
naquela Ilha. A Câmara aceitou o aluno, mas ponderou à mãe que lhe parecia
inconveniente para o futuro da criança que ela viesse a estudar naquele
estabelecimento "quasi exclusivamente frequentado por indígenas e mestiços
com mestres da mesma proveniência".19 Estas teses do desenvolvimento
separado das raças, com escolas separadas, não era apanágio de Ferraz de
Freitas ' já haviam sido defendidas por Freire de Andrade (Andrade, 1950, vol.
2:71), e nem se esgotaram com o passar dos anos.
Na década de 1920, o tema da separação dos alunos, consoante à cor, em escolas
diferentes ganhou as ruas. Pais pediam pela imprensa que fosse proibida a
freqüência de alunos negros nas escolas para brancos, porque consideravam que
tal convivência, além de "imoral" era "insalubre", pois os
alunos brancos arriscavam a saúde em escolas, onde "andam misturados com
os pretos". O Brado Africano reagia, dizendo que quem se sentia humilhado
com o tratamento igualitário representado pela mistura de raças nas escolas
deveria se mudar, já que, bem ou mal, recebia proventos que direta ou
indiretamente tinham como origem os indígenas que queria expulsar das
escolas.20
Até mesmo o Sindicato Geral das Classes Trabalhadoras, através de seus
dirigentes Joaquim Faustino da Silva e Manuel Alves Cardiga, líderes operários
e socialistas convictos, já havia se manifestado, no ano de 1923, a favor da
separação das raças, pois julgavam que ao "misturar as raças sem ter pelo
menos estudado a psicologia d'algumas", criava-se uma situação
insustentável, pois "os alunos europeus enfermam agora do mal dos de côr,
que é a falta de respeito aos paes, pelo simples motivo de estarem em
permanente contacto com os alunos de côr". Julgavam que a má conduta que
observavam na juventude era decorrente "da instrucção ministrada nas
escolas primárias, onde as raças estão juntas e todas elas se estragam".
Eram de opinião que, se o Estado queria educar os alunos "de cor",
deveria, primeiro, interná-los, tirando-os da convivência das mães que,
"por regra geral são indígenas sem educação e que jamais perdem o defeito
de beberem e consequentemente darem espectáculos indecorosos na frente dos
filhos que no dia seguinte freqüentam a escola com os europeus",
corrompendo-os.21
Tais apelos não foram em vão, e o Director da Instrucção Pública, em fevereiro
de 1924, editou uma circular proibindo os alunos indígenas, incluindo os negros
e mulatos, de freqüentarem as escolas centrais, repetindo o argumento de que
não se deviam misturar pessoas com psicologias diferentes. Segundo ele, isto
não causaria quaisquer problemas, já que os negros tinham, em Lourenço Marques,
duas escolas para o sexo masculino e uma para o feminino, que atendiam
plenamente as suas necessidades. O Brado Africano contestou, afirmando que além
da ilegalidade do ato discricionário, este último argumento era uma fraude,
pois as escolas destinadas aos alunos negros do sexo masculino tinham, cada
uma, somente dois professores para atenderem 318 alunos na Escola Paroquial e
400 alunos na Escola da Munhuana. A única escola para o sexo feminino
funcionava na sede do Grémio Africano e tinha somente 40 carteiras, embora
tivesse, em 1923, recebido 196 alunas para serem atendidas por uma única
professora. O jornal perguntava se depois de expulsar os alunos negros, depois
de "os vexar cá fora, exigindo-lhes passes e alvarás de assimilados;
depois de pretender marcá-los a ferro em brasa; depois de roubar-lhes o gado,
etc., etc., etc., poderá Portugal dizer que veio para a África para
civilizar?" e, crente que era no império da lei e na eficácia da pressão
internacional, ameaçava: "a Liga das Nações, aonde o nosso jornal tem
entrada, dirá sua justiça" (O Brado Africano, 16/2/1924). Lembrava, com
certo tom de ameaça que, se a Inglaterra se encontrava numa situação embaraçosa
em algumas colônias, isto se devia à sua política de "leis de
excepção", que criaram um "funesto erro de interpretação" entre
a minoria branca de que "a sua cor predominará ainda por muito tempo em
África" (idem, 6/3/1924). Era, sem dúvida, uma projeção para uma futura
África independente, feita por quem já estava desiludido não só com a ação
colonial portuguesa, mas que tinha consciência histórica do significado do
colonialismo.
Protestos de semelhante teor rechearam várias edições. Numa série de dez
artigos intitulados "As cores", o jornal argumentava, entre outras
coisas, que o patriotismo partia do coração e não da cor da pele, e que o
primeiro era igual em todos os homens. Dizia que a colônia deveria ser vista
como uma família e que numa mesma família, por vezes, havia filhos brancos e
filhos mulatos que não deveriam ser separados na escola; argumentava que se os
soldados negros haviam pegado em armas em defesa da pátria portuguesa e morrido
enfileirados ao lado dos soldados brancos, por que razão não poderiam os alunos
negros sentarem-se ao lado dos brancos e, por fim, apelavam para o fato de que
na Metrópole se obedecia à lei e não havia escolas separadas e que na Colônia
se deveria seguir o mesmo procedimento.22 Mais uma vez o argumento central era
o de que a cor da pele não deveria ser usada como critério para nada, pois não
era indício de boas ou más qualidades individuais e nada justificava medida tão
violenta. Mesmo que a separação tivesse sido motivada para excluir os "mal
vestidos ou descalços", ela não se justificaria, quer porque também havia
muitas crianças, homens e rapazes "não pretos ou mulatos" mal
vestidos e descalços pelas ruas da cidade, quer porque "nenhuma culpa
[cabia] a eles ou a nós de sermos pobres" (idem, 19/7/1924). O jornal logo
declarava conhecer a solerte razão que motivava a exclusão dos alunos negros
das escolas brancas e a negligência governamental em relação ao ensino:
conservar o nativo na sua ignorância primitiva, para que o negro só
sirva para trabalhos manuais debaixo do jugo dos brancos, analfabetos
que sejam, para que este possa dar honradamente a sua vergastada de
cavalo-marinho, se o preto não tira o chapéu ou [não] se levanta
quando ele passa.23
Estes argumentos, ponderações e protestos não impediram que, ainda em 1924, o
Alto Comissário interino, Moreira da Fonseca, ratificasse a separação racial
nas escolas e mandasse fechar a Escola Agrícola do Umbeluzi, destinada aos
alunos negros, única obra de Brito Camacho, seu antecessor, que recebera
elogios da pequena burguesia filha da terra.24
Nos anos que se seguiram a 1930 a situação piorou, pois o Estado Novo
oficializou a separação, instituindo diferentes níveis de ensino, consoante
fossem "cidadãos" ou não, mas que, efetivamente, separava segundo a
cor da pele dos alunos. O Instituto João de Deus, instalado na Namaacha, que
contava com recursos públicos, passou das práticas racistas menores à exclusão
pura e simples dos alunos negros e mulatos, levantando mais protestos. À frente
do Grémio Africano, o advogado Karel Pott ' filho de branco estrangeiro com uma
mestiça, e que tinha sido o primeiro mulato moçambicano a obter um diploma de
curso superior ' protestava, em 1932, retomando argumentos que João Albasini
usara em décadas anteriores: fechavam-se as escolas e dificultavam-se o
ingresso de alunos negros e mulatos nas existentes, jogando-os, se homens, na
marginalidade, e, se mulheres, no "monturo ignóbil da prostituição".
Falando com a experiência de quem havia representado ' como atleta de corrida '
Portugal nas Olimpíadas de Paris, em 1924, lamentava que em Lourenço Marques,
"terra mais de pretos portugueses que de brancos portugueses",
fechava-se a porta aos primeiros, impedindo-os de se tornarem "valores na
sua terra que é Moçambique e úteis à sua Pátria que é Portugal".25 Também
os professores indígenas não recebiam o tratamento que lhes era assegurado pela
lei. Eram discriminados nos cinemas, recebiam passagens de trem em vagões de 3a
classe, reservados aos mineiros, tinham pagamentos cortados sob qualquer
pretexto e não os recebiam corrigidos ao câmbio, a que faziam jus (O Brado
Africano, 30/4/1921, 3/10/1931 e 23/2/1935).
Até o momento em que foi instalada a censura à imprensa, em 1934, muitos
artigos insistiam na reivindicação da educação como sendo a única maneira de
formar cidadãos e elevar a condição de vida dos indivíduos,26 e denunciavam,
como fez Jorge Netto, em 1932, que as escolas destinadas aos africanos nada
ensinavam,
com medo que nos tornemos independentes, com medo que conheçamos os
nossos direitos, com medo que façamos concorrência. Ensinam-nos mais
a beber o álcool para nos bestializarmos, porque o papel que temos
que representar é o da besta de carga. (idem, 14/5/1932)
A partir de então, com a crescente pressão ideológica do Estado Novo, as
críticas passaram a ser tímidas e a invocar, quando muito, uma educação técnica
que habilitasse os "indígenas para o trabalho honesto e útil",
visando à prosperidade da Colônia, como fazia, em 1935, José Cantine, ou então
uma educação eminentemente cívica como defendia José Manuel, que, neste mesmo
ano, escreveu uma série de artigos sobre a educação na sociedade africana, nos
quais estabelecia que o objetivo primordial do ensino era levar a mocidade
negra a compreender as "esclarecidas doutrinas do Estado Novo" (idem,
22/6/1935).
Por vezes apela-se a colonizados de outras terras para reforçar seus próprios
argumentos. O são-tomense Dias da Graça, publicado pel'O Brado Africano
lamentava que aquilo que julgava ser a preocupação fundamental de Salazar '
expandir a escolarização na Metrópole ' não tinha correspondência nas Colônias.
Aliás, avaliava que tal preocupação com o ensino também era a diretriz seguida
unanimemente por "todas as nações dirigidas por chefes de inteligência,
equilíbrio e critério administrativo superiores", que tinham "alta
visão das realidades terrenas", como era o caso de Itália, Japão e
Alemanha, países que cita nominalmente, e de outras nações que relegou para os
"etc., etc.". Apelava para que os administradores e governadores
coloniais também seguissem esta orientação para que, assim agindo, fossem
"coerentes com os princípios doutrinais do Estado Novo, fiéis ao
pensamento e directrizes do Chefe, perfeitos propagadores e realizadores enfim
dos intuitos e fins nacionais da ditadura de 28 de Maio" (idem, 29/6/
1935).
Não é preciso gastar muitas palavras para sublinhar que havia um profundo
descompasso entre as reivindicações publicadas nas décadas anteriores e a
mensagem contida neste discurso. Agora até se agradecia "a boa
vontade" com que o governo do Estado Novo vinha trabalhando "a favor
da educação" (idem, 9/11/1935). Não podia haver maior discrepância entre
este discurso e a realidade. Ou era fina ironia, ou, e sou tentado a pensar
nesta hipótese, uma sincera declaração de servilismo oportunista.
Em 1930, o ensino colonial foi organizado em várias categorias, tornando claro
que havia objetivos diferentes a serem atingidos por cada tipo de ensino,
consoante se destinasse aos indígenas ou aos não-indígenas. A posição do
indivíduo na hierarquia racial da Colônia determinava quem estaria apto a qual
nível escolar, e o conteúdo a ser ensinado em cada um deles deveria estar
adequado ao que se julgava serem as aptidões mentais inatas dos alunos,
consoante suas raças. Foram, então, criadas escolas rudimentares para indígenas
e escolas de níveis mais avançados para negros não-indígenas, mulatos e
indianos e, finalmente, liceus para brancos, onde pouquíssimos mulatos e
indianos acabaram por ser admitidos. O ensino destinado ao indígena pretendia
conduzi-lo "gradualmente" da "vida selvagem para a vida
civilizada, formar-lhe a consciência de cidadão português e prepará-lo para
luta da vida, tornando-se mais útil à sociedade e a si próprio"; já o
ensino primário elementar, destinado aos não-indígenas, tinha como objetivo
dotar as crianças de um conhecimento básico de cultura geral, permitindo-lhes
prosseguir seus estudos nos níveis superiores.27
Estas práticas excludentes de caráter racista vigeram oficial e abertamente no
sistema de ensino colonial em Moçambique até o fim do sistema do indigenato, em
1961. Daí em diante persistiram, de forma escamoteada, até 1975, quando o
domínio colonial foi derrotado. Depois a Frelimo tentou instalar um sistema
universalista de ensino, includente, que visava a recuperar o descompasso
imposto pelo domínio colonial mas, infelizmente, após o fracasso de seu projeto
político, abriu-se o caminho para novas modalidades de exclusão em que não é
mais a cor da pele que prepondera, mas o saldo bancário dos pais. Esta é uma
nova história que pede atenção que escapa ao escopo deste artigo.